Os cogumelos da linguagem

Henry Munn

por Henry Munn:
extraído de “Alucinógenos e Xamanismo”, Michael J. Harner, ed., ©1973,

Oxford University Press

Traduzido da Psychedelic Library

Os Mazatecas, que têm uma longa tradição no uso de cogumelos, habitam uma cadeia de montanhas chamada Sierra Mazateca, no nordeste do estado mexicano de Oaxaca. Os xamãs deste ensaio são todos nativos da cidade de Huautla de Jimenez. Falando propriamente, eles são Huautecanos; mas como a língua que falam foi chamada de Mazateca e eles foram referidos na literatura antropológica anterior como Mazatecas, mantive esse nome, embora, estritamente falando, os Mazatecas sejam os habitantes da aldeia de Mazatlán, nas mesmas montanhas.

(1) HENRY MUNN investigou o uso de plantas alucinógenas entre os índios Conibo do leste do Peru e os índios Mazatecas das montanhas de Oaxaca, no México. Embora não seja um antropólogo profissional, ele residiu por longos períodos entre os Mazatecas e é casado com a sobrinha do xamã e da xamã mencionados neste ensaio.

Os nativos Mazatecas comem os cogumelos apenas à noite, na escuridão absoluta. A crença deles é que se você comê-los à luz do dia você enlouquecerá. As profundezas da noite são reconhecidas como o momento mais propício para insights visionários sobre as obscuridades, os mistérios e as perplexidades da existência. Geralmente vários membros de uma família comem os cogumelos juntos: não é incomum que pai, mãe, filhos, tios e tias participem dessas transformações da mente que elevam a consciência a um plano superior. A relação de parentesco é, portanto, a base da subjetividade transcendental que Husserl disse ser intersubjetividade. Os próprios cogumelos são consumidos aos pares, um casal que representa o homem e a mulher que simboliza o duplo princípio da procriação e da criação. Depois sentam-se juntos na sua luz interior, sonham, realizam e conversam entre si, presenças ali sentadas juntas, os seus corpos imaterializados pela escuridão, vozes externas à sua comunidade.

De um modo geral, para todos os presentes o objetivo da sessão é uma catarse terapêutica. Os produtos químicos de transformação da revelação que abrem os circuitos de luz, visão e comunicação, chamados por nós de manifestação da mente, eram conhecidos pelos indígenas americanos como remédios: os meios dados aos homens para saber e curar, para ver e dizer a verdade. Entre os Mazatecas, muitos, uma vez ou outra na vida, comeram cogumelos, seja para se curar de uma doença ou para resolver um problema; mas não são todos os que têm predileção por experiências tão extremas e árduas da imaginação criativa ou que gostariam de repetir com muita frequência tais viagens às profundezas estranhas e desconhecidas do cérebro: aqueles que o fazem são os xamãs, os mestres, cujos a vocação é comer cogumelos porque eles são os homens do espírito, os homens da linguagem, os homens da sabedoria. São indivíduos reconhecidos pelo seu povo como especialistas nessas aventuras psicológicas, e quando os outros comem os cogumelos chamam sempre para estar com eles, como guia, um daqueles que se considera particularmente familiarizado com estas modalidades do espírito. O curandeiro preside a sessão, pois assim como a família Mazateca é paternal e autoritária, a experiência libertadora se desenrola no contexto autoritário de uma situação em que, em vez de serem autorizados a falar ou encorajados a se expressar, todos são instados a manter cale-se e ouça enquanto o xamã fala por cada um dos presentes. Como disse um dos primeiros cronistas espanhóis do Novo Mundo: “Eles pagam um feiticeiro que os come [os cogumelos] e lhes conta o que lhe ensinaram. Ele faz isso por meio de um canto rítmico em voz alta.”

Os Mazatecas dizem que os cogumelos falam. Se você perguntar a um xamã de onde vêm suas imagens, ele provavelmente responderá: não fui eu que disse, foram os cogumelos. Nenhum cogumelo fala, isso é uma antropomorfização primitiva do natural, só o homem fala, mas quem come esses cogumelos, se for um homem de linguagem, fica dotado de uma inspirada capacidade de falar. Os xamãs que os comem, sua função é falar, são os oradores que cantam e cantam a verdade, são os poetas orais de seu povo, os doutores da palavra, aqueles que dizem o que está errado e como remediá-lo, os videntes e oráculos, os possuídos pela voz. “Não sou eu quem fala”, disse Heráclito, “é o logos”. A linguagem é uma atividade extática de significação. Intoxicado pelos cogumelos, a fluência, a facilidade, a aptidão de expressão de que alguém se torna capaz são tais que nos surpreendemos com as palavras que emergem do contato da intenção de articulação com a matéria da experiência. Às vezes é como se nos dissessem o que dizer, pois as palavras saltam à mente, uma após a outra, sem necessidade de serem procuradas: um fenómeno semelhante ao ditado automático dos surrealistas, excepto que aqui o fluxo de a consciência, em vez de ser desconectada, tende a ser coerente: uma enunciação racional de significados. Os campos de mensagens de comunicação com o mundo, os outros e consigo mesmo são revelados pelas salas de cogumelos. A espontaneidade que eles liberam não é apenas perceptiva, mas linguística, a espontaneidade da fala, do discurso fervoroso e lúcido, do logos em atividade. Para o xamã, é como se a existência se expressasse através dele. Desde o início, uma vez que o que comeram modificou sua consciência, eles começam a falar e no final de cada frase dizem tzo – “diz” em sua língua – como uma pontuação rítmica do dito. Diz, diz, diz. Está dito. eu digo. Quem disse? Nós dizemos, o homem diz, a linguagem diz, o ser e a existência dizem. (2)

De pernas cruzadas no chão, na escuridão das cabanas, perto do fogo, respirando o incenso do copal, o xamã senta-se com a testa franzida e a boca marcada da fala. Cantando suas palavras, batendo palmas, balançando para frente e para trás, ele fala na noite do barulho dos grilos. O que se diz é mais concreto que as luzes fantasmagóricas efêmeras: as palavras são materializações da consciência; a linguagem é um veículo privilegiado de nossa relação com a realidade. Vamos procurar os rastros do espírito, dizem os xamãs. Vamos ao milharal em busca dos rastros dos pés dos espíritos na terra quente. Então caminhemos pelo caminho em busca de significado, seguindo as palavras de dois discursos registrados como trilhas em fitas magnéticas e depois traduzidos da língua tonal nativa, para descobrir e explicitar o que é dito por um curandeiro e médico indiano mulher durante essas experiências extáticas da voz humana falando com força rítmica as realidades da vida e da sociedade.

A mulher baixa, corpulenta, idosa, com cara de lua risonha, vestida com huipil, o vestido longo, bordado de flores e pássaros, das mulheres mazatecas, um xale escuro enrolado nos ombros, os cabelos grisalhos repartidos ao meio e puxados em duas tranças, crescentes dourados pendurados em suas orelhas, inclinou-se para frente de onde ela se ajoelhou no chão de terra da cabana e segurou um punhado de cogumelos na fumaça perfumada e purificadora do copal subindo das brasas do fogo. fogo, para abençoá-los: conhecida pelos antigos mesoamericanos como a Carne de Deus (teonánactl), chamada pelo seu povo de Sangue de Cristo. Através de suas montanhas milagrosas de luz e chuva, os índios dizem que Cristo caminhou uma vez – é uma transformação da lenda de Quetzalcoatl – e de onde caiu seu sangue, a essência de sua vida, dali cresceram os cogumelos sagrados, os despertadores de o espírito, o alimento do luminoso. Carne do mundo. Carne da linguagem. No princípio era o verbo e o verbo se fez carne. No princípio havia carne e a carne tornou-se linguística. Alimento da intuição. Alimento da sabedoria. Ela comeu, mastigou, engoliu e arrotou; esfregou tabaco moído nos pulsos e antebraços como um tônico para o corpo; apagou a vela; e fiquei esperando na escuridão onde o incenso subia das brasas como uma névoa branca e brilhante. Então, depois de um tempo, veio a iluminação e a animação e, de repente, saindo do silêncio, a mulher começou a falar, a cantar, a orar, a cantar, a expressar a sua existência: (3)

“Meu Deus, você que é o dono do mundo inteiro, o que queremos é procurar e encontrar de onde vem a doença, de onde vem a dor e a aflição. Somos nós que falamos, curamos e usamos remédios. Então, sem percalços, sem dificuldades, eleve-nos às alturas e exalte-nos.”

Desde o início, o problema é descobrir qual é a doença que o doente sofre e prognosticar o remédio. Curandeira, ela come cogumelos para ver o espírito dos doentes, para revelar o que está oculto, para intuir como resolver o que não está resolvido: para uma experiência de revelações. A transformação do seu eu quotidiano é transcendental e dá-lhe o poder de se mover nas duas esferas relevantes da transcendência para alcançar a compreensão: a da outra consciência onde os sintomas da doença podem ser discernidos; e a do divino, a fonte dos acontecimentos no mundo. Junto com a empatia visionária, seu principal meio de realização é a articulação, o discurso, como se ao dizer ela dissesse a resposta e anunciasse a verdade.

“É preciso olhar e pensar no espírito dela onde dói. Devo pensar e buscar em tua presença onde está a tua glória, Meu Pai, que és o Mestre do Mundo. De onde vem essa doença? Foi um redemoinho ou um ar ruim que caiu na porta ou no vão da porta? Então vamos pesquisar e perguntar, da cabeça aos pés, qual é o problema. Vamos procurar os rastros de seus pés para encontrar a doença que ela sofre. Animais em seu coração? Vamos procurar os rastros de seus pés, os rastros de suas unhas. Que seja aliviado e curado onde dói. O que vamos fazer para nos livrarmos desta doença?”

Para os Mazatecas, a experiência psicodélica produzida pelos cogumelos está inseparavelmente associada à cura de doenças. A ideia de doença deve ser entendida como significando não apenas doenças físicas, mas também problemas mentais e problemas éticos. É quando algo está errado que os cogumelos são comidos. Se não há nada de errado com você, não há razão para comê-los. Até recentemente, os cogumelos eram o único remédio a que os indígenas recorriam em tempos de doença. ‘Seu valor medicinal não é de forma alguma meramente mágico, mas químico. Segundo os índios, a sífilis, o câncer e a epilepsia foram amenizados com seu uso; tumores curados. Eles foram empiricamente considerados pelos nativos como particularmente eficazes no tratamento de distúrbios estomacais e irritações da pele. A mulher cujas palavras ouvimos, como muitas outras, descobriu a sua vocação xamânica quando foi curada pelos cogumelos de uma doença: depois da morte do marido, começou a ter espinhas; ela recebeu os cogumelos para ver se eles a “ajudariam” e a doença desapareceu. Desde então, ela os comeu sozinha e os deu a outras pessoas.

Se alguém está doente, o curandeiro é chamado. O tratamento que ele emprega é químico e espiritual. Ao contrário da maioria dos métodos xamânicos, o xamã mazateca realmente dá remédios aos seus pacientes: por meio dos cogumelos ele os administra fisiologicamente, ao mesmo tempo que altera sua consciência. É provavelmente para as queixas psicossomáticas e os problemas psicológicos que a liberação da atividade espontânea provocada pelos cogumelos é mais corretiva: dada aos deprimidos, eles despertam uma catarse do espírito; aos que têm problemas, uma visão do seu modo existencial. Se não chegar à conclusão de que a doença é incurável, o curandeiro repete as sessões terapêuticas três vezes em intervalos. Ele também trabalha com os enfermos, pois seu estado de embriaguez de energia intensa e vibrante lhe dá uma força para curar, que ele exerce por meio de massagem e sucção.

Sua função mais importante, porém, é falar pelo doente. Os xamãs Mazatecas comem os cogumelos que liberam as fontes da linguagem para poder falar lindamente e com eloqüência para que suas palavras, ditas pelo doente e pelos presentes, cheguem e sejam ouvidas no mundo espiritual de onde vem a bênção ou a dor . A função do orador, no entanto, é muito mais do que simplesmente implorar. O xamã tem uma concepção de poesis (4) em seu sentido original como ação: as próprias palavras são remédios. Enunciar e dar sentido aos acontecimentos e situações da existência é doação de vida em si.

“O psicanalista escuta, enquanto o xamã fala”, aponta Lévi-Strauss:

“Quando se estabelece uma transferência, o paciente coloca palavras na boca do psicanalista, atribuindo-lhe supostos sentimentos e intenções; no encantamento, ao contrário, o xamã fala por seu paciente. Ele a questiona e coloca em sua boca respostas que correspondem à interpretação de seu estado. Um papel pré-requisito – o de ouvinte para o psicanalista e de orador para o xamã – estabelece uma relação direta com o consciente do paciente e uma relação indireta com seu inconsciente. Esta é a função do encantamento propriamente dito. O xamã fornece à mulher doente uma linguagem por meio da qual estados psíquicos não expressos e de outra forma inexprimíveis podem ser imediatamente expressos. E é a transição para esta expressão verbal – ao mesmo tempo que permite vivenciar de forma ordenada e inteligível uma experiência real que de outra forma seria caótica e inexprimível – que induz a libertação do processo fisiológico, isto é, a reorganização , no sentido favorável, do processo ao qual a mulher doente está submetida.” (5)

Estas observações do antropólogo francês tornam-se particularmente relevantes para a prática xamânica mazateca quando se considera que o efeito dos cogumelos, usados ​​para tornar alguém capaz de curar, é inspirar a linguagem ao xamã e transformá-lo em oráculo. “Que venham todos os santos, que venham todas as virgens”, canta a curandeira com sua voz cantante, invocando as forças benéficas do universo, chamando para ela as deusas da fertilidade, as virgens: férteis porque não têm foram semeados e estão frescos para que a semente dos homens gere filhos em seus ventres.

“A Virgem da Conceição e a Virgem da Natividade. Que Cristo venha e o Espírito Santo. Cinquenta e três santos. Cinquenta e três Santas. Que se sentem ao seu lado, na sua esteira, na sua cama, para livrá-la da doença.”

A esposa do homem em cuja casa ela falava estava grávida e durante toda a sessão da criação, desde o meio da gestação, sua linguagem tão espontânea quanto o seu ser que começou a vibrar, ela se preocupa com o surgimento da vida, com o nascimento de uma existência naquele mundo social cotidiano que. seu discurso em desenvolvimento expressa:

“Com o bebê que vai nascer não há sofrimento”, afirma. É questão de instante, não vai haver sofrimento algum, diz. De um momento para outro vai cair no mundo, diz. De um momento para outro vamos salvá-la da sua desgraça, diz. Que sua criatura inocente venha sem contratempos, diz. Seu elfo. É assim que é chamado quando ainda está no ventre de sua mãe. De um momento para outro, que vem sua criatura inocente, seu elfo, diz.”

“Vamos pesquisar e questionar”, diz ela, “desamarrar e desembaraçar”. Ela está viajando, pois há distanciamento e vai para lá, para algum lugar, sem sequer sair do lugar onde ela senta e fala. Sua consciência está vagando pelo espaço existencial. Sibila, vidente e oráculo, ela está no caminho do significado e a pulsação do seu ser é como o ritmo do caminhar.

“Vamos procurar o caminho, os rastros dos seus pés, os rastros das suas unhas. Do lado direito para o lado esquerdo, olhemos.” Para chegar à verdade, para resolver os problemas e agir com sabedoria, é necessário encontrar o caminho a seguir. O significado é intencional. Possibilidades são caminhos a serem escolhidos. Para a indígena, as pegadas são imagens de sentido, vestígios de um ir e voltar, pistas sedimentadas de significado a serem procuradas de um lado a outro e seguidas até onde levam: indicadores de direcionalidade; sinais de existência. A busca por significado é temporal, transportada para o passado e projetada para o futuro; o que aconteceu? ela pergunta, o que vai acontecer? deixando para trás para o que está à frente, vão as pegadas entre a partida e a chegada: manifestações do êxtase humano, existencial. E o método de olhar, do lado direito para o lado esquerdo, é a articulação do ora essa intuição, fato, sentimento ou desejo, ora aquilo, a intenção de falar trazendo à luz significados cujas associações e ulteriores elucidações são como a descoberta de um caminho onde os conteúdos a serem enunciados são trilhas a serem seguidas até o inexplorado, o desconhecido e o não dito em que ela se aventura pela linguagem, a buscadora de significado, a questionadora de significado, a articuladora de significado: o significado da existência que significa com sinais por a ação de falar a experiência da existência.

“Mulher dos remédios e curandeira, que caminha com a aparência e com a alma”, canta a mulher, abaixando-se no chão e endireitando-se, balançando-se para frente e para trás enquanto canta, dividindo a verdade no tempo de suas palavras: emissora de sinais . “Ela é a mulher do remédio e do remédio. É a mulher que fala. A mulher que junta tudo. Mulher médica. Mulher de palavras. Mulher sábia dos problemas.”

Ela não fala, na maioria das vezes, para nenhuma pessoa em particular, mas para todos: todos os que estão aflitos, perturbados, infelizes, intrigados com as dificuldades da sua condição. Agora, no aprofundamento do seu discurso, proferindo realidades, não alucinações, falando da existência num mundo comunitário onde o “nós” é mais frequente do que o “eu”, ela chega a uma doença e agravamento mais geral do que a doença física: a condição econômica de pobreza em que seu povo vive. “Vamos ao milharal em busca dos rastros dos pés, da sua pobreza e da sua humildade. Que venham o ouro e a prata”, reza ela. “Por que somos pobres? Por que somos humildes nesta cidade de Huautla?” Esse é o paradoxo: por que, no meio de uma riqueza natural tão grande como suas montanhas férteis e abundantes, onde cachoeiras caem em cascata através da folhagem verde de folhas e samambaias, eles deveriam ser miseráveis ​​pela pobreza, ela quer saber. A alimentação diária dos índios consiste em feijão preto e tortilhas cobertas com molho de pimenta vermelha; só raramente, em festivais, comem carne. Manchas brancas causadas pela desnutrição mancham seus rostos vermelhos. Os bebês costumam ficar doentes. É a riqueza que ela implora para resolver o problema da carência.

Os cogumelos, que crescem apenas na época das chuvas torrenciais, despertam as forças da criação e produzem uma experiência de abundância espiritual, de uma constituição de formas surpreendente e inesgotável que os identifica com a fertilidade e os torna uma mediação, um meio de comunhão, de comunicação entre o homem e o mundo natural do qual ele é a carne metafísica. O tema da xamã, mãe e avó, mulher da fertilidade, curvando-se enquanto canta e recolhendo a terra para si como se recolhesse com as mãos a colheita da sua experiência, é o de dar à luz, é o do crescimento. Agricultores, são pessoas de estreitas relações familiares e com muitos filhos: os aglomerados de casas neolíticas com telhados de colmo nos picos das montanhas são de grupos familiares alargados. O mundo da mulher é o da casa, a sua preocupação é com os seus filhos e com todos os filhos do seu povo.

“Toda a família, os bebês e as crianças, que a felicidade chegue até eles, que cresçam e amadureçam sem que nada lhes aconteça. Livrem-nos de todas as classes de doenças que existem aqui na terra. ela diz: “então virá o bem-estar, virá o ouro. Aí teremos comida. Nosso feijão, nossa cabaça, nosso café, é isso que a gente quer. Que venha uma boa colheita. Que venha riqueza, que venha bem- sendo para todos os nossos filhos. Todos os meus. brotos, meus filhos, minhas sementes”, canta ela.

