Os cogumelos da linguagem

Henry Munn

por Henry Munn:
extraído de “Alucinógenos e Xamanismo”, Michael J. Harner, ed., ©1973,

Oxford University Press

Traduzido da Psychedelic Library

Os Mazatecas, que têm uma longa tradição no uso de cogumelos, habitam uma cadeia de montanhas chamada Sierra Mazateca, no nordeste do estado mexicano de Oaxaca. Os xamãs deste ensaio são todos nativos da cidade de Huautla de Jimenez. Falando propriamente, eles são Huautecanos; mas como a língua que falam foi chamada de Mazateca e eles foram referidos na literatura antropológica anterior como Mazatecas, mantive esse nome, embora, estritamente falando, os Mazatecas sejam os habitantes da aldeia de Mazatlán, nas mesmas montanhas.

(1) HENRY MUNN investigou o uso de plantas alucinógenas entre os índios Conibo do leste do Peru e os índios Mazatecas das montanhas de Oaxaca, no México. Embora não seja um antropólogo profissional, ele residiu por longos períodos entre os Mazatecas e é casado com a sobrinha do xamã e da xamã mencionados neste ensaio.

Os nativos Mazatecas comem os cogumelos apenas à noite, na escuridão absoluta. A crença deles é que se você comê-los à luz do dia você enlouquecerá. As profundezas da noite são reconhecidas como o momento mais propício para insights visionários sobre as obscuridades, os mistérios e as perplexidades da existência. Geralmente vários membros de uma família comem os cogumelos juntos: não é incomum que pai, mãe, filhos, tios e tias participem dessas transformações da mente que elevam a consciência a um plano superior. A relação de parentesco é, portanto, a base da subjetividade transcendental que Husserl disse ser intersubjetividade. Os próprios cogumelos são consumidos aos pares, um casal que representa o homem e a mulher que simboliza o duplo princípio da procriação e da criação. Depois sentam-se juntos na sua luz interior, sonham, realizam e conversam entre si, presenças ali sentadas juntas, os seus corpos imaterializados pela escuridão, vozes externas à sua comunidade.

De um modo geral, para todos os presentes o objetivo da sessão é uma catarse terapêutica. Os produtos químicos de transformação da revelação que abrem os circuitos de luz, visão e comunicação, chamados por nós de manifestação da mente, eram conhecidos pelos indígenas americanos como remédios: os meios dados aos homens para saber e curar, para ver e dizer a verdade. Entre os Mazatecas, muitos, uma vez ou outra na vida, comeram cogumelos, seja para se curar de uma doença ou para resolver um problema; mas não são todos os que têm predileção por experiências tão extremas e árduas da imaginação criativa ou que gostariam de repetir com muita frequência tais viagens às profundezas estranhas e desconhecidas do cérebro: aqueles que o fazem são os xamãs, os mestres, cujos a vocação é comer cogumelos porque eles são os homens do espírito, os homens da linguagem, os homens da sabedoria. São indivíduos reconhecidos pelo seu povo como especialistas nessas aventuras psicológicas, e quando os outros comem os cogumelos chamam sempre para estar com eles, como guia, um daqueles que se considera particularmente familiarizado com estas modalidades do espírito. O curandeiro preside a sessão, pois assim como a família Mazateca é paternal e autoritária, a experiência libertadora se desenrola no contexto autoritário de uma situação em que, em vez de serem autorizados a falar ou encorajados a se expressar, todos são instados a manter cale-se e ouça enquanto o xamã fala por cada um dos presentes. Como disse um dos primeiros cronistas espanhóis do Novo Mundo: “Eles pagam um feiticeiro que os come [os cogumelos] e lhes conta o que lhe ensinaram. Ele faz isso por meio de um canto rítmico em voz alta.”

Os Mazatecas dizem que os cogumelos falam. Se você perguntar a um xamã de onde vêm suas imagens, ele provavelmente responderá: não fui eu que disse, foram os cogumelos. Nenhum cogumelo fala, isso é uma antropomorfização primitiva do natural, só o homem fala, mas quem come esses cogumelos, se for um homem de linguagem, fica dotado de uma inspirada capacidade de falar. Os xamãs que os comem, sua função é falar, são os oradores que cantam e cantam a verdade, são os poetas orais de seu povo, os doutores da palavra, aqueles que dizem o que está errado e como remediá-lo, os videntes e oráculos, os possuídos pela voz. “Não sou eu quem fala”, disse Heráclito, “é o logos”. A linguagem é uma atividade extática de significação. Intoxicado pelos cogumelos, a fluência, a facilidade, a aptidão de expressão de que alguém se torna capaz são tais que nos surpreendemos com as palavras que emergem do contato da intenção de articulação com a matéria da experiência. Às vezes é como se nos dissessem o que dizer, pois as palavras saltam à mente, uma após a outra, sem necessidade de serem procuradas: um fenómeno semelhante ao ditado automático dos surrealistas, excepto que aqui o fluxo de a consciência, em vez de ser desconectada, tende a ser coerente: uma enunciação racional de significados. Os campos de mensagens de comunicação com o mundo, os outros e consigo mesmo são revelados pelas salas de cogumelos. A espontaneidade que eles liberam não é apenas perceptiva, mas linguística, a espontaneidade da fala, do discurso fervoroso e lúcido, do logos em atividade. Para o xamã, é como se a existência se expressasse através dele. Desde o início, uma vez que o que comeram modificou sua consciência, eles começam a falar e no final de cada frase dizem tzo – “diz” em sua língua – como uma pontuação rítmica do dito. Diz, diz, diz. Está dito. eu digo. Quem disse? Nós dizemos, o homem diz, a linguagem diz, o ser e a existência dizem. (2)

De pernas cruzadas no chão, na escuridão das cabanas, perto do fogo, respirando o incenso do copal, o xamã senta-se com a testa franzida e a boca marcada da fala. Cantando suas palavras, batendo palmas, balançando para frente e para trás, ele fala na noite do barulho dos grilos. O que se diz é mais concreto que as luzes fantasmagóricas efêmeras: as palavras são materializações da consciência; a linguagem é um veículo privilegiado de nossa relação com a realidade. Vamos procurar os rastros do espírito, dizem os xamãs. Vamos ao milharal em busca dos rastros dos pés dos espíritos na terra quente. Então caminhemos pelo caminho em busca de significado, seguindo as palavras de dois discursos registrados como trilhas em fitas magnéticas e depois traduzidos da língua tonal nativa, para descobrir e explicitar o que é dito por um curandeiro e médico indiano mulher durante essas experiências extáticas da voz humana falando com força rítmica as realidades da vida e da sociedade.

A mulher baixa, corpulenta, idosa, com cara de lua risonha, vestida com huipil, o vestido longo, bordado de flores e pássaros, das mulheres mazatecas, um xale escuro enrolado nos ombros, os cabelos grisalhos repartidos ao meio e puxados em duas tranças, crescentes dourados pendurados em suas orelhas, inclinou-se para frente de onde ela se ajoelhou no chão de terra da cabana e segurou um punhado de cogumelos na fumaça perfumada e purificadora do copal subindo das brasas do fogo. fogo, para abençoá-los: conhecida pelos antigos mesoamericanos como a Carne de Deus (teonánactl), chamada pelo seu povo de Sangue de Cristo. Através de suas montanhas milagrosas de luz e chuva, os índios dizem que Cristo caminhou uma vez – é uma transformação da lenda de Quetzalcoatl – e de onde caiu seu sangue, a essência de sua vida, dali cresceram os cogumelos sagrados, os despertadores de o espírito, o alimento do luminoso. Carne do mundo. Carne da linguagem. No princípio era o verbo e o verbo se fez carne. No princípio havia carne e a carne tornou-se linguística. Alimento da intuição. Alimento da sabedoria. Ela comeu, mastigou, engoliu e arrotou; esfregou tabaco moído nos pulsos e antebraços como um tônico para o corpo; apagou a vela; e fiquei esperando na escuridão onde o incenso subia das brasas como uma névoa branca e brilhante. Então, depois de um tempo, veio a iluminação e a animação e, de repente, saindo do silêncio, a mulher começou a falar, a cantar, a orar, a cantar, a expressar a sua existência: (3)

“Meu Deus, você que é o dono do mundo inteiro, o que queremos é procurar e encontrar de onde vem a doença, de onde vem a dor e a aflição. Somos nós que falamos, curamos e usamos remédios. Então, sem percalços, sem dificuldades, eleve-nos às alturas e exalte-nos.”

Desde o início, o problema é descobrir qual é a doença que o doente sofre e prognosticar o remédio. Curandeira, ela come cogumelos para ver o espírito dos doentes, para revelar o que está oculto, para intuir como resolver o que não está resolvido: para uma experiência de revelações. A transformação do seu eu quotidiano é transcendental e dá-lhe o poder de se mover nas duas esferas relevantes da transcendência para alcançar a compreensão: a da outra consciência onde os sintomas da doença podem ser discernidos; e a do divino, a fonte dos acontecimentos no mundo. Junto com a empatia visionária, seu principal meio de realização é a articulação, o discurso, como se ao dizer ela dissesse a resposta e anunciasse a verdade.

“É preciso olhar e pensar no espírito dela onde dói. Devo pensar e buscar em tua presença onde está a tua glória, Meu Pai, que és o Mestre do Mundo. De onde vem essa doença? Foi um redemoinho ou um ar ruim que caiu na porta ou no vão da porta? Então vamos pesquisar e perguntar, da cabeça aos pés, qual é o problema. Vamos procurar os rastros de seus pés para encontrar a doença que ela sofre. Animais em seu coração? Vamos procurar os rastros de seus pés, os rastros de suas unhas. Que seja aliviado e curado onde dói. O que vamos fazer para nos livrarmos desta doença?”

Para os Mazatecas, a experiência psicodélica produzida pelos cogumelos está inseparavelmente associada à cura de doenças. A ideia de doença deve ser entendida como significando não apenas doenças físicas, mas também problemas mentais e problemas éticos. É quando algo está errado que os cogumelos são comidos. Se não há nada de errado com você, não há razão para comê-los. Até recentemente, os cogumelos eram o único remédio a que os indígenas recorriam em tempos de doença. ‘Seu valor medicinal não é de forma alguma meramente mágico, mas químico. Segundo os índios, a sífilis, o câncer e a epilepsia foram amenizados com seu uso; tumores curados. Eles foram empiricamente considerados pelos nativos como particularmente eficazes no tratamento de distúrbios estomacais e irritações da pele. A mulher cujas palavras ouvimos, como muitas outras, descobriu a sua vocação xamânica quando foi curada pelos cogumelos de uma doença: depois da morte do marido, começou a ter espinhas; ela recebeu os cogumelos para ver se eles a “ajudariam” e a doença desapareceu. Desde então, ela os comeu sozinha e os deu a outras pessoas.

Se alguém está doente, o curandeiro é chamado. O tratamento que ele emprega é químico e espiritual. Ao contrário da maioria dos métodos xamânicos, o xamã mazateca realmente dá remédios aos seus pacientes: por meio dos cogumelos ele os administra fisiologicamente, ao mesmo tempo que altera sua consciência. É provavelmente para as queixas psicossomáticas e os problemas psicológicos que a liberação da atividade espontânea provocada pelos cogumelos é mais corretiva: dada aos deprimidos, eles despertam uma catarse do espírito; aos que têm problemas, uma visão do seu modo existencial. Se não chegar à conclusão de que a doença é incurável, o curandeiro repete as sessões terapêuticas três vezes em intervalos. Ele também trabalha com os enfermos, pois seu estado de embriaguez de energia intensa e vibrante lhe dá uma força para curar, que ele exerce por meio de massagem e sucção.

Sua função mais importante, porém, é falar pelo doente. Os xamãs Mazatecas comem os cogumelos que liberam as fontes da linguagem para poder falar lindamente e com eloqüência para que suas palavras, ditas pelo doente e pelos presentes, cheguem e sejam ouvidas no mundo espiritual de onde vem a bênção ou a dor . A função do orador, no entanto, é muito mais do que simplesmente implorar. O xamã tem uma concepção de poesis (4) em seu sentido original como ação: as próprias palavras são remédios. Enunciar e dar sentido aos acontecimentos e situações da existência é doação de vida em si.

“O psicanalista escuta, enquanto o xamã fala”, aponta Lévi-Strauss:

“Quando se estabelece uma transferência, o paciente coloca palavras na boca do psicanalista, atribuindo-lhe supostos sentimentos e intenções; no encantamento, ao contrário, o xamã fala por seu paciente. Ele a questiona e coloca em sua boca respostas que correspondem à interpretação de seu estado. Um papel pré-requisito – o de ouvinte para o psicanalista e de orador para o xamã – estabelece uma relação direta com o consciente do paciente e uma relação indireta com seu inconsciente. Esta é a função do encantamento propriamente dito. O xamã fornece à mulher doente uma linguagem por meio da qual estados psíquicos não expressos e de outra forma inexprimíveis podem ser imediatamente expressos. E é a transição para esta expressão verbal – ao mesmo tempo que permite vivenciar de forma ordenada e inteligível uma experiência real que de outra forma seria caótica e inexprimível – que induz a libertação do processo fisiológico, isto é, a reorganização , no sentido favorável, do processo ao qual a mulher doente está submetida.” (5)

Estas observações do antropólogo francês tornam-se particularmente relevantes para a prática xamânica mazateca quando se considera que o efeito dos cogumelos, usados ​​para tornar alguém capaz de curar, é inspirar a linguagem ao xamã e transformá-lo em oráculo. “Que venham todos os santos, que venham todas as virgens”, canta a curandeira com sua voz cantante, invocando as forças benéficas do universo, chamando para ela as deusas da fertilidade, as virgens: férteis porque não têm foram semeados e estão frescos para que a semente dos homens gere filhos em seus ventres.

“A Virgem da Conceição e a Virgem da Natividade. Que Cristo venha e o Espírito Santo. Cinquenta e três santos. Cinquenta e três Santas. Que se sentem ao seu lado, na sua esteira, na sua cama, para livrá-la da doença.”

A esposa do homem em cuja casa ela falava estava grávida e durante toda a sessão da criação, desde o meio da gestação, sua linguagem tão espontânea quanto o seu ser que começou a vibrar, ela se preocupa com o surgimento da vida, com o nascimento de uma existência naquele mundo social cotidiano que. seu discurso em desenvolvimento expressa:

“Com o bebê que vai nascer não há sofrimento”, afirma. É questão de instante, não vai haver sofrimento algum, diz. De um momento para outro vai cair no mundo, diz. De um momento para outro vamos salvá-la da sua desgraça, diz. Que sua criatura inocente venha sem contratempos, diz. Seu elfo. É assim que é chamado quando ainda está no ventre de sua mãe. De um momento para outro, que vem sua criatura inocente, seu elfo, diz.”

“Vamos pesquisar e questionar”, diz ela, “desamarrar e desembaraçar”. Ela está viajando, pois há distanciamento e vai para lá, para algum lugar, sem sequer sair do lugar onde ela senta e fala. Sua consciência está vagando pelo espaço existencial. Sibila, vidente e oráculo, ela está no caminho do significado e a pulsação do seu ser é como o ritmo do caminhar.

“Vamos procurar o caminho, os rastros dos seus pés, os rastros das suas unhas. Do lado direito para o lado esquerdo, olhemos.” Para chegar à verdade, para resolver os problemas e agir com sabedoria, é necessário encontrar o caminho a seguir. O significado é intencional. Possibilidades são caminhos a serem escolhidos. Para a indígena, as pegadas são imagens de sentido, vestígios de um ir e voltar, pistas sedimentadas de significado a serem procuradas de um lado a outro e seguidas até onde levam: indicadores de direcionalidade; sinais de existência. A busca por significado é temporal, transportada para o passado e projetada para o futuro; o que aconteceu? ela pergunta, o que vai acontecer? deixando para trás para o que está à frente, vão as pegadas entre a partida e a chegada: manifestações do êxtase humano, existencial. E o método de olhar, do lado direito para o lado esquerdo, é a articulação do ora essa intuição, fato, sentimento ou desejo, ora aquilo, a intenção de falar trazendo à luz significados cujas associações e ulteriores elucidações são como a descoberta de um caminho onde os conteúdos a serem enunciados são trilhas a serem seguidas até o inexplorado, o desconhecido e o não dito em que ela se aventura pela linguagem, a buscadora de significado, a questionadora de significado, a articuladora de significado: o significado da existência que significa com sinais por a ação de falar a experiência da existência.

“Mulher dos remédios e curandeira, que caminha com a aparência e com a alma”, canta a mulher, abaixando-se no chão e endireitando-se, balançando-se para frente e para trás enquanto canta, dividindo a verdade no tempo de suas palavras: emissora de sinais . “Ela é a mulher do remédio e do remédio. É a mulher que fala. A mulher que junta tudo. Mulher médica. Mulher de palavras. Mulher sábia dos problemas.”

Ela não fala, na maioria das vezes, para nenhuma pessoa em particular, mas para todos: todos os que estão aflitos, perturbados, infelizes, intrigados com as dificuldades da sua condição. Agora, no aprofundamento do seu discurso, proferindo realidades, não alucinações, falando da existência num mundo comunitário onde o “nós” é mais frequente do que o “eu”, ela chega a uma doença e agravamento mais geral do que a doença física: a condição econômica de pobreza em que seu povo vive. “Vamos ao milharal em busca dos rastros dos pés, da sua pobreza e da sua humildade. Que venham o ouro e a prata”, reza ela. “Por que somos pobres? Por que somos humildes nesta cidade de Huautla?” Esse é o paradoxo: por que, no meio de uma riqueza natural tão grande como suas montanhas férteis e abundantes, onde cachoeiras caem em cascata através da folhagem verde de folhas e samambaias, eles deveriam ser miseráveis ​​pela pobreza, ela quer saber. A alimentação diária dos índios consiste em feijão preto e tortilhas cobertas com molho de pimenta vermelha; só raramente, em festivais, comem carne. Manchas brancas causadas pela desnutrição mancham seus rostos vermelhos. Os bebês costumam ficar doentes. É a riqueza que ela implora para resolver o problema da carência.

Os cogumelos, que crescem apenas na época das chuvas torrenciais, despertam as forças da criação e produzem uma experiência de abundância espiritual, de uma constituição de formas surpreendente e inesgotável que os identifica com a fertilidade e os torna uma mediação, um meio de comunhão, de comunicação entre o homem e o mundo natural do qual ele é a carne metafísica. O tema da xamã, mãe e avó, mulher da fertilidade, curvando-se enquanto canta e recolhendo a terra para si como se recolhesse com as mãos a colheita da sua experiência, é o de dar à luz, é o do crescimento. Agricultores, são pessoas de estreitas relações familiares e com muitos filhos: os aglomerados de casas neolíticas com telhados de colmo nos picos das montanhas são de grupos familiares alargados. O mundo da mulher é o da casa, a sua preocupação é com os seus filhos e com todos os filhos do seu povo.

“Toda a família, os bebês e as crianças, que a felicidade chegue até eles, que cresçam e amadureçam sem que nada lhes aconteça. Livrem-nos de todas as classes de doenças que existem aqui na terra. ela diz: “então virá o bem-estar, virá o ouro. Aí teremos comida. Nosso feijão, nossa cabaça, nosso café, é isso que a gente quer. Que venha uma boa colheita. Que venha riqueza, que venha bem- sendo para todos os nossos filhos. Todos os meus. brotos, meus filhos, minhas sementes”, canta ela.

Mas o mundo dos seus filhos não será o mundo dela, nem o dos seus avós. A sua sociedade indígena está a ser transformada pelas forças da história. Até recentemente, isolados do mundo moderno, os nativos viviam nas suas montanhas como as pessoas viviam no Neolítico. Havia apenas caminhos e eles caminhavam por onde quer que fossem. Trens de burros transportavam a principal colheita – café – para os mercados da planície. Agora foram construídas estradas, arrancadas da rocha e construídas ao longo das bordas das montanhas sobre precipícios para conectar a comunidade com a sociedade além. As crianças são pessoas de opostos: assim como falam duas línguas, mazateca e espanhol, vivem entre dois tempos: o tempo cíclico e atemporal de recorrência do Povo do Cervo e o tempo de progresso, mudança e desenvolvimento do México moderno. No seu discurso, nenhum rito estereotipado ou cerimónia tradicional com palavras e ações prescritas, falando de tudo, do antigo e do moderno, do que está a acontecer ao seu povo, a mulher dos problemas, perscrutando o futuro, reconhece o inevitável processo de transição, de desintegração e integração, que confronta os seus filhos: a geração mais jovem destinada a viver a crise e a dar o salto do passado para o futuro. Para eles é necessário aprender a ler e a escrever e a falar a língua deste novo mundo e para progredirem, serem educados e adquirirem conhecimentos, contidos nos livros, radicalmente diferentes das tradições da sua própria sociedade cuja língua é oral e não escrita, cujos instrumentos são a enxada, o machado e o facão.

“Também é necessário um livro. Bom livro. Livro de boa leitura em espanhol, diz. Em espanhol. Todos os seus filhos, suas criaturas, que seus pensamentos e seus costumes mudem, diz. Para mim não há tempo. Sem dificuldade, vamos embora. Com ternura. Com leveza. Com doçura. Com boa vontade.”

“Não nos deixe na escuridão nem nos cegue”, ela implora às origens da luz, pois nessas modalidades sobrenaturais de consciência há perigos de aberração e perturbação por todos os lados. “Vamos pelo bom caminho. O caminho das veias do nosso sangue. O caminho do Mestre do Mundo. Vamos pelo caminho da felicidade.” O caminho existencial, a condução da vida, é uma ideia à qual ela retorna continuamente. Os caminhos que ela menciona são as qualidades morais, físicas, mentais e emocionais típicas da experiência da atividade consciente animada, de onde brotam suas palavras: bondade, vitalidade, razão, transcendência e alegria. Sentada no chão, na escuridão, vendo com os olhos fechados, seu pensamento viaja por dentro, ao longo das artérias ramificadas da corrente sanguínea, e por fora, pelos campos da existência. Há uma qualidade fisiológica muito definida na experiência do cogumelo que leva os indígenas a dizer que, por uma espécie de introspecção visceral, eles ensinam o funcionamento do organismo: é como se o sistema fosse projetado diante de alguém numa visão do coração, o fígado, pulmões, órgãos genitais e estômago.

No decorrer do discurso da curandeira, é compreensível que ela, por espanto, por gratidão, pelo conhecimento da experiência, diga algo sobre os cogumelos que provocaram sua condição de inspiração. Num certo sentido, falar da “experiência do cogumelo” é uma reificação tão absurda quanto a antropomorfização dos cogumelos quando se diz que eles falam: os cogumelos são apenas os meios, em interação com o organismo, o sistema nervoso, e o cérebro, de produzir uma experiência alicerçada nas possibilidades ontológico-existenciais do humano, irredutível às propriedades de um cogumelo. A experiência é psicológica e social. O que a xamã fala é do seu mundo comunitário; mesmo as visões da sua imaginação devem ter origem no contexto da sua existência e dos mitos da sua cultura. O sujeito de outra sociedade terá outras visões e expressará um conteúdo diferente em seu discurso. Pareceria provável, contudo, que, à parte as semelhanças emocionais, as iluminações coloridas e os padrões puramente abstratos de uma atividade consciente universal, entre as experiências de indivíduos com diferentes inerências sociais, a característica comum seria o discurso, a julgar pelos seus efeitos. Os constituintes químicos dos cogumelos têm alguma ligação com os centros linguísticos do cérebro. “Assim diz o professor de palavras”, diz a mulher, “assim diz o professor de assuntos”. É paradoxal que a redescoberta de tais produtos químicos tenha relacionado seus efeitos à loucura e os chamado pejorativamente de drogas, quando os xamãs que os usavam falavam deles como remédios e diziam, por experiência própria, que a metamorfose que produziam colocava a pessoa em comunicação com o espírito. É precisamente o valor de estudar o uso de tais químicos nas chamadas sociedades primitivas que o caminho seja encontrado além do superficial para uma compreensão mais essencial dos fenômenos que nós, com nossa concepção limitada do racional, temos feito muito rapidamente, e talvez erroneamente, denominado irracional, em vez de compreender que tais experiências são revelações de uma atividade existencial primordial, de “um poder de significação, um nascimento de sentido ou um sentido selvagem”. (6) Com o que somos confrontados pelo discurso xamânico dos comedores de cogumelos? Uma modalidade de razão em que o logos da existência se enuncia, ou pelo delírio e pela incoerência do desarranjo?

“Eles não fazem nada além de falar”, diz a curandeira, “aqueles que dizem que esses assuntos são assuntos do passado. Eles não fazem nada além de falar, as pessoas que os chamam de cogumelos malucos”. Eles afirmam ter conhecimento daquilo de que não têm experiência; consequentemente, as suas alegações são absurdas: nada mais são do que expressões da convencionalidade que os cogumelos explodem ao revelarem o extraordinário; mera conversa, se não fosse pelo fato de que os todo-poderosos formam a força de repressão que, pela legislação e pela implementação da autoridade, passou a denominar infrações à lei e ao código de saúde, os meios de libertação que antes eram chamados medicamentos. Numa época de comprimidos e injeções, de medicina científica, diz a sábia, o uso dos cogumelos não é um vestígio anacrônico e obsoleto de práticas mágicas: o seu poder de despertar consciências e curar males existenciais não é menos relevante agora do que era no passado. Ela insiste que é ignorância da nossa dimensão de mistério, das fontes do significado, pensar que o seu efeito é a insanidade.

“Bem e felicidade”, diz ela, nomeando as emoções de seu ser ativado e perceptualizado. “Não são cogumelos malucos. São um remédio, diz. Um remédio para as pessoas decentes. Para os estrangeiros”, diz ela, falando de nós, viajantes da sociedade industrial avançada, que começamos a chegar às praças altas do seu povo. para fazer experiências com os cogumelos psicodélicos que cresciam nas montanhas dos Mazatecas. Ela tem uma noção da verdade, de que o que procuramos é uma cura para as nossas alienações, para sermos postos novamente em contato, por meios violentos se necessário, com aquele eu original e criativo que foi alienado de nós pela nossa classe média. famílias, educação e mundo corporativo de emprego.

“Lá na terra deles se leva em conta que há algo nesses cogumelos, que eles são bons, úteis”, diz ela. “O médico que está aqui na nossa terra. A planta que cresce neste lugar. Com isso vamos nos unir, vamos nos aliviar. É o nosso remédio. Quem sofre de dores e doenças, com isso vai é possível aliviá-lo. Eles não são chamados de cogumelos. Eles são chamados de oração. Eles são chamados de sabedoria. Eles estão lá com a Virgem, Nossa Mãe, a Natividade. Os índígenas não chamam os cogumelos de cogumelos comuns, eles os chamam de sagrados. Para a xamã, a experiência que produzem é sinônimo de linguagem, de comunicação, em nome de seu povo, com as forças sobrenaturais do universo; com plenitude e alegria; com percepção, insight e conhecimento. É como se alguém tivesse nascido de novo; portanto, sua padroeira é a Deusa do Nascimento, a Deusa da Criação.

“Com orações nos livraremos de tudo. Com as orações dos antigos. Nos limparemos, nos purificaremos com água limpa, lavaremos nossos intestinos onde estiverem infectados. Que as doenças do corpo sejam eliminadas. Doenças da atmosfera. Ar ruim. Que eles sejam eliminados, que sejam removidos. Que o vento os leve embora. Pois este é o médico. Pois esta é a planta. Pois este é o feiticeiro da luz do dia. Pois este é o remédio. Pois esta é a curandeira, a médica que resolve todos os tipos de problemas para nos livrar deles com suas orações. Vamos com bem-estar, sem dificuldade, implorar, implorar, suplicar. Bem-estar para todos os bebês e as criaturas. Vamos implorar, implorar por eles, suplicar pelo seu bem-estar e pelos seus estudos, que vivam, que cresçam, que brotem. Venha aquele frescor, ternura, brotos, alegria. Que sejamos abençoados, todos nós.”

Ela continua falando e falando, sem parar; há calmarias quando sua voz fica mais lenta, quase se transformando em um sussurro; depois vêm ondas de inspiração, momentos de fala intensa; ela boceja grandes bocejos, ri de júbilo, bate palmas no ritmo de sua interminável canção; mas depois da partida, os ápices do êxtase são alcançados, a intoxicação começa a diminuir, e ela soa o tema de voltar à existência normal e consciente do dia a dia novamente após esta excursão ao além, de reencontrar o ego que ela transcendeu:

“Voltaremos sem percalços, por um caminho fresco, um caminho bom, um caminho de bons ares; num caminho pelo milharal, num caminho pelo restolho, sem reclamação nem qualquer dificuldade, regressamos sem percalços. O galo já começou a cantar. Galo rico que nos lembra que vivemos nesta vida.”