Mas o mundo dos seus filhos não será o mundo dela, nem o dos seus avós. A sua sociedade indígena está a ser transformada pelas forças da história. Até recentemente, isolados do mundo moderno, os nativos viviam nas suas montanhas como as pessoas viviam no Neolítico. Havia apenas caminhos e eles caminhavam por onde quer que fossem. Trens de burros transportavam a principal colheita – café – para os mercados da planície. Agora foram construídas estradas, arrancadas da rocha e construídas ao longo das bordas das montanhas sobre precipícios para conectar a comunidade com a sociedade além. As crianças são pessoas de opostos: assim como falam duas línguas, mazateca e espanhol, vivem entre dois tempos: o tempo cíclico e atemporal de recorrência do Povo do Cervo e o tempo de progresso, mudança e desenvolvimento do México moderno. No seu discurso, nenhum rito estereotipado ou cerimónia tradicional com palavras e ações prescritas, falando de tudo, do antigo e do moderno, do que está a acontecer ao seu povo, a mulher dos problemas, perscrutando o futuro, reconhece o inevitável processo de transição, de desintegração e integração, que confronta os seus filhos: a geração mais jovem destinada a viver a crise e a dar o salto do passado para o futuro. Para eles é necessário aprender a ler e a escrever e a falar a língua deste novo mundo e para progredirem, serem educados e adquirirem conhecimentos, contidos nos livros, radicalmente diferentes das tradições da sua própria sociedade cuja língua é oral e não escrita, cujos instrumentos são a enxada, o machado e o facão.

“Também é necessário um livro. Bom livro. Livro de boa leitura em espanhol, diz. Em espanhol. Todos os seus filhos, suas criaturas, que seus pensamentos e seus costumes mudem, diz. Para mim não há tempo. Sem dificuldade, vamos embora. Com ternura. Com leveza. Com doçura. Com boa vontade.”

“Não nos deixe na escuridão nem nos cegue”, ela implora às origens da luz, pois nessas modalidades sobrenaturais de consciência há perigos de aberração e perturbação por todos os lados. “Vamos pelo bom caminho. O caminho das veias do nosso sangue. O caminho do Mestre do Mundo. Vamos pelo caminho da felicidade.” O caminho existencial, a condução da vida, é uma ideia à qual ela retorna continuamente. Os caminhos que ela menciona são as qualidades morais, físicas, mentais e emocionais típicas da experiência da atividade consciente animada, de onde brotam suas palavras: bondade, vitalidade, razão, transcendência e alegria. Sentada no chão, na escuridão, vendo com os olhos fechados, seu pensamento viaja por dentro, ao longo das artérias ramificadas da corrente sanguínea, e por fora, pelos campos da existência. Há uma qualidade fisiológica muito definida na experiência do cogumelo que leva os indígenas a dizer que, por uma espécie de introspecção visceral, eles ensinam o funcionamento do organismo: é como se o sistema fosse projetado diante de alguém numa visão do coração, o fígado, pulmões, órgãos genitais e estômago.

No decorrer do discurso da curandeira, é compreensível que ela, por espanto, por gratidão, pelo conhecimento da experiência, diga algo sobre os cogumelos que provocaram sua condição de inspiração. Num certo sentido, falar da “experiência do cogumelo” é uma reificação tão absurda quanto a antropomorfização dos cogumelos quando se diz que eles falam: os cogumelos são apenas os meios, em interação com o organismo, o sistema nervoso, e o cérebro, de produzir uma experiência alicerçada nas possibilidades ontológico-existenciais do humano, irredutível às propriedades de um cogumelo. A experiência é psicológica e social. O que a xamã fala é do seu mundo comunitário; mesmo as visões da sua imaginação devem ter origem no contexto da sua existência e dos mitos da sua cultura. O sujeito de outra sociedade terá outras visões e expressará um conteúdo diferente em seu discurso. Pareceria provável, contudo, que, à parte as semelhanças emocionais, as iluminações coloridas e os padrões puramente abstratos de uma atividade consciente universal, entre as experiências de indivíduos com diferentes inerências sociais, a característica comum seria o discurso, a julgar pelos seus efeitos. Os constituintes químicos dos cogumelos têm alguma ligação com os centros linguísticos do cérebro. “Assim diz o professor de palavras”, diz a mulher, “assim diz o professor de assuntos”. É paradoxal que a redescoberta de tais produtos químicos tenha relacionado seus efeitos à loucura e os chamado pejorativamente de drogas, quando os xamãs que os usavam falavam deles como remédios e diziam, por experiência própria, que a metamorfose que produziam colocava a pessoa em comunicação com o espírito. É precisamente o valor de estudar o uso de tais químicos nas chamadas sociedades primitivas que o caminho seja encontrado além do superficial para uma compreensão mais essencial dos fenômenos que nós, com nossa concepção limitada do racional, temos feito muito rapidamente, e talvez erroneamente, denominado irracional, em vez de compreender que tais experiências são revelações de uma atividade existencial primordial, de “um poder de significação, um nascimento de sentido ou um sentido selvagem”. (6) Com o que somos confrontados pelo discurso xamânico dos comedores de cogumelos? Uma modalidade de razão em que o logos da existência se enuncia, ou pelo delírio e pela incoerência do desarranjo?

“Eles não fazem nada além de falar”, diz a curandeira, “aqueles que dizem que esses assuntos são assuntos do passado. Eles não fazem nada além de falar, as pessoas que os chamam de cogumelos malucos”. Eles afirmam ter conhecimento daquilo de que não têm experiência; consequentemente, as suas alegações são absurdas: nada mais são do que expressões da convencionalidade que os cogumelos explodem ao revelarem o extraordinário; mera conversa, se não fosse pelo fato de que os todo-poderosos formam a força de repressão que, pela legislação e pela implementação da autoridade, passou a denominar infrações à lei e ao código de saúde, os meios de libertação que antes eram chamados medicamentos. Numa época de comprimidos e injeções, de medicina científica, diz a sábia, o uso dos cogumelos não é um vestígio anacrônico e obsoleto de práticas mágicas: o seu poder de despertar consciências e curar males existenciais não é menos relevante agora do que era no passado. Ela insiste que é ignorância da nossa dimensão de mistério, das fontes do significado, pensar que o seu efeito é a insanidade.

“Bem e felicidade”, diz ela, nomeando as emoções de seu ser ativado e perceptualizado. “Não são cogumelos malucos. São um remédio, diz. Um remédio para as pessoas decentes. Para os estrangeiros”, diz ela, falando de nós, viajantes da sociedade industrial avançada, que começamos a chegar às praças altas do seu povo. para fazer experiências com os cogumelos psicodélicos que cresciam nas montanhas dos Mazatecas. Ela tem uma noção da verdade, de que o que procuramos é uma cura para as nossas alienações, para sermos postos novamente em contato, por meios violentos se necessário, com aquele eu original e criativo que foi alienado de nós pela nossa classe média. famílias, educação e mundo corporativo de emprego.

“Lá na terra deles se leva em conta que há algo nesses cogumelos, que eles são bons, úteis”, diz ela. “O médico que está aqui na nossa terra. A planta que cresce neste lugar. Com isso vamos nos unir, vamos nos aliviar. É o nosso remédio. Quem sofre de dores e doenças, com isso vai é possível aliviá-lo. Eles não são chamados de cogumelos. Eles são chamados de oração. Eles são chamados de sabedoria. Eles estão lá com a Virgem, Nossa Mãe, a Natividade. Os índígenas não chamam os cogumelos de cogumelos comuns, eles os chamam de sagrados. Para a xamã, a experiência que produzem é sinônimo de linguagem, de comunicação, em nome de seu povo, com as forças sobrenaturais do universo; com plenitude e alegria; com percepção, insight e conhecimento. É como se alguém tivesse nascido de novo; portanto, sua padroeira é a Deusa do Nascimento, a Deusa da Criação.

“Com orações nos livraremos de tudo. Com as orações dos antigos. Nos limparemos, nos purificaremos com água limpa, lavaremos nossos intestinos onde estiverem infectados. Que as doenças do corpo sejam eliminadas. Doenças da atmosfera. Ar ruim. Que eles sejam eliminados, que sejam removidos. Que o vento os leve embora. Pois este é o médico. Pois esta é a planta. Pois este é o feiticeiro da luz do dia. Pois este é o remédio. Pois esta é a curandeira, a médica que resolve todos os tipos de problemas para nos livrar deles com suas orações. Vamos com bem-estar, sem dificuldade, implorar, implorar, suplicar. Bem-estar para todos os bebês e as criaturas. Vamos implorar, implorar por eles, suplicar pelo seu bem-estar e pelos seus estudos, que vivam, que cresçam, que brotem. Venha aquele frescor, ternura, brotos, alegria. Que sejamos abençoados, todos nós.”

Ela continua falando e falando, sem parar; há calmarias quando sua voz fica mais lenta, quase se transformando em um sussurro; depois vêm ondas de inspiração, momentos de fala intensa; ela boceja grandes bocejos, ri de júbilo, bate palmas no ritmo de sua interminável canção; mas depois da partida, os ápices do êxtase são alcançados, a intoxicação começa a diminuir, e ela soa o tema de voltar à existência normal e consciente do dia a dia novamente após esta excursão ao além, de reencontrar o ego que ela transcendeu:

“Voltaremos sem percalços, por um caminho fresco, um caminho bom, um caminho de bons ares; num caminho pelo milharal, num caminho pelo restolho, sem reclamação nem qualquer dificuldade, regressamos sem percalços. O galo já começou a cantar. Galo rico que nos lembra que vivemos nesta vida.”

O dia que amanhece é o de um mundo novo em que não há mais necessidade de caminhar até onde você vai. “Com ternura e frescor, vamos de avião, de máquina, de carro. Vamos de um lado a outro, procurando os rastros dos punhos, os rastros dos pés, os rastros dos pregos. “

Parecia que ela estava falando há oito horas. Os segundos de tempo foram ampliados, não pelo tédio, mas pela intensidade da experiência vivida. Quanto à temporalidade dos relógios, ela falava há apenas quatro horas quando concluiu com uma visão da transcendência que se tornara imanente e agora se retirara dela. “Existe a carne de Deus. Existe a carne de Jesus Cristo. Ali com a Virgem.” As palavras mais repetidas pela mulher são frescor e ternura; os do xamã, cujo discurso consideraremos agora, são o medo e o terror: o que se poderia chamar de pólos emocionais dessas experiências. Há uma doença de que falam os Mazatecas e que chamam de medo. Dizemos trauma. Caminham pelas suas montanhas ao longo dos seus árduos caminhos nos diferentes níveis do ser, subindo e descendo, à luz do sol e através das nuvens; por toda parte há grutas e abismos, bosques misteriosos, lugares onde vivem os “laa”, os pequeninos, anões e gnomos travessos. Rios e poços são habitados por espíritos com poderes de encantamento. À noite, nessas altitudes, os ventos sopram das profundezas, avançam para longe como monstros e passam, destruindo tudo em seu caminho com suas garras ferozes. Fantasmas aparecem nas brumas. Existem pessoas com mau-olhado. A existência no mundo e com os outros é traiçoeira, perigosa: algo inesperado pode acontecer com você e esse acontecimento, a menos que seja exorcizado, pode marcá-lo para o resto da vida.

Os indígenas dizem, seguindo as crenças de seus ancestrais, os siberianos, que a alma às vezes se assusta, o espírito vai, você é alienado de si mesmo ou possuído por outro: você se perde. É para esta neurose que os xamãs, os questionadores de enigmas, são os grandes médicos e os cogumelos o remédio. É tarefa do xamã mazateca procurar o espírito extravagado, encontrá-lo, trazê-lo de volta e reintegrar a personalidade do doente. Se necessário, paga os poderes que se apropriaram do espírito enterrando cacau, feijão de troca, envolto em pano de casca de oferenda, no lugar do susto que adivinhou pela visão. Os cogumelos, dizem os xamãs, mostram: você vê, no sentido que você percebe, isso lhe é revelado. “Traga seu espírito, sua alma”, implora a curandeira que acabamos de ouvir. “Deixe o espírito dela voltar de onde se perdeu, de onde ficou, de onde foi deixado para trás, de onde quer que seu espírito esteja vagando perdido.” Foi justamente com essa experiência traumática que começou a vocação xamânica do homem que estudaremos agora. Com quase cinquenta anos, ele come cogumelos há nove anos. Por que ele começou? “Comecei a comê-los porque estava doente”, disse ele quando questionado.(7)

“Por mais que os médicos me tratassem, não melhorei. Fui ao Hospital Latino-Americano. Também fui para Córdoba. Eu fui para o México. Fui para Tehuacán e não fiquei aliviado. Só com os cogumelos me curei. Tive que comer os cogumelos três vezes e o homem de San Lucas, que me deu, me propôs seu trabalho como curandeiro, dizendo: agora você vai receber meu estudo. Perguntei-lhe por que ele pensava que eu iria recebê-lo quando não queria aprender nada sobre sua sabedoria, só queria melhorar e ser curado da minha doença. Então ele me respondeu: agora não é mais você quem manda. Já é meio da noite. Vou deixar para vocês uma mesa com fumo moído e uma cruz embaixo para que aprendam esse trabalho. Diga-me qual dessas coisas você escolhe e gosta mais, disse ele, quando tudo estava pronto. Qual dessas obras você deseja? Respondi que não queria o que ele me ofereceu. Aqui você não dá ordens, respondeu ele; Sou eu quem vai dizer se você receberá ou não esse trabalho, porque sou eu quem vai te dar o seu diploma na presença de Deus. Então ouvi a voz do meu pai. Ele já estava morto há quarenta e três anos quando me falou pela primeira vez que comi os cogumelos: Este trabalho que está sendo dado a você, ele disse, sou eu quem lhe diz para aceitá-lo. Se você pode me ver ou não, eu não sei. Eu não conseguia imaginar de onde vinha essa voz que falava comigo. Foi então que o xamã de San Lucas me disse que a voz que eu ouvia era a do meu pai. A doença que eu sofria foi aliviada comendo cogumelos. Então eu disse ao velho, estou disposto a receber o que você me oferece, mas quero aprender tudo. Foi então que ele me ensinou a sugar o espaço com um tubo oco de cana. Sugar através do espaço significa que você que está sentado aí, eu posso tirar a doença de você através da sucção à distância.”

O que começou como uma doença física, a apendicite, tornou-se uma neurose traumática. Os médicos o levaram para uma sala de cirurgia – ele nunca havia estado em um hospital na vida – e o sufocaram com uma máscara de éter. E ele desistiu do fantasma enquanto lhe cortavam o apêndice. Quando ele acordou, ele estava assustado e deprimido, sem qualquer vontade de viver, ele estava farto. Em vez de se recuperar, ele ficou deitado como um morto com os olhos bem abertos, sem dizer nada a ninguém, de que adiantou, sua vida foi um fracasso, ele nunca se tornou o homem importante que aspirou ser durante toda a vida, agora era tarde demais; sua vida havia acabado e ele não tinha feito nada que seus filhos pudessem lembrar com respeito e admiração. Os médicos não puderam ajudá-lo porque não havia nada de errado com ele fisicamente; ao contrário do que acreditava, sobreviveu à operação; o corte em seu estômago foi costurado e curado; no entanto, ele permaneceu apático e indiferente, pois estava aterrorizado pela morte e seu espírito havia voado como um pássaro ou um cervo veloz. Ele precisava de alguém que saísse e caçasse para ele, para trazer de volta seu espírito e ressuscitá-lo.

O curandeiro, da aldeia vizinha de San Lucas, a quem ele chamou quando os médicos modernos não conseguiram curá-lo da estranha doença de que sofria, era conhecido em todas as montanhas como um grande xamã, um adivinho do destino. O velho baixo, franzino e enrugado tinha 105 anos. Ele deu ao seu paciente, que sofria de depressão, os cogumelos da vitalidade, e a terapia funcionou. Ele reviveu vividamente a operação em sua imaginação. Segundo ele, os cogumelos o abriram, arrumaram suas entranhas e costuraram novamente. Uma das razões pelas quais não se recuperou foi a sua convicção de que a medicina materialista era incapaz de realmente curar, uma vez que estava divorciada de toda cooperação com os espíritos e da dependência do sobrenatural.

Na sua imaginação, os cogumelos realizaram mais uma intervenção cirúrgica e corrigiram os erros do médico profano que considerava responsável pela sua letargia persistente. Ele passou por todo o processo em sua mente. Era como se ele estivesse operando sobre si mesmo, desfazendo o que lhe havia sido feito e fazendo tudo de novo. O trauma foi exorcizado. Ao visualizar intensamente, com uma consciência ampliada e ampliada, o que lhe acontecera sob anestesia, ele finalmente assumiu o acontecimento assustador que antes não conseguira integrar em sua experiência. Sua cura fisiológica foi completada psicologicamente; ele foi finalmente curado em virtude dos poderes assimilativos e criativos da imaginação. O morto voltou à vida, queria viver porque sentia mais uma vez que estava vivo e tinha forças para continuar a viver: antes exausto e desanimado, agora estava revigorado e rejuvenescido.

A cura dá certo porque não só seu espírito é despertado, mas também lhe é oferecido outro futuro: uma nova profissão que é uma compensação à sua humilde profissão de lojista. O antigo sábio, à beira da morte, quer transmitir ao homem no seu auge, o seu conhecimento. O que ele encontra é resistência. O outro não quer assumir a vocação de xamã, quer apenas ser curado, sem perceber que a cura é indissociável da aceitação da vocação que o libertará da repressão de suas forças criativas que causou a neurose com que ele está aflito. Não é mais você quem comanda, dizem-lhe, pois seu impulso de morrer é mais forte do que seu desejo de viver; portanto, a força contrária, para ser eficaz, não pode ser a dele: deve ser a vontade do outro transferida para ele. Você está muito longe para ter alguma palavra a dizer sobre o assunto, diz o curandeiro, já é meio da noite. Ao negar a vontade de seu paciente, ele a desperta e o prepara para aceitar o que lhe está sendo sugerido.

Mostra-lhe a mesa, o fumo, a cruz: sinais do trabalho do xamã. A mesa é um altar para trabalho. Quando os Mazatecas comem os cogumelos, eles falam das sessões como missas. O xamã, mesmo sendo uma figura secular não ordenada pela Igreja, assume um papel sacerdotal como líder dessas cerimônias. De modo semelhante, para os indígenas cada pai de família é o sacerdote religioso de sua casa. Acredita-se que o tabaco, San Pedro, tenha poderosos valores mágicos e curativos. A cruz indica um cruzamento de caminhos, uma intersecção de caminhos existenciais, uma mudança, além de ser o símbolo religioso da crucificação e da ressurreição. O xamã diz a ele para escolher. Mesmo assim o homem recusa. Quem manda não é você, diz o curandeiro que pretende evocar o outro eu do paciente para trazê-lo de volta à vida, o eu que é outro. Quer você queira ou não, você vai receber o diploma, diz ele, para incitá-lo com a perspectiva de prêmio e reputação. Vivendo numa cultura oral sem escrita, onde a aquisição de competências é tradicional, transmitida de pai para filho, de mãe para filhas e não contida em livros, para os mazatecas a sabedoria é adquirida nas experiências produzidas pelos cogumelos: são experiências de visão e comunicação que transmitem conhecimento.

Agora ele é falado. A voz interior torna-se subitamente audível. Ele ouve o chamado. Ele é instruído a aceitar a vocação de curandeiro que até agora tem assumido com firmeza. recusou. Ele não pode reconhecer esta voz como sua, deve ser de outra pessoa; e o xamã, decidido a dar-lhe um novo destino, seguro do talento que adivinhou, interpreta-lhe de qual região de si brota a ordem que ouviu. É seu pai quem está lhe dizendo para aceitar este trabalho. Uma característica de tais experiências transcendentais é que as relações familiares, em cujo nexo se forma a personalidade, tornam-se presentes para alguém com intensa vivacidade. Seu superego, em conjunto com a liberação de sua vitalidade, falou com ele e sua resistência foi liquidada; decide viver e aceita a nova vocação em torno da qual se reintegra sua personalidade: torna-se adepto das dimensões da consciência onde vivem os espíritos; um orador de palavras poderosas.