O dia que amanhece é o de um mundo novo em que não há mais necessidade de caminhar até onde você vai. “Com ternura e frescor, vamos de avião, de máquina, de carro. Vamos de um lado a outro, procurando os rastros dos punhos, os rastros dos pés, os rastros dos pregos. “

Parecia que ela estava falando há oito horas. Os segundos de tempo foram ampliados, não pelo tédio, mas pela intensidade da experiência vivida. Quanto à temporalidade dos relógios, ela falava há apenas quatro horas quando concluiu com uma visão da transcendência que se tornara imanente e agora se retirara dela. “Existe a carne de Deus. Existe a carne de Jesus Cristo. Ali com a Virgem.” As palavras mais repetidas pela mulher são frescor e ternura; os do xamã, cujo discurso consideraremos agora, são o medo e o terror: o que se poderia chamar de pólos emocionais dessas experiências. Há uma doença de que falam os Mazatecas e que chamam de medo. Dizemos trauma. Caminham pelas suas montanhas ao longo dos seus árduos caminhos nos diferentes níveis do ser, subindo e descendo, à luz do sol e através das nuvens; por toda parte há grutas e abismos, bosques misteriosos, lugares onde vivem os “laa”, os pequeninos, anões e gnomos travessos. Rios e poços são habitados por espíritos com poderes de encantamento. À noite, nessas altitudes, os ventos sopram das profundezas, avançam para longe como monstros e passam, destruindo tudo em seu caminho com suas garras ferozes. Fantasmas aparecem nas brumas. Existem pessoas com mau-olhado. A existência no mundo e com os outros é traiçoeira, perigosa: algo inesperado pode acontecer com você e esse acontecimento, a menos que seja exorcizado, pode marcá-lo para o resto da vida.

Os indígenas dizem, seguindo as crenças de seus ancestrais, os siberianos, que a alma às vezes se assusta, o espírito vai, você é alienado de si mesmo ou possuído por outro: você se perde. É para esta neurose que os xamãs, os questionadores de enigmas, são os grandes médicos e os cogumelos o remédio. É tarefa do xamã mazateca procurar o espírito extravagado, encontrá-lo, trazê-lo de volta e reintegrar a personalidade do doente. Se necessário, paga os poderes que se apropriaram do espírito enterrando cacau, feijão de troca, envolto em pano de casca de oferenda, no lugar do susto que adivinhou pela visão. Os cogumelos, dizem os xamãs, mostram: você vê, no sentido que você percebe, isso lhe é revelado. “Traga seu espírito, sua alma”, implora a curandeira que acabamos de ouvir. “Deixe o espírito dela voltar de onde se perdeu, de onde ficou, de onde foi deixado para trás, de onde quer que seu espírito esteja vagando perdido.” Foi justamente com essa experiência traumática que começou a vocação xamânica do homem que estudaremos agora. Com quase cinquenta anos, ele come cogumelos há nove anos. Por que ele começou? “Comecei a comê-los porque estava doente”, disse ele quando questionado.(7)

“Por mais que os médicos me tratassem, não melhorei. Fui ao Hospital Latino-Americano. Também fui para Córdoba. Eu fui para o México. Fui para Tehuacán e não fiquei aliviado. Só com os cogumelos me curei. Tive que comer os cogumelos três vezes e o homem de San Lucas, que me deu, me propôs seu trabalho como curandeiro, dizendo: agora você vai receber meu estudo. Perguntei-lhe por que ele pensava que eu iria recebê-lo quando não queria aprender nada sobre sua sabedoria, só queria melhorar e ser curado da minha doença. Então ele me respondeu: agora não é mais você quem manda. Já é meio da noite. Vou deixar para vocês uma mesa com fumo moído e uma cruz embaixo para que aprendam esse trabalho. Diga-me qual dessas coisas você escolhe e gosta mais, disse ele, quando tudo estava pronto. Qual dessas obras você deseja? Respondi que não queria o que ele me ofereceu. Aqui você não dá ordens, respondeu ele; Sou eu quem vai dizer se você receberá ou não esse trabalho, porque sou eu quem vai te dar o seu diploma na presença de Deus. Então ouvi a voz do meu pai. Ele já estava morto há quarenta e três anos quando me falou pela primeira vez que comi os cogumelos: Este trabalho que está sendo dado a você, ele disse, sou eu quem lhe diz para aceitá-lo. Se você pode me ver ou não, eu não sei. Eu não conseguia imaginar de onde vinha essa voz que falava comigo. Foi então que o xamã de San Lucas me disse que a voz que eu ouvia era a do meu pai. A doença que eu sofria foi aliviada comendo cogumelos. Então eu disse ao velho, estou disposto a receber o que você me oferece, mas quero aprender tudo. Foi então que ele me ensinou a sugar o espaço com um tubo oco de cana. Sugar através do espaço significa que você que está sentado aí, eu posso tirar a doença de você através da sucção à distância.”

O que começou como uma doença física, a apendicite, tornou-se uma neurose traumática. Os médicos o levaram para uma sala de cirurgia – ele nunca havia estado em um hospital na vida – e o sufocaram com uma máscara de éter. E ele desistiu do fantasma enquanto lhe cortavam o apêndice. Quando ele acordou, ele estava assustado e deprimido, sem qualquer vontade de viver, ele estava farto. Em vez de se recuperar, ele ficou deitado como um morto com os olhos bem abertos, sem dizer nada a ninguém, de que adiantou, sua vida foi um fracasso, ele nunca se tornou o homem importante que aspirou ser durante toda a vida, agora era tarde demais; sua vida havia acabado e ele não tinha feito nada que seus filhos pudessem lembrar com respeito e admiração. Os médicos não puderam ajudá-lo porque não havia nada de errado com ele fisicamente; ao contrário do que acreditava, sobreviveu à operação; o corte em seu estômago foi costurado e curado; no entanto, ele permaneceu apático e indiferente, pois estava aterrorizado pela morte e seu espírito havia voado como um pássaro ou um cervo veloz. Ele precisava de alguém que saísse e caçasse para ele, para trazer de volta seu espírito e ressuscitá-lo.

O curandeiro, da aldeia vizinha de San Lucas, a quem ele chamou quando os médicos modernos não conseguiram curá-lo da estranha doença de que sofria, era conhecido em todas as montanhas como um grande xamã, um adivinho do destino. O velho baixo, franzino e enrugado tinha 105 anos. Ele deu ao seu paciente, que sofria de depressão, os cogumelos da vitalidade, e a terapia funcionou. Ele reviveu vividamente a operação em sua imaginação. Segundo ele, os cogumelos o abriram, arrumaram suas entranhas e costuraram novamente. Uma das razões pelas quais não se recuperou foi a sua convicção de que a medicina materialista era incapaz de realmente curar, uma vez que estava divorciada de toda cooperação com os espíritos e da dependência do sobrenatural.

Na sua imaginação, os cogumelos realizaram mais uma intervenção cirúrgica e corrigiram os erros do médico profano que considerava responsável pela sua letargia persistente. Ele passou por todo o processo em sua mente. Era como se ele estivesse operando sobre si mesmo, desfazendo o que lhe havia sido feito e fazendo tudo de novo. O trauma foi exorcizado. Ao visualizar intensamente, com uma consciência ampliada e ampliada, o que lhe acontecera sob anestesia, ele finalmente assumiu o acontecimento assustador que antes não conseguira integrar em sua experiência. Sua cura fisiológica foi completada psicologicamente; ele foi finalmente curado em virtude dos poderes assimilativos e criativos da imaginação. O morto voltou à vida, queria viver porque sentia mais uma vez que estava vivo e tinha forças para continuar a viver: antes exausto e desanimado, agora estava revigorado e rejuvenescido.

A cura dá certo porque não só seu espírito é despertado, mas também lhe é oferecido outro futuro: uma nova profissão que é uma compensação à sua humilde profissão de lojista. O antigo sábio, à beira da morte, quer transmitir ao homem no seu auge, o seu conhecimento. O que ele encontra é resistência. O outro não quer assumir a vocação de xamã, quer apenas ser curado, sem perceber que a cura é indissociável da aceitação da vocação que o libertará da repressão de suas forças criativas que causou a neurose com que ele está aflito. Não é mais você quem comanda, dizem-lhe, pois seu impulso de morrer é mais forte do que seu desejo de viver; portanto, a força contrária, para ser eficaz, não pode ser a dele: deve ser a vontade do outro transferida para ele. Você está muito longe para ter alguma palavra a dizer sobre o assunto, diz o curandeiro, já é meio da noite. Ao negar a vontade de seu paciente, ele a desperta e o prepara para aceitar o que lhe está sendo sugerido.

Mostra-lhe a mesa, o fumo, a cruz: sinais do trabalho do xamã. A mesa é um altar para trabalho. Quando os Mazatecas comem os cogumelos, eles falam das sessões como missas. O xamã, mesmo sendo uma figura secular não ordenada pela Igreja, assume um papel sacerdotal como líder dessas cerimônias. De modo semelhante, para os indígenas cada pai de família é o sacerdote religioso de sua casa. Acredita-se que o tabaco, San Pedro, tenha poderosos valores mágicos e curativos. A cruz indica um cruzamento de caminhos, uma intersecção de caminhos existenciais, uma mudança, além de ser o símbolo religioso da crucificação e da ressurreição. O xamã diz a ele para escolher. Mesmo assim o homem recusa. Quem manda não é você, diz o curandeiro que pretende evocar o outro eu do paciente para trazê-lo de volta à vida, o eu que é outro. Quer você queira ou não, você vai receber o diploma, diz ele, para incitá-lo com a perspectiva de prêmio e reputação. Vivendo numa cultura oral sem escrita, onde a aquisição de competências é tradicional, transmitida de pai para filho, de mãe para filhas e não contida em livros, para os mazatecas a sabedoria é adquirida nas experiências produzidas pelos cogumelos: são experiências de visão e comunicação que transmitem conhecimento.

Agora ele é falado. A voz interior torna-se subitamente audível. Ele ouve o chamado. Ele é instruído a aceitar a vocação de curandeiro que até agora tem assumido com firmeza. recusou. Ele não pode reconhecer esta voz como sua, deve ser de outra pessoa; e o xamã, decidido a dar-lhe um novo destino, seguro do talento que adivinhou, interpreta-lhe de qual região de si brota a ordem que ouviu. É seu pai quem está lhe dizendo para aceitar este trabalho. Uma característica de tais experiências transcendentais é que as relações familiares, em cujo nexo se forma a personalidade, tornam-se presentes para alguém com intensa vivacidade. Seu superego, em conjunto com a liberação de sua vitalidade, falou com ele e sua resistência foi liquidada; decide viver e aceita a nova vocação em torno da qual se reintegra sua personalidade: torna-se adepto das dimensões da consciência onde vivem os espíritos; um orador de palavras poderosas.

Na casa dele, entramos em um cômodo com paredes de concreto aparente e telhado alto de ferro corrugado. Sua esposa, envolta em xales, estava sentada numa esteira. Seus filhos estavam lá; sua família havia se reunido para comer cogumelos com o pai; um ou dois foram dados às crianças de dez e doze anos. A janela estava fechada e com a porta fechada, a sala estava isolada do mundo exterior; ninguém teria permissão de sair até que o efeito do que comeram tivesse passado, como precaução contra o perigo de perturbação. Ele era um homem baixo e corpulento, vestindo uma jaqueta reefer sobre uma camiseta, velhas calças marrons boca de sino até os pés curtos, um cartucho vazio em volta da cintura. No dia a dia, ele é dono de uma lojinha escassamente abastecida de enlatados, caixas de biscoitos, cerveja, refrigerante, doces, pães e sabonetes. Ele fica sentado atrás do balcão o dia todo olhando para a rua lamacenta da cidade onde cachorros rondam o lixo entre as pernas dos transeuntes. De vez em quando ele serve um copo de aguardente de cana para um cliente. Ele próprio não fuma nem bebe. Ele é um caçador em quem os instintos de seu povo sobrevivem desde a época em que eram caçadores e também agricultores: habitantes da Terra dos Veados.

Agora é noite e ele se prepara para exercer sua função xamânica. Seu bisavô era um dos conselheiros da cidade e curandeiro. Com o advento da medicina moderna e a invasão de estrangeiros em busca de cogumelos, os costumes xamânicos dos Mazatecas desapareceram quase completamente. Ele próprio já não acredita em muitas das crenças dos seus antepassados, mas como um dos últimos poetas orais do seu povo, mantém vivas conscientemente as suas tradições. “Como é bom”, diz ele, “falar como faziam os antigos”. Ele quase não fala espanhol e é fluente apenas em sua língua nativa. Espalhando os cogumelos à sua frente, ele selecionou e entregou um punhado deles a cada um dos presentes após abençoá-los na fumaça do copal. Depois de comidos, as luzes se apagaram e todos ficaram sentados em silêncio. Então ele começou a falar, sentado numa cadeira da qual se levantou para dançar, girando e arrastando-se enquanto falava na escuridão. Chovia torrencialmente, a chuva trovejava no telhado de ferro corrugado. Houve trovões. Relâmpagos na janela.

“Cristo, Nosso Senhor, ilumina-me com a luz do dia, ilumina minha mente. Cristo, Nosso Senhor, não me deixe nas trevas nem me cegue, você que sabe dar a luz do dia, você que ilumina a noite e dá a luz. Assim fez a Santíssima Trindade que fez e formou o mundo de Cristo, Nosso Senhor, iluminou a Lua, diz; iluminou a Grande Estrela, diz; iluminou a Estrela da Cruz, diz; iluminou a Estrela Gancho, diz; iluminou a Sandália, diz; iluminou o Cavalo” diz.

Quem come o cogumelo cai na sonolência durante a transição de uma modalidade de consciência para outra, numa absorção profunda, num devaneio. Gradualmente, as cores começam a surgir atrás dos olhos fechados. A consciência torna-se consciência de irradiações e refulgências, de um fluxo de padrões de luz que se formam e se desfazem, de correntes elétricas irradiando de dentro do cérebro. Neste momento inicial de despertar, vivenciando o amanhecer de luz no meio da noite, o xamã evoca a iluminação das constelações na gênese do mundo. As descrições mitopoéticas da criação do mundo são temas constantes destas experiências criativas. Desde o início, a visão que suas palavras criam é cosmológica. Os fenômenos subjetivos recebem correlações no mundo natural e elementar. Não se está dentro, mas fora.

“Este velho falcão. Este falcão branco que São João Evangelista segura. Que assobia na madrugada. Assobia à luz do dia. Assobia sobre a água.” De asas abertas, o pássaro anunciador, imagem da ascensão, círculos no céu da manhã, flutuando no vento do espírito acima do terreno primordial que o orador começou a explorar e delinear, sua respiração, suas inalações e exalações, amplificadas como seu ser expandido: uma explicação para a súbita expulsão de ar, os assovios e assobios agudos e misteriosos dos xamãs em seus vôos transcendentais para o além. “Caminho reto, diz. Caminho do amanhecer, diz.

Caminho da luz do dia, diz.” Através dos campos do ser há muitas direções a seguir, as existências são diferentes formas de viver a vida. A ideia de caminhos, que aparece tão frequentemente nos discursos xamânicos dos Mazatecas, advém do facto de estas experiências originárias serem criadoras de intenções. Estar em movimento, percorrendo um caminho, é uma visão expressiva da condição extática. O caminho que o orador segue é aquele que leva diretamente ao seu destino, à realização do seu propósito; o caminho do início revelado pelo sol nascente na hora do pôr-do-sol; o caminho da verdade, da clareza, daquilo que se revela no seu estar ali à luz do dia.

“Onde está a ternura de São Francisco Huehuetlan, diz. Onde está a Santíssima Virgem de São Lucas, diz. Onde está São Francisco Tecoatl, diz. San Geronimo Tecoatl, diz.” Ele começa a nomear as cidades de seu ambiente montanhoso, a dar vida à paisagem pela linguagem e a transformar o real em signos. Não é um mundo imaginário de fantasia que ele está criando, como aqueles que nos acostumamos a ouvir através dos relatos de sonhadores sob os efeitos de tais substâncias químicas psicoativas, terras lendárias de nostalgia, palácios e perspectivas preciosas, mas o mundo real no qual ele vive e trabalha transfigurado por sua jornada visionária e sua expressão linguística em um reino surreal onde o físico e o mental se fundem para produzir o brilho de um significado enigmático.

“Eu sou aquele que fala com a montanha pai. Sou aquele que fala com o perigo, vou varrer nas montanhas do medo, nas montanhas dos nervos”. O outro eu se anuncia, o ego transcendental, o eu da voz, o eu da força em comunicação com a força. Com sua existência intensificada, ele se posiciona por suas afirmações: eu sou quem. A referência simultânea a si mesmo na primeira e na terceira pessoa como sujeito e objeto indica a personalidade impessoal de seus enunciados, enunciados por ele e pelos próprios fenômenos que se expressam através dele. Ele afirma arrogantemente a sua função xamânica de mediador entre o homem e os poderes que determinam o seu destino; é ele quem conversa com tudo conotado por pai: poder, autoridade e origem. Ele é aquele que conhece bem as fontes do medo. A concepção de existência manifestada por suas palavras é de perigo, ansiedade e terror: experiências das quais ele se tornou conhecedor em virtude de seus próprios traumas, de sua vida como caçador e de suas aventuras nas regiões estranhas e secretas da psique. . Onde há pressentimentos e tremores, o curandeiro tranquiliza exorcizando as causas da perturbação. A sua obra reside entre os nervos, não no submundo, mas nas alturas, lugares de tanta angústia como as profundezas, onde a euforia da elevação é acompanhada pelo medo de cair no vazio dos abismos. Talvez seja por isso que, em toda a América Central e do Sul, a concepção de doença nas áreas de selva é a paranóia da bruxaria, enquanto nas áreas montanhosas prevalece a ideia vertiginosa de medo e perda de si. (8)

“Lá em Bell Mountain, diz. Lá está o medo sujo. Lá está o lixo, diz. Lá está a garra, diz. Lá está o terror, diz. Onde está o dia, diz. Onde está o palhaço, diz. O Lorde Palhaço, diz.” Na visão ele vê, em todo o seu ser ele sente um lugar repulsivo de sujeira e contaminação, um local fedorento de pustulência, de podridão e náusea, onde está uma garra que poderia ter tratado com crueldade uma ferida infectada. Suas palavras, emanando maldade, parecem insinuar algum ato horrível que deixou um rastro de culpa. O sinistro paira no ar. Onde? Onde está o palhaço, ele diz. A preocupação e a despreocupação estão ligadas, o pavor e o riso, a partir dos quais captamos uma visão do significado do assunto: durante tais experiências de libertação, é provável que sejam encontradas perturbações da consciência pela consciência, quando a reflexão entra em conflito com a espontaneidade, culpa com inocência. É como se o eu recuasse assustado da sua ebulição, do seu esquecimento, incapaz de suportar a sua despreocupação por muito tempo sem ansiedade. Mas o exuberante jorrar das formas é incessante, neste fluxo, nesta fonte, neste brotar energético da vida, o passado é deixado para trás para o futuro, tudo se renova. Além do bem e do mal está a ludicidade do espírito criativo encarnado pelo palhaço, personagem do acaso, do riso com sua ciência alegre.

“Treze redemoinhos superiores. Treze redemoinhos da atmosfera. Treze palhaços, diz. Treze personalidades, diz. Treze luzes brancas, diz. Treze montanhas de pontos, diz. Treze falcões velhos, diz. Treze falcões brancos, diz. Treze personalidades, diz. Treze montanhas, diz. Treze palhaços, diz. Treze picos, diz. Treze estrelas da manhã.”

A enumeração, pelo que parece ser um processo de associação livre, de redemoinhos, palhaços, personalidades, luzes, montanhas, pássaros e estrelas, é uma expressão de sua inventiva extática. Quer ele diga o que vê ou veja o que diz, sua consciência ativada é um turbilhão de imaginações e luzes coloridas. Por que sempre treze? Porque doze é muitos, mas é um número par, enquanto treze é demais, um exagero, e significa uma multidão. Além do mais, ele provavelmente gosta do som da palavra treze.

A sessão em forma de cogumelo da linguagem cria a linguagem, cria as palavras para fenômenos sem nome. As luzes brancas que às vezes aparecem no céu à noite, ninguém sabe como chamá-las. A mente ativada pelos cogumelos, vinda do centro do mistério, das fontes semânticas mais profundas do humano, inventa uma palavra para designá-los. Os antigos sábios, para descrever as iluminações caleidoscópicas de suas noites xamânicas, traçaram uma analogia entre o interior e o exterior e formaram uma palavra que relacionava o espectro de cores criado pela luz do sol nos borrifos das cachoeiras e nas brumas da manhã com seus experiências conscientes de iluminação extática: estes são os redemoinhos de que ele fala, configurações giratórias de luzes iridescentes que lhe aparecem enquanto ele fala, girando e girando e girando em torno de si mesmo pelos ventos turbulentos do espírito. Os palhaços são personagens frequentes em seu discurso, os cogumelos travessos ganham vida, personificações da alegria, invenções do espontâneo realizando incríveis feitos acrobáticos, imaginações engraçadas de alegria. Personalidades são mais sérias. Outros. Sociedade. Os rostos das pessoas que ele conhece aparecem para ele e depois desaparecem para serem sucedidos pela aparição de mais pessoas. A pluralidade de consciências encarnadas torna-se presente para ele. Multidão. O mundo dele é elementar, onde pássaros cruéis e predadores voam no céu; onde a estrela da manhã brilha no firmamento. Fora do quarto escuro onde ele está falando, as montanhas ficam por toda parte durante a noite.

“Sou aquele que fala com a montanha perigosa, diz. Eu sou aquele que fala com a Montanha das Cumes, diz. Eu sou aquele que fala com o Pai, diz. Eu sou aquele que fala com a Mãe, diz. Onde joga o espírito do dia, diz. Montanha de Água Fria, diz. Montanha do Rio Grande, diz. Montanha da Colheita e da Riqueza, diz. Onde está o terror do dia, diz. Onde está o caminho da madrugada, o caminho do dia.” diz.

É significativo que, embora a experiência psicodélica produzida pelos cogumelos seja de elevada perceptividade, o que eu digo é de importância privilegiada em relação ao que vejo. A escuridão total da sala, isolada do exterior, impossibilita qualquer percepção direta do mundo: condição de interiorização para o seu renascimento visionário em imagens. Nessa escuridão, abrir os olhos é o mesmo que deixá-los fechados. A escuridão está viva com desenhos impalpáveis ​​no ar milagroso. Mesmo as aparências das outras presenças, por modéstia, são protegidas pela obscuridade do olhar demasiado penetrante e revelador da percepção transcendental. Livre da factualidade do dado, a atividade constitutiva da consciência produz visões. É este aspecto de tais experiências, com exclusão de todas as outras, que as levou a serem chamadas de alucinógenas, sem que tenha sido feita qualquer tentativa de distinguir fantasia de intuição. O xamã mazateca, porém, em vez de ficar calado e sonhar, como se esperaria que ele fizesse se a experiência fosse meramente imaginativa, fala. Há momentos em que, em meio ao seu êxtase, assobiando e girando, ele exclama: “Veja como estamos vendo lindos!” – surpreso com as iluminações e padrões que percebe – “Veja como estamos vendo lindos!” . Veja quantas coisas boas de Deus existem. No entanto, o eu que fala enuncia uma acção e uma função, dotadas de uma importância e de uma eficácia que eu sou aquele que vê, pouco mais que uma interjeição de espanto, carece totalmente.

“Eu sou aquele que fala. Eu sou aquele que fala. Eu sou aquele que fala com as montanhas, com as montanhas maiores. Fala com as montanhas, diz. Fala com as pedras, diz. Fala com a atmosfera, diz. Fala com o espírito do dia.” Para os Mazatecas, as montanhas são onde estão os poderes, seus cumes, suas cordilheiras, irradiando eletricidade durante a noite, seus picos e suas bordas oscilando nos horizontes dos relâmpagos. Falar com é estar em contato, em comunicação, em conversa com o espírito animado do inanimado, com o material e o imaterial. Falar com é ser falado. Pela conversão do seu ser, o xamã tornou-se transmissor e receptor de mensagens.

“Eu sou o relâmpago seco, diz. Sou o relâmpago do cometa, diz. Sou o relâmpago perigoso, diz. Sou o grande relâmpago, diz. Sou o relâmpago dos lugares rochosos, diz. Sou a luz de o amanhecer, a luz do dia, diz.” Ele se identifica com os elementos, com o crepitar da eletricidade; ele mesmo é sobre-humano e elemental, suas palavras saem dele como um raio. Faíscas voam entre as conexões sinápticas dos nervos. Ele está iluminado com luz. Ele é luminoso. Ele é força, luz e fala rítmica e dinâmica.

O mundo criado pelas palavras da mulher, articulando a sua experiência, era feminino, materno, doméstico; o discurso masculino do xamã evoca o mundo natural, ontológico. “Ela está implorando por você, essa pobre e humilde mulher”, disse a xamã. “Mulher de huipile, diz. Mulher simples, diz. Mulher que não tem nada, diz.” O homem, consciente de sua virilidade, anuncia: “Eu sou aquele que brilha”.

“Onde está a ravina suja, diz. Onde está a ravina perigosa, diz. Onde está a grande ravina, diz. Onde está o medo e o terror, diz. Onde corre a água lamacenta, diz. Onde corre a água fria, diz .” É uma paisagem de ravinas, montanhas e riachos, ele mapeia com suas palavras, de qualidades físicas com valores emocionais: um terreno do ser em suas variações. Ele evoca a criação, a gênese de todas as coisas desde os tempos das brumas; ele elogia, se maravilha, se maravilha com o mundo. “Deus, o Espírito Santo, ao criar e unir o mundo. Fez grandes lagos. Fez montanhas. Olhe para a luz do dia. Veja quantos animais. Olhe para o amanhecer. Olhe para o espaço. Grandes terras. Terra de Deus o Espírito Santo.” Ele assobia. A alma foi originalmente concebida como respiração. O vento, diz ele, está passando pelas árvores da floresta. O seu espírito vai voando de um lugar para outro pelo território da sua existência, situando os vários locais do mundo nomeando-os, chamando-os à existência visitando-os com as suas palavras: onde está, diz ele, onde está, para criar a geografia da realidade dele. Eu estou, onde está. Ele desdobra as extensões do espaço ao seu redor, aponta e torna presente como se ele próprio estivesse ali. “Onde está o sangue de Cristo, diz. Onde está o sangue do adivinho, diz. Onde está o terror e o susto do dia, diz. Onde está o lago superior, diz. Onde está o grande lago, diz. Lá onde está pássaros grandes voam, diz. O mundo não é apenas paradisíaco por existir, mas também assustador, com perigos à espreita por toda parte. “Montanhas de grandes redemoinhos. Onde está a fonte do terror. Onde está a fonte do medo.” E os diferentes lugares são habitados por presenças, por espíritos residentes, os gnomos, as pessoas pequenas. “Gnomo da Água Fria, diz. Gnomo de Água Clara, diz. Gnomo de Big River, diz. Grande Gnomo. Gnomo da Montanha Queimada. Gnomo do espírito do dia. Gnomo da Montanha Tlocalco. Gnomo do Posto de Marcação. Gnomo Branco. Gnomo Delicado.”

O xamã, diz Alfred Metraux, é “um indivíduo que, no interesse da comunidade, mantém por profissão um comércio intermitente com os espíritos ou é possuído por eles”. (9) De acordo com a concepção clássica, derivada dos visionários extáticos da Sibéria, o xamã é uma pessoa que, por uma mudança na sua consciência cotidiana, entra nos reinos metafísicos do transcendental para negociar com os poderes sobrenaturais e obter um compreensão das razões ocultas dos acontecimentos, das doenças e de todo tipo de dificuldade. Os curandeiros Mazatecas são, portanto, xamãs em todos os sentidos da palavra: o seu meio de inspiração, de abertura dos circuitos de comunicação entre si, os outros, o mundo e os espíritos, são os cogumelos que revelam, pelo seu poder psicoativo, uma outra modalidade de atividade consciente do que o normal. O simples fato de comer cogumelos, entretanto, não faz um xamã. Os indígenas reconhecem que não é para todos que falam; em vez disso, há alguns que têm um desejo de despertar, uma disposição para explorar as dimensões surrealistas da existência, a necessidade de um poeta de se expressar numa linguagem superior à linguagem comum da vida cotidiana: para eles, num sentido muito particular, os cogumelos são o remédio de seu gênio. No entanto, existe uma ideia muito definida entre os Mazatecas sobre o que o curandeiro faz, e uma vez que os cogumelos são o seu meio de se converter à condição xamânica, as características essenciais desta variedade particular de experiência psicodélica devem ser manifestadas pelas suas atividades.

“Eu sou aquele que reúne”, diz o curandeiro para definir sua função xamânica:

“Sou quem fala, quem busca. Sou aquele que procura o espírito do dia. Procuro onde há medo e terror. Eu sou aquele que conserta, aquele que cura o doente. Fitoterapia. Remédio do espírito. Remédio para o clima do dia. Eu sou aquele que tudo resolve. Verdadeiramente você é homem o suficiente para resolver a verdade. Você é aquele que monta e resolve. Você é quem monta a personalidade. Você é aquele que fala com a luz do dia. Você é aquele que fala com terror.”

É imediatamente óbvio que existe uma discrepância entre a concepção indígena do efeito dos cogumelos e as ideias da psicologia moderna: enquanto nos relatórios de investigação experimental se diz que eles produzem despersonalização, esquizofrenia e perturbação, o xamã Mazateca, inspirado por eles, considera ele mesmo dotado do poder de reunir o que está separado: ele pode curar a personalidade dividida, liberando da repressão as fontes da existência para revelar a vida extática do eu integral; e a partir de pistas díspares, pela súbita síntese da intuição, concretizar a solução dos problemas. As palavras com que ele afirma o que é o seu trabalho indicam uma atividade criativa que não está fora do âmbito da razão nem fora do contato com a realidade. Centro de campos de mensagens convergentes, sensível ao significado de tudo o que o rodeia, ele expressa e comunica, em contacto direto com os outros através da fala, um articulador do não dito que liberta pela linguagem e faz compreender. Suas intuições penetram nas aparências até a essência dos assuntos. A realidade revela-se através dele em palavras, como se tivesse encontrado uma voz para se expressar. O xamã é um significante em busca de significado, com a intenção de trazer à luz o que está oculto, o obscuro, o lúcido, intrépido o suficiente para perceber que os maiores segredos estão em regiões de perigo. Ele é o médico não só do corpo, mas de si mesmo, aquele que investiga as origens do trauma, o interrogador do familiar e do misterioso. Na verdade, é como se aquilo que ele comeu, em virtude das possibilidades que lhe descobre, fosse do espírito, pois a percepção torna-se mais aguçada, a fala mais fluente e a consciência do significado é acelerada. Os cogumelos são um remédio ao qual se recorre para resolver perplexidades porque a experiência é criadora de intenções. Concebe-se o caminho a partir da problemática, o sentido da resolução. O xamã, é aquele que está em comunicação com a luz e com as trevas, que sabe da ansiedade e como dissipá-la: o homem da verdade, psicólogo da alma perturbada.

“Onde está o medo? Onde está o terror? Onde ficou o espírito desta criança? Tenho que procurar por isso. Tenho que localizá-lo. Eu tenho que detê-lo. Eu tenho que pegar. Eu tenho que ligar. Tenho que assobiar no meio do terror. Tenho que assobiar através das nuvens cúmulos. Tenho que assobiar com o espírito do dia.”

Mais uma vez surge a noção de alienação, a doença do medo, a perda do eu. A tarefa do xamã, caçador de espíritos extravagantes, é reassociar o dissociado. Ele mesmo explica seu método com estas palavras:

“Sob o efeito dos cogumelos, o espírito perdido é assobiado através do espaço, pois o espírito é alienado, mas por meio dos cogumelos pode-se invocá-lo com um assobio. Se a pessoa está assustada, os cogumelos sabem onde está o seu espírito. São eles que indicam e ensinam onde está o espírito. Assim pode-se falar com ele. O doente vê então o lugar onde ficou o seu espírito. Ele se sente como se estivesse amarrado naquele lugar. O espírito é como uma borboleta presa. Quando é assobiado chega onde se está chamando. Quando o espírito chega na pessoa, o doente suspira e depois é limpo.”

Torna-se evidente pelas palavras usadas para descrever a condição de susto – diz-se que o espírito foi deixado para trás, ficou em algum lugar, foi amarrado e, como veremos mais tarde, aprisionado – que, assim como no etiologia das neuroses, a doença é uma fixação num acontecimento traumático do passado que o indivíduo é incapaz de transcender e do qual deve ser libertado para ser curado. Não é por acaso que os cogumelos, que provocam a fuga do espírito, devam ser considerados o meio de afugentar o que voou. O xamã sai em busca; pela imaginação empática, às vezes até pelo diálogo com a pessoa perturbada, ele obtém uma visão das razões do estado de choque, o que lhe permite tornar as suas invocações relevantes para o caso individual. O paciente, pelo poder mnemônico dos cogumelos, livre de inibições e repressões, relembra o acontecimento traumático, supera a síndrome de repetição que o perpetua em virtude da espontaneidade extática que dele foi liberada, sofre uma catarse e é trazido de volta à vida, integrado novamente.

Outro método de recuperar o espírito perdido, usado assim como a invocação, é a troca por ele. Comerciantes, os Mazatecas concebem todas as transações em termos de comércio, de troca de um valor por outro. Ao longo de seu discurso, o xamã, lojista no cotidiano, sonha com dinheiro, com riqueza, com a libertação da pobreza. “Banco Pai. Banco Grande. Onde está a luz do dia. Córdoba. Orizaba.” Ele cita as cidades onde os comerciantes de Huautla vendem no mercado sua principal safra comercial – o café. “Onde está o Banco Superior, diz. Onde está o Banco Grande, diz. Onde está o Banco Bom, diz. Onde há dinheiro de ouro, diz. Onde há dinheiro de prata, diz. Onde há notas grandes, diz . Onde está o banco do ouro, diz. Não é de surpreender que entre essas pessoas mercantis se considere possível comprar de volta o espírito perdido, recuperá-lo em troca de outro valor.

“Onde está o susto do espírito. Vou pagar ao espírito. Vou pagar o dia. Vou pagar as montanhas. Vou pagar as esquinas.” O xamã se torna um negociador transcendental. Os poderes sobrenaturais lhe dizem o quanto eles exigem como resgate pelo espírito que expropriaram, então ele se compromete a fazer o acordo. Ele mesmo explica desta forma:

O cacau serve para pagar a montanha e para pagar a vida do doente. O Senhor da Montanha pede uma galinha. Este é um assunto importante porque são os Mestres das Montanhas que falam. Essa é a crença dos antigos. A galinha é quem tem que carregar o cacau. Carregado de cacau tem que ir e deixar a oferenda na montanha. Uma vez na montanha, vendo-o carregado, ninguém se preocupa em pegá-lo, pois já pertence aos Mestres da Montanha, onde está perdido para sempre. O cacau que carrega é dinheiro para o Mestre da Montanha. O papel da casca é usado para embrulhar o embrulho e a pena de papagaio que o acompanha. O significado da pena do papagaio é que é como se o próprio papagaio chegasse à montanha. É ele quem chega anunciando com suas canções a chegada da galinha carregada de cacau, a chegada do dinheiro para pagar o que foi pedido, como se estivesse sendo paga a liberdade de um preso. É como se uma autoridade lhe dissesse: “Este preso será libertado mediante uma multa de cem pesos e se não for paga não será libertado”. A transação provavelmente tem o efeito psicológico de amenizar a ansiedade com a garantia de que os poderes irritados por uma transgressão foram apaziguados.

Como vimos, embora esses cantos xamânicos sejam criações de linguagem criadas pela criatividade individual dos falantes, a estrutura dos discursos, frases curtas articuladas em sucessão terminadas pela pontuação da palavra diz, tendem a ser semelhantes de pessoa para pessoa. , determinado em grande parte pela cultura e pela tradição, como é dito em grande parte. Um exemplo é a reiteração invocatória de nomes, característica comum a todas as sessões xamânicas de fala mazatecas. Os nomes repetidos pelos curandeiros indianos, católicos devotos, são os da Virgem e dos santos. Na antiguidade, outras divindades devem ter sido nomeadas, mas sem dúvida, nomear e tornar presentes sempre desempenhou um papel nesses cantos. “Santa Virgem do Santuário. Santa Virgem. São Bartolomeu. São Cristóvão. São Manuel. Santo Padre. São Vicente. São Marcos. São Manuel. Virgem Guadalupe, Rainha do México.” Cantar os santos nomes serve ao poeta oral, como as frases estereotipadas da canção homérica, para manter o canto durante os interlúdios de inspiração; ao mesmo tempo, a enunciação rítmica é uma narração de identidades, uma expressão da interpessoalidade da consciência. Recordando novamente a afirmação de Husserl: A subjetividade transcendental é intersubjetividade. O nome é a palavra para a pessoa. Na mente de quem fala, uma identidade após outra se torna presente, os nomes evocam pessoas, a visão das pessoas evoca nomes. Em vez de nomear os próprios conhecidos, o que poderia ocorrer num discurso dessacralizado, o xamã invoca os santos. A nomenclatura sagrada é uma sublimação da nomenclatura das relações familiares e sociais.

Agora é de seu eu cotidiano, de sua esposa e de sua família que ele fala. “Nossos filhos vão crescer e viver. Entendo. Vejo minha esposa, minha pequena mulher trabalhadora. Eu a amo. Falo com ela através do espaço. Falo com ela através das nuvens. Invoco seu espírito. Nada nos acontecerá.” O homem e a mulher, o casal e os filhos, esse é o seu tema agora que o amor pela família brota no seu coração.

“Nada pode acontecer conosco. Continuaremos vivendo. Continuaremos vivendo na companhia da minha esposa, do meu povo. Não devemos deixar nossa esposa irritada. Fomos recebê-la diante de Deus, diante de Deus, no Santíssimo Sacramento, diante do altar. Houve uma grande massa, houve uma massa de união. Conseguimos respeitar-nos uns aos outros durante quarenta e três dias e por isso Deus dispôs que os nossos filhos nascessem e vivessem. Por isso nossas sementes deram frutos, nossa prole cresceu, prole e semente que Deus Nosso Senhor nos deu.

Aquele que fala e diz, talvez haja rumores de que o trabalho que ele está fazendo, essa pessoa, é ótimo, que o rancho dele é grande. Ele não é presunçoso. Ele é uma pessoa humilde. Ele é uma pessoa trabalhosa. Ele é uma pessoa de problemas. Ele é uma pessoa que já emprestou seus serviços como autoridade. Ele se realizou, seus dons são herdados, é de pessoas importantes: Justo Pastor, Juan Nazareno. Ele é de uma raiz grande, uma raiz importante. Árvores grandes, árvores velhas. Todos os nossos filhos viverão, diz. Terá uma boa colheita. Criarão seus animais. Bem-estar e prazer na sua cana-de-açúcar, nos seus cafezais. Ainda viverei muito tempo. Serei um velho de cabelos grisalhos, continuarei vivendo com minha prole e com meu povo. Meus filhos terão educação e bem-estar. A educação deve ser dada aos meus filhos.”

Ele fala das mudanças pelas quais passa, das transformações e permutações de sua consciência extática no decorrer de sua temporalização – a sensação de jogo, os riscos, os momentos de susto, a presença de luz e vigor. “Vira um jogo de azar, diz. Transforma-se em terror, diz. Transforma-se em espírito, diz.”

Ele assobia, canta e dança. “Aquilo que soa é harpa na presença de Deus e do Anjo da Guarda. Brinca no espaço, toca nas pedras, toca nas montanhas, toca nos cantos, toca o medo, toca o terror, toca o dia.” Ele toca as facetas do mundo como se fossem instrumentos musicais. Coisas e emoções, ao contato de seu canto e toque, são magicamente resolvidas em tonalidades vibrantes e retumbantes, em música-música de montanhas e rochas, de espaço e medo. “Onde soam as árvores, diz. Onde soam as pedras, diz. Onde soam as cestas. Onde soa o espírito do dia.” Ele ouve o toque, o zumbido e o zumbido da sua consciência efervescente e encontra analogias para os sons que ouve nas câmaras de eco dos seus tímpanos: o sussurro do vento através das árvores, o tilintar das pedras, o ranger dos cestos. Ele assobia e canta. Suas palavras surgem da articulação melódica de sons inarticulados, do movimento físico de seu giro rítmico e de seu arrastar na escuridão. “Que lindo eu canto”, ele exclama. “Quão lindo eu canto. Quantos bons prazeres nos concede o Senhor do Mundo.” Ele dança tentando atingir um nível ainda maior de exaltação. “Como eu danço lindamente. Como eu danço lindamente.” A repetição é um dos aspectos do discurso, assim como da pulsação das ondas de energia.

“Esta pessoa é valente”, diz ele sobre si mesmo. “Ele é do povo de Huautla, é Huautecano. Com grande velocidade chama e assobia para os espíritos entre as montanhas; assobia o susto do espírito.” Então ele enlouquece. Ele se joga no ataque xamânico, sua voz muda, passa a ser a de outra, mais áspera, mais gutural, e começa a falar na fala de San Lucas de onde veio seu antigo mestre, uma cidade no meio do milho em alta pico varrido pelo vento, ele relembra seu ancestral espiritual, o antigo sábio que lhe ensinou o uso dos cogumelos gnômicos. “Ele é uma pessoa de potes. Ele é de San Lucas. Uma pessoa de pratos. Ele é uma pessoa de potes e tigelas. Ele é velho.” San Lucas é o local onde é feita toda a cerâmica neolítica preta e sem adornos usada em toda a região. Os homens vão de cidade em cidade carregando nas costas os jarros cheios de samambaias para vendê-los nos mercados das aldeias montanhosas. “Velho de panelas, pratos, tigelas. Essa é a gente do centro. Falam com arrogância com as montanhas. Ele é de San Lucas. Fala com o turbilhão, com o turbilhão do interior.”

Pelo que ele mesmo conta deste velho xamã, aparecem vestígios dos tempos em que o xamã do Povo do Cervo, intermediário entre o homem, a natureza e o divino, era um taumaturgo que presidia à fertilidade e à caça. “Tive que visitar o mesmo curandeiro”, conta, “quando íamos caçar. Tive que preparar para ele um ovo, um ovo para ser oferecido à montanha. você quer. É como se você fosse comprar um animal”, disse ele.

“É ele quem diz quanto se deve pagar. Ele vai deixar o ovo. Depois os cães vão para a floresta e começam a trabalhar. É necessário esfregar tabaco no topo da cabeça dos cães. Mas com o ovo e vinte e cinco grãos de cacau, o mestre tem certeza de que o veado já está comprado. Paguei pelo jogo, diz o verdadeiro xamã. E cada vez que íamos caçar, tínhamos a certeza de encontrar veados, porque um bom xamã de San Lucas pode transformar uma árvore ou uma pedra em veado, uma vez que trocou o seu valor com o Senhor da Montanha. Tínhamos certeza de que encontraríamos cervos porque eles haviam sido pagos.”

“Lá vêm os Huautecanos. Aí vêm os Huautecanos.” Dançando na escuridão, batendo o casaco nas laterais do corpo para imitar o salto de um cervo assustado pela vegetação rasteira, ele, o caçador de espíritos e de caça, latindo como os cães que se aproximam do animal encurralado, conta uma história de caça, falando rapidamente com intensa excitação na voz rouca de alguém de San Lucas que vê de seu ponto de vista os caçadores de Huautla ao longe:

“Ouça como seus cães latem. É um cachorro velho. Aqui eles vêm pela Montanha Triste. Eles estão trazendo sua matança. Há latidos na montanha. Aí vêm eles. Ouça como soam seus braços. Já atiraram em um cervo colorido. Eles pagam as montanhas. Eles pagam os cantos. O cervo foi morto porque os Huautecans pagaram o preço. Eles pagaram o espírito. Pagou a Montanha Careca. Pago a Montanha Oca. Pago a montanha do espírito do dia. Paguei cinquenta pesos. Você não pode fazer o que quiser. É necessário pagar ao Gnomo Branco. Os Huautecans são como palhaços. Eles estão carregando o cervo pelo caminho. Os rifles dos Huautecans são muito bons. Essas pessoas são pessoas importantes. Eles sabem o que estão fazendo. Eles sabem como chamar o espírito. Os Huautecans chamam seus cães tocando uma buzina. Os cães já estão chegando perto.”

A história chega quase no final de seu discurso. O efeito dos cogumelos dura aproximadamente seis horas; geralmente é impossível dormir até o amanhecer. Em todas essas aventuras, no final, surge a ideia de um retorno de onde se foi, o retorno à consciência cotidiana. “Volto para recolher essas crianças sagradas que serviram de remédio”, diz o xamã, chamando seus espíritos de volta da fuga para o além, a fim de voltarem a ser o que eram normalmente. “Palhaços idosos. Palhaços brancos.” Ele chama os cogumelos de crianças santas e palhaços, relacionando-os, por meio de suas personificações, a seres jovens e alegres, brincalhões, criativos e sábios.

“Vem chegando a aurora da madrugada e a luz do dia. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pelo sinal da Santa Cruz, livra-nos Nosso Senhor dos nossos inimigos e de todo o mal. “

O que começou nas profundezas da noite com a iluminação das constelações interiores nos espaços da consciência termina com a chegada da luz do dia após uma noite de fala contínua e animada. “Eu sou quem fala”, diz o xamã mazateca.

“Eu sou aquele que fala. Eu sou aquele que fala com as montanhas. Eu sou aquele que fala com os cantos. Eu sou o médico. Eu sou o homem dos remédios. Eu sou. Eu sou aquele que cura. Eu sou aquele que fala com o Senhor do Mundo. Estou feliz. Eu falo com as montanhas. Eu sou aquele que fala com as montanhas dos picos. Eu sou aquele que fala com a Montanha Calvo. Eu sou o remédio e o curandeiro. Eu sou o cogumelo. Eu sou o cogumelo fresco. Eu sou o grande cogumelo. Eu sou o cogumelo perfumado. Eu sou o cogumelo do espírito.”

Os Mazatecas dizem que os cogumelos falam. Ora, os investigadores (10) de fora deveriam ter ouvido melhor os sábios indígenas que tinham experiência do que eles, os brancos da razão, não tinham. Se os cogumelos são alucinógenos, por que os indígenas os associam à comunicação, à verdade e à enunciação do sentido? Uma alucinação é uma falsa percepção, seja visual ou audível, que não tem nenhuma relação com a realidade, uma ilusão ou delírio fantástico: o que aparece, mas não tem existência exceto na mente. Os sonhos vívidos da experiência psicodélica sugeriam alucinações: tais imaginações ocorrem nessas condições visionárias, mas são fenômenos marginais e não essenciais de uma liberação geral da atividade espontânea, extática e criativa da existência consciente. As alucinações predominaram nas experiências dos investigadores porque eram experimentadores passivos do efeito transformador dos cogumelos. Os xamãs indígenas não são contemplativos, são trabalhadores que se expressam ativamente através da fala, criadores empenhados num esforço de divulgação ontológica e existencial. Para eles, a condição xamânica provocada pelos cogumelos é intuitiva e não alucinatória. O que se imagina tem uma relação ética com a realidade, é muitas vezes o caminho a ser seguido. Ver é perceber, compreender. Mas ainda mais importantes do que as visões para o xamã mazateca são as palavras tão reais quanto as realidades do real que pronunciam. É como se os cogumelos revelassem uma atividade primordial de significação, pois uma vez que o xamã os comeu, ele começa a falar e continua a falar durante toda a sessão xamânica de linguagem extática. O fenômeno mais característico do efeito dos cogumelos é a capacidade inspirada de falar. Aqueles que os comem são homens de linguagem, iluminados pelo espírito, que se autodenominam os que falam, os que dizem. O xamã, cantando em uma canção melódica, dizendo diz no final de cada frase do dito, está em comunicação com as origens da criação, as fontes da voz e as fontes da palavra, relacionadas com a realidade a partir do coração de seu êxtase existencial pela mediação ativa da linguagem: a articulação do sentido e da experiência. Chamar de alucinatórias essas experiências transcendentais de luz, visão e fala é negar que sejam reveladoras da realidade. Nos antigos códices, nos livros coloridos, sentam-se as figuras, hieróglifos de palavras, segurando nas mãos os cogumelos da linguagem aos pares: signos de significação.

 


(2). A inspiração produzida pelos cogumelos é muito parecida com a descrita por Nietzsche em Ecce Homo. Desde a afirmação de Rimbaud, “eu sou outro”, a linguagem espontânea, falar ou escrever como se fosse ditado (para usar a expressão comum para uma atividade muito difícil de descrever em sua verdade) tem sido de interesse primordial para filósofos e poetas. Sap o mexicano, Octavio Paz, num ensaio sobre Breton, “O inspirado, o homem que fala na verdade, não diz nada que é seu: da sua boca fala a linguagem”. Octavio Paz, “André Breton o La Busqueda del Comienzo”, Corriente Alterna (México: Siglo Veintiuno, 1967), p. 53.

(3). Os discursos xamânicos estudados neste ensaio foram gravados em fita cassete. Agradeço as traduções a uma mulher bilíngue de Huautla, a senhora Eloina Estrada de Gonzalez, que ouviu as gravações e me contou, frase por frase, em espanhol, o que o xamã e a xamã diziam em sua língua nativa. Até onde sei, as palavras de nenhum desses poetas orais foram publicadas até agora. São eles a senhora Irene Pineda de Figueroa e o senhor Roman Estrada. O texto completo de cada discurso ocupa noventa e duas páginas. Para os propósitos deste ensaio, selecionei apenas as passagens mais representativas.

(4). “… a palavra grega que significa poesia foi empregada pelo escritor de um papiro alquímico para designar a própria operação de ‘transmutação’. Que raio de luz! Sabe-se que a palavra ‘poesia’ vem do verbo grego que significa ‘fazer.’ Mas isso não designa uma invenção comum, exceto para aqueles que a reduzem ao absurdo verbal. Para aqueles que conservaram o sentido do mistério poético, a poesia é uma ação sagrada, isto é, uma ação que excede o nível comum da ação humana. . Tal como a alquimia, a sua intenção é associar-se ao mistério da ‘criação primordial’…” Michel Carrouges, Andre Breton et les donnees fondamentales du surrealisme (Paris: Editions Gallimard, 195O).

(5). Claude Lévi-Strauss, “A Eficácia dos Símbolos”, Antropologia Estrutural (Doubleday Anchor, 1967), pp.

(6). “Em certo sentido, como diz Husserl, a filosofia consiste na restituição de um poder de significação, um nascimento de sentido ou um sentido selvagem, uma expressão de experiência pela experiência que esclarece particularmente o domínio especial da linguagem.” Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l’invisible (Paris: Editions Gallimard, 1964).

(7). A história de como iniciou a sua carreira xamânica, juntamente com as informações a seguir sobre o susto, os pagamentos às montanhas e as práticas relacionadas com a caça, são citações de uma entrevista com o Sr. Roman Estrada a quem interroguei através de um intérprete: o a conversa foi gravada e depois traduzida da língua nativa pela Sra. Eloina Estrada de Gonzalez, sobrinha do xamã, que atuou como questionadora na própria entrevista.

(8). “Finalmente, a doença pode ser consequência de uma perda da alma, desviada ou levada por um espírito ou revenant. Esta concepção, amplamente difundida pela região dos Andes e do Gran Chaco, parece rara na América tropical. ” Alfred Metraux, “Le Chaman des Guyane et de l’Amazonie,” Religions et magies indiennes d’Amerique du Sud (Paris: Editions Gallimard, 1967).

(9). Ibidem.

(10). É necessário expressar nossa dívida para com R. Gordon Wasson, cujos escritos, a obra mais confiável sobre os cogumelos, me informaram sobre sua existência e me contaram muito sobre eles. “Suspeitamos”, escreveu ele, “que, em seu sentido integral, o poder criativo, a mais séria qualidade distintiva do homem e uma das mais claras participações no Divino… está de alguma forma conectado com uma área do espírito que os cogumelos são capazes de abrir.” R. Gordon Wasson e Roger Heim, Les Champignons halhlcinogenes du Mexique (Paris: Museu Nacional d’Histoire Naturelle, 1958). Pela minha própria experiência, descobri que essa afirmação é particularmente verdadeira.

Thomas Kuhn e a Revolução Psicodélica

Por Peter Webster
Uma palestra apresentada à
Sociedade Italiana de Estudo dos Estados de Consciência
Perinaldo, Itália, agosto de 2006

Traduzido da Psychedelic Library

 

 

Introdução

A descoberta, ou melhor dizendo, a redescoberta de drogas psicodélicas no meio do século 20 foi essencialmente uma descoberta científica; no entanto, pouca atenção tem sido dada ao contexto dessa descoberta em relação à história e filosofia da própria ciência. Uma grande quantidade de atenção foi, ao contrário, concentrada nas conexões entre o conhecimento moderno sobre psicodélicos e as tradições xamânicas, a longa história do uso religioso de plantas e preparações psicoativas e as possíveis extensões modernas dessas antigas tradições psicodélicas para fins médicos. É claro, de se esperar que esse seja o caso – foi o curso natural que a pesquisa psicodélica seguiu.

Mas, para entender mais plenamente certas peculiaridades que se seguiram à redescoberta psicodélica, podemos nos beneficiar de uma verificação de como essa descoberta se encaixa na história da tradição científica em si. Acredito que é SOMENTE a partir de tal observação que podemos entender nossa situação atual, onde parece que apenas pequenos grupos de pessoas, muitas vezes profissionalmente isolados, levam a sério o legado e as implicações da redescoberta psicodélica, onde a esmagadora maioria dos cientistas atualmente ativos não tem qualquer conhecimento preciso sobre drogas psicodélicas e, de fato, se opõe e rejeita ativamente a ideia de que as drogas servem para algo.

Para muitos, aparentemente, essa rejeição e repressão é algo incomum na ciência, algo que os pioneiros psicodélicos não mereciam. Para muitos, aparentemente, parece que quando verdades são reveladas pela pesquisa – mesmo quando são revolucionárias e talvez chocantes para muitos – essas verdades devem, pela natureza da ciência, serem aceitas e desenvolvidas pelo mainstream.

No entanto, um exame da história do avanço científico revela algo bem o oposto, e um estudo de como a ciência realmente opera na prática pode nos dar um pouco mais de coragem para persistir no que tantos outros consideram uma mera tolice.

 

Thomas Kuhn e a Revolução Psicodélica

Thomas Kunh

Pelo que posso dizer, Thomas Kuhn não tinha nada a dizer sobre drogas psicodélicas ou os vários usos que podem ser dados a elas. O título da minha palestra de hoje pode, portanto, parecer um tanto inadequado, não fosse o fato de que Kuhn TEVE MUITO A DIZER sobre revoluções – revoluções científicas, ou seja, o tipo de agitação geral dos conceitos fundamentais que ocorre em várias disciplinas científicas de tempos em tempos. Thomas Kuhn, como você pode saber, construiu toda uma teoria das revoluções científicas: o que elas são, como e por que ocorrem, quem as provoca – e, ao fazê-lo, redefiniu o que é a ciência de muitas maneiras.

O que conecta Kuhn aos psicodélicos é que a redescoberta dos psicodélicos no meio do século 20 prometeu mudanças revolucionárias em vários campos de investigação científica e medicina e, como afirmarei mais adiante, uma revolução no conceito de estudo científico em si. Refiro-me à redescoberta dos psicodélicos, é claro, porque como todos sabemos, o uso dessas substâncias é muito antigo, global e provavelmente remonta ao início da existência humana. Os psicodélicos tiveram que ser REDESCOBERTOS porque a civilização industrial moderna vem sendo uma das muito poucas sociedades humanas quase que totalmente inconscientes das plantas psicodélicas e sem qualquer uso geral delas para cura¹, iniciação, práticas religiosas e heurísticas, e assim por diante. (Nota do tradutor ¹: da data do texto para cá, inúmeros estudos médicos vem sendo testados e aplicados por instituições como Berkeley, Johns Hopkins e MAPS)

As potenciais mudanças revolucionárias que essa redescoberta deveria ter trazido teriam sido bem descritas e sua gênese e crescimento bem previstos pela teoria de Kuhn se não fosse pelo fato de que praticamente todas essas promessas revolucionárias ainda permanecem não cumpridas, sufocadas por uma longa reação antipsicodélica. Essa reação foi provocada pela primeira vez no final da década de 1960 por forças sociais e governamentais nos EUA, perpetuando uma longa e sombria tendência puritana nos Estados Unidos que trouxe ao mundo a grande loucura das políticas proibitivas modernas. Mas logo depois, o próprio establishment científico pareceu ser infectado com essa situação semelhante a uma doença, de modo que hoje é raro o cientista que tem qualquer indício de que a redescoberta de drogas psicodélicas pode ser algo não apenas interessante, mas extremamente importante e potencialmente revolucionário. Apesar da verdade do assunto, tão óbvia para aqueles que sabem, dizer que a redescoberta psicodélica foi um dos desenvolvimentos sociais e científicos mais importantes do século XX seria algo ridicularizado pela grande maioria dos cientistas vivos hoje.