Na casa dele, entramos em um cômodo com paredes de concreto aparente e telhado alto de ferro corrugado. Sua esposa, envolta em xales, estava sentada numa esteira. Seus filhos estavam lá; sua família havia se reunido para comer cogumelos com o pai; um ou dois foram dados às crianças de dez e doze anos. A janela estava fechada e com a porta fechada, a sala estava isolada do mundo exterior; ninguém teria permissão de sair até que o efeito do que comeram tivesse passado, como precaução contra o perigo de perturbação. Ele era um homem baixo e corpulento, vestindo uma jaqueta reefer sobre uma camiseta, velhas calças marrons boca de sino até os pés curtos, um cartucho vazio em volta da cintura. No dia a dia, ele é dono de uma lojinha escassamente abastecida de enlatados, caixas de biscoitos, cerveja, refrigerante, doces, pães e sabonetes. Ele fica sentado atrás do balcão o dia todo olhando para a rua lamacenta da cidade onde cachorros rondam o lixo entre as pernas dos transeuntes. De vez em quando ele serve um copo de aguardente de cana para um cliente. Ele próprio não fuma nem bebe. Ele é um caçador em quem os instintos de seu povo sobrevivem desde a época em que eram caçadores e também agricultores: habitantes da Terra dos Veados.

Agora é noite e ele se prepara para exercer sua função xamânica. Seu bisavô era um dos conselheiros da cidade e curandeiro. Com o advento da medicina moderna e a invasão de estrangeiros em busca de cogumelos, os costumes xamânicos dos Mazatecas desapareceram quase completamente. Ele próprio já não acredita em muitas das crenças dos seus antepassados, mas como um dos últimos poetas orais do seu povo, mantém vivas conscientemente as suas tradições. “Como é bom”, diz ele, “falar como faziam os antigos”. Ele quase não fala espanhol e é fluente apenas em sua língua nativa. Espalhando os cogumelos à sua frente, ele selecionou e entregou um punhado deles a cada um dos presentes após abençoá-los na fumaça do copal. Depois de comidos, as luzes se apagaram e todos ficaram sentados em silêncio. Então ele começou a falar, sentado numa cadeira da qual se levantou para dançar, girando e arrastando-se enquanto falava na escuridão. Chovia torrencialmente, a chuva trovejava no telhado de ferro corrugado. Houve trovões. Relâmpagos na janela.

“Cristo, Nosso Senhor, ilumina-me com a luz do dia, ilumina minha mente. Cristo, Nosso Senhor, não me deixe nas trevas nem me cegue, você que sabe dar a luz do dia, você que ilumina a noite e dá a luz. Assim fez a Santíssima Trindade que fez e formou o mundo de Cristo, Nosso Senhor, iluminou a Lua, diz; iluminou a Grande Estrela, diz; iluminou a Estrela da Cruz, diz; iluminou a Estrela Gancho, diz; iluminou a Sandália, diz; iluminou o Cavalo” diz.

Quem come o cogumelo cai na sonolência durante a transição de uma modalidade de consciência para outra, numa absorção profunda, num devaneio. Gradualmente, as cores começam a surgir atrás dos olhos fechados. A consciência torna-se consciência de irradiações e refulgências, de um fluxo de padrões de luz que se formam e se desfazem, de correntes elétricas irradiando de dentro do cérebro. Neste momento inicial de despertar, vivenciando o amanhecer de luz no meio da noite, o xamã evoca a iluminação das constelações na gênese do mundo. As descrições mitopoéticas da criação do mundo são temas constantes destas experiências criativas. Desde o início, a visão que suas palavras criam é cosmológica. Os fenômenos subjetivos recebem correlações no mundo natural e elementar. Não se está dentro, mas fora.

“Este velho falcão. Este falcão branco que São João Evangelista segura. Que assobia na madrugada. Assobia à luz do dia. Assobia sobre a água.” De asas abertas, o pássaro anunciador, imagem da ascensão, círculos no céu da manhã, flutuando no vento do espírito acima do terreno primordial que o orador começou a explorar e delinear, sua respiração, suas inalações e exalações, amplificadas como seu ser expandido: uma explicação para a súbita expulsão de ar, os assovios e assobios agudos e misteriosos dos xamãs em seus vôos transcendentais para o além. “Caminho reto, diz. Caminho do amanhecer, diz.

Caminho da luz do dia, diz.” Através dos campos do ser há muitas direções a seguir, as existências são diferentes formas de viver a vida. A ideia de caminhos, que aparece tão frequentemente nos discursos xamânicos dos Mazatecas, advém do facto de estas experiências originárias serem criadoras de intenções. Estar em movimento, percorrendo um caminho, é uma visão expressiva da condição extática. O caminho que o orador segue é aquele que leva diretamente ao seu destino, à realização do seu propósito; o caminho do início revelado pelo sol nascente na hora do pôr-do-sol; o caminho da verdade, da clareza, daquilo que se revela no seu estar ali à luz do dia.

“Onde está a ternura de São Francisco Huehuetlan, diz. Onde está a Santíssima Virgem de São Lucas, diz. Onde está São Francisco Tecoatl, diz. San Geronimo Tecoatl, diz.” Ele começa a nomear as cidades de seu ambiente montanhoso, a dar vida à paisagem pela linguagem e a transformar o real em signos. Não é um mundo imaginário de fantasia que ele está criando, como aqueles que nos acostumamos a ouvir através dos relatos de sonhadores sob os efeitos de tais substâncias químicas psicoativas, terras lendárias de nostalgia, palácios e perspectivas preciosas, mas o mundo real no qual ele vive e trabalha transfigurado por sua jornada visionária e sua expressão linguística em um reino surreal onde o físico e o mental se fundem para produzir o brilho de um significado enigmático.

“Eu sou aquele que fala com a montanha pai. Sou aquele que fala com o perigo, vou varrer nas montanhas do medo, nas montanhas dos nervos”. O outro eu se anuncia, o ego transcendental, o eu da voz, o eu da força em comunicação com a força. Com sua existência intensificada, ele se posiciona por suas afirmações: eu sou quem. A referência simultânea a si mesmo na primeira e na terceira pessoa como sujeito e objeto indica a personalidade impessoal de seus enunciados, enunciados por ele e pelos próprios fenômenos que se expressam através dele. Ele afirma arrogantemente a sua função xamânica de mediador entre o homem e os poderes que determinam o seu destino; é ele quem conversa com tudo conotado por pai: poder, autoridade e origem. Ele é aquele que conhece bem as fontes do medo. A concepção de existência manifestada por suas palavras é de perigo, ansiedade e terror: experiências das quais ele se tornou conhecedor em virtude de seus próprios traumas, de sua vida como caçador e de suas aventuras nas regiões estranhas e secretas da psique. . Onde há pressentimentos e tremores, o curandeiro tranquiliza exorcizando as causas da perturbação. A sua obra reside entre os nervos, não no submundo, mas nas alturas, lugares de tanta angústia como as profundezas, onde a euforia da elevação é acompanhada pelo medo de cair no vazio dos abismos. Talvez seja por isso que, em toda a América Central e do Sul, a concepção de doença nas áreas de selva é a paranóia da bruxaria, enquanto nas áreas montanhosas prevalece a ideia vertiginosa de medo e perda de si. (8)

“Lá em Bell Mountain, diz. Lá está o medo sujo. Lá está o lixo, diz. Lá está a garra, diz. Lá está o terror, diz. Onde está o dia, diz. Onde está o palhaço, diz. O Lorde Palhaço, diz.” Na visão ele vê, em todo o seu ser ele sente um lugar repulsivo de sujeira e contaminação, um local fedorento de pustulência, de podridão e náusea, onde está uma garra que poderia ter tratado com crueldade uma ferida infectada. Suas palavras, emanando maldade, parecem insinuar algum ato horrível que deixou um rastro de culpa. O sinistro paira no ar. Onde? Onde está o palhaço, ele diz. A preocupação e a despreocupação estão ligadas, o pavor e o riso, a partir dos quais captamos uma visão do significado do assunto: durante tais experiências de libertação, é provável que sejam encontradas perturbações da consciência pela consciência, quando a reflexão entra em conflito com a espontaneidade, culpa com inocência. É como se o eu recuasse assustado da sua ebulição, do seu esquecimento, incapaz de suportar a sua despreocupação por muito tempo sem ansiedade. Mas o exuberante jorrar das formas é incessante, neste fluxo, nesta fonte, neste brotar energético da vida, o passado é deixado para trás para o futuro, tudo se renova. Além do bem e do mal está a ludicidade do espírito criativo encarnado pelo palhaço, personagem do acaso, do riso com sua ciência alegre.

“Treze redemoinhos superiores. Treze redemoinhos da atmosfera. Treze palhaços, diz. Treze personalidades, diz. Treze luzes brancas, diz. Treze montanhas de pontos, diz. Treze falcões velhos, diz. Treze falcões brancos, diz. Treze personalidades, diz. Treze montanhas, diz. Treze palhaços, diz. Treze picos, diz. Treze estrelas da manhã.”

A enumeração, pelo que parece ser um processo de associação livre, de redemoinhos, palhaços, personalidades, luzes, montanhas, pássaros e estrelas, é uma expressão de sua inventiva extática. Quer ele diga o que vê ou veja o que diz, sua consciência ativada é um turbilhão de imaginações e luzes coloridas. Por que sempre treze? Porque doze é muitos, mas é um número par, enquanto treze é demais, um exagero, e significa uma multidão. Além do mais, ele provavelmente gosta do som da palavra treze.

A sessão em forma de cogumelo da linguagem cria a linguagem, cria as palavras para fenômenos sem nome. As luzes brancas que às vezes aparecem no céu à noite, ninguém sabe como chamá-las. A mente ativada pelos cogumelos, vinda do centro do mistério, das fontes semânticas mais profundas do humano, inventa uma palavra para designá-los. Os antigos sábios, para descrever as iluminações caleidoscópicas de suas noites xamânicas, traçaram uma analogia entre o interior e o exterior e formaram uma palavra que relacionava o espectro de cores criado pela luz do sol nos borrifos das cachoeiras e nas brumas da manhã com seus experiências conscientes de iluminação extática: estes são os redemoinhos de que ele fala, configurações giratórias de luzes iridescentes que lhe aparecem enquanto ele fala, girando e girando e girando em torno de si mesmo pelos ventos turbulentos do espírito. Os palhaços são personagens frequentes em seu discurso, os cogumelos travessos ganham vida, personificações da alegria, invenções do espontâneo realizando incríveis feitos acrobáticos, imaginações engraçadas de alegria. Personalidades são mais sérias. Outros. Sociedade. Os rostos das pessoas que ele conhece aparecem para ele e depois desaparecem para serem sucedidos pela aparição de mais pessoas. A pluralidade de consciências encarnadas torna-se presente para ele. Multidão. O mundo dele é elementar, onde pássaros cruéis e predadores voam no céu; onde a estrela da manhã brilha no firmamento. Fora do quarto escuro onde ele está falando, as montanhas ficam por toda parte durante a noite.

“Sou aquele que fala com a montanha perigosa, diz. Eu sou aquele que fala com a Montanha das Cumes, diz. Eu sou aquele que fala com o Pai, diz. Eu sou aquele que fala com a Mãe, diz. Onde joga o espírito do dia, diz. Montanha de Água Fria, diz. Montanha do Rio Grande, diz. Montanha da Colheita e da Riqueza, diz. Onde está o terror do dia, diz. Onde está o caminho da madrugada, o caminho do dia.” diz.

É significativo que, embora a experiência psicodélica produzida pelos cogumelos seja de elevada perceptividade, o que eu digo é de importância privilegiada em relação ao que vejo. A escuridão total da sala, isolada do exterior, impossibilita qualquer percepção direta do mundo: condição de interiorização para o seu renascimento visionário em imagens. Nessa escuridão, abrir os olhos é o mesmo que deixá-los fechados. A escuridão está viva com desenhos impalpáveis ​​no ar milagroso. Mesmo as aparências das outras presenças, por modéstia, são protegidas pela obscuridade do olhar demasiado penetrante e revelador da percepção transcendental. Livre da factualidade do dado, a atividade constitutiva da consciência produz visões. É este aspecto de tais experiências, com exclusão de todas as outras, que as levou a serem chamadas de alucinógenas, sem que tenha sido feita qualquer tentativa de distinguir fantasia de intuição. O xamã mazateca, porém, em vez de ficar calado e sonhar, como se esperaria que ele fizesse se a experiência fosse meramente imaginativa, fala. Há momentos em que, em meio ao seu êxtase, assobiando e girando, ele exclama: “Veja como estamos vendo lindos!” – surpreso com as iluminações e padrões que percebe – “Veja como estamos vendo lindos!” . Veja quantas coisas boas de Deus existem. No entanto, o eu que fala enuncia uma acção e uma função, dotadas de uma importância e de uma eficácia que eu sou aquele que vê, pouco mais que uma interjeição de espanto, carece totalmente.

“Eu sou aquele que fala. Eu sou aquele que fala. Eu sou aquele que fala com as montanhas, com as montanhas maiores. Fala com as montanhas, diz. Fala com as pedras, diz. Fala com a atmosfera, diz. Fala com o espírito do dia.” Para os Mazatecas, as montanhas são onde estão os poderes, seus cumes, suas cordilheiras, irradiando eletricidade durante a noite, seus picos e suas bordas oscilando nos horizontes dos relâmpagos. Falar com é estar em contato, em comunicação, em conversa com o espírito animado do inanimado, com o material e o imaterial. Falar com é ser falado. Pela conversão do seu ser, o xamã tornou-se transmissor e receptor de mensagens.

“Eu sou o relâmpago seco, diz. Sou o relâmpago do cometa, diz. Sou o relâmpago perigoso, diz. Sou o grande relâmpago, diz. Sou o relâmpago dos lugares rochosos, diz. Sou a luz de o amanhecer, a luz do dia, diz.” Ele se identifica com os elementos, com o crepitar da eletricidade; ele mesmo é sobre-humano e elemental, suas palavras saem dele como um raio. Faíscas voam entre as conexões sinápticas dos nervos. Ele está iluminado com luz. Ele é luminoso. Ele é força, luz e fala rítmica e dinâmica.

O mundo criado pelas palavras da mulher, articulando a sua experiência, era feminino, materno, doméstico; o discurso masculino do xamã evoca o mundo natural, ontológico. “Ela está implorando por você, essa pobre e humilde mulher”, disse a xamã. “Mulher de huipile, diz. Mulher simples, diz. Mulher que não tem nada, diz.” O homem, consciente de sua virilidade, anuncia: “Eu sou aquele que brilha”.

“Onde está a ravina suja, diz. Onde está a ravina perigosa, diz. Onde está a grande ravina, diz. Onde está o medo e o terror, diz. Onde corre a água lamacenta, diz. Onde corre a água fria, diz .” É uma paisagem de ravinas, montanhas e riachos, ele mapeia com suas palavras, de qualidades físicas com valores emocionais: um terreno do ser em suas variações. Ele evoca a criação, a gênese de todas as coisas desde os tempos das brumas; ele elogia, se maravilha, se maravilha com o mundo. “Deus, o Espírito Santo, ao criar e unir o mundo. Fez grandes lagos. Fez montanhas. Olhe para a luz do dia. Veja quantos animais. Olhe para o amanhecer. Olhe para o espaço. Grandes terras. Terra de Deus o Espírito Santo.” Ele assobia. A alma foi originalmente concebida como respiração. O vento, diz ele, está passando pelas árvores da floresta. O seu espírito vai voando de um lugar para outro pelo território da sua existência, situando os vários locais do mundo nomeando-os, chamando-os à existência visitando-os com as suas palavras: onde está, diz ele, onde está, para criar a geografia da realidade dele. Eu estou, onde está. Ele desdobra as extensões do espaço ao seu redor, aponta e torna presente como se ele próprio estivesse ali. “Onde está o sangue de Cristo, diz. Onde está o sangue do adivinho, diz. Onde está o terror e o susto do dia, diz. Onde está o lago superior, diz. Onde está o grande lago, diz. Lá onde está pássaros grandes voam, diz. O mundo não é apenas paradisíaco por existir, mas também assustador, com perigos à espreita por toda parte. “Montanhas de grandes redemoinhos. Onde está a fonte do terror. Onde está a fonte do medo.” E os diferentes lugares são habitados por presenças, por espíritos residentes, os gnomos, as pessoas pequenas. “Gnomo da Água Fria, diz. Gnomo de Água Clara, diz. Gnomo de Big River, diz. Grande Gnomo. Gnomo da Montanha Queimada. Gnomo do espírito do dia. Gnomo da Montanha Tlocalco. Gnomo do Posto de Marcação. Gnomo Branco. Gnomo Delicado.”

O xamã, diz Alfred Metraux, é “um indivíduo que, no interesse da comunidade, mantém por profissão um comércio intermitente com os espíritos ou é possuído por eles”. (9) De acordo com a concepção clássica, derivada dos visionários extáticos da Sibéria, o xamã é uma pessoa que, por uma mudança na sua consciência cotidiana, entra nos reinos metafísicos do transcendental para negociar com os poderes sobrenaturais e obter um compreensão das razões ocultas dos acontecimentos, das doenças e de todo tipo de dificuldade. Os curandeiros Mazatecas são, portanto, xamãs em todos os sentidos da palavra: o seu meio de inspiração, de abertura dos circuitos de comunicação entre si, os outros, o mundo e os espíritos, são os cogumelos que revelam, pelo seu poder psicoativo, uma outra modalidade de atividade consciente do que o normal. O simples fato de comer cogumelos, entretanto, não faz um xamã. Os indígenas reconhecem que não é para todos que falam; em vez disso, há alguns que têm um desejo de despertar, uma disposição para explorar as dimensões surrealistas da existência, a necessidade de um poeta de se expressar numa linguagem superior à linguagem comum da vida cotidiana: para eles, num sentido muito particular, os cogumelos são o remédio de seu gênio. No entanto, existe uma ideia muito definida entre os Mazatecas sobre o que o curandeiro faz, e uma vez que os cogumelos são o seu meio de se converter à condição xamânica, as características essenciais desta variedade particular de experiência psicodélica devem ser manifestadas pelas suas atividades.

“Eu sou aquele que reúne”, diz o curandeiro para definir sua função xamânica:

“Sou quem fala, quem busca. Sou aquele que procura o espírito do dia. Procuro onde há medo e terror. Eu sou aquele que conserta, aquele que cura o doente. Fitoterapia. Remédio do espírito. Remédio para o clima do dia. Eu sou aquele que tudo resolve. Verdadeiramente você é homem o suficiente para resolver a verdade. Você é aquele que monta e resolve. Você é quem monta a personalidade. Você é aquele que fala com a luz do dia. Você é aquele que fala com terror.”

É imediatamente óbvio que existe uma discrepância entre a concepção indígena do efeito dos cogumelos e as ideias da psicologia moderna: enquanto nos relatórios de investigação experimental se diz que eles produzem despersonalização, esquizofrenia e perturbação, o xamã Mazateca, inspirado por eles, considera ele mesmo dotado do poder de reunir o que está separado: ele pode curar a personalidade dividida, liberando da repressão as fontes da existência para revelar a vida extática do eu integral; e a partir de pistas díspares, pela súbita síntese da intuição, concretizar a solução dos problemas. As palavras com que ele afirma o que é o seu trabalho indicam uma atividade criativa que não está fora do âmbito da razão nem fora do contato com a realidade. Centro de campos de mensagens convergentes, sensível ao significado de tudo o que o rodeia, ele expressa e comunica, em contacto direto com os outros através da fala, um articulador do não dito que liberta pela linguagem e faz compreender. Suas intuições penetram nas aparências até a essência dos assuntos. A realidade revela-se através dele em palavras, como se tivesse encontrado uma voz para se expressar. O xamã é um significante em busca de significado, com a intenção de trazer à luz o que está oculto, o obscuro, o lúcido, intrépido o suficiente para perceber que os maiores segredos estão em regiões de perigo. Ele é o médico não só do corpo, mas de si mesmo, aquele que investiga as origens do trauma, o interrogador do familiar e do misterioso. Na verdade, é como se aquilo que ele comeu, em virtude das possibilidades que lhe descobre, fosse do espírito, pois a percepção torna-se mais aguçada, a fala mais fluente e a consciência do significado é acelerada. Os cogumelos são um remédio ao qual se recorre para resolver perplexidades porque a experiência é criadora de intenções. Concebe-se o caminho a partir da problemática, o sentido da resolução. O xamã, é aquele que está em comunicação com a luz e com as trevas, que sabe da ansiedade e como dissipá-la: o homem da verdade, psicólogo da alma perturbada.