Essa resistência reacionária à revolução científica, embora seja uma grande decepção e, em geral, um descrédito aparente à legitimidade do chamado progresso científico, é, no entanto, o estado normal das coisas, como mostram as descobertas de Kuhn. Quando examinado de perto da perspectiva de Kuhn sobre a história da ciência, o empreendimento científico é visto como quase arrogantemente conservador — uma história repleta de repressão de ideias novas e revolucionárias. Todos nós estamos familiarizados com exemplos de repressão como a cruzada do Vaticano contra Galileu, mas Kuhn mostra como a própria comunidade científica tem sido frequentemente tão repressiva da inovação científica quanto qualquer grupo religioso ou social.

Não há melhor professor do que Thomas Kuhn, portanto, para nos instruir sobre como e por que a revolução psicodélica foi paralisada por tanto tempo, aparentemente um fracasso e sem influência significativa em mais de quatro décadas de avanço científico e intelectual. A teoria geral da revolução científica de Kuhn pode até nos ajudar a entender como finalmente trazer uma pesquisa psicodélica significativa para o mainstream científico, onde ela certamente merece estar. Refiro-me aqui à pesquisa científica “significativa” porque também é óbvio para aqueles que conhecem, que limitar a pesquisa ao uso de psicodélicos como medicamentos para o tratamento de condições de doença e anormalidade rejeita a maior parte de seu potencial. Claro, a entrada da pesquisa psicodélica no “mainstream científico” alteraria necessariamente a própria natureza da ciência, talvez levando a um abandono dos piores aspectos de seu reducionismo convencido por uma maneira mais pragmática de estudar e entender os fenômenos mais complexos do universo, entre os quais, o próprio cientista. E todos nós somos, até certo ponto, cientistas. Quem foi Thomas Kuhn, então? Ele foi professor emérito de filosofia e linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts até sua morte em 1996, e foi talvez o maior historiador da ciência dos últimos tempos. Sua obra seminal, The Structure of Scientific Revolutions, mesmo em virtude das longas e acaloradas críticas que recebeu desde sua primeira publicação em 1962, deve ser classificada como talvez o livro mais importante sobre o assunto já publicado.

“The Structure of Scientific Revolutions” é importante não apenas para historiadores ou filósofos, mas para todas as pessoas que se acreditam capazes de investigação científica ou pensamento analítico, mesmo em nível amador. Muito foi escrito e ensinado até mesmo em nossas escolas secundárias e universitárias sobre o método científico, sobre como os cientistas conduzem pesquisas e praticam seu ofício. Mas Thomas Kuhn, com um tratado magnífico, revolucionou o próprio conceito do que é uma ciência e como ela procede. Kuhn até questiona a noção amplamente difundida de que o conhecimento científico faz algum tipo de progresso cumulativo em direção à compreensão final.

A Estrutura das Revoluções Científicas não é longa nem difícil por si só, mas contém ideias tão novas e radicalmente brilhantes que leva algum tempo e várias leituras para ser absorvida completamente. Muitos escritores, incluindo o próprio Kuhn, tentaram compor um resumo conciso da teoria que o livro apresenta, mas em vista do debate animado e às vezes acalorado a favor e contra suas ideias, deve ser óbvio que nenhum tratamento superficial pode fazer justiça a ele. Esta cautela deve incluir minha própria apresentação hoje, e os aspectos de sua teoria que discutirei não são de forma alguma tudo o que há na teoria de Kuhn. Eu apenas escolhi algumas características-chave da teoria com as quais podemos entender melhor o tópico em questão, a redescoberta científica de drogas psicodélicas.

Talvez o mais procurado ao tentar resumir Kuhn seja uma definição precisa daquela famosa palavra que ele introduziu na filosofia da ciência, aquela palavra que se tornou tão frequentemente ouvida em referência a conceitos ou ideias fundamentais, o paradigma. O próprio Kuhn define um paradigma como “uma ou mais conquistas científicas passadas que alguma comunidade científica particular reconhece por um tempo como fornecendo a base para sua prática futura”. Mas como uma aproximação próxima que podemos entender mais facilmente no contexto, podemos pensar em um paradigma como um conjunto inter-relacionado de conceitos, valores, crenças e técnicas fundamentais que definem uma maneira obrigatória de abordar problemas científicos em um determinado momento e em uma determinada disciplina. O paradigma é o palco no qual o jogo da investigação científica acontece – uma plataforma que define o cenário, o contexto, as limitações e os limites para a agenda de pesquisa. Embora o paradigma possa ser pensado como uma descrição precisa de um aspecto da realidade, na verdade o paradigma é mais como um mapa ou modelo, uma aproximação ou estrutura para organizar dados atualmente disponíveis e definir pesquisas permitidas.

Pode parecer estranho falar sobre “pesquisa permitida” na ciência, pois a imagem que podemos ter da ciência e dos cientistas é de liberdade de investigação — a ideia de que pelo menos alguns cientistas exploram a realidade sem barreiras, onde quer que sua busca pela verdade os leve. Mas Kuhn mostra que isso é um mito. Operando dentro da estrutura de um determinado paradigma científico, a situação real é bem diferente do mito. Kuhn escreve:

“Um paradigma suprime a inovação, pode até isolar a comunidade daqueles problemas socialmente importantes que não são redutíveis à forma de quebra-cabeça típica da ciência normal, porque não podem ser declarados em termos das ferramentas conceituais e instrumentais que o paradigma fornece.”

Nesta citação, Kuhn se refere à “ciência normal”, e agora devemos considerar este e outros dois conceitos-chave.

Ciência normal é o que praticamente todos os cientistas fazem o tempo todo quando nenhuma revolução científica é iminente, e na descrição pode soar um tanto banal para os não iniciados: consiste essencialmente em uma operação de “limpeza” onde os detalhes de um determinado paradigma e suas aplicações permitidas são elaborados com mais e mais. Parece, como diz Kuhn,

“… uma tentativa de forçar a natureza na caixa pré-formada e relativamente inflexível que o paradigma fornece. Nenhuma parte do objetivo da ciência normal é evocar novos tipos de fenômenos; na verdade, aqueles que não se encaixam na caixa geralmente não são vistos. Nem os cientistas normalmente visam inventar novas teorias, e eles geralmente são intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal é direcionada à articulação desses fenômenos e teorias que o paradigma já fornece.”

Pelo que acabamos de aprender sobre ciência e seus paradigmas, já podemos ver claramente a ameaça à ciência normal que a redescoberta de psicodélicos e estados alterados de consciência forneceu. Foi uma ameaça direta a várias disciplinas científicas e médicas, uma inovação destruidora de paradigmas que estava destinada a ser reprimida por um longo tempo.

Dois outros conceitos importantes da teoria de Kuhn são a mudança de paradigma e a revolução científica. Resumidamente, todos os paradigmas científicos eventualmente enfrentam problemas, quando descobertas experimentais anômalas se acumulam a ponto de esse paradigma começar a mostrar suas falhas. Se os problemas persistirem e não puderem ser resolvidos sob os ditames do paradigma existente, uma mudança de paradigma deve então eventualmente ocorrer, onde um novo paradigma, definindo de uma nova maneira os conceitos fundamentais e a agenda de pesquisa a serem seguidos, então substitui o antigo paradigma. Como esse processo tem precedência sobre a continuação da ciência normal, diz-se que uma revolução científica está ocorrendo.

Para entender na prática o que Kuhn quer dizer com paradigma e o que é uma mudança de paradigma, nos ajuda observar o que os termos significam em relação a uma revolução científica específica. O exemplo mais usado de uma revolução científica e sua mudança de paradigma associada foi a revolução copernicana na astronomia.

Nicolau Copérnico

Copérnico, como você certamente sabe, foi o primeiro a promover a ideia herética de que o Sol, e não a Terra, era o centro do nosso sistema planetário. A astronomia centrada na Terra de Ptolomeu, que existia desde a época de Cristo, funcionou admiravelmente bem por um longo tempo, sendo capaz de prever as posições de estrelas e planetas com uma precisão que foi suficiente até o século XVI. Mas com a invenção e o aprimoramento do telescópio e a melhoria das habilidades científicas dos astrônomos, anomalias experimentais começaram a aparecer, especialmente para entender e prever o movimento dos planetas.

Dois pontos importantes a serem observados neste exemplo são:

  1. Os conceitos de paradigma e mudança de paradigma são claramente ilustrados. A revolução copernicana teve como raiz a mudança de paradigma do conceito de um sistema planetário geocêntrico para um heliocêntrico. Mas, ao examinarmos mais exemplos de revoluções científicas, descobriremos que um paradigma científico pode ser um pouco mais complexo, envolvendo um grupo ou conjunto de conceitos fundamentais intimamente relacionados ou realizações científicas passadas.
  2. O segundo ponto-chave no exemplo copernicano é o surgimento de resultados experimentais cada vez mais importantes em conflito com a teoria e a expectativa aceitas – este é o sinal de uma crise iminente, mudança de paradigma e revolução científica.

Outra observação que podemos fazer com base neste exemplo é que, enquanto uma ciência parece estar funcionando, fazendo previsões satisfatoriamente precisas e fornecendo perguntas suficientes para os cientistas trabalharem durante um período de ciência normal, pouco importa se o paradigma pode ser baseado em uma ideia completamente falsa, derivada não da ciência, mas neste caso de ditames religiosos, a saber, que a Terra era o centro do universo. Podemos sentir que hoje a ciência é muito mais imune a esse erro, mas o exemplo da repressão científica dos resultados da pesquisa psicodélica argumenta o contrário.

Vou apenas mencionar brevemente mais alguns exemplos de revoluções científicas e suas mudanças de paradigma associadas para que você tenha uma ideia melhor do que está envolvido, e então continuaremos a considerar como a redescoberta dos psicodélicos deve se qualificar como o iniciador de várias revoluções científicas ainda a se concretizarem.

Na geologia, temos uma das revoluções científicas mais recentes a ter ocorrido. Este exemplo também envolve uma mudança de paradigma fácil de entender, consistindo na transformação de um único conceito. Antes de meados do século XX, os continentes da Terra eram considerados estacionários, em um sentido travados em suas posições para a crosta da Terra. Esta era a crença fundamental ou paradigmática ensinada a todos os estudantes de geologia. Na realidade, o conceito nem precisava ser ensinado, pois parecia ser completamente autoevidente. A acumulação de anomalias experimentais na evolução, geografia, paleoantropologia e outros campos, no entanto, rapidamente levou à teoria da tectônica de placas, na qual os continentes eram entendidos como flutuando em um interior global líquido e, portanto, livres para derivar, colidir uns com os outros e assim por diante. Este novo paradigma expandiu a agenda de pesquisa e, portanto, permitiu a explicação de muitos fenômenos geológicos, evolutivos e geográficos observados que permaneceram misteriosos e inexplicáveis, e em grande parte ignorados, durante o reinado do paradigma do continente estacionário.

Na física, é claro, temos uma das mais importantes revoluções científicas que já ocorreram, da física lógica de bola de bilhar de Newton à paradoxal, complicada de entender e quase impossível de visualizar a física relativística e quântica de Einstein, Heisenberg, Bohr e seus contemporâneos. Neste exemplo, é claro, a mudança de paradigma envolveu um conjunto complexo de princípios e conceitos fundamentais inter-relacionados, incluindo a natureza da luz e da radiação, do espaço-tempo, da própria matéria.

Na química, a teoria sobre o processo de combustão, a queima que os homens observavam tão de perto desde a domesticação do fogo em tempos pré-históricos, passou por uma mudança de paradigma com a descoberta do oxigênio por Lavoisier. Até então, e provavelmente devido à longa observação do que o fogo parecia ser, a queima era considerada um processo pelo qual algo era liberado do objeto em questão. Afinal, as chamas que emanavam de um objeto em chamas devem ter levado, desde tempos imemoriais, a uma ideia fixa de que algo estava saindo da substância. Até meados do século XVIII, uma teoria cada vez mais complexa da queima foi elaborada, uma teoria que postulava uma substância chamada flogisto como o transportador de calor e, portanto, a substância que era liberada de um objeto em chamas. À medida que os balanços químicos se tornavam mais precisos, no entanto, anomalias experimentais começaram a aumentar: descobriu-se que pelo menos algumas substâncias sob combustão pareciam ficar mais pesadas, em vez de mais leves, se o flogisto realmente emanasse delas. Em um último esforço para salvar a teoria do flogisto, alguns cientistas eminentes até propuseram que o flogisto deve ter massa negativa! Com a descoberta do oxigênio por Lavoisier, no entanto, a teoria da oxidação da combustão logo colocou o flogisto em seu túmulo, fosse de massa negativa ou não!

Acho que a partir desses poucos exemplos você pode agora entender a natureza básica de uma revolução científica e sua mudança de paradigma subjacente. Você também pode ter notado que em cada um desses casos a mudança de paradigma envolveu uma mudança de visão geral do que poderia ser pensado como uma ideia arcaica para uma esotérica, onde uma percepção geral e antiga baseada em observação simples teve que ser substituída por conceitos que simplesmente não eram óbvios para o homem primitivo nem para o observador ingênuo. A ideia de que a Terra era o centro do universo, que as massas de terra eram fixas no lugar no globo, que os objetos físicos eram duros e sólidos, que as chamas indicavam que algo estava emanando de um objeto em chamas — tudo isso poderia ser derivado do que podemos pensar como simples observação primitiva ou ingênua. Essas ideias, os paradigmas de seu tempo, tiveram que ser substituídos por ideias anti-intuitivas e aparentemente paradoxais, e vemos isso em abundância quando se trata da redescoberta psicodélica. Não menos importante entre as crenças ingênuas que a redescoberta psicodélica desacreditou está a ideia de que o homem cientista poderia sempre e confiavelmente ser um observador independente e objetivo dos fenômenos, e é um delicioso paradoxo que suas próprias investigações científicas supostamente objetivas com psicodélicos tenham exigido essa conclusão. Também é interessante que as ideias ingênuas que precisavam ser substituídas não eram antigas e primitivas como nos outros casos que acabei de mencionar, mas sim a base da era da investigação científica.

 

Agora, vejamos alguns exemplos específicos de como a redescoberta psicodélica pode ter revolucionado alguns campos da ciência e da medicina.

Para começar, é apropriado considerar o campo da psiquiatria e da psicoterapia, pois foi aqui que a pesquisa com psicodélicos começou, em Saskatchewan, Canadá, sob a direção de Humphrey Osmond, Abram Hoffer e seus associados, e quase simultaneamente com Stanislav Grof e seus associados na República Tcheca

Stan Grof relata em seu livro “Beyond the Brain” o quão difícil foi para ele aceitar os dados de pesquisa que estavam inundando o trabalho de seu grupo com LSD. Grof tinha sido um psicanalista freudiano bastante rigoroso, como se poderia esperar de alguém treinado em medicina e psiquiatria no início dos anos 1950 — talvez o auge do movimento psicanalítico. No entanto, Grof descobriu que, um por um, os principais princípios da visão freudiana — poderíamos chamá-lo de paradigma freudiano — tiveram que ser abandonados como resultado de sua pesquisa sobre LSD. Nesse longo e árduo processo, um novo paradigma para pesquisa e compreensão no campo da saúde e doença mental humana, e na própria consciência humana começou a tomar forma. Em seu livro “Beyond the Brain”, Grof apresenta uma estrutura para esse novo paradigma e até dedica um capítulo introdutório à consideração da teoria da revolução científica de Kuhn como uma forma de mostrar ao leitor a natureza do processo de mudança que estava começando. Hoffer e Osmond no Canadá estavam ao mesmo tempo chegando a uma visão radicalmente nova do que a psicoterapia poderia ser — não uma cura médica análoga ao tratamento de uma infecção com um antibiótico, mas algo mais parecido com uma viagem de autodescoberta pessoal onde o uso de drogas psicodélicas agia como um complemento ou catalisador para a produção de uma mudança radical e rápida de personalidade. A mudança de personalidade tinha sido em tempos antigos muito mais associada à experiência religiosa e conversão do que à ciência ou medicina. Tal ideia era, naturalmente, outro teste severo para a teoria psicanalítica freudiana e para o próprio conceito médico de tratamento medicamentoso.

Um importante princípio organizador na pesquisa psicoterapêutica de Hoffer e Osmond foi derivado de sua observação do uso de peiote pelos nativos americanos em suas observâncias religiosas e do fato observado de alcoolismo muito reduzido em membros da Igreja Nativa Americana. Eles observaram repetidamente a iniciação de novos membros que antes eram severamente alcoólatras e que posteriormente foram curados de seus problemas com bebida com uma confiabilidade que superava em muito qualquer tratamento de alcoolismo que a medicina ocidental pudesse oferecer. Assim nasceu um projeto ambicioso e bem-sucedido de usar tanto mescalina quanto LSD, não como uma clássica “cura medicamentosa” para o alcoolismo, mas como uma forma de catalisar a mudança de personalidade em seus pacientes ou clientes, o que levou essas pessoas a “se curarem”, por assim dizer — a aceitarem suas vidas de maneiras que não poderiam ter alcançado antes. Claro, os métodos desenvolvidos por Hoffer e Osmond foram, em alguns aspectos, um retrocesso ao paradigma xamânico de cura, onde o médico não é um cientista independente e objetivo usando medicamentos específicos para doenças que funcionam apenas com base em suas propriedades farmacêuticas. O xamã faz uma jornada de autodescoberta psicológica e espiritual junto com seu cliente para que ambos possam experimentar a fonte dos problemas e, assim, efetuar uma cura.

Foi observado, que na medicina ocidental é o paciente que toma os medicamentos, enquanto na tradição xamânica é o médico que toma a medicina. O trabalho de Hoffer e Osmond tratando alcoólatras dependia necessariamente de dar medicamentos psicodélicos aos próprios pacientes, mas é interessante notar que esses psiquiatras outrora tradicionais rapidamente chegaram à conclusão de que, para dar psicodélicos efetivamente aos pacientes, era indispensável que os médicos, e até mesmo os enfermeiros presentes, estivessem o mais familiarizados possível com os estados alterados de consciência produzidos pelos medicamentos. E havia apenas uma maneira eficaz de fazer isso: como na tradição xamânica, os médicos tomavam os medicamentos, muitas vezes.

Lenta, mas seguramente, um novo paradigma para a psiquiatria e a psicoterapia estava tomando forma, mas a resistência do establishment científico e médico era esperada, como Kuhn mostra ser o estado normal das coisas. Críticas à terapia com LSD — especialmente depois que o uso de psicodélicos por estudantes universitários se tornou um escândalo nos EUA (Tim Leary e Richard Alpert em Harvard)— se tornaram outro tipo de escândalo, um escândalo científico de grandes dimensões. Em uma análise particularmente convincente da situação em seu livro “The Hallucinogens”, Hoffer e Osmond demolem habilmente seus críticos no espaço de algumas páginas. No entanto, completamente de acordo com as previsões de Thomas Kuhn, aqueles que introduziriam um novo paradigma enfrentam não apenas uma batalha difícil, mas consequências muito mais sérias, não importa quão necessária a nova perspectiva possa ser baseada no fracasso revelado do antigo paradigma.

Hoffer e Osmond estavam cientes do trabalho de Thomas Kuhn e das previsões de grande hostilidade à sua pesquisa? Eles não deixam pista, mas citam o filósofo Michael Polanyi, que em seu artigo de 1956 na The Lancet, parece ter pressagiado alguns dos principais pontos de Thomas Kuhn. Polanyi escreve,

“Na medida em que a descoberta muda nossa estrutura interpretativa, é logicamente impossível chegar a ela pela aplicação contínua de nossa estrutura interpretativa anterior. Em outras palavras, a descoberta é criativa… no sentido de que não deve ser alcançada pela aplicação diligente de nenhum procedimento previamente conhecido e especificável…”

Vemos aqui que Polanyi está, em termos kuhnianos, falando sobre o tipo de descoberta que representa descobertas anômalas que levam o descobridor a propor um novo paradigma. Quando Polanyi diz que a descoberta revolucionária não pode ser alcançada por procedimentos previamente existentes, ele está dizendo a mesma coisa que Kuhn, que o processo da ciência normal não pode levar por si só à mudança de paradigma e à revolução científica. O próprio Kuhn afirmou com bastante firmeza que “Paradigmas não são corrigíveis pela ciência normal de forma alguma”.

Michael Polanyi continua,

“Agora podemos ver a grande dificuldade que pode surgir na tentativa de persuadir outros a aceitar uma nova ideia na ciência. Na medida em que representa uma nova maneira de raciocínio, não podemos convencer os outros por meio de argumentos formais, pois enquanto argumentarmos dentro de sua estrutura, nunca poderemos induzi-los a abandoná-la. A demonstração deve ser suplementada, portanto, por formas de persuasão que possam induzir uma conversão. A recusa em entrar na maneira de argumentar do oponente deve ser justificada fazendo-a parecer completamente irracional.

“Tal rejeição abrangente não pode deixar de desacreditar o oponente. Ele será feito parecer completamente iludido, o que no calor da batalha facilmente implicará que ele era um tolo, um excêntrico ou uma fraude… Em um choque de paixões intelectuais, cada lado deve inevitavelmente atacar a pessoa do oponente.”

E foi exatamente isso que aconteceu com muitos pesquisadores que trabalharam com drogas psicodélicas. Hoje, a comunidade científica convencional rotineiramente e ignorantemente classifica toda a fraternidade de pioneiros psicodélicos na mesma categoria de Tim Leary, ou pior.

Obviamente, nenhuma revolução científica ocorreu ainda na psiquiatria e psicoterapia tradicionais, mas os experimentos anômalos e os contornos de um novo paradigma permanecem na literatura científica e nas mentes de alguns cientistas e médicos.

Como teria sido uma revolução na psicoterapia? Isso é algo difícil de prever, como qualquer mudança revolucionária deve necessariamente ser. Mas certamente seria amplamente reconhecido agora que Hoffer e Osmond estavam certos em insistir que a experiência pessoal de estados de consciência alterados psicodélicos é indispensável e “absolutamente essencial” para a compreensão não apenas dos pacientes, mas para a compreensão da própria consciência. Treinado em estados alterados de consciência, um psiquiatra ou psicoterapeuta se torna um paralelo muito mais próximo dos curandeiros xamânicos do passado distante, algo desejável, pelo seguinte motivo: a ciência reducionista funciona bem com coisas inanimadas, plantas e até mesmo com animais primitivos, mas com humanos, que nunca podem ser considerados “apenas” como objetos, a ciência objetiva deve permanecer para sempre incompleta.

No campo da ciência da computação e tecnologia, uma revolução parece ter ocorrido, e a princípio podemos ser tentados a atribuir isso às alegações frequentemente ouvidas de que muitos dos inventores pioneiros do computador moderno não só estavam familiarizados com drogas psicodélicas, mas as usaram como um caminho para a criatividade que levou às suas invenções. Seja como for, teríamos que dizer com mais precisão que a revolução não estava, portanto, nos computadores em si, mas no uso de drogas psicodélicas como uma ferramenta psicológica, como uma forma de aumentar a criatividade. A chamada revolução dos computadores não se qualifica como uma revolução científica, primeiro porque estamos lidando mais com uma tecnologia do que com uma ciência, e segundo porque não passamos por uma mudança de paradigma. Os princípios fundamentais da computação digital permaneceram os mesmos por muito tempo.

No entanto, a ideia de que as drogas poderiam aumentar a criatividade era certamente revolucionária e ameaçadora de paradigma. É uma ideia que vai contra as convicções gerais, embora não científicas, de que as drogas são exclusivamente substâncias usadas na medicina para restaurar a normalidade; é uma ideia que desacredita a convicção de que a consciência normal é o summum bonum² (Nota do tradutor²: ‘sumo bem’ ou ‘bem maior, em latim) é uma expressão latina usada na filosofia — particularmente, em Aristóteles,[1] na filosofia medieval e na filosofia de Immanuel Kant — para descrever o bem maior que o ser humano deve buscar), o melhor, mais eficiente e desejável estado da consciência humana e que sua alteração não pode levar a nenhum bom fim; é uma ideia que mostra o absurdo da noção de que a consciência drogada DEVE ser um estado degradado e delirante, abaixo da dignidade de qualquer pessoa civilizada, que o uso aborígene de drogas para qualquer propósito meramente ilustra o atraso e a natureza primitiva de tais povos. Essas observações ingênuas, assim como as observações ingênuas do universo centrado na Terra, chegam até nós como “verdades” pouco questionadas de eras passadas. No caso das drogas, tais ideias representam um paradigma muito antigo da psicologia humana ocidental cuja origem remonta à Santa Inquisição, quando as potências europeias assumiram a responsabilidade de perseguir os habitantes das Américas, supostamente para salvar suas almas, mas, mais realisticamente, para confiscar todo o hemisfério. Os inquisidores tomaram o uso nativo de drogas que alteram a consciência como um sinal claro de que eles deveriam ser considerados subumanos e indignos da propriedade de suas terras. Esse legado chegou até nós pouco alterado, de modo que hoje parece uma opinião automática sobre os usuários de drogas que eles são de alguma forma degradados, não estão em seu perfeito juízo e precisam de correção e tratamento. Propor que as drogas podem ser capazes não apenas de alterar benignamente as capacidades humanas, mas de realmente melhorá-las é obviamente uma heresia, uma ameaça à atitude colonial e paternalista que tipifica a visão da ciência moderna sobre os povos antigos e seus costumes.

As sementes da revolução neste ramo da psicologia certamente já haviam sido plantadas em 1964, quando Frank Barron apresentou um artigo em um simpósio na Califórnia intitulado “O processo criativo e a experiência psicodélica“. A pesquisa de Willis Harman e James Fadiman logo começou a documentar as provas experimentais da conexão, e seu artigo “Agentes psicodélicos na resolução criativa de problemas: um estudo piloto” provavelmente teria sido um ponto de virada revolucionário no estudo psicológico da criatividade se sua pesquisa não tivesse sido interrompida no meio do caminho por decreto do governo. Se você simplesmente fizer uma pesquisa no Google por Harman e Fadiman, poderá encontrar facilmente seus artigos de pesquisa, que valem a pena ler. O título do artigo deles no livro de Aaronson e Osmond, Psychedelics, é ainda mais indicativo de uma mudança revolucionária de paradigma: “Aprimoramento seletivo de capacidades específicas por meio do treinamento psicodélico”. Desde o final da década de 1960, nenhuma pesquisa foi permitida nesse sentido, e mais uma potencial revolução científica foi suprimida.

 

Embora as mudanças notáveis ​​na tecnologia de computadores não se qualifiquem estritamente como uma revolução kuhniana, um resultado primário de avanços em computadores pode ainda ilustrar para nós outra potencial e genuína revolução científica que foi suprimida. Desde os primeiros experimentos neurológicos em que os nervos que levam aos músculos da perna de um sapo foram estimulados eletricamente, levando à contração muscular, o paradigma da computação digital no sistema nervoso se consolidou, lenta mas seguramente.

Devido à grande demanda por computadores cada vez mais avançados para empreendimentos de alta tecnologia, como aeronáutica, exploração espacial, modelagem de sistemas complexos — sem mencionar aplicações militares e hardware — tem havido dinheiro de pesquisa praticamente ilimitado disponível para aqueles que estudam computação digital e para aqueles que se esforçam para descrever as propriedades e operações de vários sistemas físicos e biológicos em termos de computação digital. A neurociência e a ciência cognitiva têm sido grandes beneficiárias desse dinheiro de pesquisa, e a corrente principal dessas ciências aceita quase sem questionamentos ou análises profundas que os processos digitais são responsáveis ​​pelo que o cérebro faz. Afinal, as bolsas de pesquisa dependem da adoção desse paradigma.