“Onde está o medo? Onde está o terror? Onde ficou o espírito desta criança? Tenho que procurar por isso. Tenho que localizá-lo. Eu tenho que detê-lo. Eu tenho que pegar. Eu tenho que ligar. Tenho que assobiar no meio do terror. Tenho que assobiar através das nuvens cúmulos. Tenho que assobiar com o espírito do dia.”

Mais uma vez surge a noção de alienação, a doença do medo, a perda do eu. A tarefa do xamã, caçador de espíritos extravagantes, é reassociar o dissociado. Ele mesmo explica seu método com estas palavras:

“Sob o efeito dos cogumelos, o espírito perdido é assobiado através do espaço, pois o espírito é alienado, mas por meio dos cogumelos pode-se invocá-lo com um assobio. Se a pessoa está assustada, os cogumelos sabem onde está o seu espírito. São eles que indicam e ensinam onde está o espírito. Assim pode-se falar com ele. O doente vê então o lugar onde ficou o seu espírito. Ele se sente como se estivesse amarrado naquele lugar. O espírito é como uma borboleta presa. Quando é assobiado chega onde se está chamando. Quando o espírito chega na pessoa, o doente suspira e depois é limpo.”

Torna-se evidente pelas palavras usadas para descrever a condição de susto – diz-se que o espírito foi deixado para trás, ficou em algum lugar, foi amarrado e, como veremos mais tarde, aprisionado – que, assim como no etiologia das neuroses, a doença é uma fixação num acontecimento traumático do passado que o indivíduo é incapaz de transcender e do qual deve ser libertado para ser curado. Não é por acaso que os cogumelos, que provocam a fuga do espírito, devam ser considerados o meio de afugentar o que voou. O xamã sai em busca; pela imaginação empática, às vezes até pelo diálogo com a pessoa perturbada, ele obtém uma visão das razões do estado de choque, o que lhe permite tornar as suas invocações relevantes para o caso individual. O paciente, pelo poder mnemônico dos cogumelos, livre de inibições e repressões, relembra o acontecimento traumático, supera a síndrome de repetição que o perpetua em virtude da espontaneidade extática que dele foi liberada, sofre uma catarse e é trazido de volta à vida, integrado novamente.

Outro método de recuperar o espírito perdido, usado assim como a invocação, é a troca por ele. Comerciantes, os Mazatecas concebem todas as transações em termos de comércio, de troca de um valor por outro. Ao longo de seu discurso, o xamã, lojista no cotidiano, sonha com dinheiro, com riqueza, com a libertação da pobreza. “Banco Pai. Banco Grande. Onde está a luz do dia. Córdoba. Orizaba.” Ele cita as cidades onde os comerciantes de Huautla vendem no mercado sua principal safra comercial – o café. “Onde está o Banco Superior, diz. Onde está o Banco Grande, diz. Onde está o Banco Bom, diz. Onde há dinheiro de ouro, diz. Onde há dinheiro de prata, diz. Onde há notas grandes, diz . Onde está o banco do ouro, diz. Não é de surpreender que entre essas pessoas mercantis se considere possível comprar de volta o espírito perdido, recuperá-lo em troca de outro valor.

“Onde está o susto do espírito. Vou pagar ao espírito. Vou pagar o dia. Vou pagar as montanhas. Vou pagar as esquinas.” O xamã se torna um negociador transcendental. Os poderes sobrenaturais lhe dizem o quanto eles exigem como resgate pelo espírito que expropriaram, então ele se compromete a fazer o acordo. Ele mesmo explica desta forma:

O cacau serve para pagar a montanha e para pagar a vida do doente. O Senhor da Montanha pede uma galinha. Este é um assunto importante porque são os Mestres das Montanhas que falam. Essa é a crença dos antigos. A galinha é quem tem que carregar o cacau. Carregado de cacau tem que ir e deixar a oferenda na montanha. Uma vez na montanha, vendo-o carregado, ninguém se preocupa em pegá-lo, pois já pertence aos Mestres da Montanha, onde está perdido para sempre. O cacau que carrega é dinheiro para o Mestre da Montanha. O papel da casca é usado para embrulhar o embrulho e a pena de papagaio que o acompanha. O significado da pena do papagaio é que é como se o próprio papagaio chegasse à montanha. É ele quem chega anunciando com suas canções a chegada da galinha carregada de cacau, a chegada do dinheiro para pagar o que foi pedido, como se estivesse sendo paga a liberdade de um preso. É como se uma autoridade lhe dissesse: “Este preso será libertado mediante uma multa de cem pesos e se não for paga não será libertado”. A transação provavelmente tem o efeito psicológico de amenizar a ansiedade com a garantia de que os poderes irritados por uma transgressão foram apaziguados.

Como vimos, embora esses cantos xamânicos sejam criações de linguagem criadas pela criatividade individual dos falantes, a estrutura dos discursos, frases curtas articuladas em sucessão terminadas pela pontuação da palavra diz, tendem a ser semelhantes de pessoa para pessoa. , determinado em grande parte pela cultura e pela tradição, como é dito em grande parte. Um exemplo é a reiteração invocatória de nomes, característica comum a todas as sessões xamânicas de fala mazatecas. Os nomes repetidos pelos curandeiros indianos, católicos devotos, são os da Virgem e dos santos. Na antiguidade, outras divindades devem ter sido nomeadas, mas sem dúvida, nomear e tornar presentes sempre desempenhou um papel nesses cantos. “Santa Virgem do Santuário. Santa Virgem. São Bartolomeu. São Cristóvão. São Manuel. Santo Padre. São Vicente. São Marcos. São Manuel. Virgem Guadalupe, Rainha do México.” Cantar os santos nomes serve ao poeta oral, como as frases estereotipadas da canção homérica, para manter o canto durante os interlúdios de inspiração; ao mesmo tempo, a enunciação rítmica é uma narração de identidades, uma expressão da interpessoalidade da consciência. Recordando novamente a afirmação de Husserl: A subjetividade transcendental é intersubjetividade. O nome é a palavra para a pessoa. Na mente de quem fala, uma identidade após outra se torna presente, os nomes evocam pessoas, a visão das pessoas evoca nomes. Em vez de nomear os próprios conhecidos, o que poderia ocorrer num discurso dessacralizado, o xamã invoca os santos. A nomenclatura sagrada é uma sublimação da nomenclatura das relações familiares e sociais.

Agora é de seu eu cotidiano, de sua esposa e de sua família que ele fala. “Nossos filhos vão crescer e viver. Entendo. Vejo minha esposa, minha pequena mulher trabalhadora. Eu a amo. Falo com ela através do espaço. Falo com ela através das nuvens. Invoco seu espírito. Nada nos acontecerá.” O homem e a mulher, o casal e os filhos, esse é o seu tema agora que o amor pela família brota no seu coração.

“Nada pode acontecer conosco. Continuaremos vivendo. Continuaremos vivendo na companhia da minha esposa, do meu povo. Não devemos deixar nossa esposa irritada. Fomos recebê-la diante de Deus, diante de Deus, no Santíssimo Sacramento, diante do altar. Houve uma grande massa, houve uma massa de união. Conseguimos respeitar-nos uns aos outros durante quarenta e três dias e por isso Deus dispôs que os nossos filhos nascessem e vivessem. Por isso nossas sementes deram frutos, nossa prole cresceu, prole e semente que Deus Nosso Senhor nos deu.

Aquele que fala e diz, talvez haja rumores de que o trabalho que ele está fazendo, essa pessoa, é ótimo, que o rancho dele é grande. Ele não é presunçoso. Ele é uma pessoa humilde. Ele é uma pessoa trabalhosa. Ele é uma pessoa de problemas. Ele é uma pessoa que já emprestou seus serviços como autoridade. Ele se realizou, seus dons são herdados, é de pessoas importantes: Justo Pastor, Juan Nazareno. Ele é de uma raiz grande, uma raiz importante. Árvores grandes, árvores velhas. Todos os nossos filhos viverão, diz. Terá uma boa colheita. Criarão seus animais. Bem-estar e prazer na sua cana-de-açúcar, nos seus cafezais. Ainda viverei muito tempo. Serei um velho de cabelos grisalhos, continuarei vivendo com minha prole e com meu povo. Meus filhos terão educação e bem-estar. A educação deve ser dada aos meus filhos.”

Ele fala das mudanças pelas quais passa, das transformações e permutações de sua consciência extática no decorrer de sua temporalização – a sensação de jogo, os riscos, os momentos de susto, a presença de luz e vigor. “Vira um jogo de azar, diz. Transforma-se em terror, diz. Transforma-se em espírito, diz.”

Ele assobia, canta e dança. “Aquilo que soa é harpa na presença de Deus e do Anjo da Guarda. Brinca no espaço, toca nas pedras, toca nas montanhas, toca nos cantos, toca o medo, toca o terror, toca o dia.” Ele toca as facetas do mundo como se fossem instrumentos musicais. Coisas e emoções, ao contato de seu canto e toque, são magicamente resolvidas em tonalidades vibrantes e retumbantes, em música-música de montanhas e rochas, de espaço e medo. “Onde soam as árvores, diz. Onde soam as pedras, diz. Onde soam as cestas. Onde soa o espírito do dia.” Ele ouve o toque, o zumbido e o zumbido da sua consciência efervescente e encontra analogias para os sons que ouve nas câmaras de eco dos seus tímpanos: o sussurro do vento através das árvores, o tilintar das pedras, o ranger dos cestos. Ele assobia e canta. Suas palavras surgem da articulação melódica de sons inarticulados, do movimento físico de seu giro rítmico e de seu arrastar na escuridão. “Que lindo eu canto”, ele exclama. “Quão lindo eu canto. Quantos bons prazeres nos concede o Senhor do Mundo.” Ele dança tentando atingir um nível ainda maior de exaltação. “Como eu danço lindamente. Como eu danço lindamente.” A repetição é um dos aspectos do discurso, assim como da pulsação das ondas de energia.

“Esta pessoa é valente”, diz ele sobre si mesmo. “Ele é do povo de Huautla, é Huautecano. Com grande velocidade chama e assobia para os espíritos entre as montanhas; assobia o susto do espírito.” Então ele enlouquece. Ele se joga no ataque xamânico, sua voz muda, passa a ser a de outra, mais áspera, mais gutural, e começa a falar na fala de San Lucas de onde veio seu antigo mestre, uma cidade no meio do milho em alta pico varrido pelo vento, ele relembra seu ancestral espiritual, o antigo sábio que lhe ensinou o uso dos cogumelos gnômicos. “Ele é uma pessoa de potes. Ele é de San Lucas. Uma pessoa de pratos. Ele é uma pessoa de potes e tigelas. Ele é velho.” San Lucas é o local onde é feita toda a cerâmica neolítica preta e sem adornos usada em toda a região. Os homens vão de cidade em cidade carregando nas costas os jarros cheios de samambaias para vendê-los nos mercados das aldeias montanhosas. “Velho de panelas, pratos, tigelas. Essa é a gente do centro. Falam com arrogância com as montanhas. Ele é de San Lucas. Fala com o turbilhão, com o turbilhão do interior.”

Pelo que ele mesmo conta deste velho xamã, aparecem vestígios dos tempos em que o xamã do Povo do Cervo, intermediário entre o homem, a natureza e o divino, era um taumaturgo que presidia à fertilidade e à caça. “Tive que visitar o mesmo curandeiro”, conta, “quando íamos caçar. Tive que preparar para ele um ovo, um ovo para ser oferecido à montanha. você quer. É como se você fosse comprar um animal”, disse ele.

“É ele quem diz quanto se deve pagar. Ele vai deixar o ovo. Depois os cães vão para a floresta e começam a trabalhar. É necessário esfregar tabaco no topo da cabeça dos cães. Mas com o ovo e vinte e cinco grãos de cacau, o mestre tem certeza de que o veado já está comprado. Paguei pelo jogo, diz o verdadeiro xamã. E cada vez que íamos caçar, tínhamos a certeza de encontrar veados, porque um bom xamã de San Lucas pode transformar uma árvore ou uma pedra em veado, uma vez que trocou o seu valor com o Senhor da Montanha. Tínhamos certeza de que encontraríamos cervos porque eles haviam sido pagos.”

“Lá vêm os Huautecanos. Aí vêm os Huautecanos.” Dançando na escuridão, batendo o casaco nas laterais do corpo para imitar o salto de um cervo assustado pela vegetação rasteira, ele, o caçador de espíritos e de caça, latindo como os cães que se aproximam do animal encurralado, conta uma história de caça, falando rapidamente com intensa excitação na voz rouca de alguém de San Lucas que vê de seu ponto de vista os caçadores de Huautla ao longe:

“Ouça como seus cães latem. É um cachorro velho. Aqui eles vêm pela Montanha Triste. Eles estão trazendo sua matança. Há latidos na montanha. Aí vêm eles. Ouça como soam seus braços. Já atiraram em um cervo colorido. Eles pagam as montanhas. Eles pagam os cantos. O cervo foi morto porque os Huautecans pagaram o preço. Eles pagaram o espírito. Pagou a Montanha Careca. Pago a Montanha Oca. Pago a montanha do espírito do dia. Paguei cinquenta pesos. Você não pode fazer o que quiser. É necessário pagar ao Gnomo Branco. Os Huautecans são como palhaços. Eles estão carregando o cervo pelo caminho. Os rifles dos Huautecans são muito bons. Essas pessoas são pessoas importantes. Eles sabem o que estão fazendo. Eles sabem como chamar o espírito. Os Huautecans chamam seus cães tocando uma buzina. Os cães já estão chegando perto.”

A história chega quase no final de seu discurso. O efeito dos cogumelos dura aproximadamente seis horas; geralmente é impossível dormir até o amanhecer. Em todas essas aventuras, no final, surge a ideia de um retorno de onde se foi, o retorno à consciência cotidiana. “Volto para recolher essas crianças sagradas que serviram de remédio”, diz o xamã, chamando seus espíritos de volta da fuga para o além, a fim de voltarem a ser o que eram normalmente. “Palhaços idosos. Palhaços brancos.” Ele chama os cogumelos de crianças santas e palhaços, relacionando-os, por meio de suas personificações, a seres jovens e alegres, brincalhões, criativos e sábios.

“Vem chegando a aurora da madrugada e a luz do dia. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pelo sinal da Santa Cruz, livra-nos Nosso Senhor dos nossos inimigos e de todo o mal. “

O que começou nas profundezas da noite com a iluminação das constelações interiores nos espaços da consciência termina com a chegada da luz do dia após uma noite de fala contínua e animada. “Eu sou quem fala”, diz o xamã mazateca.

“Eu sou aquele que fala. Eu sou aquele que fala com as montanhas. Eu sou aquele que fala com os cantos. Eu sou o médico. Eu sou o homem dos remédios. Eu sou. Eu sou aquele que cura. Eu sou aquele que fala com o Senhor do Mundo. Estou feliz. Eu falo com as montanhas. Eu sou aquele que fala com as montanhas dos picos. Eu sou aquele que fala com a Montanha Calvo. Eu sou o remédio e o curandeiro. Eu sou o cogumelo. Eu sou o cogumelo fresco. Eu sou o grande cogumelo. Eu sou o cogumelo perfumado. Eu sou o cogumelo do espírito.”

Os Mazatecas dizem que os cogumelos falam. Ora, os investigadores (10) de fora deveriam ter ouvido melhor os sábios indígenas que tinham experiência do que eles, os brancos da razão, não tinham. Se os cogumelos são alucinógenos, por que os indígenas os associam à comunicação, à verdade e à enunciação do sentido? Uma alucinação é uma falsa percepção, seja visual ou audível, que não tem nenhuma relação com a realidade, uma ilusão ou delírio fantástico: o que aparece, mas não tem existência exceto na mente. Os sonhos vívidos da experiência psicodélica sugeriam alucinações: tais imaginações ocorrem nessas condições visionárias, mas são fenômenos marginais e não essenciais de uma liberação geral da atividade espontânea, extática e criativa da existência consciente. As alucinações predominaram nas experiências dos investigadores porque eram experimentadores passivos do efeito transformador dos cogumelos. Os xamãs indígenas não são contemplativos, são trabalhadores que se expressam ativamente através da fala, criadores empenhados num esforço de divulgação ontológica e existencial. Para eles, a condição xamânica provocada pelos cogumelos é intuitiva e não alucinatória. O que se imagina tem uma relação ética com a realidade, é muitas vezes o caminho a ser seguido. Ver é perceber, compreender. Mas ainda mais importantes do que as visões para o xamã mazateca são as palavras tão reais quanto as realidades do real que pronunciam. É como se os cogumelos revelassem uma atividade primordial de significação, pois uma vez que o xamã os comeu, ele começa a falar e continua a falar durante toda a sessão xamânica de linguagem extática. O fenômeno mais característico do efeito dos cogumelos é a capacidade inspirada de falar. Aqueles que os comem são homens de linguagem, iluminados pelo espírito, que se autodenominam os que falam, os que dizem. O xamã, cantando em uma canção melódica, dizendo diz no final de cada frase do dito, está em comunicação com as origens da criação, as fontes da voz e as fontes da palavra, relacionadas com a realidade a partir do coração de seu êxtase existencial pela mediação ativa da linguagem: a articulação do sentido e da experiência. Chamar de alucinatórias essas experiências transcendentais de luz, visão e fala é negar que sejam reveladoras da realidade. Nos antigos códices, nos livros coloridos, sentam-se as figuras, hieróglifos de palavras, segurando nas mãos os cogumelos da linguagem aos pares: signos de significação.

 


(2). A inspiração produzida pelos cogumelos é muito parecida com a descrita por Nietzsche em Ecce Homo. Desde a afirmação de Rimbaud, “eu sou outro”, a linguagem espontânea, falar ou escrever como se fosse ditado (para usar a expressão comum para uma atividade muito difícil de descrever em sua verdade) tem sido de interesse primordial para filósofos e poetas. Sap o mexicano, Octavio Paz, num ensaio sobre Breton, “O inspirado, o homem que fala na verdade, não diz nada que é seu: da sua boca fala a linguagem”. Octavio Paz, “André Breton o La Busqueda del Comienzo”, Corriente Alterna (México: Siglo Veintiuno, 1967), p. 53.

(3). Os discursos xamânicos estudados neste ensaio foram gravados em fita cassete. Agradeço as traduções a uma mulher bilíngue de Huautla, a senhora Eloina Estrada de Gonzalez, que ouviu as gravações e me contou, frase por frase, em espanhol, o que o xamã e a xamã diziam em sua língua nativa. Até onde sei, as palavras de nenhum desses poetas orais foram publicadas até agora. São eles a senhora Irene Pineda de Figueroa e o senhor Roman Estrada. O texto completo de cada discurso ocupa noventa e duas páginas. Para os propósitos deste ensaio, selecionei apenas as passagens mais representativas.

(4). “… a palavra grega que significa poesia foi empregada pelo escritor de um papiro alquímico para designar a própria operação de ‘transmutação’. Que raio de luz! Sabe-se que a palavra ‘poesia’ vem do verbo grego que significa ‘fazer.’ Mas isso não designa uma invenção comum, exceto para aqueles que a reduzem ao absurdo verbal. Para aqueles que conservaram o sentido do mistério poético, a poesia é uma ação sagrada, isto é, uma ação que excede o nível comum da ação humana. . Tal como a alquimia, a sua intenção é associar-se ao mistério da ‘criação primordial’…” Michel Carrouges, Andre Breton et les donnees fondamentales du surrealisme (Paris: Editions Gallimard, 195O).