A maneira mais fácil de ver o “paradigma digital” da operação cerebral é talvez por meio da consideração da visão da operação dos neurônios que temos e o que essas atividades dos neurônios significam. Embora as propriedades e ações dos receptores químicos de um neurônio e do espaço sináptico entre os neurônios tenham se mostrado incrivelmente complexas, quando tudo é dito e feito, o que acontece no neurônio é um simples pulso elétrico liga-desliga que transmite o chamado “sinal” pelo eixo do neurônio, ou axônio, em direção à próxima sinapse e neurônio na linha. Um simples pulso liga-desliga, tudo ou nada, só pode ser interpretado em termos digitais, não importa quantas camadas de complexidade alguém tente carregar em cima deste mais simples dos processos.

Enquanto isso, é bem conhecido por que o cérebro não pode ser um computador digital. Primeiro, ele não é rápido o suficiente. Nem complexo o suficiente, apesar da grande multidão de neurônios que contém. Uma tarefa como reconhecimento facial, que uma pessoa equipada com um cérebro pode fazer quase instantaneamente e sem qualquer sensação de ter concluído uma tarefa difícil, não pode ser alcançada de forma tão confiável com os computadores mais poderosos operando em velocidades de processador de vários Gigahertz e com velocidades de transferência de dados se aproximando da velocidade da luz. O cérebro opera a alguns hertz e com “taxas de transferência de dados” muito letárgicas. Outros exemplos semelhantes são fáceis de encontrar. Claramente, o paradigma de “transferência digital de bits de dados” da operação cerebral, como eu o chamo, com o potencial de ação do neurônio representando a unidade fundamental de “informação”, deve ser um paradigma aguardando um funeral bem merecido, se ao menos um novo paradigma pudesse ser criado primeiro para ampliar a agenda de pesquisa. Como Kuhn deixa claro em seu livro, não importa quais problemas um paradigma possa enfrentar, ele nunca é abandonado até que um novo paradigma esteja pronto para tomar seu lugar. Mesmo assim, muitos defensores do antigo paradigma continuam como os cientistas eminentes que atribuíram uma massa negativa ao flogisto, defendendo o que muitas vezes é o trabalho de suas vidas até o amargo fim — suas próprias mortes.

Um novo paradigma para a neurociência está de fato esperando nos bastidores há algum tempo. Algumas das ideias básicas do paradigma foram propostas pela primeira vez em parte por Karl Lashley já em 1942. Dando continuidade ao trabalho de Lashley após uma associação de uma década com ele, Karl Pribram publicou vários artigos sobre sua nova visão da operação cerebral e, finalmente, uma obra-prima de um livro sobre o assunto intitulado “Brain and Perception: Holonomy and Structure in Figural Processing”. As visões de Pribram, popularizadas em um livro de 1982 intitulado “The Holographic Paradigm and Other Paradoxes”, editado por Ken Wilber, realmente representam um paradigma inteiramente novo e revolucionário para a neurociência e a neurociência cognitiva. A agenda de pesquisa ampliada que o paradigma justificaria pode muito bem ser capaz de esclarecer muitos dos mistérios atuais da mente, como a forma como a recuperação instantânea da memória associativa pode funcionar, ou como todos os processos modulares do cérebro, como os múltiplos aspectos da visão, audição, olfato, todos parecem se combinar em uma experiência unitária, o chamado “problema de ligação” que os pesquisadores da consciência têm arrancado os cabelos tentando explicar.

Não tenho tempo hoje para contar os detalhes dessa nova abordagem ao cérebro e à consciência, mas, novamente, você deve conseguir encontrar artigos e livros interessantes na internet seguindo os links para “Karl Pribram”.

É interessante notar, e é isso que conecta essa mudança de paradigma particular aos psicodélicos, que Karl Pribram era muito próximo de outros cientistas e pesquisadores interessados ​​em psicodélicos e se inspirou em muitas dessas pessoas. O trabalho de Pribram tem todas as características de ter surgido por meio, pelo menos, da potencialização indireta da criatividade excepcional derivada do treinamento psicodélico, conforme o trabalho de Harman e Fadiman. Essa pode muito bem ser uma das principais razões pelas quais seu trabalho é amplamente ignorado pela corrente principal da neurociência e criticado ignorantemente até mesmo por grandes figuras científicas como Francis Crick.

 

Alguém poderia facilmente propor que a redescoberta psicodélica teria efeitos revolucionários ainda maiores em outras disciplinas científicas, como antropologia e paleoantropologia, como propus em minha palestra aqui há dois anos, ou mesmo economia, … poucas ciências permaneceriam intocadas se a resistência indesejada não tivesse suprimido a própria revolução psicodélica.

Os psicodélicos e suas descobertas associadas possivelmente exigem revoluções científicas não apenas em vários campos científicos, mas no próprio conceito de exploração e descoberta científica. É por essa razão talvez que essas revoluções tenham sido tão longa e tão efetivamente reprimidas. Ter uma revolução científica em um determinado período da história já é um empreendimento difícil e às vezes há muito reprimido. Mas ter múltiplas revoluções em campos científicos até mesmo díspares exigiria uma grande convulsão científica E social, especialmente dada a maneira como a ciência é financiada hoje por grandes organizações corporativas e governamentais. E a revolução não pararia por aí: uma reorganização tão imensa na ciência levaria inevitavelmente a uma revolução nos costumes sociais, atitudes e, finalmente, na própria civilização e na política pela qual ela é dirigida. Se uma revolução tão multifacetada pode ser realizada é talvez o maior teste da humanidade desde o que ocorreu há tanto tempo, quando ele teve que decidir o que fazer com aquela primeira experiência do fruto proibido psicodélico no Jardim do Éden.

A Psiquiatria está pronta para o paradigma da cura psicodélica?

Como o uso de plantas de poder e psicodélicos podem ajudar a aliviar o sofrimento humano? Quais são as barreiras para as chamadas medicinas da floresta, como a Ayahuasca, se tornarem parte da Psiquiatria convencional? Como se projeta e conduz pesquisas sobre o uso terapêutico de tais plantas de uma maneira ética e significativa? Como irá aparentar o tratamento de transtornos mentais com estas plantas? Estas são algumas das perguntas básicas as quais eu vim lidando no decorrer dos últimos três anos, enquanto completava residência em Psiquiatria e tentava iniciar uma carreira na ciência psicodélica e sua forma de cura.

Neste breve texto, tentarei esboçar algumas respostas introdutórias para as perguntas acima, bem como discutir os desafios em integrar diferentes áreas do conhecimento com o modelo biológico atual da Psiquiatria. Eu acredito que a adoção de uma perspectiva multidimensional complexa do sofrimento humano e o aproveitamento delicado de maneiras diferentes de entender plantas psicodélicas são fatores-chave para o paradigma emergente de cura psicodélica.

 

 

Diferentes perspectivas sobre as Plantas Psicodélicas


Plantas psicoativas e fungos tem se relacionado com humanos por milhares de anos, tendo diferentes e vários papéis na sociedade, na cultura, religião e na medicina. Como resultado dessa complexa e histórica relação, existem inúmeras formas pelas quais podemos entender e falar sobre estas plantas.

A Ayahuasca como um exemplo, uma perspectiva indígena ou antropológica pode ver a bebida como não apenas sagrada, mas como uma “planta de espírito” ou “professora”, com a qual uma pessoa ou um xamã interage para produzir o efeito desejado. Essa compreensão contrasta totalmente com uma visão biomédica da Ayahuasca como uma coleção de alcaloides e outros compostos químicos, principalmente um agonista (quando uma substância química se liga em um receptor e o ativa) do receptor da serotonina 2A e um inibidor da MAO (monoamina oxidase), que alteram a conectividade da rede cerebral e a neuroplasticidade. Talvez entre essas visões existam as perspectivas psicológicas do chá como um “psicodélico”, capaz de provocar estados não-ordinários de consciência que podem trazer o insight psicológico e a mudança.

À medida em que o uso da Ayahuasca se torna mais difundido, existem várias outras maneiras de conceituá-la ou explicá-la. Perspectivas espirituais ou religiosas podem classificar o chá como “enteógeno” ou “sacramento”, capaz de catalisar profundas experiências espirituais ou místicas. Discursos mais recentes consideram a Ayahuasca como uma “ferramenta cognitiva”, ou “ferramenta evolutiva” que pode intensificar a criatividade e ajudar nossa espécie a evoluir ou viver mais harmoniosamente. Finalmente, a Ayahuasca e outras plantas psicodélicas são, muitas vezes, chamadas carinhosamente de medicinas da floresta por usuários da contemporaneidade que desejam destacar seus efeitos de cura profunda.

 

A Planta Medicinal na Era da Psiquiatria Biológica

Enquanto meu treinamento na psiquiatria enfatizou uma abordagem “biopsicossocial” para diagnóstico e tratamento, parece claro que o campo da psiquiatria como um todo tem, nas últimas décadas, priorizado a compreensão biológica do sofrimento mental. De acordo com este paradigma, doenças mentais como depressão e esquizofrenia, bem como dependências, são consideradas doenças cerebrais resultantes de circuitos neurais aberrantes e desequilíbrios químicos. Essa perspectiva visava servir a múltiplos propósitos: 1) ajudar a psiquiatria a tomar o seu lugar no meio de outras especialidades da medicina fundamentadas nas ciências biológicas; 2) desestigmatizar a doença mental e as dependências, retratando-os como doenças crônicas tratáveis, como diabetes ou algum tipo de doença cardíaca, e não como falhas morais ou resultantes de um caráter fraco; e 3) como o público crítico argumentaria, para ajudar a promover os produtos farmacêuticos como o principal meio de abordar a doença mental e aliviar o sofrimento cotidiano.

Embora não negue que este paradigma levou a avanços no nosso entendimento sobre certas doenças mentais e que pode ser utilizado como uma lente explicativa poderosa para certos pacientes, gostaria de salientar que uma compreensão estritamente biológica da doença mental é inconsistente com a minha compreensão sobre como plantas psicodélicas funcionam para trazer cura.
O paradigma biológico coloca a pessoa em situação de sofrimento como uma vítima relativamente impotente de um cérebro doente, obscurecendo as causas sociais, psicológicas e espirituais mais profundas do sofrimento e prescreve a adesão passiva à medicação como o modo primário de cura.

Em contraste, acredito que a experiência com plantas psicodélicas nos confronta poderosamente com a realidade que existimos como seres multidimensionais complexos, com mentes cerebrais, corpos, corações e espíritos, todos conectados uns aos outros e com nossos seres naturais e sociais. A partir dessa perspectiva, a fonte do sofrimento não é apenas do cérebro; o sofrimento pode surgir da doença em qualquer uma dessas camadas de existência e ser propagado através delas de formas complexas. Isso explicaria, por exemplo, como o stress social é internalizado como sintoma psicológico ou físicos.

O Desafio de Integrar o Conhecimento


A principal implicação de cunho terapêutico em ver o sofrimento mental nesta maneira multidimensional é que os tratamentos adequados devem agora ser capazes de intervir nas múltiplas camadas da existência. O principal argumento que eu gostaria de enfatizar é que esse tipo de cura multidimensional a) requer um engajamento ativo da pessoa em situação de sofrimento (bem como em psicoterapia), e b) pode ser alcançado através do uso de plantas psicodélicas medicinais utilizando as diferentes visões conceituais descritas acima. Assim, como pesquisador clínico e acadêmico, vejo o principal desafio do campo emergente da ciência psicodélica como sendo a integração de modos de conhecimento e abordagens para a cura que, anteriormente, se encontravam desconectados e conflitantes.

Dada a predominância dos quadros biológicos dentro da Psiquiatria acadêmica, desafios significativos relacionados a essa integração manifestam-se tanto ao transmitir tais ideias a colegas e agências financiadoras, quanto ao tentar traduzir essas ideias em ensaios clínicos e protocolos de tratamento. Como estudamos e utilizamos um medicamento com múltiplos ingredientes ativos que funciona de modo complexo, multidimensional e idiossincrática quando a ciência moderna é inerentemente reducionista, ao procurar moléculas únicas que têm mecanismos biológicos de ação específicos para explicar seus efeitos terapêuticos sobre os processos patológicos que podem ser vistos, reconhecidos e medidos? Como a ciência pode explicar a interação entre as propriedades físicas de uma medicina como a Ayahuasca e seus componentes metafísicos de cura que são complementares ao seu uso, como música, dieta, oração e outros aspectos do Xamanismo? Acredito que superar esses desafios de integração representa uma grande oportunidade para o campo da ciência psicodélica e, caso bem-sucedida, pode revolucionar a maneira como pensamos e tratamos a doença mental.

 

 

Integração de conhecimento: passado e presente


Felizmente, o processo de integrar diferentes tipos de conhecimento sobre as plantas psicodélicas já foi iniciado. Populações indígenas ao redor do mundo possuem séculos de conhecimento relacionados ao uso de plantas psicoativas para fins espirituais, religiosos e de cura. Relatos antropológicos e interdisciplinares e o engajamento direto entre cientistas, usuários ou praticantes dos rituais e povos indígenas (por exemplo, a Conferência Mundial de Ayahuasca) trazem as partes interessadas com diferentes perspectivas e tipos de conhecimento ao diálogo uns com os outros. No Ocidente, existem modelos “psicodélicos” e “psicolíticos” de uso de substâncias psicodélicas ao lado da psicoterapia para tratar transtornos de humor e dependência de substâncias que remontam aos anos 1950. Esses modelos serviram de base para ensaios clínicos recentes e podem ser modificados e atualizados à medida que se ganha mais conhecimento e que este vá sendo integrado.

A onda atual de pesquisa psicodélica tem sido caracterizada por trazer avançadas ferramentas científicas e métodos para suportar o estudo de substâncias psicodélicas, incluindo a neuroimagem e farmacologia molecular, bem como uma metodologia robusta de ensaio clínico utilizando o controle do placebo duplo-cego. Ao crédito destes investigadores, essa pesquisa não só trouxe novos entendimentos sobre como os psicodélicos afetam o cérebro, mas também começaram a elucidar como tais mudanças biológicas podem ser correlacionadas com a experiência psicológica e espiritual. Por exemplo, Robin Carhart-Harris demonstrou como as mudanças psicodélicas induzidas na conectividade cerebral se correlacionam com experiências específicas de tipo místico e subjetivo. Submetendo-se a tais experiências do tipo místico, tem se mostrado correlacionado com o benefício terapêutico em estudos recentes com psilocibina, o ingrediente ativo dos “cogumelos mágicos”.
O estudo de medicamentos complementares e alternativos seguiu uma trajetória similar. Nos últimos anos, estudos cada vez mais sofisticados começaram a esclarecer como práticas e modalidades que costumavam ser entendidas como espirituais ou energéticas, como meditação e acupuntura, têm efeitos biológicos e psicológicos que contribuem para seu potencial terapêutico.

Rumo à “Integração de Paradigmas Críticos”

Embora esses desenvolvimentos recentes sejam um bom sinal para o futuro da pesquisa e do tratamento com psicodélicos, eu gostaria de concluir argumentando para defender o foco sustentado entre pesquisadores e profissionais neste campo sobre integração do conhecimento, colaboração multidisciplinar e abordagens de tratamento multimodal – o que eu chamo de “integração de paradigmas críticos”.

Os atuais determinantes políticos, econômicos e filosóficos continuarão a puxar a pesquisa e o tratamento com psicodélicos em uma direção biológica. Portanto, é crítico neste tempo ressurgente para a ciência psicodélica que os pesquisadores visam integrar diferentes tipos de conhecimento e planejem protocolos de tratamento que refletem entendimentos multidimensionais complexos de como as plantas psicoativas produzem cura. Este último é crucial pois as diretrizes de tratamento são geralmente baseadas em evidências produzidas por ensaios clínicos. Assim, os modelos que nós construímos e estudamos agora estão aperfeiçoando como as plantas medicinais serão usadas na Medicina nas próximas décadas.

Vamos tratar plantas psicodélicas medicinais como qualquer outra classe de psicofármacos, tomados de modo passivo por pacientes enquanto o medicamento re-conecta com seus cérebros? Procuraremos criar formulações que minimizem seus “efeitos colaterais” psicoativos e somáticos ou purgativos, bem como foi feito com o uso psiquiátrico da ketamina? Ou esses tratamentos, de uma natureza radicalmente diferente, interagindo com nossos corpos-mente-cérebro-espírito de uma forma complexa que requer um engajamento ativo, não só durante o tempo de administração da droga, mas o antes e depois? Acredito que o entusiasmo popular por trás da cura psicodélica e os benefícios terapêuticos profundos e duradouros relatados até agora em ensaios clínicos argumentam para este último. Se a psiquiatria tradicional e as instituições sociais relacionadas irão abraçar este novo paradigma, isto ainda está para ser descoberto.

 

O autor gostaria de reconhecer as contribuições intelectuais de Jeffrey Guss M.D., Ryan Wallace M.D., e Alexander Belser M.Phil., No desenvolvimento das idéias apresentadas aqui.

FONTE


Agradecemos imensamente a tradução feita pela colaboradora Mirella Mochiutti.
Seja você também um colaborador, entre em contato:

equipemundocogumelo@gmail.com


BIBLIOGRAFIA

 

El-Seedi, H. R., Smet, P. A. G. M. D., Beck, O., Possnert, G., & Bruhn, J. G. (2005). Prehistoric peyote use: Alkaloid analysis and radiocarbon dating of archaeological specimens of Lophophora from Texas. Journal of Ethnopharmacology, 101(1-3), 238–242 ↩

Tupper, K. W., & Labate, B. C. (2014). Ayahuasca, psychedelic studies and health sciences: the politics of knowledge and inquiry into an Amazonian plant brew. Current Drug Abuse Reviews, 7, 71–80. ↩

Luna, L. E. (1984). The concept of plants as teachers among four mestizo shamans of Iquitos, northeastern Peru. Journal of Ethnopharmacology, 11(2):135–56. ↩
Domínguez-Clavé, E., Soler, J., Elices, M., Pascual, J. C., Álvarez, E., la Fuente Revenga, de, M., … Riba, J. (2016). Ayahuasca: Pharmacology, neuroscience and therapeutic potential. Brain Research Bulletin, 126(Part 1), 89–101. ↩

Richards, W. A. (2015). Sacred Knowledge. New York City, NY: Columbia University Press.

Tupper, K. W., & Labate, B. C. (2014). Ayahuasca, psychedelic studies and health sciences: the politics of knowledge and inquiry into an Amazonian plant brew. Current Drug Abuse Reviews, 7, 71–80. ↩

Engel, G. L. (1980). The clinical application of the biopsychosocial model. Am J Psychiatry, 137(5), 535–544. ↩

Carlat, D. (2010). Unhinged. New York, NY: Simon and Schuster. ↩

Labate, B. C., & Cavnar, C. (Ed.s) (2014). Ayahuasca shamanism in the Amazon and beyond. New York City, NY: Oxford University Press. (+) Luna, L. E., & White, S. F. (2016). Ayahuasca Reader. Santa Fe, NM: Synergetic Press. ↩

Bogenschutz, M. P., & Johnson, M. W. (2016). Classic hallucinogens in the treatment of addictions. Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry, 64, 250–258 ↩

Carhart-Harris, R. L., Muthukumaraswamy, S., Roseman, L., Kaelen, M., Droog, W., Murphy, K.,. Nutt, D. J. (2016). Neural correlates of the LSD experience revealed by multimodal neuroimaging. Proceedings of the National Academy of Sciences, 201518377–6 (+) Mucke, H. A. M. (2016). From psychiatry to flower power and back again: The amazing story of lysergic acid diethylamide. ASSAY and Drug Development Technologies, 14(5), 276–281(+) Preller, K. H., & Vollenweider, F. X. (2016). Phenomenology, structure, and dynamic of psychedelic states (pp. 1–35). Heidelberg: Springer. ↩

Griffiths, R. R., Johnson, M. W., Carducci, M. A., Umbricht, A., Richards, W. A., Richards, B. D…. Klinedinst, M. A. (2016). Psilocybin produces substantial and sustained decreases in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: A randomized double-blind trial. Journal of Psychopharmacology, 30(12), 1181–1197. (+) Palhano-Fontes, F., Barreto, D., Onias, H., & Andrade, K. C. (2017). Rapid antidepressant effects of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant depression: A randomised placebo-controlled trial. bioRxiv, 103531. (+) Ross, S., Bossis, A., Guss, J., Agin-Liebes, G., Malone, T., Cohen, B. … Schmidt, B. L. (2016). Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: A randomized controlled trial. Journal of Psychopharmacology, 30(12), 1165–1180 ↩

Carhart-Harris, R. L., Erritzoe, D., Williams, T., Stone, J. M., Reed, L. J., Colasanti, A., … Nutt, D. J.. (2012). Neural correlates of the psychedelic state as determined by fMRI studies with psilocybin. Proceedings of the National Academy of Sciences, 109(6), 2138–2143 ↩

Bogenschutz, M. P., Forcehimes, A. A., Pommy, J. A., Wilcox, C. E., Barbosa, P., & Strassman, R. J. (2015). Psilocybin-assisted treatment for alcohol dependence: A proof-of-concept study. Journal of Psychopharmacology, 29(3), 289–299(+) Garcia-Romeu, A., Griffiths, R. R., & Johnson, M. W. (2014). Psilocybin-occasioned mystical experiences in the treatment of tobacco addiction. Current Drug Abuse Reviews, 7(3), 157–164. (+) Griffiths, R. R., Johnson, M. W., Carducci, M. A., Umbricht, A., Richards, W. A., Richards, B. D…. Klinedinst, M. A. (2016). Psilocybin produces substantial and sustained decreases in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: A randomized double-blind trial. Journal of Psychopharmacology, 30(12), 1181–1197 ↩

Brewer, J. A., & Garrison, K. A. (2013). The posterior cingulate cortex as a plausible mechanistic target of meditation: Findings from neuroimaging. Annals of the New York Academy of Sciences, 1307(1), 19–27 (+) Garrison, K. A., Scheinost, D., Constable, R. T., & Brewer, J. A. (2014). BOLD signal and functional connectivity associated with loving kindness meditation. Brain and Behavior, 4(3), 337–347(+) Loizzo, J. (2013). Meditation research, past, present, and future: Perspectives from the Nalanda contemplative science tradition. Annals of the New York Academy of Sciences, 1307(1), 43–54. ↩

 

Intervenção abrangente em crises nas emergências psicodélicas

Autor: Stanislav Grof

No livro: GROF, S. LSD psychotherapy. California: Hunter House, 1980.

Tradução: Fernando Beserra

 

Tendo discutido os fatores que contribuem para o desenvolvimento de emergências em sessões não supervisionadas de LSD e descrito as práticas danosas que caracterizam muitas intervenções legais e profissionais, eu gostaria de delinear o que considero a abordagem ideal a crises psicodélicas, baseado no entendimento de suas dinâmicas. O que constitui uma emergência em uma sessão de LSD é altamente relativo e depende de uma variedade de fatores. Isso reflete em uma interação entre os próprios sentimentos do sujeito sobre a experiência, as opiniões e tolerância das pessoas presentes e o julgamento dos profissionais chamados para oferecer ajuda. Este último fator é de importância decisiva; ele depende do grau de entendimento do terapeuta quanto ao processo envolvido, sua experiência clínica com estados incomuns de consciência e sua liberdade de ansiedade. Na intervenção em uma crise psicodélica, como na prática psiquiátrica em geral, medidas drásticas frequentemente refletem o sentimento de medo e insegurança do cuidador, mas também a relação com o seu próprio inconsciente. A experiência da terapia com LSD e as novas psicoterapias experienciais claramente indicam que a exposição aos materiais emocionais profundos de outra pessoa tendem a quebrar as defesas psicológicas e ativar as áreas correspondentes no inconsciente da pessoa que cuida e testemunha o processo, ao menos que eles tenham se confrontado e trabalhado através destes níveis neles mesmos. Desde que as psicoterapias tradicionais são limitadas ao trabalho em material biográfico, mesmo um profissional com treinamento completo em análise é inadequadamente preparado para lidar com as experiências poderosas de natureza perinatal e transpessoal. A tendência prevalente a colocar todas estas experiências na categoria de esquizofrenia e suprimi-las a todo custo reflete não apenas a falta de entendimento, mas também uma autodefesa conveniente contra o material do seu próprio inconsciente.

Na medida em que aumentou a sofisticação e experiência clínica de terapeutas que trabalham com LSD, se tornou mais evidente que episódios negativos nas sessões psicodélicas não deveriam ser vistos como acidentes imprevisíveis, mas aspectos intrínsecos e legítimos do trabalho terapêutico com o material traumático inconsciente. Deste ponto de vista o termo coloquial “bummer” ou “bad trip” (viagem ruim) não faz sentido. Para um terapeuta que trabalha com LSD uma sessão psicodélica mal sucedida não é uma na qual o sujeito experimenta a ansiedade do pânico, tendências autodestrutivas, culpa abismal, perda de controle ou sensações de dificuldade física. Se propriamente manejadas, uma sessão dolorosa ou difícil com LSD pode trazer uma importante revelação terapêutica. Ela pode facilitar a resolução de problemas que atormentaram o sujeito de formas sutis por muitos anos e contaminaram sua vida cotidiana. Uma sessão mal sucedida, entretanto, é uma na qual, quando os sentimentos de dificuldade começam a emergir, o sujeito não se rende completamente ao processo e a Gestalt permanece não solucionada. Deste ponto de vista, todas as experiências psicodélicas nas quais o processo é frustrado pela administração de tranquilizantes e distrações externas como a transferência para um hospital psiquiátrico não são falhas por consequência da natureza do processo psicológico envolvido, mas porque o manejo da crise interferiu com uma resolução positiva.

Embora o LSD possa induzir experiências psicodélicas difíceis mesmo sob as melhores circunstâncias, seria um erro atribuir todas as “bad trips” a própria substância. O estado psicodélico é determinado por uma variedade de fatores não relacionados a substância; a incidência de sérias complicações depende criticamente da personalidade do sujeito e de elementos do set e do setting. Isso pode ser ilustrado comparando a incidência de complicações durante as experimentações iniciais supervisionadas com LSD e a cena psicodélica dos anos 60. Em 1960, Sidney Cohen publicou um artigo intitulado: LSD: efeitos colaterais e complicações. J. Nerv. Ment. Dis. 130::30, 1960. Ele estava baseado nos relatos de 44 profissionais que tinham administrado LSD e mescalina a aproximadamente 5 mil pessoas cerca de 25 mil vezes; o número de sessões por pessoa alternava entre uma e oitenta. No grupo de voluntários normais, a incidência de tentativas de suicídio após a sessão foi menor que um a cada mil casos e reações prolongadas durante mais que 48 horas foi de 0,8 por milhar. Este número foi um pouco mais alto quando pacientes psiquiátricos foram utilizados como sujeitos; em cada mil pacientes havia 1,2 tentativas de suicídio, 0,4 suicídios completos e 1,8 reações prolongadas durante mais que 48 horas. Em comparação com outros métodos de terapia psiquiátrica, portanto, o LSD apareceu como invulgarmente seguro, particularmente quando contrastado com outros procedimentos utilizados rotineiramente no tratamento psiquiátrico neste momento, como eletrochoques, comas insulínicos e psicocirurgia. Estas estatísticas contrastam bruscamente com a incidência de reações adversas e complicações associadas com experimentação não supervisionada. Durante a minha visita a clinica de Haight-Ashbury em São Francisco no final dos anos 60, eu fui informado pelo seu diretor David Smith que eles estavam tratando uma média de quinze bad trips por dia. Embora isso não necessariamente signifique que todos os clientes tiveram um efeito adverso duradouro de suas experiências psicodélicas, isso ilustra o tema em questão.

A experiência e sofisticação de psiquiatras e psicólogos em relação aos psicodélicos certamente não foi grande durante os anos iniciais e os settings estavam longe do ideal. Entretanto, as sessões reportadas no artigo do Dr. Cohen eram conduzidas em ambientes protegidos, em razoável supervisão e por indivíduos responsáveis. Em adição, estes que tinham experiências difíceis estavam em um lugar que era equipado para prover ajuda em caso de necessidade e eles não tinham que ser submetidos a ordem absurda de transferência a uma instalação psiquiátrica.