(5). Claude Lévi-Strauss, “A Eficácia dos Símbolos”, Antropologia Estrutural (Doubleday Anchor, 1967), pp.

(6). “Em certo sentido, como diz Husserl, a filosofia consiste na restituição de um poder de significação, um nascimento de sentido ou um sentido selvagem, uma expressão de experiência pela experiência que esclarece particularmente o domínio especial da linguagem.” Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l’invisible (Paris: Editions Gallimard, 1964).

(7). A história de como iniciou a sua carreira xamânica, juntamente com as informações a seguir sobre o susto, os pagamentos às montanhas e as práticas relacionadas com a caça, são citações de uma entrevista com o Sr. Roman Estrada a quem interroguei através de um intérprete: o a conversa foi gravada e depois traduzida da língua nativa pela Sra. Eloina Estrada de Gonzalez, sobrinha do xamã, que atuou como questionadora na própria entrevista.

(8). “Finalmente, a doença pode ser consequência de uma perda da alma, desviada ou levada por um espírito ou revenant. Esta concepção, amplamente difundida pela região dos Andes e do Gran Chaco, parece rara na América tropical. ” Alfred Metraux, “Le Chaman des Guyane et de l’Amazonie,” Religions et magies indiennes d’Amerique du Sud (Paris: Editions Gallimard, 1967).

(9). Ibidem.

(10). É necessário expressar nossa dívida para com R. Gordon Wasson, cujos escritos, a obra mais confiável sobre os cogumelos, me informaram sobre sua existência e me contaram muito sobre eles. “Suspeitamos”, escreveu ele, “que, em seu sentido integral, o poder criativo, a mais séria qualidade distintiva do homem e uma das mais claras participações no Divino… está de alguma forma conectado com uma área do espírito que os cogumelos são capazes de abrir.” R. Gordon Wasson e Roger Heim, Les Champignons halhlcinogenes du Mexique (Paris: Museu Nacional d’Histoire Naturelle, 1958). Pela minha própria experiência, descobri que essa afirmação é particularmente verdadeira.

A curandeira mexicana que trouxe à tona os cogumelos mágicos para os EUA com a ajuda de um executivo de banco

Nas colinas de Oaxaca, Maria Sabina usava psicodélicos para curar

Maria Sabina tornou-se acidentalmente uma xamã nos anos 1960 e 70. (Print do Documentário deMaría Sabina. Mujer Espíritu, 1978)

“Eu percebi que os jovens de cabelos longos não precisavam de mim para comer os pequeninos. As crianças os comiam em qualquer lugar e a qualquer hora, e não respeitavam nossos costumes. ”
– Maria Sabina

Os seres humanos consomem a psilocibina, o composto psicodélico natural dos cogumelos mágicos, há mais de 10.000 anos. Até meados do século 20, o contexto era religioso. Isso mudou em 29 de junho de 1955, quando um vice-presidente do banco J. P. Morgan chamado R. Gordon Wasson viajou para o México com um fotógrafo para a casinha de barro da curandera mazateca Maria Sabina e tornaram-se, nas palavras de Wasson, os “primeiros homens brancos da história que se tem notícia a comer os cogumelos sagrados. ”

O artigo subseqüente na revista Life escrito por Wasson em 1957, “Seeking the Magic Mushroom” abriu uma caixa de Pandora que levaria, entre outras coisas, ao nascimento da contracultura psicodélica americana, a profanação do ritual com cogumelos, e, finalmente, a proibição da psilocibina em grande parte do mundo. O artigo também acabou por conduzir à ruína de Sabina uma vez que os ocidentais passaram a visitá-la aos montes.

As intenções de Wasson eram sinceras, talvez até ingênuas. Etnomicologista amador, passou os últimos trinta anos viajando com sua esposa Valentina, documentando diferentes perspectivas culturais em relação aos cogumelos selvagens.

“Nós não estávamos interessados no que as pessoas aprendiam sobre cogumelos pelos livros, mas pelo conhecimento transmitido entre as gerações”, afirmou Wasson.”Acabou que tínhamos nos deparado com uma nova área do conhecimento”

Exemplares dos cogumelos do tipo Psylocibe

Wasson descobriu que muitas culturas ao redor do mundo celebravam os cogumelos e dedicavam elaboradas cerimônias religiosas em torno de seu consumo. Ele buscou descobrir quais os tipos de cogumelos eram adorados e o por quê. Ele estava especialmente interessado nos astecas e nos primeiros relatos das expedições missionárias espanholas que descreviam a cerimônia asteca do uso do cogumelo teonanacatl, ou “carne de Deus.”

Wasson fez várias viagens para o México em busca daqueles que ainda realizavam o ritual do cogumelo, mas não foi até 1955, numa aldeia de Oaxaca conhecida por Huautla de Jiménez, que ele foi bem sucedido. Ele visitou a prefeitura e pediu a um funcionário se poderia ajudá-lo a aprender os segredos do cogumelo divino. “Nada poderia ser mais fácil”, respondeu o funcionário. O oficial levou Wasson a uma montanha onde os cogumelos cresciam em abundância, e depois para um terreno mais elevado, onde Maria Sabina vivia.

Maria Sabina era uma curandeira e xamã bastante respeitada na aldeia.Ela consumia cogumelos com psilocibina regularmente desde quando tinha sete anos de idade, e tinha realizado a cerimônia de cogumelo conhecida como “velada” por mais de 30 anos antes de Wasson chegar.

A intenção da velada, que durava toda a noite, era para a comunhão com Deus a fim de curar os doentes. Os espíritos, se efetivamente contactados, diziam a Sabina a natureza da doença e a forma como poderia ser curada. Vômitos pelos aflitos era considerada uma parte essencial da cerimônia. Cada participante do ritual ingeria cogumelos com Sabina (que normalmente ingeria o dobro) cantado invocações para chamar o divino.

Maria e seu filho Aurelio sob a influência de cogumelos. Huatla de Jimenez 1955 (LIFE)

“Eu não sou boa?” ela perguntava aos espíritos. “Eu sou uma mulher criadora, uma mulher estrela, uma mulher lua, uma mulher cruz, uma mulher do céu. Eu sou uma pessoa nuvem, uma pessoa de gota-de-orvalho-na-grama “.

Católica ao longo da vida, Sabina misturava elementos cristãos em rituais mazatecas ao guiar os participantes através de suas visões. Surpreendentemente, e em contraste com seus antecessores, o bispo local não considerou o ritual de Sabina herético. “A igreja não é contra esses ritos pagãos – se eles podem ser chamados assim,” disse o padre Antonio Reyes Hernandez.”Os sábios e curandeiros não competem com a nossa religião. Todos eles são muito religiosos e comparecem à nossa missa, até mesmo Maria Sabina”.

Sabina estava apreensiva com a chegada de Wasson, mas concordou em realizar o ritual após ser convencida pelo funcionário da aldeia, que era um amigo de confiança.Wasson e seu fotógrafo tiveram uma trip durante toda a noite com Sabina realizando a velada, enquanto tinham suas mentes expandidas. “Pela primeira vez a palavra êxtase assumiu um significado real”, Wasson escreveu mais tarde. “Pela primeira vez, essa expressão não quis dizer o estado de espírito de outra pessoa.”

A relutância de Sabina em apresentar a cerimônia a Wasson tinha menos a ver com o fato de ele ser estrangeiro e mais a ver com o fato de Wasson e seu colega não necessitarem de cura.

“É verdade que Wasson e seus amigos foram os primeiros estrangeiros que vieram para a nossa cidade em busca das santas crianças e que eles não as tomaram porque sofriam de qualquer doença”, ela lembrou .”A razão era que eles vieram para encontrar Deus”.

Wasson retornou aos Estados Unidos com uma baita de uma história. Ele despertou o interesse da revista Life, que financiou mais viagens até a aldeia para relatar e tirar fotografias do ritual mazateca. Acabou também por atrair a atenção da CIA, que estava no meio do seu programa secreto de controle de mentes utilizando drogas, o chamado Projeto MK ULTRA . Wasson involuntariamente se tornou um agente do programa após a CIA secretamente financiar suas viagens para o México ao longo de 1956 sob a proteção do Fundo Geschickter for Medical Research, uma organização de fachada.

 

 

 

Excertos do artígo de 1957 escrito por Wassson publicado na revista Life

Seeking the Magic Mushroom” se viralizou após a sua publicação em 1957. Documentos divergem quanto a fato de Sabina ter aprovado ou não o uso de suas fotografias no artigo de Wasson, que por sua vez mudou o nome de Sabina para Eva Mendez e não revelou seu nome e nem a localização da aldeia.
Wasson testemunhou nove cerimônias de cogumelos no total, todos conduzidos por Sabina. Em uma viagem, ele foi acompanhado pelo renomado micologista francês Roger Heim, que identificou as espécies de cogumelos mágicos e enviou amostras para Albert Hofmann, o químico suíço que há vinte anos havia sintetizado o LSD . Hofmann foi capaz de isolar a estrutura química da psilocibina e criar uma versão sintética. Sua empresa farmacêutica Sandoz começou a enviar doses a instituições de pesquisa e clínicas em todo o mundo.

Dr. Timothy Leary e seu cúmplice de Harvard, Dr. Richard Alpert (Dying to Know)

O psicólogo Dr. Timothy Leary, uma estrela acadêmica em ascensão em Harvard, viajou para Cuernavaca no México, em 1960, depois de ter lido o artigo. Apesar de seu sucesso profissional, ele se descreve durante este período como “um empregado institucional anônimo que dirigia para o trabalho todas as manhãs em uma longa fila de carros e voltava para casa todas as noites e bebia martinis… Como vários outros milhões da classe média, robôs, intelectuais liberais.” Ele comprou alguns cogumelos de uma curandeira local e, em vez de participar de um ritual de cogumelos, os ingeria à beira da piscina de sua casa de praia.

“Eu aprendi mais sobre meu cérebro e suas possibilidades e mais sobre psicologia nas cinco horas depois de tomar estes cogumelos do que nos últimos 15 anos estudando e fazendo pesquisas.” – Dr. Timothy Leary

Leary voltou à Harvard e, depois de garantir suas doses de psilocibina com Sandoz, iniciou o Projeto Psilocibina em Harvard com seu colega Dr. Richard Alpert. Aldous Huxley, com o seu costumeiro interesse em estados alterados de consciência, participou do trabalho.

Vitral da Marsh Chapel, na Universidade de Boston, onde Leary e Alpert administraram testes de psilocibina em alunos que se voluntariavam

Leary e Alpert desenvolveram conceitos pioneiros na terapia psicodélica, tais como o set e setting .Eles testaram se a ingestão de psilocibina poderia reduzir a reincidência em presidiários (no Experimento Concord Prison ) e catalisar experiências religiosas em estudantes de teologia (no Experimento Marsh Chapel Good Friday). Os resultados reforçaram o potencial místico e terapêutico da psilocibina, mas as experiências foram mais tarde desconsideradas devido a metodologia pouco sólida, assim como a omissão de detalhes relacionados com a ansiedade intensa experimentada por muitos dos participantes.
A tendenciosidade de Leary e seus colegas para enfatizar os aspectos positivos da experiência psicodélica, enquanto minimizavam os negativos traria consequências profundas, uma vez que os psicodélicos saíram dos laboratórios e chegaram às ruas de San Francisco, Palo Alto e Cambridge, Massachusetts no início de 1960.
“Alguns dos motivos que levaram ao fim das pesquisas com psicodélicos e os tiraram das mãos dos médicos e terapeutas”, escreveu o pesquisador de psicodélicos Rick Döblin, “pode ser atribuída em parte aos milhares de casos de pessoas que tomaram psicodélicos em condições adversas e não estavam preparados para os aspectos assustadores de suas experiências e acabaram em quartos de emergência nos hospitais”.

A festa chegou ao fim para Alpert e Leary em maio de 1963

Leary e Alpert estava fazendo mais do que simplesmente testando psicodélicos em ambientes experimentais controlados. Eles tomavam grandes dosagens todo fim de semana e recomendavam aos seus alunos a fazer o mesmo. Uma vez que a notícia chegou às autoridades, Leary e Alpert foram demitidos. Logo depois, Leary começou a sua campanha estimulando a juventude norte americana com “Tune in, Turn on, and Drop Out.” (expressão que em português seria algo do tipo “Sintonize, Se Ligue e Vai Fundo.”) Alpert viajou para a Índia e voltou barbudo, vestindo um dhoti, e chamando a si mesmo de Ram Dass. Em 1966, a psilocibina e o LSD se tornaram ilegais nos Estados Unidos.

 

Beatniks, hippies, celebridades como Bob Dylan e John Lennon, cientistas e pesquisadores de todas as frentes tumultuavam a aldeia de Huautla de Jiménez depois do artigo publicado na revista Life. Sabina recusou alguns, embora frequentemente expressasse suas dúvidas a cerca da iniciação de Wasson aos cogumelos, e sempre enfatizou sua visão sobre o verdadeiro propósito do cogumelo.
A publicidade foi desastrosa para a comunidade mazateca, que culpava Sabina por trazer desgraça para a aldeia e profanar o ritual da velada. A casa de Sabina foi incendiada, e federales frequentemente invadiam sua casa, acusando-a de vender drogas para estrangeiros. Hippies alugavam quartos em aldeias vizinhas. Turistas tinham bad trips e deliravam nus pela cidade.
Alguém pode se perguntar porque Sabina recusou tão poucos estrangeiros. Alguns relatos atribuem isso à sua bondade, outros a uma aceitação resignada de seu novo papel como embaixadora cultural do ritual de cogumelos mazateca. Ela também era conhecida por cobrar ocasionalmente os turistas por seus serviços.

O legado de Sabina trouxe turistas ao México por décadas

Na década de 1970, as autoridades mexicanas proibiram o uso de cogumelos com psilocibina. O fluxo de turistas diminuiu, mas aos olhos de Sabina, o estrago já estava feito.
“A partir do momento em que os estrangeiros chegavam para procurar Deus, as santas crianças perderam sua pureza”, disse ela.”Elas perderam a sua força; os estrangeiros as estragaram. A partir de agora elas não serão mais boas. Não há remédio para isso. ”
Wasson, por sua vez, concordou. Ele expressou remorso durante o resto de sua vida por seu papel na popularização do uso recreativo de cogumelos mágicos. “A prática levada em segredo durante três séculos ou mais foi agora arejada”, escreveu ele. “E aeração significa o fim.”
Sabina morreu sem dinheiro algum e com 91 anos em 1985. Em Oaxaca, hoje, pode-se encontrar a sua imagem sendo comercializada em camisetas, restaurantes e táxis.

 

Mais de quarenta anos depois da investigação sobre seus efeitos terapêuticos, os cogumelos mágicos continuaram banidos e estão agora a serem usados de uma maneira muito mais perto daquela que María Sabina considerava seu verdadeiro propósito: curar os doentes.

Em ensaios clínicos em todo o mundo, centenas de pacientes com câncer, viciados em drogas, e aqueles que sofrem de ansiedade e depressão estão relatando profunda mudança de vida e experiências místicas.Para muitos participantes, os benefícios de uma dose de cogumelos são de longa duração. Num estudo de 2006 buscando o potencial da psilocibina para catalisar experiências religiosas liderada pelo Dr. Roland R. Griffiths, mais de 70% dos participantes auto-avaliaram a experiência como uma das cinco mais importantes em suas vidas. Quase um terço a classificaram como a mais importante.
Em estudos conduzidos pela NYU e Johns Hopkins, cujos resultados foram publicados simultaneamente em novembro de 2016, cerca de 80% dos pacientes com câncer mostraram reduções clinicamente significativas na ansiedade e depressão que chegavam a durar cerca de oito meses após a dose inicial.

Uma sessão de estudos com psilocibina em John Hopkins

Aos participantes dos estudos foi administrada psilocibina em um cálice e eram guiados através da experiência com os olhos vendados e ouvindo uma música calma. Eles eram recomendados a “confiar, deixar ir e estar aberto.”
Os pesquisadores alertaram que os resultados positivos não devem ser tomados como um endosso do uso recreativo de cogumelos mágicos:

Os resultados positivos do estudo levam a preocupação de alguns, pelo fato de que irão levar ao aumento do uso experimental dessa substância pelos jovens de uma forma incontrolada e não monitorada, a mesma que levou a casualidades nas três últimas décadas.

No entanto, os pesquisadores concluem que “descobrir como esses estados alterados de consciência mística surgem no cérebro poderiam ter grandes possibilidades terapêuticas … Seria cientificamente míope não estudá-los mais a fundo.”
FONTE AHMED KABIL


Agradecemos imensamente a tradução feita pela colaborador Pedro Reis.
Seja você também um colaborador, entre em contato:

equipemundocogumelo@gmail.com

A Matriz Transcendental do Universo

O mergulho intelectual de Aldous Huxley na galáxia mitológica das grandes religiões do mundo resultou no livro “A Filosofia Perene”, de 1964. Baseado nos “relatos em primeira mão” dos ditos “homens santos” ou “profetas”, a obra expõe a ideia de uma doutrina comum e estável como base de toda diversidade desses sistemas religiosos que emergiram em diferentes tempos e lugares ao longo da história humana – a essa doutrina universal Huxley chamou de “Filosofia Perene”.

Na visão de Huxley, a Filosofia Perene representa o conhecimento deixado por alguns sábios e profetas que conheceram diretamente a natureza da “Realidade substancial ao mundo multiforme”, o “Princípio Absoluto de toda existência”. A experiência direta desses reconhecidos expoentes com a natureza da realidade apontaria persistentemente para um consenso acerca de uma base eterna e transcendental do ser. A ideia central da Filosofia Perene é, portanto, um retrato da sua característica histórica – ou seja, o fator perene em toda mitologia religiosa é a referência a um fator perene como origem de toda manifestação temporal. Em outras palavras, a ideia persistente de toda religiosidade humana é sobre uma dimensão una e eterna no centro de toda existência multiforme e transitória, sendo o conhecimento direto desse fato – claramente expresso na fórmula sânscrita “tat tvam asi” (Tu és Aquilo) – a finalidade de todo ser humano, para assim “encontrar Aquilo que realmente é”.

No ocidente, costumamos nos referir a algo semelhante através da palavra “alma”. Originada no latim anima, é equivalente da palavra grega psyché, que significa “sopro”, e foi tomada por Platão como metáfora para um princípio universal de movimento da vida. Mas, à luz dessas observações, a visão comum de “alma” utilizada no ocidente começa a parecer distorcida, já que normalmente é entendida como indicativo de individualidades eternas, isoladas e independentes “habitando” os seres orgânicos. Esse caráter universal, não-local e multiforme da alma, enfatizado pelos xamãs, sábios e profetas do passado, é deixado de lado em nossa cultura obcecada com a preservação da individualidade.

Mas, dentro da visão original da Filosofia Perene, a Alma – ou a Base do SER – é a matriz transcendental de todo Universo; uma unidade transdimensional multifacetada de onde tudo vem, para onde tudo vai e onde tudo está – antes, após e além da existência transitória no mundo ordinário -, e que contém em si própria todas as possibilidades da existência universal. Cada uma das miríades de manifestações do nosso universo pode ser vista como a amplificação – ou a “canalização” – de um aspecto muito específico dessa Alma universal, se aproximando daquilo que o biólogo Rupert Sheldrake, na sua tentativa de compreender a origem das formas no mundo natural, chamou de “campos morfogenéticos”.