A crise psicodélica é causada por uma complicada interação de fatores internos e externos. O terapeuta tem que distinguir qual dos dois sets de influência é mais importante e proceder de acordo. O primeiro e mais importante passo no tratamento de uma crise psicodélica é criar um ambiente simples, seguro e de suporte físico e interpessoal para o sujeito. Em caso nos quais os fatores externos parecem produzir o papel principal, é importante remover o individuo de situações traumáticas ou mudar isso por uma intervenção ativa. Se a crise ocorrer em um local público, ele ou ela deve ser levado a um lugar quieto e isolado. Se o incidente ocorrer durante uma festa em uma residência privada, é importante simplificar a situação movendo o usuário a uma sala separada ou pedir aos convidados para ir embora. Poucos amigos próximos que parecerem sensíveis e maduros podem ser convidados a dar assistência no processo. Eles podem providenciar um suporte de grupo ou ajudar o sujeito a ativamente trabalhar através de problemas subjacentes durante o período de finalização da sessão. As técnicas de grupo envolvidas em sessões psicodélicas foram discutidas mais cedo neste livro.

Depois de criar um espaço seguro o próxima tarefa importante é estabelecer um bom contato com o sujeito. O relacionamento de confiança é provavelmente o pré-requisito mais significativo para o resultado positivo de uma sessão psicodélica em geral e para um manejo bem sucedido da crise em particular. Uma pessoa solicitada a intervir em uma crise desencadeada por LSD está em grande desvantagem se comparada a um terapeuta que trabalha com LSD, lidando com uma situação similar, no curso de um tratamento psicodélico, porque a sessão terapêutica é precedida de períodos de preparação sem o uso de substâncias no qual há tempo suficiente para estabelecer um bom contato e um relacionamento de confiança. Se uma situação difícil surge no curso de uma série com LSD, o cliente pode desenhar em sua memória de sessões prévias onde as experiências dolorosas foram trabalhadas com sucesso e integradas com a ajuda do terapeuta.

Em contraste, o profissional lidando com a crise fora do contexto terapêutico, caminha para dentro da situação de emergência como um estranho, usualmente sem nenhum contato prévio com o sujeito e outras pessoas envolvidas. Confiança e cooperação tem que ser estabelecidas em um tempo muito curto e muitas vezes em circunstâncias dramáticas. Estar livre de ansiedade, uma habilidade de permanecer centrado, empatia profunda e intimo conhecimento das dinâmicas dos estados psicodélicos são as únicas formas de gerar a confiança no âmbito destas circunstâncias.

É essencial transmitir um senso de proteção e segurança, enfatizando a natureza autolimitada da experiência com LSD. Não importa quão critica as condições pareçam ser, em muitos casos ela será resolvida espontaneamente de cinco a oito horas depois da ingestão da substância. Este limite de tempo deve ser claramente comunicado ao sujeito e outras pessoas presentes; até este tempo não há absolutamente razão para pânico ou preocupação, entretanto, manifestações emocionais e psicossomáticas podem ocorrer. Também é uma grande vantagem manter o sujeito em uma posição reclinada, mas isso deve ser atingido sem utilizar nenhuma força física e restrição aberta. Com pouca experiência, alguém pode desenvolver uma técnica na qual é possível efetivamente restringir o indivíduo usando um contexto de suporte e cooperação, mais do que de conflito.

Quando o contato adequado foi estabelecido, uma estrutura positiva deve ser oferecida para a experiência psicodélica difícil. É essencial apresentar ela como uma oportunidade de encarar e trabalhar através de certos aspectos traumáticos de inconsciente, mais do que um acidente trágico e infortunado. Uma pessoa dando assistência uma crise psicodélica deve fazer tentativas consistentes de internalizar a experiência do sujeito que usou LSD e encorajar ele ou ela a olhar os temas críticos envolvidos. O usuário de LSD deve ser encorajado a manter os seus olhos fechados e confrontar a experiência, independente qual ela seja. O terapeuta deve repetidamente comunicar ao sujeito que a forma mais rápida de sair do estado difícil é se rendendo a dor física e emocional, experiência ela completamente e procurando canais apropriados para expressá-la. O processo de se render pode ser facilitado grandemente pela música. Se um aparelho de som de boa qualidade estiver avaliável, e o sujeito aberto a isso, música deve ser introduzida na situação tão logo seja possível.

Quando um bom rapport for estabelecido, é possível oferecer assistência ativa usando contato físico reconfortante, elementos de grande esforço lúdico (playful struggle) e pressão ou massagem nas partes do corpo onde a energia parece estar bloqueada. Isso não deve ser feito se o laço de confiança é precário ou ausente; isso é absolutamente contraindicado se o sujeito estiver paranoico e inclui as pessoas presentes entre o seu ou a sua perseguidor(a). Em alguns casos simplesmente estar com o cliente e jogar com o tempo pode ser a única solução. Em tais circunstâncias, é essencial usar qualquer meio possível e recursos existentes para impedir que a pessoa que usou LSD machuque a si mesma ou a outros e cause sérios danos materiais. Enquanto seguir a regra básica, tentativas ocasionais devem ser feitas para estabelecer o rapport e ganhar a cooperação do individuo.

Se a Gestalt da experiência permanecer não concluída quando o efeito da droga está terminando, atividade psicológica ou física deve ser utilizada para facilitar a integração. Idealmente, o sujeito deve completar a sessão se sentindo confortável e relaxado, sem nenhum sintoma residual emocional ou psicossomático. As duas técnicas que se provaram uteis neste contexto – a abordagem abreativa e a hiperventilação de limpeza – foram discutidas mais cedo neste livro (p. 156-7, 159-60). Depois que o sujeito encontrar um estado psicológico e físico confortável, é importante criar uma atmosfera segura e nutridora pelo resto do dia e noite. Idealmente, uma pessoa que passou por uma crise psicodélica não deve ser deixada sozinha, por ao menos 24 horas depois da ingestão da droga. Depois deste tempo, o terapeuta deve ver o cliente novamente, reavaliar a situação e, dependendo da condição da pessoa, escolher uma estratégia futura. Em muitos casos nenhuma disposição adicional é necessária, se a crise foi tratada adequadamente. É útil discutir a experiência com LSD em detalhe e facilitar a sua integração na vida cotidiana do paciente. Se reclamações emocionais ou psicossomáticas significativas apareceram como resultado da experiência com LSD, devem ser tomadas providências para uma terapia de descoberta e trabalho corporal. Uma seleção individualizada de técnicas de meditação, práticas de Gestalt, abordagem neo-reichiana, imaginação guiada com música, respiração controlada, massagem de polaridade ou rolfing devem ser oferecidas ao cliente.

Onde a condição clínica permanecer precária apesar de todo o trabalho de desvelamento, este tratamento deve ser continuado em uma internação. Se todas as abordagens acima se provarem inefetivas, a integração pode ser facilitada por meios químicos. Idealmente, uma sessão de psicodélica supervisionada deve ser agendada depois da preparação adequada. Esta abordagem pode parecer paradoxal ao profissional de saúde mental médio, desde que ela envolve a administração da mesma droga ou categoria de drogas que aparentemente trouxe ao cliente o problema em primeiro lugar. No entanto, o uso judicioso de psicodélicos nestas circunstâncias é o tratamento preferencial. A experiência clínica mostrou que é extremamente difícil restaurar as defesas pelo uso de técnicas de cobertura como os tranquilizantes, uma vez que o inconsciente foi aberto por uma poderosa substância psicodélica. É muito mais fácil continuar a estratégia de desvelamento e facilitar a completar a Gestalt não finalizada.

Psilocibina, metilenodioxianfetamina (MDA), tetrahidrocanabinol (THC), e dipropiltriptamina (DPT) são alternativas viáveis ao LSD. Eles têm os mesmos efeitos gerais e são menos contaminados por má publicidade. MDA e o THC parecem ser particularmente úteis neste contexto, por causa de seus efeitos suaves e afinidade seletiva a sistemas positivamente governados no inconsciente. Trabalho psicológico efetivo com estas substâncias envolve menos dor emocional e psicossomática do que quando o LSD é utilizado.

Como os psicodélicos acima não estão prontamente avaliáveis, e obter permissão para usá-los envolve procedimentos administrativos tediosos, uma sessão com Ritalina (100-200mg) ou Ketalar (100-150mg) pode ser uma abordagem factível. Tranquilizantes não devem ser usados em nenhuma condição relacionada ao uso de psicodélicos até que todas as abordagens de desvelamento acima tenham sido tentadas e falharam.

Abordagens poderosas sem drogas também pode ser usadas no lugar de tranquilizantes em todos os casos nos quais a experiência com LSD pobremente resolvida resultou em condições psicóticas de longo prazo e hospitalizações psiquiátricas durando meses ou anos. Se estes não produzem melhora clínica suficiente, terapia psicodélica, usando as substâncias mencionadas acima, é a próxima escolha lógica. Ketalar, uma droga que é legalmente avaliável e foi usada no contexto médico para anestesia geral pode se provar promissora nestes casos desesperados.

Eu gostaria de concluir esta discussão da intervenção em crise psicodélica com a descrição da situação mais dramática deste tipo que eu encontrei na minha carreira profissional.

No meu terceiro ano em Big Sur, Califórnia, eu fui acordado às 4:30 em uma manhã por uma ligação telefônica. Era o guarda noturno do próximo Instituto Esalen pedindo ajuda. Um casal de jovens chamado Peter e Laura, que estavam viajando pela costa, estacionaram o seu trailer VW na rota costeira 1 nas proximidades do Instituto Esalen e decidiram tomar LSD juntos. Eles saíram da cama no trailer e, pouco depois da meia noite, ingeriram a droga. A experiência de Laura foi relativamente suave, mas Peter progressivamente desenvolveu um agudo estado psicótico. Ele se tornou paranoico e violento e depois de um período de agressão verbal ele começou a jogar coisas em volta e demolir o carro. Neste ponto, Laura entrou em pânico, trancou ele no trailer e buscou ajuda em Esalen. Ele apareceu na guarita completamente nua, segurando as chaves do carro em suas mãos. O guarda noturno conhecia sobre meu trabalho prévio com psicodélicos e decidiu me ligar; ele também acordou o Rick Tarnas, um psicólogo residente que fez a sua dissertação sobre drogas psicodélicas.

Enquanto o guarda estava cuidando da Laura, que se acalmou e teve uma experiência prazerosa e não complicada com LSD, Rick e eu andamos para o trailer. Na medida em que nos aproximamos do carro nós ouvimos os altos barulhos e gritos; quando chegamos mais perto, percebemos que várias das janelas estavam quebradas. Nós destrancamos o carro, abrimos a porta e começamos a conversar com Peter. Apresentamo-nos e falamos para ele que tínhamos considerável experiência com estados psicodélicos e viemos para ajuda-lo. Eu timidamente enfiei a minha cabeça dentro da porta e olhei para o campista; uma garrafa de meio litro não acertou a minha cabeça por 10 centímetros e caiu no painel. Eu repeti isso varias vezes e mais dois objetos vieram voando em minha direção. Quando sentimos que Peter não tinha mais nada para jogar, nos rapidamente nos movemos na direção do campista e deitamos na cama dobrável, em cada lado dele.

Nós continuamos a conversar com o Peter, assegurando a ele que tudo estaria bem em uma hora ou duas; sabendo que ele e sua namorada tinham tomado LSD depois da meia noite, nós podemos dar ele um prazo de tempo definido. Tornou-se óbvio que ele estava em um estado paranoico e nos viu como agentes hostis do FBI que vieram para busca-lo. Nós seguramos os seus braços de uma forma confortável e tranquilizadora, mudando isso em um aperto firme quando ele buscava escapar, mas evitando um real antagonismo físico e luta. O tempo todo, nos mantemos conversando sobre como nós tivemos experiências difíceis e como elas foram, retrospectivamente, úteis. Esta condição oscilou por cerca de uma hora entre desconfiança com impulsos agressivos carregados de ansiedade e episódios de alívio quando era possível se conectar com ele.

Na medida em que o tempo passava e o efeito do LSD se tornava menos intenso, Peter vagarosamente começou a desenvolver confiança. Ele estava cada vez mais disposto a manter seus olhos fechados e encarar a experiência e nos estávamos mesmo aptos a começar a trabalhar, cuidadosamente, nas partes bloqueadas do seu corpo, encorajando a plena expressão emocional. Às sete horas todos os elementos negativos tinham desaparecido por completo da experiência com LSD do Peter. Ele se sentia purificado e renascido e estava verdadeiramente aproveitando o novo dia. Sua hostilidade prévia se tornou em uma gratidão profunda e ele se manteve repetindo o quando ele apreciou a intervenção.

Aproximadamente às sete e meia Laura apareceu no trailer e se juntou a nos; ela estava em uma ótima condição, mas estava naturalmente preocupada sobre Peter. Rick e eu ajudamos a dissipar as consequências negativas dos eventos dramáticos da noite e facilitamos a reunião deles. Nós os aconselhamos fortemente contra dirigir naquele dia. Eles gastaram o dia de lazer no oceano Pacífico e no próximo dia continuaram a sua jornada ao sul. Eles estavam em um bom animo, embora estivessem um pouco preocupados sobre a conta de reparo de seu trailer danificado.

Cogumelos mágicos na minha psicoterapia: um mergulho no sagrado

Por: Fernando Beserra

É um grande prazer fazer a minha estreia como colunista aqui no Mundo Cogumelo. Me lembro que o site já era uma referência para mim quando comecei a escrever em um antigo blog: o Enteogenico, em 2009. Segui escrevendo a coluna Portas da Percepção, no Hempadão, a partir de 2010, durante quase 10 anos. E de lá para cá, o movimento psicodélico brasileiro amadureceu e os conhecimentos se tornarem mais amplos e acessíveis. Para que me conheçam um pouco: sou psicólogo, um dos membros fundadores da Associação Psicodélica do Brasil (APB) e atualmente faço meu doutorado em psicologia clínica (PUC-SP) sobre o suporte psicológico às crises induzidas por psicodélicos.

Neste primeiro texto, aqui no mundo cogumelo, vou escrever um pouco sobre uma experiência que tive com cogumelos mágicos em contexto terapêutico, no qual fiquei, durante um pouco mais de seis horas, acompanhado por uma psicóloga e um psicólogo. Estudo o tema da psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos há muitos anos, já tendo realizado grupos de estudo e dado cursos sobre o tema. Parte deste processo, no que tange seu viés coletivo, em especial sobre a integração da experiência psicodélica, foi consolidado em um projeto coletivo no TRIP (Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica), um projeto da Associação Psicodélica do Brasil (https://associacaopsicodelica.org/trip/), que teve o Sandro Rodrigues como idealizador/organizador. Mas como não há regulamentação, não é possível realizar a terapia psicodélica de forma oficial. Por esta razão, no melhor dos casos, posso informar profissionais de saúde que utilizarei meus cogumelos, por meu próprio desejo, e eles podem utilizar um manejo, por meio da uma compreensão de redução de danos e da ética profissional, isto é, não negarem o atendimento. Além, é claro, de depois de qualquer experiência pessoal com psicodélicos, também poderem contribuir com a integração da experiência, caso sejam profissionais capacitados e não sejam preconceituosos.

A experiência narrada foi realizada em 2020. Há algum tempo estava usando apenas microdosagem e/ou minidosagem, tendo feito, inclusive, o protocolo do James Fadiman no primeiro caso. Tal uso cuidadoso se deveu a uma mudança no padrão de uso, desde que tive um quadro de ansiedade no final de 2018, quando me encontrava absolutamente absorvido por uma quantidade de trabalhos e responsabilidades sobre-humanas. Desde então, retornei a psicoterapia e utilizei durante alguns meses um antidepressivo inibidor seletivo de recaptação de serotonina (ISRS), além de manter um uso de ansiolítico em SOS, que logo abandonei. Quando abandonei o antidepressivo, após alguns meses de uso, conforme preconizado e prescrito, iniciei o protocolo de microdosagem de LSD, testados com o reagente de Ehrlich, o que acredito que tenha ajudado a realizar um desmame mais tranquilo do antidepressivo, em especial devido aos efeitos serotoninérgicos (e, quem sabe, à neurogênese) relacionados aos efeitos dos psicodélicos indois.

O uso dos cogumelos não me era desconhecido, embora nunca tenha feito uso regular deles. Desta forma, optei por uma dose de 3g de Psilocybe cubensis desidratados, de uma fonte que sabia que conseguiria cogumelos com um efeito bastante potente. Além disso, sempre estive bastante ciente, pelos usos que já realizei de substâncias psicodélicas, que o fator set-setting-matrix por vezes é mais potente do que um olhar reducionista e quimicocêntrico da dose. Não compactuo da visão, para mim uma bobagem, de achar que a dose forte ou heroica é 5, 7 ou 10g, sem considerar o sujeito e o ambiente de uso. Entre o padrão/genérico e o concreto, podem ocorrer grandes abismos, por razões que não pretendo aprofundar aqui.

Além disso, a escolha pelos cogumelos com psilocibina/psilocina parecia ser uma escolha adequada, já que estudos (GROB et al., 2011; GRIFFITHS et al, 2016; ROSS et al, 2016) demonstram a sua importância para redução de ansiedade, mesmo que em um contexto diferente do meu (nestes estudos a ansiedade teve melhoras, mas os estudos focaram na ansiedade em pacientes com doenças terminais). Na verdade, os cogumelos com psilocibina parecem ter usos terapêuticos em diferentes campos da saúde mental, como discuto neste texto (https://www.cartacapital.com.br/blogs/hempadao/cogumelos-e-saude-mental/).

Durante todo o último período de psicoterapia fui aprendendo diversas formas de manejo da minha ansiedade, assim como mergulhando em minha sombra, nas questões que surgiram do meu si-mesmo e de outros arquétipos e complexos constelados. Tomando consciência, aos poucos, dos meus demônios e potenciais latentes. Mas a questão da ansiedade permanecia lá. Mesmo com ou sem o antidepressivo. Mesmo após tanto tempo de análise e mesmo sem crises que me deixassem atordoado e com a sensação de morte, lá estava ela. E por vezes me incomodava muito. Na verdade, ainda incomoda. E, bem, me parecia que em algum momento seria bom buscar não apenas mecanismos para lidar e fazer ela diminuir, mas olhar ela de frente. Encontrar a sua raiz ou a sua finalidade. Para que ela precisava se postar ali? E por que, afinal, eu não tinha encontrado uma forma de integrar aquilo que fazia o sintoma surgir… Como ir além da razão, do racional e olhar a ansiedade de frente? Sonhos e imaginação ativa certamente eram formas que eu já utilizara. Mas, ainda assim, sentia que não tinha entrado realmente neste espaço e que era necessário ir além. Além da busca de superar a ansiedade e de cura, havia ainda uma busca, paradoxal, de viver o que tivesse que ser vivido durante a experiência psicodélica, de forma a não me fechar em uma expectativa que pudesse dificultar o mergulho no inconsciente. É importante escrever, sobre este tópico, que como psicólogo junguiano, tenho a compreensão de que a relação entre consciente e inconsciente seja marcada pela compensação.

Na psicologia analítica entende-se que, ao longo do processo de vida de uma pessoa, seu crescimento e desenvolvimento, o uso contínuo de determinadas funções psicológicas (pensamento-sentimento-sensação-intuição) levam a unilateralidade da consciência, a padrões de conduta que excluem uma parcela dos conteúdos e pulsões humanas ao inconsciente, seja por uma via de repressão ou pela pouca atenção disponibilizada para estes. A unilateralidade, aponta Jung (1958/2006, par 138): “é uma característica inevitável, porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade. A unilateralidade é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente”. Dito de outro modo, se eu ficar focado demais em uma leitura racional/conceitual do mundo, provavelmente vou deixar de observar, continuamente e cada vez mais, certas dimensões afetivas ou avaliativas sobre o mesmo mundo/fenômeno que eu me relacionava/observava. O direcionamento da consciência é compensado ou complementado pelo inconsciente, tencionando a produção de símbolos. A posição da pessoa diante do inconsciente e da emergência de imagens carregadas de afetos, até então negados ou não reconhecidos, é fundamental para o desenvolvimento deste processo. O apoio do terapeuta adequadamente treinado também seria determinante para ajudar o paciente a efetivar a reunião de consciente e inconsciente e para chegar a uma nova atitude (JUNG, 1958/2006).

Após escrever um pouco sobre o set, isto é, sobre as minhas expectativas, mas que também envolvem a minha psique como um todo, é preciso escrever sobre o setting.

O uso dos cogumelos foi equivocadamente feito antes de chegar no espaço que seria realizado o uso, em um consultório. Quando entrei no carro para seguir com o um dos terapeutas para o consultório, resolvi tomar as 10 capsulas de 300mg de cogumelos mágicos. Por sorte não tivemos trânsito e chegamos no consultório cerca de 15 minutos depois. O efeito demorou menos de 20 minutos para começar e já começou bastante forte. Quando chegamos no consultório não houve muito tempo para preparar o som e o que fosse necessário para a viagem. Deu tempo, mas foi tudo por pouco. Pensei em outras viagens que o tempo para fazer efeito demorou bem mais, cerca de 30 a 40 minutos.

M.A.P.S.

Um dos pontos centrais era a escolha do setting musical. Para tal manifestação da mente, foram escolhidas as músicas que a Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) utiliza em psicoterapia aliada ao uso de MDMA. As músicas foram muito boas e importantes durante a viagem, mas em alguns momentos é como se estivessem “fora de tempo”, em especial no final da sessão, pensando nos momentos da terapia psicodélica desde o período da latência, passando pelo platô até a descida do efeito. Ex: músicas muito tensas ou aceleradas, que podem ser propícias para o momento do platô, podem ser pouco adequadas no momento que se espera uma saída da viagem, mais tranquila, que seria o fechamento daquela experiência.

Cabe destacar que eu me mantive com uma espécie de venda nos olhos (na verdade um tecido) durante a experiência e fiquei, boa parte dela, deitado em um sofá, enquanto escutava a música.

Genericamente, a experiência se desenvolveu em cenas. A cada música eu entrava em um território, em uma narrativa. Afetivamente foi tudo muito impactante. Eu coloquei as músicas em uma caixa bluetooth e acabei preferindo ficar sem fones de ouvido. Algumas destas narrativas, que vinham com a música, eram mais assustadoras, outras mais agradáveis. Em tempo, quando abria o olho (imagino que tenha ficado cerca de 2 horas sem abri-los), tudo se movia a todo tempo. Via as energias seguindo meus movimentos e o chão se conectando [cada fragmento] e movendo. Também pareciam padrões (o chão).

Um primeiro impacto foi pensar o quão autorizado eu estaria para falar o que eu vivia, para expressar as imagens do mistério/sagrado para os terapeutas. E o quão autorizados estávamos para realizar aquela terapia/cerimônia. Então eu percebi que eu não estava em uma sala de consultório, mas que eu estava, paradoxalmente, em um templo sagrado. O consultório deveria ser um templo para poder receber as experiências psicodélicas. Se não fosse assim, não havia autorização para conduzir a experiência. Essa mensagem foi sentida como um aprendizado, tanto na experiência, quanto após a mesma.

A psilocibina já é conhecida – no contexto da ciência – em catalisar experiências religiosas desde a pesquisa de doutorado do psiquiatra Walter Pahnke, orientada pelo psicólogo Timothy Leary em 1962, quando Pahnke forneceu psilocibina a um grupo experimental no Good Friday Experiment. No retorno das pesquisas com psicodélicos, uma nova experiência de campo foi realizada, desta vez por Roland Griffiths, Johnson e Maclean, que observaram que a experiência com psilocibina produz uma mudança de personalidade nos usuários. Os pesquisadores já sabiam que, de acordo com as pesquisas de Metzner em 1963 e McGlothlin e Arnold, de 1971, que administrada em condições de suporte, 50 a 80% dos participantes reivindicavam mudanças benéficas na personalidade, valores, atitudes e comportamentos.

Para Griffiths e outros (2011) a experiência positiva da psilocibina, para um impacto de longo termo, depende da profundidade dos insights e de experiências “tipo-místicas”, como as descritas por Pahnke em sua experiência do Good Friday Experiment. Os temas centrais da experiência mística, como definida por Stace e Hood são: sentimentos de unidade e interconexão com todas as pessoas e coisas, um senso de sagrado, sentimentos de paz e alegria, sensação de transcender o tempo e o espaço normais, inefabilidade, e uma crença intuitiva de que a experiência é a fonte de verdade objetiva sobre a natureza da realidade.

Então toda aquela psicoterapia precisava dialogar com o sagrado. Parece que precisaria ocorrer uma conexão entre a ciência e os saberes tradicionais. Não é que eu ou os psicólogos precisassem ser xamãs, mas é como se tivéssemos que estar conectados com aquele saber ancestral.

Até duas horas após o início do efeito (10:30 às 13h aprox. – primeira vez que vi a hora) certamente foram as viagens mais fortes. Foi curioso (e falei muitas vezes essa palavra, sem saber me expressar melhor), que no início da experiência é como se eu já tivesse recebido todas as informações que eu buscava. Vinham insights como mensagens de autoridade [que eu tentava expressar] e eu falava, mas muito baixo, e para os terapeutas parecia mesmo que eu estava falando comigo mesmo, o que era verdade, mas ao mesmo tempo eu tentava narrar – sem sucesso – o que estava acontecendo. E meus braços dançavam no ar, em uma busca de manter aquela conexão viva e alinhada.

Uma mensagem em particular que foi muito forte e que eu recebi foi que o segredo era me aceitar, inclusive com a minha ansiedade. Isso foi muito impactante e impressionante, quer dizer, a ansiedade compreendida como algo que me constituía e que eu deveria aceitar, olhar com carinho. Não é nada simples, mas posso dizer que esse posicionamento fez com que eu lidasse melhor com ela e evitasse o uso de medicações.

Uma imagem muito forte foi a de uma cobra. Me recordo de mais de uma vez ver os olhos da cobra, uma cobra ameríndia. Quando eu a via, eu percebia que estava entrando novamente na experiência, entrando no mundo dela. No mundo ameríndio e tradicional. A serpente era uma espécie de guardiã do espaço sagrado. Embora seus olhos fossem amedrontadores, era uma guardiã do mundo transcendental, que permitia ver além dos olhos. Depois cheguei a me lembrar, no tocante a serpente/cobra, das pinturas de Alexandre Segrégio (https://alexandreluiz.art.br/galeria/#visionario). Ao lado, um desenho que iniciei depois, buscando me aproximar da imagem.

A entrada era uma imersão no inconsciente coletivo e na autonomia de suas imagens arquetípicas e míticas, que me traziam fortes afetos. Era como se, ao mesmo tempo, tudo estivesse conectado a minha vida pessoal, mas aquelas imagens e cenas expressassem algo muito além de mim.

Em um momento senti como se estivesse passando por uma experiência de nascimento de um terapeuta, como se não contasse, de alguma forma, os anos anteriores como psicoterapeuta e eu estivesse ali passando por uma espécie de ritual de nascimento. Não senti propriamente uma morte. Tampouco me vi nascendo, mas senti essa energia e pensamentos (como se não fossem meus, mas da experiência, desta voz) que eu estava ali nascendo como terapeuta. Eu estava no alto, em um vácuo, para renascer, mas as imagens passavam rápido. Parte me parecia vago, como se eu tentasse/precisasse entender, e parte parecia claro que se tratava deste processo.

É importante recordar aqui do set que mencionei no início do texto. As expectativas que modulam a experiência psicodélica, as imagens arquetípicas que são nela constelados, dependem não apenas das expectativas conscientes, mas igualmente das inconscientes. Era óbvio que, como aquela era a minha segunda experiência psicodélica em contexto terapêutico, eu tivesse uma grande pré-ocupação com a minha formação enquanto profissional e terapeuta. E, aparentemente, este tema periférico se tornou central durante este mergulho psíquico. O processo de morte e renascimento, ou mesmo de nascimento simbólico, são temas arquetípicos, tratados nas mais diversas culturas, mitologias e religiões. Entre os Fang no Congo e no Gabão, por exemplo, ao utilizarem a Tabernantha iboga, psicodélico que contém ibogaina, falam da ocorrência de uma “pequena morte”, por meio da qual a pessoa se reúne aos seus ancestrais que são acompanhados ao reino dos vivos, trazendo generosidade (DE RIOS, 2005).

Em processos de transformação há a importância de um espaço de suporte e fechamento, denominado na alquimia de vas herméticum. Esse vaso alquímico, hermeticamente fechado, facilita a imersão nas chamas dos afetos e do inconsciente. A imersão, por vezes, é sentida como provocando um aniquilamento do eu, para um novo renascimento. No meu caso, não senti esta morte do eu. Mas senti este nascimento como algo muito importante para o meu desenvolvimento enquanto ser humano e enquanto psicoterapeuta. O vaso alquímico, no contexto psicoterapêutico, pode ser comparado ao espaço seguro – no qual o sigilo é resguardado – no qual ocorre a transformação.

Chegando no momento da saída do platô da experiência psicodélica, posso dizer que eu me sentia mais cansado e com medo. Havia um medo sub-reptício do quanto eu suportaria daquela intensidade. E o medo de não voltar já começava a aparecer à consciência… Então eu lembro de ver muito impactado um portão (com duas portas) vermelho, no meio do mar, que dava acesso ao Self e eu não tive coragem de seguir, porque é como se, caso eu abrisse aquela porta, a experiência se tornaria muito mais louca e impactante e também poderia ter muito menos a presença do Eu. Me assustei com isso, com o medo da loucura, e não abri a porta. Senti depois que isso pode ter impactado negativamente a minha experiência (não abrir). Por outro lado, que eu poderia não estar pronto para aquele encontro em particular, pois, por vezes, uma epifania pode cegar ou até matar (amplificação).

Qualquer processo de transformação pode aumentar a ansiedade e o medo, pois é da própria mudança da identidade que está em jogo. Stanislav Grof (1980) expõe que é importante encorajar a pessoa a uma completa rendição experiencial sem controlar ou bloquear o processo em decorrência de reservas ou incertezas cognitivas (GROF, 1987). Neste momento, entretanto, parecia muito difícil, mesmo que me sentisse cuidado, ir além. Parte da experiência posterior com as imagens, foi já de um cansaço mental. Eu via fluxos e não conseguia lembrar depois deles ou acompanhá-los plenamente. Mantive a consciência, mas sinto que neste momento já havia algum rebaixamento de consciência. Só conseguia seguir os fluxos, que também já eram mais brandos (por outro lado).

Várias conversas foram travadas com os terapeutas na medida em que eu ia voltando, e as vezes sentia a necessidade de parar um pouco de conversar, porque era muito cansativo. E eu voltava a deitar e fechar os olhos. Mas se não entrava na experiência, também era cansativo. Na compreensão de Grof (1980), em LSD Psychotherapy, o melhor procedimento teria sido estimular o meu retorno a experiência, mesmo que por meio da hiperventilação. Mesmo que a terapia não tenha sido conduzida desta forma, é importante recordarmos que o suporte a experiências psicodélicas ainda é um campo experimental e muito importante ser desenvolvido. Grande parte das pesquisas contemporâneas enfatiza muito mais os resultados quantitativos e dá pouca atenção a parte qualitativa e dos manejos das sessões com psicodélicos em psicoterapia.

Retorno. Neste final, no momento de descida da experiência, eu ia a um pátio algumas vezes e foi bom, porque pude ver o céu e me sentir bem. Mas posso dizer que meu sentimento ficou muito instável. Me sentia bem, me sentia mal, me sentia com medo, me sentia como um guerreiro, seguro, me sentia desconectado, me sentia de muitas formas. Certamente este foi o momento mais difícil de toda a sessão. Em alguns momentos eu dancei (pouco tempo), com os efeitos mais fortes (foi agradável) e depois tive momentos que tive vontade de dançar, cheguei a querer dançar com os terapeutas, que eles dançassem também, mas me senti afastado. Senti que era uma necessidade minha e não deles. Mas isso fez com que eu sentisse estranho (na segunda vez, que a experiência era menos intensa) e senti que o eu estava inibindo aquele processo. A consciência racional que retornava acabava bloqueando parte daquela experiencia de entrega necessária. Senti como se fosse estranho eu estar dançando no meio do consultório sozinho. Cheguei a desenhar, mas tudo que eu fazia não alterava a sensação de estranhamento e alguma solidão. Eu me sentia muito frágil e pouco seguro de sair dali, enquanto pensava na importância da minha família na minha vida e o quanto eu gostaria de estar bem para estar com ela. Enquanto isso, em uma experiência um pouco mais agradável, o tapete do consultório se tornou um enorme muro de metal, com alguns seres andando. Era um resíduo da trip que retornava, por vezes mais forte. Fiquei bastante tempo olhando aquele tapete alquímico, sem buscar qualquer interpretação.

Após cerca de 4 horas eu fiquei extremamente cansado. O efeito já era periférico, mas o fato de insistir em conversar não era claro se era o melhor a fazer. Por um lado, eu não conseguia retornar completamente a experiência, e permanecia com um humor desagradável e com uma sensação de desamparo bastante profunda, mas sem objeto. Ir embora ou até ir à rua parecia algo muito difícil… Em algum momento percebi que ia ter que lidar com o estado emocional desagradável que eu estava, pois não poderia continuar ali para sempre e não era bom. A despedida foi um pouco triste, do espaço e da terapeuta. Eu não tinha animo para dar uma despedida melhor. Para sair animado de lá, apesar de ter a clareza que tinha sido a uma das experiências psicodélicas mais profundas que eu tinha experimentado.

Matrix. A matrix, de acordo com Betty Eisner (1997), envolve o pré e o pós-experiência psicodélica. Ou seja, as relações ambientais mais amplas que o setting, incluindo amigos e familiares. O modo de suporte dos amigos e familiares pode, de acordo com esta perspectiva de Eisner, alterar o próprio resultado da terapia psicodélica.

Fui me sentar em uma padaria para tomar um suco com o outro terapeuta e comer um pão com ovo. A possibilidade de sair de mim e poder perguntar como ele estava e outras coisas, reduziu levemente os sentimentos difíceis que estava vivendo. Depois disso, fui muito bem acolhido em casa. Embora a minha companheira não use substâncias psicodélicas, ela estava preparada já, ciente da experiência, e havia ligado para ela e falado como estava me sentindo, mais ou menos às 16:30h, um pouco antes de sair da psicoterapia. Tinha pensado em ver algo bem light na televisão (série), preferencialmente alguma série que a minha filha pré adolescente gosta, algo infantil-adolescente. Acabou que elas não foram ver série e vi um episódio de Witcher com a minha companheira, foi bom ela estar comigo e me senti melhor.

Pós-experiência. Fiquei com dor de cabeça a noite até a manhã seguinte. Houve um aumento da ansiedade, que foi melhorando aos poucos. Embora eu estivesse muito cansado, tive dificuldades para dormir e acordei, na verdade me levantei da cama, sincronicidade! às 4:20h da manhã. Fiquei no CPU e depois consegui dormir mais umas duas horas. Foi bom no dia seguinte não ter compromissos mais duros, pois me senti bastante cansado ainda e com instabilidade no humor (embora cada vez menor).

Os sentimentos negativos foram melhorando e três a quatro dias depois eu já estava me sentindo realmente bem. A experiência trouxe muito o que trabalhar posteriormente na psicoterapia regular e não psicodélica e de forma muito mais profunda do que o habitual. Hoje consigo olhar de forma muito positiva para trás, mesmo que tenha sido muito difícil e duro, inclusive pela piora inicial que passei nos dois dias pós-sessão. Por outro lado, tratou-se de um mergulho que eu considero que não seria viável na psicoterapia regular e que promoveu uma ampliação de consciência significativa.

Integração. Eu costumo a dizer que a sessão psicodélica, durante uma prática psicoterapêutica, é onde as coisas começam e não onde as coisas terminam. O impacto terapêutico dos psicodélicos, ao que parece, está relacionado tanto ao efeito subjetivo e fisiológico da substâncias, quanto as posteriores compreensões e integrações da experiência. Isso envolve o quanto nos transformamos na nossa vida diária e em nosso modo de ser e estar no mundo, mesmo que isso nem sempre seja trivial ou óbvio.

Na psicologia analítica, entende-se por integração uma operação psíquica de superação da dualidade e tensão entre consciente e inconsciente, por meio da elaboração de símbolo(s) que permitam incorporar porções cindidas da personalidade. Ocorre, neste caso, um maior equilíbrio psíquico e com a ampliação da consciência, a continuidade de um processo direcionado à totalidade. Em alguns autores do campo da psicoterapia com psicodélicos, a integração já se refere a um aspecto mais simples e prático, isto é, o quanto você transformou ou alterou a sua atividade de vida diária, graças as experiências psicodélicas que viveu. Daí que este processo pode ser ajudado tanto em psicoterapia individual, quanto em grupo, por outros psiconautas. Na verdade, ambas as concepções estão muito relacionadas.

Era isso o que tinha para contar! Espero que tenham gostado e que, em um futuro não muito distante, já tenhamos a psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos regulamentada no Brasil!

 

Referências:

 

BESERRA, F. R. Experienciando a Arte Visionária: uma compreensão junguiana da interação de estudantes com a obra de Alex Grey. 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2014.

 

DE RIOS, M. D. Rejoinder: the bad trip revisited. Anthropology of Consciousness. v. 16, n. 1, 2005, p. 45-48.

 

EISNER, B. Set, setting and matrix. Journal of Psychoactive Drugs, v. 29, n. 2, 1997, p. 213-216.

 

GRIFFITHS, R, R. et al. Psilocybin produces substantial and sustained decrease in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: a randomized double-blind trial. J. Psychopharmacol, v. 30, 2016, p. 1181–1197.

 

GRIFFITHS, R. R. Psilocybin occasioned mystical-type experiences: Immediate and persisting dose-related effects. Psychopharmacology. Berl. 2011; v. 218, n. 4, p. 649–665.

 

GROB, C. S. et al. Pilot study of psilocybin treatment for anxiety in patients with advanced-stage câncer. Archives of general psychiatry, 2011. v. 68, n. 1, p. 71-8.

 

GROF, S. Além do cérebro: nascimento, morte e transcendência em psicoterapia. São Paulo: McGraw-Hill, 1987.

 

GROF, S. LSD psychotherapy. California: Hunter House, 1980.

 

JUNG, Carl Gustav. A função transcendente In: A natureza da psique. Obras Completas, v. VIII/2 – 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 1958/2006b. p. IX-24.

 

MACLEAN, K. A.; JOHNSON, M. W.; GRIFFITHS, R. R. Mystical Experiences Occasioned by the Hallucinogen Psilocybin Lead to Increases in the Personality Domain of Openness. J Psychopharmacol. nov. 2011; v. 25, n. 11, p. 1453–1461.

 

ROSS, S. et al. Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: A randomized controlled trial. J Psychopharmacol, 2016, v. 30, p. 1165–1180.

“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips – Walter Clark

 

MundoCogumelo de volta ao ar, e para marcar nosso retorno, escolhemos um artigo de 1976 de Walter Houston Clark que ilustra uma questão que vem sendo pouco debatida com a profundidade necessária. A Bad Trip, e se ela deveria ser evitada, contornada ou apreciada com a atenção que doamos a todo professor que algo possa nos ensinar.

Tendo em vista algumas abordagens perigosas de reducionismo químico, em sites e páginas de ufanismo farmacológico, que contrariam a psicologia, a redução de danos e negam a própria experiência humana enquadrando como meros desequilíbrios químicos as profundas questões psicológicas que envolvem as experiencias mais difíceis, conhecidas popularmente como “bad trips”, este artigo nos leva a debater essas experiências como momentos-chave de uma reestruturação pessoal, psicológica e social das mais impactantes que podemos alcançar. Apesar de antigo, o texto não é obsoleto e remonta, com todas as ressalvas que o tempo trouxe de atualizações, uma questão profunda e muitas vezes negligenciada.


 

“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips
Walter Houston Clark
Revista FATE, Abril de 1976

Uma mistura única de análise freudiana e xamanismo mexicano
pode representar um avanço para a psicoterapia.

 

Quase um século se passou desde que Sigmund Freud revolucionou nossa compreensão das doenças mentais e seu tratamento. Muitos pensadores importantes – como Carl Jung – foram consideravelmente além de Freud ao canalizar as profundezas da psique humana. Mas nenhuma das inúmeras técnicas psicoterapêuticas desenvolvidas durante essas décadas de pesquisa conseguiu cumprir completamente sua promessa teórica em termos de resultados práticos. A psicoterapia para a maioria das pessoas continua sendo um empreendimento duvidoso, arriscado e caro.

Um médico mexicano pouco conhecido desenvolveu uma técnica que chega tão perto de cumprir sua promessa quanto qualquer outra com a qual eu esteja familiarizado. Combina várias formas de psicoterapia ocidental com a sabedoria dos xamãs indígenas mexicanos. Essas abordagens foram combinadas com a genialidade do Dr. Salvador Roquet, um eminente médico mexicano de saúde pública cujas realizações incluem banir a febre amarela do México. As responsabilidades do Dr. Roquet o colocaram em contato com os índios mexicanos e, consequentemente, com suas abordagens incomuns em relação à saúde, incluindo o uso de plantas alucinógenas para pesquisar a alma, a fim de curar a mente.

Quando o Dr. Roquet soube do meu interesse no uso de drogas psicodélicas para a reabilitação de prisioneiros, ele me convidou para a Cidade do México para investigar sua técnica. No início de 1974, visitei o “Instituto de Psicosintesis Robert S. Hartman”, nome de sua clínica na Cidade do México. O Instituto é um dos três ramos da Associação Albert Schweitzer; os outros são uma missão médica para indígenas e uma escola baseada nos desdobramentos psicológicos descobertos pelo Dr. Roquet em seu trabalho psiquiátrico. O Dr. Roquet me convenceu de que a melhor maneira de observar sua técnica era participar pessoalmente das sessões. Dessa forma, acredito que a melhor introdução à sua psicoterapia altamente original é relacionar minhas próprias experiências com ela.

Me dirigi ao Instituto às 22h em uma noite de fevereiro, junto com vários outros pacientes. Recebemos um teste psicológico chamado “Questionário de Valores Hartman”. Depois disso, mais pacientes chegaram e nos reunimos em uma sala adjacente para nos familiarizarmos entre si. Como não sei falar espanhol, me senti um pouco isolado até que um dos participantes me pediu em inglês para dizer algo sobre mim. Enquanto ele traduzia minhas observações para os outros, senti-me mais à vontade e mais um membro do grupo. Eventualmente, havia cerca de 25 de nós.

Entre meia-noite e uma hora da manhã, fomos levados a uma sala com menos de 30 por 40 pés. Cerca de 1.000 pés quadrados foram reservados como área de tratamento para os pacientes. Durante as próximas 20 horas, nenhum paciente teve permissão para deixar a área de tratamento, exceto para ir ao banheiro adjacente. Um espaço de 10 por 30 pés alocado para o corpo médico e equipamentos eletrônicos foi dividido da área de tratamento por uma mesa na qual o Dr. Roquet, sua equipe e alguns observadores estavam sentados. Seus casacos brancos os distinguiam dos pacientes. As paredes estavam cobertas com quadros bizarros pintados por ex-pacientes e imagens de Freud, Gandhi e o ex-presidente chileno Salvador Allende, além de um crucifixo pendurado em uma parede.

Após um breve período de exercícios semelhantes à ioga, cada um de nós foi autorizado a selecionar uma esteira como uma espécie de base para o período do tratamento. Os pacientes se deitaram e uma música repousante foi ligada. Logo depois, as luzes foram apagadas e uma série de filmes sonoros foi exibida. Eram cenas de violência, morte e pornografia grosseira, aparentemente projetadas para chocar e perturbar a sensibilidade do paciente comum. Em contrapartida, na sequencia exibiram outras cenas que refletiam beleza natural, amor, ternura e afins, de modo que toda a paixão e experiência humanas fossem representadas. Em outras partes da sala, imagens paradas com temas semelhantes foram projetadas contra as paredes. Coforme esse show de variedades continuava, a música aumentou gradualmente em volume e cacofonia. Os pacientes podiam assistir as cenas ou não como quisessem, mas era difícil ignorar o ataque aos nossos ouvidos. No entanto, a equipe nos impediu de adormecer.

Durante esse período, um paciente após o outro foi chamado à mesa, pesado e examinado por um médico. O médico que me examinou observou que meu coração estava forte o suficiente para o tratamento, mas que eu não deveria abusar. A altitude da Cidade do México me trouxe de volta uma irregularidade cardíaca que estava sob controle antes de eu deixar os Estados Unidos. Esta notícia, acentuada por algumas das cenas do vídeo, ajudou a transformar meus pensamentos em morte e problemas associados. Os outros pacientes pareciam igualmente perturbados.

Por volta das quatro ou cinco horas, a equipe começou a administrar as substâncias psicodélicas, a droga e a dosagem foram personalizadas para cada paciente. (Meu relógio havia sido retirado de mim, para que meu senso de tempo fosse desorientado.) Minha própria vez chegou no que julguei que eram cerca de seis horas e recebi 250 microgramas de LSD-25. Logo após todas as dosagens terem sido administradas, a sobrecarga sensorial atingiu seu pico. A música cacofônica e uma alternância de luzes brilhantes e escuridão total pontuada por estranhos efeitos neon criaram uma atmosfera extremamente estranha.

A essa altura, a sala começou a se assemelhar a um poço de cobras do século XIX ou mesmo a uma confusão do século XVIII. Muitos de nós chorávamos, outros rolavam no chão e gritavam angustiados, outros vomitavam, alguns olhavam para o espaço e outros ainda faziam movimentos hostis em direção ao equipamento eletrônico. Às vezes, eu tinha medo de que alguns pacientes pudessem atacar o Dr. Roquet, sentado impassivelmente, dirigindo os efeitos da experimentação responsável por essa violência e perturbação.

Eu próprio fiquei possuído por uma noção confusa de que as pessoas de jaleco branco eram atormentadores deliberados nomeados pela Inquisição para me tirar da razão. Todos pareciam tão imperturbáveis com a confusão que estavam criando que eu andei até a mesa e os denunciei violentamente por sua presunção, um ato dificilmente característico no meu estado mental normal. Com minha rápida alternância entre preocupações com a aproximação da morte, a ansiedade que me assustava sobre a experimentação com psicodélicos e a angústia por muitas coisas que pretendia, mas deixei de fazer, toda a experiência pode ser descrita como uma descida ao inferno. Eu mal conseguia distinguir o que era externo do que era interno.

No final desta fase do tratamento, a música e outros estímulos sensoriais foram diminuídos ou desligados e as luzes acesas. Referindo-se a registros individuais quando necessário, o Dr. Roquet convocou vários pacientes à mesa em sucessão e os questionou sobre seus problemas e experiências enquanto o resto de nós ouvia. Os tradutores interpretaram as várias línguas para os outros pacientes. Alguns pacientes foram convidados a ler passagens curtas apropriadas para seus problemas, talvez algo pessoal ou talvez escolhido pelos médicos, geralmente com expressões de angústia pungente. Uma jovem leu uma passagem do romance de Flaubert, Madame Bovary, que lhe externou uma identificação dolorosa com a personalidade de Emma, descrita no romance.

Durante esta fase do tratamento, certos indivíduos receberam uma injeção de cloridrato de ketamina, uma nova e poderosa droga usada pelo Dr. Roquet. Seus efeitos variavam com pessoas diferentes, mas geralmente produzia uma ab-reação¹ violenta. Um jovem que recebeu a injeção estava dando seu relato quando, de repente, caiu no chão em uma demonstração violenta de angústia e terror, vomitando e se contorcendo em tormento.

¹ ab-reação

PSICOLOGIA

descarga emocional pela qual um indivíduo se liberta do afeto que acompanha a recordação de um acontecimento traumático [Pode ser provocada, por exemplo, por hipnose, ou ocorrer de forma espontânea no decorrer do processo psicoterápico.].

Nesse momento, dois funcionários com sacolas e toalhas vieram em seu auxílio, demonstrando infinita gentileza e compaixão. Essa cena me impressionou com tanta força quanto minha convicção anterior de que os funcionários eram perseguidores. Percebi que toda a provação havia sido fabricada para o benefício dos pacientes e que o que parecia um inferno tinha se convertido em um paraíso. Essa percepção chamou minha atenção para os aspectos positivos do tratamento e me ajudou a voltar à normalidade.

Depois de mais ou menos uma hora, esta fase do tratamento terminou, as luzes foram apagadas novamente, música suave voltou a ser tocada e fomos convidados a descansar por várias horas. No final deste período, as janelas foram abertas, deixando entrar a luz do sol. Não tínhamos permissão para sair da sala, mas fomos convidados a nos exercitar e nos expressar dançando, se quiséssemos. A essa altura, senti-me intensamente sensível aos meus colegas e grato aos funcionários. Como não conseguia me comunicar na língua deles, me vi expressando meus sentimentos na dança improvisada.

Após o período de descanso, os poucos pacientes não processados receberam atenção. A equipe distribuiu a cada paciente fotos significativas de seus próprios arquivos – geralmente fotografias de família, fotos do próprio paciente em várias idades ou fotos de amigos e amantes. Por vezes, isso desencadeou mais cenas emocionais. Mas no final da tarde, cerca de 20 horas depois de eu ter chegado ao Instituto, todos haviam retornado a um estado normal de consciência. A essa altura, os respectivos parentes começaram a chamar pelos pacientes e senti grande consolo ao ver minha esposa. Por volta das nove horas, tivemos a cerimônia final; uma rosa foi dada de presente a cada sujeito. Nas minhas três semanas de permanência na Cidade do México, todos os pacientes que encontrei como observador ou como participante haviam retornado à consciência normal ao final do tratamento.

Alguns dias depois, os membros do meu grupo se reuniram para sessões de terapia em grupo de cinco horas ou, para alguns indivíduos, sessões privadas de menor duração. Cada paciente compôs um relato escrito de sua sessão para sua ficha. Essas sessões de acompanhamento continuaram até que a equipe decidisse que o paciente se beneficiaria com outra sessão longa, às vezes um mês depois, embora o espaço de tempo fosse maior à medida que o paciente melhorava. A melhora foi medida pelo teste de Hartman e também pelas impressões clínicas dos psiquiatras.

Como eu não era propriamente um paciente e como minha estadia no México seria breve, não participei de todo esse acompanhamento, mas participei de uma segunda longa sessão, cerca de duas semanas após a minha primeira.

Eu esperava tomar cloridrato de ketamina durante a minha segunda sessão, mas a irregularidade do meu coração persistiu e os médicos julgaram isso desaconselhável. Esta decisão mais uma vez voltou a minha mente para o tema da morte. Na minha segunda sessão, havia apenas 10 pacientes, um número mais gerenciável e ainda suficiente para uma interação valiosa entre os pacientes. Em todo caso, o procedimento foi semelhante à primeira vez, exceto que agora eu havia ingerido cogumelos Psilocybe frescos enviados em meu benefício pela própria Maria Sabina, uma curandeira de Huautla.

Dessa vez, re-experimentei o fenômeno da morte, mas em vez de descer ao inferno, a experiência assumiu quase o caráter de um festival, embora num contexto de solenidade alimentada pelas tensões do Requiem de Brahms. Não apenas obtive insights deliciosos e comoventes sobre minha própria vida subjetiva, mas também pude ver aspectos engraçados associados à minha morte, o que trouxe risos refrescantes. Eu também percebi como a cacofonia e a sobrecarga sensorial que foram projetadas para “me assustar completamente” têm um paralelo na sociedade em que a ocorrência perfeitamente natural da morte é transformada em um evento assustador que provoca medo na mente das pessoas comuns.

No geral, essa segunda sessão foi a mais rica das minhas 10 a 15 experiências com materiais psicodélicos. Foi a primeira experiência desse tipo em que a culpa não teve papel consciente. Não credito o resultado feliz dessa “trip” aos cogumelos, mas o importante condicionamento da minha “descida ao inferno” (a bad trip) anterior.

A eficácia da técnica do Dr. Roquet é evidente em meu estado de espírito desde que minhas experiências com ele ocorreram. Há quase dois anos, meu entusiasmo pela vida tem sido mais positivo do que nunca. Minha apreciação pela música cresceu quase a um vício e outros aspectos da minha vida foram igualmente enriquecidos. Naturalmente, isso me deu uma visão subjetiva do que o tratamento pode realizar para pessoas cuja saúde mental não está tão bem estabelecida quanto a minha.

Quais são as implicações da emocionante técnica do Dr. Roquet para o campo da saúde mental? Com base nas minhas três semanas de intenso envolvimento com seu programa, sinto que o que o psicanalista médio realiza em cinco ou seis anos,  Salvador  alcança com frequência em meses – e melhor, com custo de 10 a 20 vezes menor! O Dr. Roquet trouxe a psiquiatria para o século XX. Sem dúvida, um dia, seus métodos serão aprimorados, mas não duvido que sejam considerados um avanço crucial no progresso da psiquiatria.

Em minha pesquisa com drogas psicodélicas, muitas vezes descobri que as “bad trips” são as melhores trips, especialmente quando lidamos adequadamente com elas. O Dr. Roquet induz deliberadamente uma viagem ruim para trazer à tona os piores medos e problemas do paciente, embora isso possa significar, e geralmente significa, uma visita ao seu submundo particular, onde a ‘loucura’ se esconde. Por essa razão, o Dr. Roquet se refere à sua técnica como “psicodisléptica”, que significa “temporariamente perturbadora das funções da mente”. O objetivo específico dessa técnica é sobrecarregar as defesas cuidadosamente construídas que muitas vezes tornam a neurose ou psicose do paciente invulnerável ao médico. Muitos psiquiatras convencionais podem argumentar que esses métodos violentos podem prejudicar a psique. O resultado bem-sucedido de quase 3.000 pacientes tratados no Instituto obviamente responde melhor a essas objeções.

Qual a importância das substâncias no tratamento? Roquet diz que os medicamentos não representam mais de 10% do total do tratamento. Eu poderia concordar, mas também argumentaria que são 10% muito importantes. As substâncias psicodélicas parecem multiplicar a força da experiência e permitir que ela penetre nos níveis do inconsciente raramente visitados na psicoterapia comum.

Entre os outros fatores importantes na técnica estão os relacionamentos interpessoais. A naturalidade da equipe e a falta de alarme garantem ao paciente que o Dr. Roquet e seus colegas estão completamente no controle da situação. Mais importante, sua atitude ativamente compassiva durante as fases finais da terapia atua como uma influência vital de cura. Tão importante quanto é a interação entre os próprios pacientes – incluindo o toque de apoio e a consciência de que cada própria angústia é acompanhada pela de outra pessoa do outro lado da sala.

O Dr. Roquet desenvolveu uma teoria intuitiva e perspicaz subjacente à sua terapia, mas isso é muito complexo para ser apresentado aqui. Sem dúvida, ele eventualmente falará por si mesmo na tradução para o inglês.


Em 21 de novembro de 1974, o Dr. Salvador Roquet, seus assistentes e 25 pacientes foram presos durante uma sessão de terapia em grupo pela polícia mexicana, que invadiu o Instituto brandindo pistolas e metralhadoras. O ataque foi instigado por Guido Belasso, diretor ‘Centro Mexicano de Independência das Drogas’, de acordo com a revista mexicana “Tiempo”.

Os pacientes foram presos apenas brevemente, mas o Dr. Roquet e seu assistente, o Dr. Pierre Favreau, foram presos por vários anos devido à gravidade das acusações de crimes relativos à drogas. O Dr. Roquet operava sua clínica em total abertura por mais de seis anos tendo ganho a gratidão de oficiais do governo por sua ajuda na contenção de distúrbios na Universidade do México, tratando com sucesso um líder estudantil radical.

Uma organização dos ex-pacientes de Roquet, liderada por influentes mexicanos, veio em defesa do doutor e vários ilustres psiquiatras americanos testemunharam a validade e a eficácia de seus métodos. Por fim, os drs. Roquet e Favreau foram liberados das acusações e autorizados a reabrir o Instituto.

 

Traduzido diretamente de Psychedelic Libraby

Arqueólogos da Mente – Conectando Passado e Futuro

Nos locais mais inóspitos da Terra, homens obstinados buscam pistas sobre as nossas misteriosas origens. Ruínas, fósseis, restos de objetos humanos e pinturas em cavernas que sobreviveram no ambiente por milênios são meticulosamente garimpados e escrutinados, buscando juntar os cacos que ajudem a reconstruir a história que a nossa memória coletiva parece ter perdido. O homem, acumulador de conhecimentos, construtor de megalópoles, inventor de naves espaciais e colisores de hádrons que buscam a centelha inicial do universo, paradoxalmente não sabe de onde veio. É um estranho para si próprio. Diante dessa amnésia crônica, os raros restos deixados no mundo físico pelos nossos antepassados parecem ser as únicas pegadas do caminho tempestuoso que a nossa espécie trilhou até aqui. E, embora tenham certo êxito em encontrar e datar as pegadas do homem pré-histórico, os sacerdotes da cultura moderna parecem ter muito pouco a dizer sobre o suas reais implicações e significados.