O legado dos sábios e profetas nos diz que é possível para a consciência conhecer diretamente a natureza transcendental da Alma, mas esse conhecimento superior apenas pode ser expresso em metáforas – que no terreno religioso se transformam em mitos. A noção de um substrato eterno que dá suporte a toda manifestação temporal está presente em todos os tempos e lugares, e já foi expressa de muitas formas diferentes, variando de acordo com a cultura em que é modulada. Joseph Campbell disse que a origem e a finalidade central de qualquer mitologia é a experiência de integração entre esses dois aspectos paradoxais da existência. Huxley parece seguir a mesma lógica, afirmando que os verdadeiros ensinamentos espirituais representam relatos daqueles que “conheceram diretamente a Deus”. A idéia de “contato com Deus” é, precisamente, uma referência metafórica sobre a experiência direta de integração entre o reino da eternidade e a dimensão do tempo/espaço, ou entre o mundo perene e o mundo perecível.

“Ver o Universo num grão de areia, e o Céu em uma flor silvestre, ter o infinito nas palmas das mãos e a Eternidade em uma hora.” – William Blake.

“Para medir a alma temos que medi-la com Deus, pois a Base de Deus e a Base da Alma são unas e idênticas” – Eckhart

Referências:

– A Filosofia Perene – Aldoux Huxley

– Joseph Campbell – O Poder do Mito

– Rupert Sheldrake e o os “campos morfogenéticos”

Usos Espirituais do MDMA nas Religiões Tradicionais

A maioria dos professores espirituais são fortemente contra o uso de qualquer droga. Alguns alertam que as drogas irão desfazer anos de progresso árduo em direção a iluminação, enquanto outros dizem que o estado induzido pela droga pode parecer o mesmo, mas está em um nível inferior, e isso pode induzir as pessoas ao erro. Alguns poucos acreditam que um verdadeiro estado místico possa ser induzido por drogas, mas pensam que seu resultado é diminuído.

Entretanto, existem alguns professores que acreditam no valor do MDMA, tanto para a iluminação pessoal, quanto para o treinamento de outros. Eu entrevistei quatro: um monge Beneditino, um rabino, um monge Rinzai Zen e um monge Soto Zen. Também obtive comentários de outro monge Beneditino. Esses são lideres religiosos ativos que escrevem livros espirituais, ensinam prática espirituais e dão palestras públicas sobre assuntos espirituais, mas, exceto pelo último, nunca admitiram publicamente suas visões sobre o valor espiritual do MDMA. O monge Soto Zen, Pari, concorda que “Drogas não combinam com meditação. ” Entretanto, ele diz “Meditação combina maravilhosamente bem com drogas. ” Não há contradição: drogas perturbam padrões adquiridos na meditação, mas sob o efeito de MDMA é fácil meditar. “Ficar quieto enquanto toma MDMA te ajuda a aprender a sentar, provendo um conhecimento experiencial. ” Mas é um bom método para aprender? “É como um remédio. Se olharmos para o nosso estado mental e do planeta, devemos ser gratos por quaisquer meios que possam ajudar. Entretanto, assim como todo bom medicamento, também pode ser mal-usado. ” Todos eles acreditam que se beneficiaram do uso do MDMA, que pode ajudar a produzir uma experiência mística válida, não causa dano a mente e é útil para ensinar os estudantes. A razão para que eles não promovam seu uso é que eles devem seguir as politicas de suas ordens religiosas, e essas naturalmente obedecem a lei. Eu achei fascinante ouvir o quão similar suas experiências eram, ainda que diferentes para qualquer outra pessoa. Quando perguntei sobre o que eles achavam sobre o uso de MDMA por ravers, suas opiniões divergiram. O Beneditino sente que é profano pessoas tomarem drogas ao não ser que sejam espiritualmente orientadas, enquanto o rabino pensa que o sentimento de unidade e enxergar a vida por uma nova perspectiva é uma experiência igualmente válida para os ravers.

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Eu levei Bertrand, o monge Rinzai Zen, para uma festa rave onde ele tomou MDMA—anteriormente ele só havia tomado enquanto meditava. Quando sentiu o efeito, ele brilhou e anunciou “Isso é meditação! ” Longe de ser estranho para a sua experiência, ele viu que todos estavam totalmente absortos em suas danças sem consciência própria ou dialogo interno, e isso era a verdadeira essência da meditação.

O rabino não estava apenas ciente de que dançar sob o efeito do MDMA podia ser uma experiência espiritual, mas também que o misticismo estava agora mais prontamente disponível nas pistas de dança do que em igrejas, mesquitas ou sinagogas. Ele sugeriu que se sacerdotes experimentassem a droga, eles não somente apreciariam seu valor espiritual, mas seriam capazes de entender melhor os jovens. Pari fez a seguinte analogia: “É como um escalador andando pelas montanhas que está perdido na névoa e impedido de ver o pico que se dispôs a escalar. De repente a névoa se dissipa e ele experiência a realidade do pico, e ganha senso de direção. Mesmo que a névoa surja outra vez, e ainda que o caminho seja longo e árduo, o vislumbre é geralmente uma enorme ajuda e encorajamento.

Entrevista com um monge Beneditino

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Irmão Bartholemew é um monge que usou MDMA cerca de 25 vezes num período de 10 anos como ajuda para sua experiência religiosa. Normalmente ele toma sozinho, mas também tomou junto a um pequeno grupo de pessoas com objetivos semelhantes. Ele descreve o efeito como uma abertura de uma ligação direta com Deus. Enquanto usando o MDMA, ele experienciou uma compreensão muito profunda da compaixão divina. Ele nunca perdeu a claridade deste insight, e permanece como um reservatório onde ele pode recorrer. Outro beneficio de seu uso de MDMA foi que a experiência da presença divina lhe vinha sem esforço. O efeito se manifestava em sua forma elemental na respiração, o sopro divino. Após seu despertar, ele começou a descobrir a validade de todas as outras grandes experiências religiosas.

Ele acredita que a “ferramenta” do MDMA pode ser usada em níveis diferentes como uma ferramenta de pesquisa ou espiritual. Quando usado apropriadamente, é quase um sacramento. Tem a capacidade de lhe colocar no caminho certo para a união divina com ênfase no amor, amor vertical, num sentido de ascendência. Entretanto, esse ganho só é possível quando se olha na direção correta. Não deveria ser usado ao não ser que esteja realmente a procura de Deus, e não é apropriado para hedonistas ravers adolescentes. O lugar onde é ingerido deve ser quieto e sereno. Deve haver também uma ligação intima entre aqueles que compartilham a experiência. A experiência deve ser perseguida com uma certa dose de supervisão porque o MDMA produz uma tendência de que sua atenção se disperse. Existe também o perigo de delapidar a experiência ao ficar preso em sentimentos de euforia, ao invés de alcançar o reino espiritual. Entretanto, embora possa ser inestimável, não deve se tornar necessário, uma vez que a necessidade de uma droga lhe nega a liberdade.

[ Eu enviei ao Irmão Bartholemew uma cópia do texto acima para sua provação, e ele adicionou o seguinte: ]

Um elemento que você pode querer adicionar é o da intimidade da voz na conversação. MDMA sempre me empurra em um espaço de intimidade na conversação. Existe uma qualidade especial nela. Você sente uma sensação de peso, uma sensação de peso nesta conversação, de algo profundo, tão sério quanto a própria vida. É um espaço interno onde não há máscaras, sem pretensões, absolutamente aberto e honesto. Não é uma intimidade erótica, mas sim filosófica e mística. Isso faz algum sentido? Você tem consciência de que se trata de uma comunicação interna raramente alcançada na conversa comum. Realmente não há palavras adequadas para descrever esse estado de percepção, bastando dizer que é essencial em minha experiência.

Entrevista com o rabino na Sinagoga Oeste de Londres

Após uma conversa que tocou na necessidade da preparação para a morte, eu perguntei ao rabino uma questão sobre o valor do MDMA para os pacientes terminais (referência ao estudo do Dr. Charles Grob em Los Angeles.) Ele respondeu que o MDMA possui tanto valor para os moribundos, quanto aos ravers, permitindo assim a sensação de unidade, possibilitando ver a vida de uma nova perspectiva. A proibição não é a melhor maneira de se lidar com uma substância que pode ser sacramental da mesma forma como a comunhão do vinho. Essas substâncias podem despertar sensações estranhas que podem ser desconfortáveis, mas são essenciais para uma compreensão mais profunda de nós mesmos. Entretanto, existem outros métodos para alcançar esses sentimentos, como aqueles descritos em um livro chamado Mind Aerobics.

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No final, o rabino me chamou para vir para o palco. Ele me levou em uma escada da saída de incêndio, fora dos ouvidos de sua comitiva, e me disse que ele não podia arcar com o risco de prejudicar o seu projeto, apoiando publicamente o uso de drogas ilegais, mas que ele tinha o meu livro (ele o elogiou.) Ele acreditava que o MDMA e outros psicodélicos poderiam ser usados para um imenso beneficio, não apenas para a consciência pessoal, mas pelo bem de Gaia e o bem-estar cósmico do planeta. Ele deu a entender que a experiência com MDMA possuía a mesma qualidade e valor potencial que outras experiências místicas, e sugeriu que os sacerdotes experimentassem a droga, tanto para entender os jovens, como para validar as experiências espirituais produzidas por drogas. Ele se referiu à conclusão de Abraham Maslow a respeito das “experiências de pico”: que tomar uma droga é como atingir o topo da montanha por um teleférico ao invés da labuta da escalada—pode ser visto como trapaça, mas te leva ao mesmo lugar. Ele finalizou me dando um grande abraço e me encorajando em meu trabalho.

Visita ao monge e professor Rinzai Zen

Bertrand é um monge Zen budista e professor de meditação na casa dos 70 anos. Seguindo uma carreira convencional, ele teve uma experiência de despertar com mescalina quando ele tinha 47 que o fez reavaliar sua e buscar um caminho espiritual. Isso o levou a encarar o Rinzai Zen com um mestre japonês rigoroso. Embora tenha achado o treino extremamente difícil, ele eventualmente se tornou o abade de um monastério Zen.

Bertrand tomou MDMA cerca de 25 vezes nos últimos 10 anos. Ele geralmente usou-o no segundo dia de uma meditação de sete dias, e descobriu que a droga permitiu que ele prestasse atenção de todo coração, sem qualquer distração. Como estudante, ele também usou uma vez quando praticava um exercício Zen chamado Koan. Durante os Koans, o mestre nomeia a tarefa que o aluno deve contemplar, como o clássico “compreender o som de um bater de palmas. ” O estudante tem de demonstrar compreensão, normalmente após um tempo considerável, e muitas vezes é lhe dito para tentar de novo.

Sob efeito do MDMA, Bertrand atravessou por entre os Koans com uma impressionante facilidade. Ele, inclusive, se sentiu iluminado em duas ocasiões, apesar dele não confiar que essas experiências sejam do nível mais alto. Ele também conhece um monge Zen suíço que usa MDMA, mas ele nunca contou ao seu mestre. Ele sente que a experiência seria de grande valor para alguns de seus devotos e rígidos companheiros monges Zen, embora ele conheça apenas um outro monge Zen que faça uso de MDMA.

Perguntado se a experiência com MDMA tinha igual valor quanto chegar “lá” da maneira difícil, ele respondeu que o MDMA simplesmente permite que usuário foque, de todo coração, em sua tarefa atual, e o resultado é real em todos os aspectos porque são os mesmos. De fato, o MDMA permitiu que ele fosse mais longe do que ele era capaz sem a substância. Eu o pressionei para descobrir os aspectos negativos, e ele me disse que uma vez ele cometeu o erro de tomar o MDMA pouco antes de liderar uma meditação. Isso abriu seus olhos para o quão tensos e necessitados seus alunos eram. Ele expressou aquilo que sentia muito livremente: que eles pareciam como cadáveres, todos alinhados com seus chales negros! Isso era inapropriado, e ele não usou novamente o MDMA quanto ensinava. Ele sentiu que seu erro estava em não respeitar que seus alunos se encontravam em um espaço diferente.

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Entretanto, Bertrand acredita que o MDMA seria uma ferramenta extremamente útil para ensinar os estudantes que também estivessem sob efeito. Na verdade, ele se perguntou se viveria o bastante para poder usa-lo legalmente. Pressionado sobre os possíveis problemas, ele disse que sempre haverá pessoas que chegam querendo a iluminação em uma bandeja, e a notícia de que existe uma nova técnica usando uma droga atrairia aqueles que esperam que “seja feito por eles”. A festa rave foi a primeira vez que Bertrando tomou MDMA exceto quando estava meditando, e ele foi surpreendido pelo quão diferente a experiência era. De antemão, ele disse que mal suportava ao barulho e volume do som. Depois que o MDMA fez efeito, ele pode ver o valor do volume ao “afogar” as distrações. A batida monótona era semelhante a algumas cerimônias de índios americanos que também fornecem a sensação de união tribal pelo uso de uma droga—embora tenha sentido que a rave perdeu a estrutura cultural e foco dos indígenas. (Bertrand já foi convidado de um ritual Indigena Americano, embora não tenha tomado nenhuma droga.) Ele podia ver o valor dessa nova experiência para o Budismo como expansiva — meditação era contrativa, mas ambos foram essenciais.

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Sua primeira reação após o MDMA começar a fazer efeito foi tristeza por sua posição como parte de uma instituição de uma religião restritiva, e a realização de que o treinamento Zen não era adequado para os ocidentais em sua presente forma. Mais tarde, ele entrou na dança. Conforme sua face mudava de severa para feliz, ele exclamou: “Isso é meditação — estar realmente no presente e não em sua cabeça”. No dia seguinte, ele disse que sentiu como se a experiência havia deixado uma impressão em sua vida, e ele não tinha certeza onde isso o levaria. Enfatizou o que ele já sabia: que seus estudantes eram muito contraídos, e essa experiência expansiva da rave era o que eles precisavam, e era uma pena que ele não poderia advogar sobre isso em sua posição.
No dia seguinte, ele me disse que isso podia ser um ponto de virada muito importante em sua vida. Ele tinha que passar um tempo para digerir o que havia aprendido, mas sua resposta imediata era que ele não podia continuar sendo parte de uma instituição de sua escola na sua presente forma. Ele podia ver que o aspecto contrativo do treino havia sido muito enfatizado em sua escola, na crença de que os ocidentais já eram muito expansivos. Na verdade, aqueles que buscavam mestres Zen no Oeste realmente precisavam da habilidade de ser expansivos — e a rave proporcionava isso. Um mês depois, Bertrand me telefonou para dizer que ele acabará de ministrar um retiro de uma semana, que foi mais leve e positivo, quase como uma sensação de alegria. Ele atribuiu isso ao efeito da experiencia da rave, que por sua vez afetou os participantes. Também, ele se sentiu muito mais jovem e mais flexível. De fato, um problema de coluna que havia lhe causado dores por anos parecia estar completamente curado, o que fez ele suspeitar que especificamente esse problema na coluna era causado pela mente. Eu enviei os rascunho das entrevistas com o rabino e o monge Beneditino à Bertrand. Ele comentou que sua experiência se assemelhava com a do rabino sobre estar em um estado mental aberto. Divergia com o Beneditino, que dizia que o MDMA lhe permitia focar totalmente sem distração, e com atenção prolongada. Ele sentiu que a base do estado mental era enfatizada. Perguntei como ele sugeria usar o MDMA. Ele recomendou meditação após a abertura como uma forma de canalizar a energia liberada. Bertrando descreveu o MDMA como uma “experiência nutridora”

Visita a um monge e professor Soto Zen

Pari tomou LSD na universidade. Na verdade, ele mudou-se para uma comuna que tomava LSD em rituais semanais regulares, porém mais tarde essa busca por conhecimento o levou para longe das drogas para a Yoga, a qual ele praticou por muitos anos. Entã ele viajou e se envolveu com o Zen, vivendo em uma comunidade Soto Zen por 10 aos até ser ordenado monge. Ele havia sido feito desde então Abade pelo seu mestre; isso é, lhe é dado o poder para ordenar novos monges Zen. Ele agora vive em uma bela e tranquila casa Vitoriana na cidade com sua esposa e filho, onde ele tem um pequeno zendo (sala de meditação). Ele também tem um centro de retiro nas montanhas. Ele divide seu tempo entre o Budismo e ativismo social/ecológico. Nos últimos 5 anos, Pariu tomou MDMA cerca de 15 vezes, geralmente sozinho ou com sua esposa e amigos íntimos. Aquilo lhe fornecia uma grande clareza e tranquilidade, muito parecido com seshin— prática que dura 1 semana — quando tudo se torna mais claro, mais desperto.

Tradicionalmente, ensinamentos orientais são fortemente contra às drogas. Mas sua tradição em particular possui uma exceção a essa regra, e seu professor no Japão havia usado peyote, LSD e MDMA. Certa vez Pari irritou o professor Budista vietnamita Thich Nhat Hanh por apontar que a maioria dos estudantes ocidentais o procuravam pelas experiências com as drogas, então não era certo para ele ter uma posição forte contrária ao uso de drogas, especialmente já que ele não havia experimentado por si mesmo.

Ele havia usado MDMA para ensinar com alguns estudantes, incluindo um que já fora sido ordenado monge. Esse era um homem extremamente intenso e colocava um esforço tremendo para fazer o seu melhor na meditação. O MDMA o ajudou a ver que o tentar em si era o seu principal obstáculo. Outro estudante era um homem de negócios bem sucedido e mão de ferro. MDMA simplesmente o parou — ele mudou dramaticamente em uma pessoa calorosa e satisfeita que apenas queria se sentar tranquilamente no zendo.

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Quando perguntei se o sucesso com o MDMA era válido tanto quanto sem, ele respondeu : “É a experiência que importa, não como você chega lá. Olhe para a história das grande religiões. Muitos dos seus fundadores e santos tiveram uniões místicas durante febre causada por ferimentos, durante o qual, como sabemos hoje, o corpo produz substâncias psicodélicas. Um bom exemplo seria Inácio de Loyola, fundador da ordem Jesuíta.

Eu perguntei a Pari se pensava que haviam alguns tipos de pessoas que não se beneficiariam ou seriam enganados pelo MDMA. “Pode ser um problema para aqueles que não estão suficientemente aterrados, aqueles com tendencia a flutuar em outros mundos facilmente, de qualquer modo. Entretanto, a maioria de nós somos muito ligados a terra, presos demais nessa realidade em particular e uma pequena ajuda de um amigo pode ser de grande valor.” Ao contrário do LSD e outras drogas, o MDMA age em termos de relacionamentos — consigo, Deus, natureza. Ele ainda abre um terreno comum com outras pessoas as quais ainda não conhece.

Eu perguntei se havia algum motivo para usar o MDMA uma vez a iluminação ter sido atingida. “Atingir a iluminação para a maioria de nós é transitório e raro. Depois de um tempo, a experiência direta é substituída pela lembrança dela e uma experiência direta de tempos em tempos ajuda e revigora.” Mas, eu perguntei, a experiência induzida pela droga era realmente a mesma? Após certa hesitação Pari respondeu, “Sim, o estado da mente é idêntico, ainda assim há uma diferença sútil, talvez em razão dos efeitos físicos da droga no corpo. Sem a droga, há apenas um fator a menos. Isso é simples, e talvez implique em ser melhor. O valor desse estado é o mesmo: poder olhar para trás e ver o estado da mente “normal” com uma perspectiva clara mas diferente.

Qual a situação ideal? “Para um iniciante, um amigo confiável e mais experiente é altamente recomendável. Você deve criar um ambiente que ache convidativo. Faça a prática espiritual que você tiver. Para alguns pode ser cantar, rezar, pintar, meditar ou sentar em uma catedral; para outros é andar sozinho pelas montanhas.” Porém, ele alertou que nem toda tentativa é positiva. Ele sentiu mal e tremulo em sua última experiência com MDMA, embora depois de uma hora ele vomitou e então se sentiu melhor.

Texto publicado originalmente por Nicholas Saunders na Newsletter MAPS – Volume 6 Número 1 de 1995

O que o LSD pode nos ensinar sobre a natureza humana.

Eu estava em São Francisco semana passada, visitando meu irmão e revisitando os anos que passei lá quando jovem. Nós andamos pelo parque Golden Gate, dois caras na casa dos 60, admirando as gigantes sequoias, jardins exóticos, e as pastagens verde-douradas em cascata ao oeste, em direção ao oceano. E relembramos a nossa viagem de ácido épica em 1969, neste mesmo lugar, quando estávamos preparados para aventura e autodescoberta.

Nós éramos em quatro. Cada um de nós engoliu nossos pequenos comprimidos roxo — Feliz aterrizagem, pessoal!” — então começamos andar em direção ao oeste pelo parque. Cerca de meia hora depois vieram os surtos de energia em nossos estômagos, antecipação de algo enorme prestes a acontecer, entusiasmo e medo como se aproximar à beira de uma cachoeira desconhecida. O parque estava tão bonito. O canto dos pássaros estava por toda parte, com mais nuances do que havia alguma vez percebido.

E então o mundo se transformou. Os padrões dos galhos, o aroma do eucalipto, a confusão das outras pessoas, cachorros latindo, pássaros cantando, misturado e desintegrado ao mesmo tempo. Meu senso de “Eu” esticou, estendendo os limites da minha percepção como um desabrochar de um bouquet. Perdi a noção de quem eu era, onde estava, onde eu terminava e o mundo exterior começava… e então tudo isso se desintegrando, reconvergindo e se embaralhando de alguma formou se colapsou em uma sonora unicidade, o zumbido ensurdecedor de um universo totalmente pacífico.

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LSD era assustador, belo, e incompreensivelmente, transformador de vidas —  você pode dizer “educacional” com um sorriso irônico — para os não iniciados. Não apenas isso. Juntamente com outras drogas psicodélicas que formaram nossa subcultura, tornou-se símbolo de um momento e lugar únicos. Era um farol para um bando de crianças com intenção de descobrir algo verdadeiro e universal subjacente aos absurdos políticos e sociais da sociedade mainstream, Nixon, a guerra do Vietnã, e todo o resto.

O que nós procuramos no LSD era o que os humanos sempre haviam procurado — o significado oculto por trás da estupidez transitória dos esforços humanos que não levam a nada. O que buscávamos era a iluminação que Buda ansiava em nos mostrar, e que por milhares de anos permaneceu tão elusiva.

Era isso apenas uma loucura idealista, uma febre de droga? Temos nossas cabeças enfiadas até nossos traseiros, imaginando a beleza suprema porque estávamos tão completamente no escuro, tão narcisistamente especializados, tão sem inspiração pelos desafios que nossos pais e mentores desejavam que nós enfrentássemos?

 

“O BÓSON DE HIGGS DA NEUROCIÊNCIA”

Quando cheguei em casa novamente, três dias atrás, alguns experimentos neurocientíficos haviam sido publicados em dois jornais simultaneamente, alegando mostrar exatamente o que ocorria no cérebro quando alguém toma LSD. Em dois dias, essas descobertas migraram de publicações cientificas para jornais e mídia pelo mundo, incluindo o The Guardian. Um dos autores líderes da pesquisa, David Nutt, um respeitado neurofarmacologista, foi citado dizendo “Isso foi para a neurociência o que o bóson de Higgs foi para a física de partículas. ”

Embora isso possa exagerar seu caso, nós podemos perdoar o entusiasmo de Nutt: os achados são, de fato, extraordinários. Voluntários saudáveis foram injetados com LSD enquanto deitavam em um scanner MRI, e submetidos a diversos outros métodos de neuroimagem ao mesmo tempo. Isso somou um arsenal de medidas que os pesquisadores psicodélicos de décadas passadas podiam apenas sonhar. Com certeza não era o parque Golden Gate, mas deitados naquela câmara magnética, com os seus olhos fechados e cérebros abertos, com fluxos de números espirrando de seus lobos em arquivos de dados que logo seriam traduzidos em imagens, esses indivíduos observaram intrincadas alucinações do LSD se desdobrarem por trás de suas pálpebras. E ao mesmo tempo reportaram experiências de “dissolução do ego” muito parecida com aquela que experimentamos no parque.

O que foi mais notável sobre a pesquisa foi que o nível de dissolução de ego relatada pelos participantes se correlacionava com uma transformação neural especifica. Para enfrentar o dia-a-dia pragmático e as demandas da sobrevivência, a atividade cerebral naturalmente se diferencia em diversas redes distintas, cada uma responsável por uma função cognitiva particular.

As três redes mais intimamente examinadas por esses cientistas incluem a rede que presta atenção no que é mais notável, a rede para solução de problemas, e a rede para refletir sobre o próprio passado e futuro. Existe também uma segregação natural entre área de cognição de alto nível (abstrato) e área de percepção baixo nível (concreto), mais notavelmente no córtex visual. Essas distinções são tidas como um design essencial de um cérebro humano funcional.

O impacto do LSD era para diminuir a conexão dentro de cada uma dessas redes, relaxando os laços que as mantinha intactas e distintas, enquanto aumenta a conversa cruzada entre elas. Em outras palavras, a etiqueta normal do cérebro requer segregação entre as redes que possuem diferentes funções, e essa etiqueta foi explodida em pedaços.

Agora a maioria das partes do cérebro estavam se comunicando com a maioria das outras partes do cérebro. Experiências sensoriais completas, como a visão, misturadas com a cognição abstrata, e as abstrações cognitivas reformulou as imagens visuais. Talvez seja isso que explique o intrincado padrão fractal que as pessoas enxergam nos galhos de um arbusto quando estão viajando no ácido. A percepção de relevância e o refinamento do senso de “eu” foram misturadas juntas como batatas e molho. O cérebro e seu proprietário não mais distinguiam o que era mais importante, como realizar tarefas, e quem de fato julga a importância daquilo que precisa ser feito.

 

Os cérebros dos participantes permanecendo despertos com os olhos fechados, sob um placebo, esquerda, e a droga LSD, direita, visualizadas usando MRI funcional. Foto: Imperial College London-The Beckley Foundation/Reuters

RELIGIÃO VS. PSICODÉLICOS

Há alguns milhares de anos, o Buda definiu a personalidade humana como um ciclo recursivo de hábitos — hábitos de aquisição, de desejo e apego. Eles levam à busca de prazeres que temos certeza que vão evanescer-se e a evitar o sofrimento que não pode ser evitado num ciclo de vida, envelhecimento e morte. Em resposta, seus seguidores escolheram o asceticismo, a prática de excesso de controle. Dos monges Budistas que se livraram do conforto e os sadhus Hindus com seus rituais de auto-mortificação novas religiões evoluíram.

Houve intermináveis listas de editais Judeus, Muçulmanos, e Cristãos que ainda impõe-se: o que não era permitido fazer, em quais dias, quais as consequências de seu fracasso. Nossas tentativas de libertar-se do hábito, da universalidade do costume local, verdade da ilusão, de modo geral juntaram-se a um conjunto de regras para aumentar o controle, particionar e segregar, desenhar hierarquias e obedecer códigos.

Parece que nossos cérebros, com sua tendência intrínseca para analisar e segregar, foram projetados para inclinar-se em direção ao controle excessivo em resposta às dificuldades da existência. Ou, mais precisamente, nós temos a tendência de ter controle excessivo, porque se manifesta como um principio fundamental do design cerebral.

Mas a natureza nos proveu com diferente antídotos para o isolamento e irrelevância. LSD foi criado em um laboratório na Suíça em 1930. Mas outros químicos com as mesmas propriedades psicodélicas habitam a carne de cactos por toda a America do Norte (mescalina), cogumelos encontrados na maior parte do hemisfério norte (psilocibina), e a vinha da Amazônia (DMT-ayahuasca). Esses compostos químicos evoluídos desfaz as travas que nossos cérebros constroem para nos manter limitados, buscando vitórias de curto prazo sobre fracassos inevitáveis. Os humanos se reuniram, cultivaram, destilaram, e produziram todo tipo de drogas por milhares de anos. Algumas delas aliviam a dor e conferem conforto. Outras fornecem energia que as vezes precisamos pra completar nossas tarefas. E nosso velho amigo álcool nos ajuda a relaxar e se divertir. Mas os psicodélicos não contribuem em nada para o nosso funcionamento diário. Pelo contrário, nós usamos para enxergar o quadro maior, para conectar-se com uma realidade que é difícil de ver usando nosso cérebro em funcionamento normal. Nós somos literalmente “mentes-pequena” na maior parte do tempo. E embora meditação e mindfulness (atenção plena) no coloca em direção à abertura, aceitação e abandono de nossos egos, os humanos continuam a se voltar para os psicodélicos para despertar-nos para as possibilidades de uma perspectiva universal.

Nem todas as drogas são criadas iguais, e eu nunca vou encorajar ninguém a aliviar seu desconforto existencial com heroína ou anfetaminas, ambas as quais eu já tomei. Mas os psicodélicos possuem um valor que não posso evitar de admirar. E agora nós entendemos mais sobre como eles fazem o que fazem. Um simples código libera os portões em nossos cérebros, portões que normalmente agem como muralhas.

Eu espero que essas descobertas dissipem apenas o suficiente para encorajar-nos a continuar explorando.


Matéria escrita originalmente por Marc Lewis para o The Guardian em 15/04/2016

Religião – Krishnamurti

por J. Krishnamurti

“Para descobrir o que é verdadeira religião, você precisa afastar tudo o que estiver no caminho dessa descoberta. Se você tem muitas janelas coloridas ou sujas e quer ver a clara luz do Sol, precisa limpar ou abrir as janelas, ou sair de casa. Da mesma forma, para descobrir o que é a verdadeira religião, você deve primeiro ver o que a verdadeira religião não é, e pôr isso à parte. Então poderá descobrir – porque, então, haverá percepção direta. Vejamos pois o que não é religião.

Cumprir rituais – isso é religião ? Você repete muitas e muitas vezes um certo ritual, um certo mantra em frente de um altar ou de um ídolo. Isso pode lhe dar uma sensação de prazer, uma sensação de satisfação; mas será isso religião? Vestir uma roupa sagrada, intitular-se indú, budista ou cristão, aceitar determinadas tradições, dogmas, crenças – tem tudo isso algo a ver com religião? Obviamente não. Por conseguinte, a religião deve ser algo que só se poderá encontrar quando a mente tenha entendido e descartado isso tudo.

Religião, no verdadeiro sentido da palavra, não trás separação. Mas, que acontece quando você é muçulmano e eu cristão, ou quando eu creio numa coisa e você nela não crê? Nossas crenças nos separam; portanto, nossas crenças nada tem a ver com religião. O fato de crermos ou não em Deus tem pouca significação; porque aquilo em que cremos ou em que deixamos de crer é determinado por nosso condicionamento. A sociedade em torno de nós, a cultura em que somos criados, imprime em nossas mentes certas crenças, certos medos e superstições a que chamamos religião; mas que nada tem a ver com religião. O fato de você crer de um modo e eu de outro depende, em grande parte, de onde tenhamos nascido, se nascemos na Inglaterra, na Índia ou na América. Assim sendo, crença não é religião, é apenas o resultado de um condicionamento.

Há além disso, a busca da salvação pessoal. Quero estar seguro; quero atingir o nirvana, ou alcançar o céu; preciso encontrar um lugar junto de Jesus, junto de Buda ou à direita de algum deus particular. Sua crença não me dá satisfação profunda, conforto; por isso tenho a minha própria crença. E será isso religião? Sem dúvida, nossas mentes precisam estar livres de todas essas coisas para podermos descobrir o que é a verdadeira religião.

E será religião simplesmente uma questão de fazer o bem, de servir ou ajudar os outros? Ou será mais que isso? O que não quer dizer que não devamos ser generosos ou bons. Mas será só isso? Religião não será algo muito maior, muito mais puro, vasto, expansivo do que qualquer coisa concebida pela mente?

Assim, para descobrir o que seja a verdadeira religião, você precisa investigar profundamente todas essas coisas e libertar-se do medo. É como sair de uma casa escura para a claridade do Sol. Então, você não perguntará o que é a verdadeira religião; você mesmo saberá. Haverá experiência direta daquilo que é verdadeiro.”

( O Verdadeiro Objetivo Da Vida – págs. 98 e 99 – Edit. Cultrix )

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A Experiência Religiosa e a Meditação

(Do livro, ainda não editado em nosso idioma, “O Despertar da Inteligência”).

“Dissemos que íamos falar sobre um problema sobremodo complexo, ou seja: Existe experiência religiosa, e que significa “meditação”? Observando, podemos ver que, em todo o mundo, o homem sempre andou buscando uma coisa existente além da morte, além dos seus problemas, uma coisa duradoura, verdadeira, eterna. Deu-lhe o nome de “Deus”, e outros mais; e a maioria acredita em tal coisa, sem jamais tê-la experimentado. Prometem algumas religiões que se crermos em certos rituais, dogmas e salvadores, e se vivermos de um dado modo, encontraremos essa coisa maravilhosa, que podemos denominar como quisermos. Os que a têm “experimentado” diretamente fazem-no segundo o seu condicionamento, sua crença, as influências ambientes e culturais a que estão submetidos.

A religião, evidentemente, perdeu o seu significado, pois sempre houve guerras religiosas. Ela não resolve os nossos problemas. As religiões separaram os povos. Poderão ter exercido determinada influência civilizadora, mas não transformaram radicalmente o homem. Para começarmos a investigar se existe a “experiência religiosa”, e o que tal experiência representa, e o porquê de a chamarmos “religiosa”, evidentemente, em primeiro lugar, se faz mister muita sinceridade. Isso não significa ser sincero em obediência a algum princípio ou crença, ou em relação a algum “compromisso”, mas, sim, ver as coisas tais quais são, sem deformá-las, não só as coisas exteriores, senão também as interiores; significa jamais iludir a si próprio. Porque é facílimo nos iludirmos ao ansiarmos por uma dada experiência, religiosa ou de outra natureza – pelo uso de drogas, etc. Estamos, então, sujeitos a nos enredarmos em alguma espécie de ilusão.

Cabe-nos descobrir diretamente o que é “experiência religiosa”. Precisamos imbuir-nos de humildade e sinceridade, a fim de não exigirmos para nós algum proveito ou ganho. Devemos, pois, atentar em nossos próprios desejos, apegos e temores, para os compreendermos a fundo, e não deixarmos a mente deformar-se de nenhuma maneira, impedindo assim toda e qualquer ilusão. E, igualmente, cumpre indagar: Que significa “experimentar”?

Não sei se já consideraram esta questão. Em regra, cansamo-nos das habituais experiências cotidianas. De todas elas estamos fartos, e quanto mais “sofisticada” ou intelectual a pessoa, tanto mais deseja viver só no agora – o que quer que isso signifique – e inventar uma filosofia do presente. A palavra “experiência” exprime passar por um certo estado, do começo ao fim, e dá-lo por acabado. Mas, infelizmente, para a maioria toda experiência deixa uma cicatriz, uma lembrança, agradável ou desagradável, e nós desejamos conservar as aprazíveis. Se ansiamos por qualquer espécie de experiência, espiritual, religiosa ou transcendental, devemos primeiramente descobrir se existe tal experiência, e também o que ela expressa. Se você passou por alguma e não é capaz de reconhecê-la, ela deixa de existir. Um dos elementos essenciais da experiência é o reconhecimento. E, havendo reconhecimento, aquilo que se experimenta já é conhecido, já foi sentido, pois, do contrário, não seria reconhecido.

Assim, ao falar de experiência religiosa, espiritual ou transcendental, a pessoa deve tê-la conhecido antes, para ser capaz de reconhecer que está experimentando algo diferente de uma experiência comum. Parece lógico e verdadeiro que a mente deve ser capaz de reconhecer a experiência, e o reconhecimento implica que a coisa já é conhecida e, por conseguinte, não é nova.

Ao desejarmos experiências no terreno religioso, nós as desejamos porque não resolvemos os nossos problemas, nossas ânsias, desesperos, temores e tristezas de cada dia; por essa razão pretendemos algo “mais”. Nessa pretensão de “mais” encontra-se a ilusão. Isso é bem lógico e verdadeiro, penso eu. Não digo que a lógica seja sempre verdadeira, mas, quando, sã e equilibradamente, nos servimos da lógica e da razão, conhecemos as limitações da razão. O desejo de experiências mais amplas, profundas e fundamentais leva-nos a alongar ainda mais o caminho do conhecido. Isso me parece claro, e espero estejamos em comunhão, em “participação” uns com os outros.

Outrossim, investigando o terreno religioso, queremos descobrir o que é a verdade, se existe uma realidade, se existe um estado mental fora do tempo. A procura implica também uma entidade que busca. E que está buscando essa entidade? Como saberá que o que descobre, em sua busca, é verdadeiro? E, ainda, se ela encontra o verdadeiro – pelo menos o que pensa ser o verdadeiro – o que ela encontra depende de seu condicionamento, de seus conhecimentos, de suas anteriores experiências; a busca torna-se, então, apenas mais uma projeção de suas passadas esperanças, temores e anseios.

A mente que está investigando – não, buscando – deve achar-se totalmente livre destas duas coisas: o desejo de experiência e a busca da verdade. Isso porque, se estamos buscando, procuramos diferentes instrutores, lemos livros vários, aderimos a vários cultos, seguimos diversos gurus, etc, etc. – como quem percorre as vitrines das lojas. Essa busca não tem nenhum significado.

Assim, ao investigarem esta questão – “Que é mente religiosa, e qual a natureza da mente que já não tem experiência alguma” – vocês devem saber se a mente pode libertar-se do desejo de experiência e pôr fim a toda atividade de busca. Impende investigar, sem nenhum “motivo” ou propósito, os fatos concernentes ao tempo e se existe um estado atemporal. Tal investigação requer que não se tenha crença alguma, não se esteja ligado a nenhuma religião ou organização dita espiritual, que não se siga nenhum guru e, portanto, não se esteja sujeito a nenhuma autoridade – inclusive, e principalmente, à deste orador. Porque as pessoas são facilmente influenciáveis, excessivamente crédulas, ainda que sejam “sofisticadas” e muito sabedoras; mas estão sempre ansiando por alguma coisa, sempre a desejar e, por essa razão, crêem.

Assim, a mente que investiga para descobrir o que é religião deve achar-se inteiramente livre de qualquer forma de crença, de qualquer forma de medo; porque o medo, conforme já explicamos, é um elemento deformador, produtivo de violência e agressão. Por conseguinte, ao investigarmos o estado religioso e seu movimento, devemos achar-nos livres do temor. Isso requer sinceridade e humildade.

No tocante à maioria de nós, a vaidade é um dos maiores impedimentos. Porque, tendo lido muito, tendo assumido compromissos com algum guru que anda a oferecer a sua filosofia, pensamos saber, pelo menos um pouco, e esse é o começo da vaidade. Ao averiguarmos uma questão tão importante como esta, precisamos fazê-lo com isenção, isto é, sem nada sabermos a seu respeito. Vocês, de fato, não sabem nada, sabem? Ignoram o que é a Verdade, o que é Deus – se tal entidade existe – o que é uma mente religiosa. Lêem livros que tratam desta questão, da qual se fala há milênios e estão vivendo com base no conhecimento e nas experiências de outros, com base na propaganda. É necessário pôr tudo isso de lado, se desejam descobrir alguma coisa; por conseguinte, a investigação desta matéria é uma coisa sumamente “séria”. Se desejam “brincar”, existem entretenimentos de toda espécie: os chamados espirituais, os de cunho religioso; mas estes não têm valor algum para o homem de reflexão.

Para investigar o que é a mente religiosa, devemos estar livres de nosso condicionamento, de nosso cristianismo, de nosso budismo, com a respectiva propaganda de milhares de anos, a fim de que tenhamos isenção para observar. Isso é sobremaneira difícil, porque tememos achar-nos sós. Desejamos segurança, externa e internamente; por isso, dependemos dos outros – do sacerdote, do guia espiritual, do guru que diz: “Experimentei e, portanto, sei”. Temos de estar completamente sós – mas não, isolados. Há vasta diferença entre estar isolado e estar completamente só, ser um todo não fracionado. O isolamento é um estado de espírito em que cessaram as relações e, em nossa vida e atividades diárias, erguemos (consciente ou inconscientemente) uma muralha em torno de nós para não sofrermos danos. Esse isolamento, naturalmente, impede qualquer espécie de relação. “Estar só” implica que a pessoa não depende de outra, psicologicamente, não está apegada a ninguém; isso não é dizer que não há, então, amor; o amor não é apego. “Estar só” significa que, profundamente, interiormente, não existe nenhum movimento de medo e, por conseguinte, nenhum movimento de conflito.