O dogma científico atual diz que os seres humanos anatomicamente modernos – fisicamente iguais a qualquer um de nós – já estavam plenamente formados cerca de 200 mil anos atrás. Apesar disso, os primeiros vestígios de todas as características que hoje nós consideramos como a assinatura diferenciada da nossa espécie – todas as atividades “culturais”, como religião, arte e comunicação avançada por símbolos –  surgiram “do nada” somente  cerca de 50 mil anos atrás. Muito pouco se sabe sobre as formações iniciais dessas atividades culturais, e praticamente nada sobre o grande hiato de cerca de 150 mil anos, quando foi preparado o terreno para nosso mergulho nos domínios da evolução epigenética. Considerado como “o maior enigma da nossa história”, esse é um dos grandes motores da arqueologia e paleontologia.

Do pouco que se sabe, uma coisa é certa: esses vestígios foram deixados pelos praticantes da primeira religião da humanidade, que muito recentemente ganhou o pomposo nome de “xamanismo”. Os artistas das cavernas eram, nas palavras de Joseph Campbell, “os primeiros contadores de histórias” entre os homens; os primeiros a expressar uma compreensão do mundo em linguagem inteligível para os demais; os primeiros criadores de mitos sobre o universo e o lugar da nossa espécie nele.  E a força-motora dessas novas formas de expressão foram – como continuam sendo nos locais onde ainda sobrevive a prática arcaica do xamanismo – os estados de transe nos quais os xamãs mergulham sistematicamente por meio de variadas técnicas.

A informação de que pelo menos uma grande parte dessas obras de arte primitivas representa visões e outras formas de percepção obtidas pelos xamãs durante os estados de transe é uma verdade que já passou pelo limiar de ser ridicularizada e violentamente combatida para ser finalmente reconhecida pela sua autoevidência*. Nossa dificuldade é avançar a partir daí, já que o reino das visões, seres teriantrópicos e forças mágicas que os xamãs afirmam ser a fonte primordial do seu conhecimento é um território não só desconhecido, mas completamente rejeitado pela única forma de conhecimento sancionada pela cultura ocidental moderna. Assim como 90% do DNA humano já foi declarado como “DNA lixo” porque os cientistas não conheciam suas funções (hoje se sabe que o “DNA lixo”, de lixo não tem nada), a dimensão visionária da qual os falam eloquentemente os xamãs de todas as épocas e lugares é considerada como um mero subproduto de uma anomalia mental, ou seja, sem qualquer significado ou utilidade real. Essa suposição tomada como fato ergueu uma muralha na trilha do nosso autoconhecimento histórico.

Tentar entender o que se passava milênios atrás, quando nossos ancestrais começaram a apresentar os primeiros traços dos comportamentos que agora consideramos com orgulho como aqueles que nos diferenciam dos outros animais, é uma viagem de volta no tempo em busca do que quer que seja a controversa “natureza humana” – nada mais do que o momento evolutivo em que estabelecemos as bases psicossociais para o tipo de organização que hoje chamamos de “civilização”.  Esse não pode ser um domínio restrito aos representantes oficiais das instituições culturalmente sancionadas – se fosse, já poderíamos ter declarado seu fracasso. Estamos tratando sobre os corações e mentes de seres humanos iguais a nós, quando começaram a adquirir consciência e dar significado ao mundo. Para isso, é preciso mergulhar de verdade na mente do homem pré-histórico, penetrando na natureza das experiências que catalisaram essa transformação – muito além do mero registro de dados frios.

Isso significa atravessar a trilha das cavernas físicas para as cavernas interiores, que continuam tão abandonadas quanto quando foram deixadas para trás pelos nossos ancestrais.  Significa dar voz aos arqueólogos da mente – aqueles que são capazes de atravessas as camadas de sedimentos psíquicos acumuladas por milênios e alcançar de volta a mente ancestral do homem. Pois, assim como pinturas rupestres e fósseis se ocultam nos sedimentos interiores de antigas rochas, a mente do homem pré-histórico ainda habita as camadas mais profundas da nossa psique.  Carl Jung e outros diriam que não apenas “habita”, mas exerce uma função estrutural muito maior do que gostaríamos de admitir, influenciando de forma determinante desde a formação da nossa personalidade pessoal até as mitologias de todas as épocas e lugares (Jung chamou de “arquétipos” as dinâmicas organizacionais autônomas – ou “moldes psíquicos” – que deram forma à nossa estrutura mental desde tempos imemoriais).

Tal qual a forma do nossos corpos, a estrutura das nossas mentes é uma herança do longo caminho evolutivo trilhado pelos homens primitivos durante os milhares de anos que antecederam a corrida louca da História humana. Uma complexa construção em camadas que, se explorada com seriedade, promete nos levar, passo-a-passo, de volta ao coração do macaco no momento em que ele começou a sonhar com o futuro.

Numa Era em que a civilização humana sofre com uma crise de consciência e falta de sentido sem precedentes que nos levaram à beira de uma catástrofe global, refazer essa conexão perdida com a nossa história psíquica coletiva se torna um imperativo para encontrarmos um novo lugar possível para o homem no mundo.

* “Toda verdade passa por três estágios: No primeiro, ela é ridicularizada; no segundo, é rejeitada com violência; no terceiro, é aceita como evidente por si própria.” (Schopenhauer)

Referências:

– HANCOCK, Graham.  Sobrenatural: Os Mistérios que cercam a origem da religião e da arte

– JUNG, C G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo

– CAMPBELL, Joseph.  O Poder do Mito

– MCKENNA, Terence. O Alimento dos Deuses

O que o LSD pode nos ensinar sobre a natureza humana.

Eu estava em São Francisco semana passada, visitando meu irmão e revisitando os anos que passei lá quando jovem. Nós andamos pelo parque Golden Gate, dois caras na casa dos 60, admirando as gigantes sequoias, jardins exóticos, e as pastagens verde-douradas em cascata ao oeste, em direção ao oceano. E relembramos a nossa viagem de ácido épica em 1969, neste mesmo lugar, quando estávamos preparados para aventura e autodescoberta.

Nós éramos em quatro. Cada um de nós engoliu nossos pequenos comprimidos roxo — Feliz aterrizagem, pessoal!” — então começamos andar em direção ao oeste pelo parque. Cerca de meia hora depois vieram os surtos de energia em nossos estômagos, antecipação de algo enorme prestes a acontecer, entusiasmo e medo como se aproximar à beira de uma cachoeira desconhecida. O parque estava tão bonito. O canto dos pássaros estava por toda parte, com mais nuances do que havia alguma vez percebido.

E então o mundo se transformou. Os padrões dos galhos, o aroma do eucalipto, a confusão das outras pessoas, cachorros latindo, pássaros cantando, misturado e desintegrado ao mesmo tempo. Meu senso de “Eu” esticou, estendendo os limites da minha percepção como um desabrochar de um bouquet. Perdi a noção de quem eu era, onde estava, onde eu terminava e o mundo exterior começava… e então tudo isso se desintegrando, reconvergindo e se embaralhando de alguma formou se colapsou em uma sonora unicidade, o zumbido ensurdecedor de um universo totalmente pacífico.

Holotropics (113)

LSD era assustador, belo, e incompreensivelmente, transformador de vidas —  você pode dizer “educacional” com um sorriso irônico — para os não iniciados. Não apenas isso. Juntamente com outras drogas psicodélicas que formaram nossa subcultura, tornou-se símbolo de um momento e lugar únicos. Era um farol para um bando de crianças com intenção de descobrir algo verdadeiro e universal subjacente aos absurdos políticos e sociais da sociedade mainstream, Nixon, a guerra do Vietnã, e todo o resto.

O que nós procuramos no LSD era o que os humanos sempre haviam procurado — o significado oculto por trás da estupidez transitória dos esforços humanos que não levam a nada. O que buscávamos era a iluminação que Buda ansiava em nos mostrar, e que por milhares de anos permaneceu tão elusiva.

Era isso apenas uma loucura idealista, uma febre de droga? Temos nossas cabeças enfiadas até nossos traseiros, imaginando a beleza suprema porque estávamos tão completamente no escuro, tão narcisistamente especializados, tão sem inspiração pelos desafios que nossos pais e mentores desejavam que nós enfrentássemos?

 

“O BÓSON DE HIGGS DA NEUROCIÊNCIA”

Quando cheguei em casa novamente, três dias atrás, alguns experimentos neurocientíficos haviam sido publicados em dois jornais simultaneamente, alegando mostrar exatamente o que ocorria no cérebro quando alguém toma LSD. Em dois dias, essas descobertas migraram de publicações cientificas para jornais e mídia pelo mundo, incluindo o The Guardian. Um dos autores líderes da pesquisa, David Nutt, um respeitado neurofarmacologista, foi citado dizendo “Isso foi para a neurociência o que o bóson de Higgs foi para a física de partículas. ”

Embora isso possa exagerar seu caso, nós podemos perdoar o entusiasmo de Nutt: os achados são, de fato, extraordinários. Voluntários saudáveis foram injetados com LSD enquanto deitavam em um scanner MRI, e submetidos a diversos outros métodos de neuroimagem ao mesmo tempo. Isso somou um arsenal de medidas que os pesquisadores psicodélicos de décadas passadas podiam apenas sonhar. Com certeza não era o parque Golden Gate, mas deitados naquela câmara magnética, com os seus olhos fechados e cérebros abertos, com fluxos de números espirrando de seus lobos em arquivos de dados que logo seriam traduzidos em imagens, esses indivíduos observaram intrincadas alucinações do LSD se desdobrarem por trás de suas pálpebras. E ao mesmo tempo reportaram experiências de “dissolução do ego” muito parecida com aquela que experimentamos no parque.

O que foi mais notável sobre a pesquisa foi que o nível de dissolução de ego relatada pelos participantes se correlacionava com uma transformação neural especifica. Para enfrentar o dia-a-dia pragmático e as demandas da sobrevivência, a atividade cerebral naturalmente se diferencia em diversas redes distintas, cada uma responsável por uma função cognitiva particular.

As três redes mais intimamente examinadas por esses cientistas incluem a rede que presta atenção no que é mais notável, a rede para solução de problemas, e a rede para refletir sobre o próprio passado e futuro. Existe também uma segregação natural entre área de cognição de alto nível (abstrato) e área de percepção baixo nível (concreto), mais notavelmente no córtex visual. Essas distinções são tidas como um design essencial de um cérebro humano funcional.

O impacto do LSD era para diminuir a conexão dentro de cada uma dessas redes, relaxando os laços que as mantinha intactas e distintas, enquanto aumenta a conversa cruzada entre elas. Em outras palavras, a etiqueta normal do cérebro requer segregação entre as redes que possuem diferentes funções, e essa etiqueta foi explodida em pedaços.

Agora a maioria das partes do cérebro estavam se comunicando com a maioria das outras partes do cérebro. Experiências sensoriais completas, como a visão, misturadas com a cognição abstrata, e as abstrações cognitivas reformulou as imagens visuais. Talvez seja isso que explique o intrincado padrão fractal que as pessoas enxergam nos galhos de um arbusto quando estão viajando no ácido. A percepção de relevância e o refinamento do senso de “eu” foram misturadas juntas como batatas e molho. O cérebro e seu proprietário não mais distinguiam o que era mais importante, como realizar tarefas, e quem de fato julga a importância daquilo que precisa ser feito.

 

Os cérebros dos participantes permanecendo despertos com os olhos fechados, sob um placebo, esquerda, e a droga LSD, direita, visualizadas usando MRI funcional. Foto: Imperial College London-The Beckley Foundation/Reuters

RELIGIÃO VS. PSICODÉLICOS

Há alguns milhares de anos, o Buda definiu a personalidade humana como um ciclo recursivo de hábitos — hábitos de aquisição, de desejo e apego. Eles levam à busca de prazeres que temos certeza que vão evanescer-se e a evitar o sofrimento que não pode ser evitado num ciclo de vida, envelhecimento e morte. Em resposta, seus seguidores escolheram o asceticismo, a prática de excesso de controle. Dos monges Budistas que se livraram do conforto e os sadhus Hindus com seus rituais de auto-mortificação novas religiões evoluíram.

Houve intermináveis listas de editais Judeus, Muçulmanos, e Cristãos que ainda impõe-se: o que não era permitido fazer, em quais dias, quais as consequências de seu fracasso. Nossas tentativas de libertar-se do hábito, da universalidade do costume local, verdade da ilusão, de modo geral juntaram-se a um conjunto de regras para aumentar o controle, particionar e segregar, desenhar hierarquias e obedecer códigos.

Parece que nossos cérebros, com sua tendência intrínseca para analisar e segregar, foram projetados para inclinar-se em direção ao controle excessivo em resposta às dificuldades da existência. Ou, mais precisamente, nós temos a tendência de ter controle excessivo, porque se manifesta como um principio fundamental do design cerebral.

Mas a natureza nos proveu com diferente antídotos para o isolamento e irrelevância. LSD foi criado em um laboratório na Suíça em 1930. Mas outros químicos com as mesmas propriedades psicodélicas habitam a carne de cactos por toda a America do Norte (mescalina), cogumelos encontrados na maior parte do hemisfério norte (psilocibina), e a vinha da Amazônia (DMT-ayahuasca). Esses compostos químicos evoluídos desfaz as travas que nossos cérebros constroem para nos manter limitados, buscando vitórias de curto prazo sobre fracassos inevitáveis. Os humanos se reuniram, cultivaram, destilaram, e produziram todo tipo de drogas por milhares de anos. Algumas delas aliviam a dor e conferem conforto. Outras fornecem energia que as vezes precisamos pra completar nossas tarefas. E nosso velho amigo álcool nos ajuda a relaxar e se divertir. Mas os psicodélicos não contribuem em nada para o nosso funcionamento diário. Pelo contrário, nós usamos para enxergar o quadro maior, para conectar-se com uma realidade que é difícil de ver usando nosso cérebro em funcionamento normal. Nós somos literalmente “mentes-pequena” na maior parte do tempo. E embora meditação e mindfulness (atenção plena) no coloca em direção à abertura, aceitação e abandono de nossos egos, os humanos continuam a se voltar para os psicodélicos para despertar-nos para as possibilidades de uma perspectiva universal.

Nem todas as drogas são criadas iguais, e eu nunca vou encorajar ninguém a aliviar seu desconforto existencial com heroína ou anfetaminas, ambas as quais eu já tomei. Mas os psicodélicos possuem um valor que não posso evitar de admirar. E agora nós entendemos mais sobre como eles fazem o que fazem. Um simples código libera os portões em nossos cérebros, portões que normalmente agem como muralhas.

Eu espero que essas descobertas dissipem apenas o suficiente para encorajar-nos a continuar explorando.


Matéria escrita originalmente por Marc Lewis para o The Guardian em 15/04/2016

Uma Breve História da Psiquiatria Psicodélica

Cogumelos alucinógenos Liberty Caps, colhidos perto de Pulborough, West Sussex, no sudeste da Inglaterra. A psilocibina, o ingrediente psicoativo nestes e outros cogumelos ‘mágicos’, tem potencial terapêutico. Fotografia: Martin Bond / Alamy
Cogumelos alucinógenos Liberty Caps, colhidos perto de Pulborough, West Sussex, no sudeste da Inglaterra. A psilocibina, o ingrediente psicoativo nestes e outros cogumelos ‘mágicos’, tem potencial terapêutico. Fotografia: Martin Bond / Alamy

Em 05 de maio de 1953, o romancista Aldous Huxley dissolveu 0,4 g de mescalina em um copo de água, bebeu-o, e em seguida, sentou-se e esperou que a droga fizesse efeito. Huxley tomou a droga em sua casa na Califórnia, sob a supervisão direta do psiquiatra Humphry Osmond, a quem o próprio Huxley se ofereceu como “uma cobaia ávida e super interessada”.

Osmond fazia parte de um pequeno grupo de psiquiatras pioneiros que, no início da década de 50, começaram a usar LSD para tratar pacientes com alcoolismo e com diversos transtornos mentais. Foi Osmond que cunhou o termo “psicodélico”, que significa “mente manifestando-se” e, apesar de sua pesquisa sobre o potencial terapêutico do LSD ter produzido resultados iniciais promissores, ela foi interrompida durante a década de 1960, por razões sociais e políticas.

Nascido em Surrey em 1917, Osmond estudou medicina no Guy’s Hospital, em Londres. Ele serviu na Marinha como psiquiatra em um navio durante a Segunda Guerra Mundial, e depois trabalhou na unidade psiquiátrica do Hospital St. George, em Londres, onde se tornou um pesquisador sênior. Quando estava em St. George, Osmond e seu colega John Smythies ficaram sabendo sobre a descoberta de Albert Hoffman na Companhia Farmacêutica de Sandoz, em Bazel, Suíça, o LSD.

Osmond e Smythies começaram suas próprias investigações a respeito das propriedades dos alucinógenos e observaram que a mescalina produzia efeitos semelhantes aos sintomas da esquizofrenia, e que a sua estrutura química era muito semelhante a do hormônio e neurotransmissor, adrenalina. Isso os levou a postular que a esquizofrenia era causada por um desequilíbrio químico no cérebro, mas essas idéias não foram favoravelmente acolhidas por seus colegas.

Em 1951, Osmond assumiu o cargo de vice-diretor de psiquiatria no Hospital Psiquiátrico Weyburn em Saskatchewan, no Canadá e se mudou para este país com sua família. Dentro de um ano, ele começou a colaborar nas experiências com LSD lideradas por Abram Hoffer. Osmond experimentou LSD e concluiu que a droga pode produzir mudanças profundas na consciência. Osmond e Hoffer também recrutaram voluntários para tomar LSD e teorizaram que a droga seria capaz de induzir o usuário a um novo nível de autoconsciência e concluíram que a substância poderia ter um enorme potencial terapêutico.

Em 1953, eles começaram a dar LSD aos seus pacientes, começando com algumas pessoas diagnosticadas com alcoolismo. O primeiro estudo envolveu dois pacientes alcoólatras, a cada um dos quais, foi dada uma dose única de 200 microgramas da droga. Um deles parou de beber imediatamente após a experiência, ao passo que o outro, deixou o álcool seis meses mais tarde.

Vários anos depois, um colega deles chamado Colin Smith utilizou LSD para tratar mais 24 pacientes e, posteriormente, informou que 12 deles tinham ou “melhorado” ou “melhorado muito”, após se submeterem ao tratamento. “Nós temos a impressão de que estas substâncias são um complemento que podem ser muito úteis à psicoterapia”, escreveu Smith em um artigo de 1958, no qual apresenta seu estudo. “Os resultados parecem suficientemente encorajadores e merecem mais experimentações e pesquisas, mais extensas, e de preferência, controladas”.

Osmond e Hoffer estavam motivados com os resultados, e continuaram a administrar a droga para pacientes com alcoolismo. Até o final da década de 1960, eles haviam tratado cerca de 2.000 pacientes. Eles alegaram que os experimentos de Saskatchewan produziram de forma consistente, os mesmos resultados. Seus estudos pareciam mostrar que uma única dose grande, de LSD poderia ser considerada um tratamento eficaz para o alcoolismo, e relataram que entre 40 e 45% dos seus pacientes que receberam a droga, não tinham experimentado nenhuma recaída depois de um ano.

Humphry Osmond. Photo: Bettman/Corbis
Humphry Osmond. Photo: Bettman/Corbis

Por volta da mesma época, outro psiquiatra realizou experimentos similares no Reino Unido. Ronald Sandison nasceu em Shetland e ganhou uma bolsa para estudar medicina no King’s College Hospital. Em 1951, ele aceitou um cargo de consultor no Powick Hospital perto de Worcester, mas ao assumir o cargo percebeu que o estabelecimento encontrava-se superlotado e decrépito, com pacientes sendo submetidos a tratamentos invasivos e obsoletos hoje em dia, como o eletro-choque e a lobotomia.

Sandison introduziu o uso de psicoterapia, e outras formas de terapia inclusive envolvendo arte e música. Em 1952, ele visitou a Suíça, onde conheceu Albert Hoffman, e foi introduzido à idéia de usar LSD na clínica. Ele voltou para o Reino Unido com 100 frascos da droga – que a empresa farmacêutica Sandoz chamava de ‘Delysid “- e, depois de discutir o assunto com seus colegas, já no final de 1952, começou a tratar pacientes com a substância, como complemento da psicoterapia.

Sandison e seus colegas obtiveram resultados semelhantes aos dos Ensaios de Saskatchewan. Em 1954, eles relataram que “como resultado da terapia com LSD, 14 pacientes se recuperaram (após média de 10,4 sessões)… 1 apresentou melhora considerável (após 3 sessões), 6 apresentaram melhora moderada (após média de 2 sessões) e 2 não melhoraram (depois de 5 sessões).”

Estes resultados atraíram grande interesse da mídia internacional, e, como resultado, no ano seguinte, Sandison abriu a primeira clínica no mundo construída especificamente com o intuito de fazer tratamentos com LSD. A unidade, localizada no terreno do Powick Hospital, acomodava até cinco pacientes simultaneamente, que poderiam receber terapia de LSD. A cada paciente era dado um quarto próprio, equipado com uma cadeira, sofá e toca-discos. Os pacientes também se reuniam para discutir suas experiências em sessões de grupo diárias. (Mais tarde, o tiro saiu pela culatra já que, em 2002, o Serviço Nacional de Saúde concordou em pagar a 43 ex-pacientes de Sandison, um total de 195.000 libras em um acordo extrajudicial.)

Enquanto isso, no Canadá, o estilo de terapia com LSD de Osmond foi endossado pelo co-fundador do A.A. (Alcoólicos Anônimos) e diretor do Bureau de Saskatchewan sobre Alcoolismo. A Terapia com LSD atingiu o auge no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, e foi amplamente considerada como “a próxima grande novidade” em psiquiatria, que poderia substituir a terapia eletrocunvulsiva e a psico-cirurgia. Em certa altura, tratamentos com LSD foram populares entre estrelas de Hollywood, como Cary Grant.

Dois estilos de terapia com LSD se tornaram popular. Um deles, chamado terapia psicodélica, era baseado no trabalho de Osmond e de Hoffer, e envolvia uma única e elevada dose de LSD como complemento da psicoterapia convencional. Osmond e Hoffer acreditavam que os alucinógenos são benéficos terapeuticamente por causa de sua capacidade de fazer os pacientes verem a condição na qual se encontram por uma perspectiva totalmente nova.

O outro estilo, conhecido como terapia psicolítica, baseou-se no regime de Sandison, que utilizava várias doses menores, que iam gradualmente aumentando, mas também como complementação ao tratamento psicanalítico. As observações clínicas de Sandison o levaram a afirmar que o LSD pode ajudar a psicoterapia por induzir alucinações oníricas que refletem a mente inconsciente do paciente, permitindo-lhes reviver memórias perdidas há muito tempo, mas que continuam influenciando o comportamento do paciente.

Entre os anos de 1950 e 1965, cerca de 40.000 pacientes receberam prescrição para uma forma ou outra de terapia com LSD, para tratamento de neurose, esquizofrenia ou alguma outra psicopatia. O LSD chegou a ser prescrito para crianças com autismo. A investigação sobre os potenciais efeitos terapêuticos do LSD e outros alucinógenos produziu durante este período, mais de 1.000 artigos científicos e seis conferências internacionais. Entretanto, muitos destes estudos iniciais não foram particularmente robustos, e a alguns faltavam grupos de controle, por exemplo, e, outros foram acusados por pesquisadores de falharem no quesito isenção, já que dados negativos acabavam sendo excluídos das análises finais.

Mesmo assim, os resultados preliminares pareciam justificar uma investigação maior e mais detida sobre os benefícios terapêuticos das drogas alucinógenas. Porém, por motivações políticas, a pesquisa com alucinógenos logo sofreu uma interrupção abrupta. Em 1962, o Congresso dos EUA aprovou novas normas de segurança em relação às drogas, e a Food and Drug Administration, órgão que regula o setor de alimentos e drogas nos Estados Unidos, designou o LSD como uma droga experimental e começou a reprimir a pesquisa sobre seus efeitos. No ano seguinte, o LSD chegou às ruas em forma de líquido embebido em cubos de açúcar; sua popularidade cresceu rapidamente e no verão de 1967, a contracultura hippie estava no auge, alimentada pela substância.

Este artigo foi retirado de uma edição especial do periódico The Psychologist, dedicada às drogas alucinógenas.
Este artigo foi retirado de uma edição especial do periódico The Psychologist, dedicada às drogas alucinógenas.

Durante este período, o LSD cada vez mais passou a ser visto como uma droga de abuso. Passou ainda a ser associado às manifestações e motins estudantis contra a guerra do Vietnã e, portanto, foi proibida pelo governo federal dos Estados Unidos em 1968. Osmond e Hoffer responderam a esta nova legislação, comentando que “parece pertinente afirmar que agora há uma explosão de ressentimento contra alguns produtos químicos que podem lançar rapidamente um homem ao céu ou ao inferno.” Eles também criticaram a nova legislação, comparando-a com a reação Vitoriana aos anestésicos.

A década de 1990 testemunhou um renovado interesse pelos efeitos neurobiológicos e pelo potencial terapêutico das drogas alucinógenas. Agora compreendemos quantos deles funcionam a nível molecular, e vários grupos de pesquisa têm realizado experimentos com tomografia cerebral para tentar aprender mais sobre como as substâncias exercem seus efeitos. Uma série de ensaios clínicos também está sendo realizada para testar os benefícios potenciais da psilocibina, da cetamina e do MDMA para pacientes com depressão e outros transtornos do humor. No entanto, seu uso ainda é severamente restringido, o que leva muitas pessoas a criticar as leis antidrogas, argumentando que tais leis estão impedindo uma investigação que pode ser vital.

Huxley acreditava que as drogas alucinógenas produzem os seus efeitos característicos ao permitir a abertura de uma “válvula redutora” no cérebro que, em estados normais, limitariam a nossa percepção, e algumas pesquisas recentes parecem confirmar isso. Em 1963, em seu leito de morte, por conta de um câncer, Huxley pediu a sua esposa para injetar LSD nele. Também neste caso, parece que o autor de Admirável Mundo Novo foi profético: vários pequenos estudos sugerem que a cetamina alivia a depressão e a ansiedade em pacientes com câncer em estado terminal e, mais recentemente, o primeiro estudo americano a usar LSD em mais de 40 anos, concluiu que a substância, também, reduz a ansiedade em pacientes com outras doenças que ameaçam a vida.

Referências
Dyck, E. (2006). ‘Hitting Highs at Rock Bottom’: LSD Treatment for Alcoholism, 1950–1970. Soc. Hist. Med. 19: 313-329. [PDF]
Gasser, P. et al. (2014). Safety and Efficacy of Lysergic Acid Diethylamide-Assisted Psychotherapy for Anxiety Associated With Life-threatening Diseases. J. Nerv. Ment. Dis. 202: 513-520. [Full text]
Huxley, A. (1954). The Doors of Perception. London: Pelican Books.
Irwin, S. A., et al. (2013). Daily Oral Ketamine for the Treatment of Depression and Anxiety in Patients Receiving Hospice Care: A 28-Day Open-Label Proof-of-Concept Trial. J. Palliat. Med. 16: 958-965. [PDF]
Sandison, R. A., et al. (1954). The therapeutic value of lysergic acid diethylamide in mental illness. J. Ment. Sci. 100: 491-507. [Summary]
Sandison, R. A. & Whitelaw, J. D. A. (1957). Further studies of the therapeutic value of lysergic acid diethylamide in mental illness. J. Ment. Sci. 103: 332-343. [Summary]
Sessa, B. (2008). Can psychedelic drugs play a role in palliative care? Eur. J. Pall. Care 15: 235-237. [PDF]
Simmons, J. Q., et al. (1966). Modification of Autistic Behavior with LSD-25. Am. J. Psych. 122: 1201-1211. [Summary]
Smart, R. G. & Storm, T. (1964). The Efficacy of LSD in the Treatment of Alcoholism. Quart. J. Alcohol 25: 333-338. [PDF]
Smith, C. M. (1958). A New Adjunct to the Treatment of Alcoholism: The Hallucinogenic Drugs. Quart. J. Alcohol 19: 406-417. [PDF]
Tanne, J. H. (2004). Humphrey Osmond. BMJ 328: 713. [Full text]
Vollenweider F. X. & Kometer, M. (2010). The neurobiology of psychedelic drugs: implications for the treatment of mood disorders. Nature Rev. Neurosci. 11: 642-651. [PDF]

Este artigo aparece na edição de setembro de 2014  da revista The Psychologist e foi republicado aqui com permissão dos editores. A edição inteira é dedicada ao uso de drogas alucinógenas em terapias e pesquisas, e está disponível gratuitamente online. Fonte: The Guardian