Se me acompanharam até aqui, podemos passar a investigar o que exprime disciplina. Geralmente, disciplina é para nós uma espécie de “treinamento”, de repetição, um meio de vencer um obstáculo, ou de resistir, reprimir, controlar, ajustar. Tudo isso está implicado na palavra “disciplina”, tal como a consideramos. Já o significado etimológico da palavra é “aprender”.

A mente que quer aprender deve ter curiosidade, vivo interesse; e, quanto à mente que “já sabe”, esta não tem possibilidade de aprender. Disciplina, por conseguinte, significa aprender por que razão controlamos, reprimimos, por que razão há medo, porque nos ajustamos, comparamos e, conseqüentemente, nos vemos em conflito. O próprio ato de aprender produz ordem; não a ordem criada segundo um plano ou padrão: na mesma investigação da confusão, da desordem, existe ordem. Em regra, vivemos confusos por dúzias de razões, que, por ora, não precisamos examinar. Necessitamos aprender sobre a confusão, sobre a vida desordenada que estamos levando; não nos cabe tratar de estabelecer a ordem na confusão, ou na desordem, mas, sim, aprender sobre a confusão e a desordem. Assim, enquanto aprendemos, nasce a ordem.

A ordem é uma coisa viva, e não uma coisa mecânica; a ordem, por certo, é virtude. Na mente que se acha confusa, que se ajusta, que imita, não existe ordem, porém conflito. E em conflito a mente se acha em desordem e, deste modo, é sem virtude. Com esse investigar, com esse aprender, vem a ordem, e a ordem é virtude. Observem-se, vejam o estado de desordem em que se encontra sua vida – tão confusa e mecânica! Nesse estado, queremos descobrir uma maneira moral de viver com ordem e com uma mente sã. Como pode a pessoa confusa, que apenas sabe obedecer ou imitar, ter qualquer espécie de ordem, qualquer espécie de virtude? Examinando-se a moralidade social, vê-se que é totalmente imoral; poderá ser “respeitável”, mas o que é respeitável é quase sempre sem ordem.

A ordem é necessária, porque só com ela é possível uma ação plena, e ação é vida. Mas nossa ação produz desordem; há a ação política, a ação religiosa, a ação atinente aos negócios, à família; todas essas ações são fragmentárias e, portanto e naturalmente, contraditórias. Você é um duro homem de negócios e, em casa, um meigo ente humano – pelo menos mostra sê-lo; aí há contradição e, por conseguinte, desordem. A mente em desordem não tem possibilidade de compreender o que é virtude. E, hoje em dia, com a licença existente em todos os sentidos, não existe ordem nem virtude. A mente religiosa necessita dessa ordem não obediente a nenhum padrão ou plano estabelecido por você ou por outrem. Mas, essa ordem, esse senso de retidão moral, só vem quando se compreende a desordem, a confusão, o caos em que estamos vivendo.

O que acabamos de dizer visa a mostrar como lançar as bases da meditação. Se não lançarmos essas bases, a meditação se tornará uma fuga. Com essa espécie de meditação pode-se ficar brincando toda a vida, e é isso o que a maioria das pessoas está fazendo: vivendo vidas medíocres, confusas, desordenadas e encontrando maneiras de quietar a mente, pois há tanta gente a prometer “uma mente quieta” (o que quer que isso signifique).

Assim, para a mente ardorosa, pois trata-se de uma coisa importante e não de uma brincadeira é necessário estar-se livre de toda crença, de toda e qualquer ligação porque nós estamos ligados ao todo da vida, e não a um fragmento dela. Em maioria estamos vinculados a alguma revolução física, política, a um movimento religioso, a uma espécie de vida espiritual, monástica, etc. Todas essas coisas são ligações fragmentárias. Falamos sobre liberdade porque dela necessitamos para ligarmos o nosso ser, a nossa energia, vitalidade e paixão à totalidade da vida e não a uma de suas partes. Podemos então começar a investigar o que significa meditar.

Não sei se já consideraram esta questão da meditação. Provavelmente alguns de vocês têm “brincado de meditar”, procurando controlar seus pensamentos, seguir diferentes sistemas, mas isso não é meditação. Temos de abrir mão de todos os sistemas que se nos têm oferecido: sistema Zen, Meditação Transcendental, etc. – armadilhas trazidas da Índia e da Ásia, nas quais tanta gente se deixa aprisionar. Precisamos examinar a questão dos sistemas, dos métodos, e espero tenham vontade de fazê-lo; porque nós estamos participando, todos juntos, no exame deste problema.

Quando temos de seguir um sistema, que sucede à nossa mente? Que implicam os sistemas e os métodos? Um guru. Não sei porque eles se denominam, a si próprios, “gurus”. Não encontro um termo suficientemente forte com que reprovar a classe dos gurus, com sua autoridade (eles pensam que sabem). O homem que diz “Eu sei”, esse homem não sabe. Ou, se ele diz “Experimentei a Verdade”, desconfiem dele decididamente. São estes os que oferecem os sistemas. Um sistema envolve: praticar, seguir, repetir, alterar “o que realmente é” e, por conseguinte, aumentar o conflito. Os sistemas tornam a mente mecânica, não libertam ninguém; poderão prometer a liberdade no fim de tudo, mas a liberdade está no começo e não no fim. Se querem investigar a verdade sobre qualquer sistema, sem terem liberdade, logo de início, acabarão então, fatalmente, adotando um método e com a mente incapacitada de ser sutil, ágil, sensível. Podem, pois, abandonar completamente todos os sistemas. O importante não é controlar o pensamento, mas compreendê-lo, compreender as origens, os começos do pensamento, que se acham na própria pessoa. Quer dizer, o cérebro armazena “memórias” (isso vocês mesmos podem observar, e não necessitam de ler livros sobre a matéria); se ele não armazenasse “memórias”, seria completamente incapaz de pensar. A memória é o resultado da experiência, do conhecimento, de cada um ou da comunidade, da família, da raça, etc. O pensamento brota daquele reservatório de “lembranças”. O pensamento, portanto, jamais é livre, é sempre velho; não existe essa coisa chamada “liberdade de pensamento”.

O pensamento, em si, não pode ser livre, embora fale sobre liberdade; em si próprio, ele é o resultado das “memórias”, experiências e conhecimentos trazidos do passado; em conseqüência, ele é velho. Todavia, necessitamos desse acervo de conhecimentos, pois, sem ele não poderíamos funcionar, não poderíamos falar uns aos outros, não poderíamos voltar para casa, etc. O conhecimento é de essencial importância.

Compete-nos descobrir se, na meditação, o conhecimento tem fim, se nela estamos livres do conhecido. Se a meditação é a continuação do conhecimento, a continuação de tudo o que o homem acumulou, não há, então, nela, liberdade. Só há liberdade se compreendemos a função do conhecimento e, por conseguinte, dele nos achamos livres.
Estamos explorando o campo do conhecimento, para vermos quando deve funcionar e quando se torna um empecilho à investigação mais profunda. Se as células cerebrais continuam ativas, só podem funcionar no campo do conhecimento. É só isso que o cérebro pode fazer, ou seja, funcionar no campo da experiência, do conhecimento, no campo do tempo, vale dizer, no passado. Meditação é descobrir se existe um campo ainda não contaminado pelo conhecido.

Se, meditando, continuo com o que antes aprendi, com o que já sei, estou então vivendo no passado, no campo de meu condicionamento. Nesse campo não há liberdade. Posso adornar a prisão em que estou vivendo, fazer coisas diversas dentro dela, mas há sempre uma limitação, uma barreira. Cumpre, pois, descobrir se as células cerebrais, evolvidas através de milênios, podem estar totalmente quietas e em correspondência com uma dimensão desconhecida. Quer dizer, pode a mente tornar-se tranqüila?

Foi sempre esse o problema das pessoas religiosas, através dos séculos, reconhecendo que se necessita de total serenidade, porque só então se pode ver. Se estamos a tagarelar, com o espírito em movimento, a correr para todos os lados, é óbvio que não podemos ver nem escutar totalmente. Assim, dizem as pessoas religiosas: “Controle a mente, segure-a, coloque-a numa prisão”; não descobriram uma maneira de pôr a mente num estado de completa e absoluta quietude. Dizem: “Não cedam a nenhum desejo, não olhem para uma mulher, para os belos montes, para as árvores e a beleza da Terra, porque se o fizerem, aquela beleza poderá sugerir-lhes a lembrança de uma mulher ou um homem. Portanto, controlem-se, perseverem, concentrem-se”. Assim fazendo, os põem em conflito e, desta maneira, haverá mais o que controlar, mais o que superar. Sucede isso há milênios, por se ter percebido a necessidade de uma mente tranqüila. Ora, como pode a mente serenar sem esforço, sem controle, sem se lhe traçarem limites? No momento em que se pergunta “como?”, cria-se a necessidade de um sistema. Portanto, aqui não há como”.

Pode a mente quietar-se? Não sei o que irão fazer ao perceberem verdadeiramente a necessidade de terem aquela mente que, estando absolutamente quieta, se torna sobremodo sensível e sutil. Como pode isso verificar-se? Esse é um problema de meditação, porque só essa é a mentalidade religiosa. Só ela é capaz de ver o todo da vida como uma unidade, como um movimento unitário, não fragmentado. Essa mentalidade, por conseguinte, atua totalmente e não fragmentariamente, porque sua ação emana da quietude completa.

A verdadeira base é uma vida de relação total, uma vida com ordem e, por conseguinte, virtude, uma vida interior simples e, portanto, austera – a austeridade da simplicidade profunda, própria da mente isenta de conflito. Se lançarem essa base, facilmente, sem esforço algum (porque, tão logo se introduz o esforço, há conflito), verão a sua genuína valia. É, conseqüentemente, a percepção de “o que é” que realiza a transformação radical.

Só a mente tranqüila pode compreender que, em sua quietude, há um movimento bem diverso, de diferente dimensão, de outra qualidade. Esse movimento, sendo inefável, não pode ser expresso em palavras. O que pode ser descrito só nos leva até este ponto: o ponto em que, tendo lançado a base correta, percebemos a necessidade, o valor e a beleza da serenidade espiritual.

Para a maioria, a beleza se encontra em alguma coisa: um edifício, uma nuvem, a forma de uma árvore, um lindo rosto. A beleza está “lá fora” ou faz parte da natureza da mente em que não há atividade egocêntrica? Porque a meditação, tão importante como a alegria que nela encontramos, é a compreensão da beleza. A beleza, com efeito, é o total abandono do “eu”; e os olhos que abandonaram o “eu” podem ver as árvores e sua pujança, e a formosura de uma nuvem. Isso acontece quando não existe nenhum centro constituído pelo “eu”. É uma coisa que sucede a qualquer de nós, – não é verdade? – ao vermos, por exemplo, uma majestosa montanha que subitamente se nos descortina. Tudo foi varrido para o lado, exceto aquela majestade. A montanha, a árvore, nos absorve completamente.

Algo semelhante sucede a uma criança que se diverte com um brinquedo; o brinquedo a absorve e, se se quebra, ela volta a suas ocupações habituais, suas travessuras, seus choros. Conosco se dá a mesma coisa, ao vermos a montanha ou a árvore solitária no alto de um monte, elas nos absorvem. E nós desejamos absorver-nos em alguma coisa – numa idéia, numa atividade, num compromisso, numa crença, ou noutra pessoa tal qual a criança com seu brinquedo.

A beleza, pois, significa sensibilidade – um corpo sensível, graças a uma alimentação adequada e a uma maneira correta de viver. A mente se torna, então, naturalmente quieta. Não é possível aquietar a mente, porque você é que é o causador de todos os males, você é que se acha perturbado, ansioso, confuso. Como pode torná-la tranqüila? Mas, ao compreender o que é quietude e o que é confusão, ao entender o que é sofrimento e que é possível acabar com ele, e, também, ao compreender o que é o prazer – então, dessa compreensão, surge uma mentalidade serena; não precisamos buscá-la. Devemos partir do começo, e o primeiro passo é o último passo. Eis o que é meditação.”

INTERROGANTE: Faz o senhor a apologia da beleza das montanhas, dos montes, do céu. Essa apologia não é útil para o comum das pessoas. A apologia que serve é a da sordidez.

KRISHNAMURTI: Está bem; façamos a apologia das ruas imundas de Nova Iorque, a apologia da miséria, da pobreza, dos guetos, das guerras, para as quais cada um de nós contribuiu. Vocês sentem de outro modo, porque se separaram, se isolaram; portanto, não estando em relação com os outros, corrompem-se e permitem que a corrupção se espalhe pelo mundo. Eis porque a corrupção, a poluição, as guerras, o ódio, não podem ser sustados por nenhum sistema político ou religioso, por nenhuma organização. Cumpre haver transformação. Não o percebem? Precisam deixar de ser o que são. Não à força de “querer”; meditação é expurgar a mente da vontade. Verifica-se, então, uma ação de espécie inteiramente diferente.

INTERROGANTE: Se pudermos alcançar o privilégio de nos conscientizarmos, como poderemos ajudar àqueles que se acham condicionados, àqueles que abrigam um profundo ressentimento?

KRISHNAMURTI: Permita-me interrogá-lo porque usa a palavra “privilégio”. Que há de sagrado ou de “privilegiado” em estar-se conscientizado? Essa é uma coisa natural, não acha? – estar ciente. Se você tiver ciência de seu condicionamento, da agitação, da sordidez, da miséria, da guerra, do ódio, existentes no mundo – se de tudo isso estiver inteirado, estabelecerá uma relação tão completa entre você – que ficará em relação com todos os outros entes humanos. Verá, então, que não causará dano aos outros; eles é que causam dano a si próprios. E, assim o que se pode fazer é sair pelo mundo a pregar, a falar – mas não com o desejo de ajudá-los, compreende? Esta é a coisa mais terrível que se pode dizer: “Quero ajudar a outrem”. Quem é você, quem sou eu, para ajudar os outros?

Senhor, a beleza da árvore ou da flor não “deseja” ajudá-lo. A você é que cabe olhar a sordidez ou a beleza; e se é incapaz de olhá-las, trate de descobrir porque se tornou tão indiferente, tão insensível, tão superficial e vazio. Se o descobrir, ver-se-á num estado em que a vida fluirá como as águas, e você nada terá de fazer.

INTERROGANTE: Qual a relação entre a percepção das coisas exatamente como são e a consciência?

KRISHNAMURTI: Você só conhece a consciência pelo seu conteúdo, e esse conteúdo são as coisas que estão sucedendo no mundo, do qual você faz parte. O esvaziar desse conteúdo não significa ficar privado da consciência, senão ingressar numa dimensão bem diferente. Sobre essa dimensão não é possível especular. O que podemos fazer é tratarmos de descobrir se é possível descondicionarmos a mente pela conscientização, pelo tornar-nos atentos.

INTERROGANTE: Eu próprio não sei o que é o amor, o que é a Verdade, ou o que é Deus. Mas diz o senhor que “amor é Deus”, em vez de “Amor é Amor”. Poderá explicar porque diz “Amor é Deus”?

KRISHNAMURTI: Eu não disse que amor é Deus.

INTERROGANTE: Lendo um de seus livros …

KRISHNAMURTI: Desculpe a interrupção … não leia livros! Daquela palavra se tem usado e abusado. Ela está “carregada” dos desesperos e esperanças do homem. Você tem o seu Deus, e os comunistas têm o deles. Assim, se me permite sugeri-lo, trate de descobrir o que é o Amor. Só descobrirá o que é o amor, se souber o que ele não é. Não, se o souber intelectualmente, porém, na vida real, afastando tudo o que o nega – o ciúme, a ambição, a avidez; as divisões que diariamente se verificam; eu e você, nós e eles, brancos e pretos. Infelizmente, as pessoas não o fazem, porque isso requer energia e a energia só vem ao observarmos a realidade, sem dela fugirmos. Vendo o que realmente é, então, observando-o, teremos a energia necessária para transcendê-lo. Não podemos transcendê-lo, se forcejamos para evitá-lo, para traduzi-lo ou superá-lo. Note simplesmente “o que é”, e descobrirá o que é amar. O amor não é prazer. E sabe o que significa descobri-lo realmente, você mesmo, em seu interior? Significa já não haver medo, nem apego, nem dependência, mas tão somente uma relação isenta de qualquer divisão.

INTERROGANTE: Pode-me dizer algo sobre a função do artista na sociedade? Desempenha ele algum papel além do que lhe é atribuído?

KRISHNAMURTI: Que é um artista? Aquele que pinta quadros, escreve poesias, aquele que busca expressar-se por meio da pintura ou escrevendo livros ou dramas? Porque separamos o artista de nós outros? Ou, porque diferenciamos o intelectual dos demais indivíduos? Colocamos o intelectual num certo nível, o artista noutro nível, talvez mais alto, e o cientista num nível mais elevado ainda. Depois, perguntamos: “Qual a função deles na sociedade?” Não se trata de saber qual é a função deles, mas qual é a sua junto à coletividade. Porque foi você que criou a desordem existente. Qual a sua função? Descubra-o. Isto é, trate de descobrir porque vive dentro deste mundo de sordidez, ódio e aflição; aparentemente, ele não o atinge.

Como vê, o senhor escutou estas palestras, participou em algumas das coisas ditas e compreendeu – nós o esperamos – muitas delas. Com isso pode tornar-se um “centro de relações corretas” e, portanto, compete-lhe transformar esta terrível, corrupta e destrutiva sociedade.

INTERROGANTE: Poderá falar sobre o tempo psicológico?

KRISHNAMURTI: O tempo é velhice, o tempo é sofrimento, o tempo não respeita ninguém. Há o tempo cronológico, medido pelo relógio. Este é indispensável; do contrário, não poderíamos ter condução, viajar, preparar uma refeição, etc. Mas, nós aceitamos outra espécie de tempo, ou seja “amanhã eu serei, amanhã mudarei, futuramente me tornarei isto ou aquilo”; psicologicamente, criamos este tempo – amanhã. Mas, existe esse dia imediato? Eis uma pergunta que tememos fazer a sério. Porque nós desejamos o amanhã: “amanhã terei o prazer de me encontrar com você, amanhã eu compreenderei, minha vida será diferente. Amanhã conhecerei a iluminação. E desse modo o futuro se torna a coisa mais importante de nossa vida. Ontem você se deleitou sexualmente, fruiu vários prazeres, e deseja repeti-los no dia seguinte, ou logo depois.

Faça a si próprio esta pergunta, e descubra a verdade respectiva: “Existe realmente um amanhã fora do pensamento” que projeta o amanhã? O futuro, com efeito, é uma invenção do pensamento. Se, psicologicamente, não houvesse um amanhã, que aconteceria, hoje, em sua vida? Uma tremenda revolução, não é? Sua ação se transformaria radicalmente, não é assim? Você seria, agora, um ente total e não um ente projetado do passado para o presente e daí para o futuro.

Tal equivale a viver e morrer todos os dias. Faça-o, e verá o que exprime viver completamente hoje. E isso não é amor? Ninguém diz “Amanhã amarei”. Ou amamos ou não amamos. O amor não reside no tempo; nele só está o amargor, porque o amargor, tal como o prazer, é pensamento. Devemos, pois, descobrir o que é o tempo, e descobrir se existe um “não amanhã” (no tomorrow). Isso é viver; há então aquela vida eterna – porque, na Eternidade, não existe tempo.

Krishnamurti

FONTE: http://www.cuidardoser.com.br/

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