Epílogo de “Demônios de Loudun” – Aldous Huxley
Aldous Huxley sobre Autotranscendência.
Extraído de “Os Demonios de Loudun”
©1952 by Aldous Huxley, publicado em 1953 por Harper and Brothers, New York
O texto original em inglês pode ser encontrado em Psychedelic Library
ou o Livro pode ser encontrado na íntegra aqui em PDF
Sem a compreensão do desejo profundo que os seres humanos têm de autotranscendência, da relutância natural que experimentam em tomar o caminho duro e difícil da ascensão espiritual, e da consequente procura de uma falsa libertação ou abaixo ou sob um aspecto de sua personalidade, não poderemos entender a época em que vivemos ou mesmo a história em geral, a vida como foi vivida no passado e como o é em nossos dias. Por essa razão, proponho discutirmos alguns dos sucedâneos mais comuns da Graça, nos quais e através dos quais homens e mulheres têm tentado escapar da consciência torturante de serem apenas eles mesmos.
Atualmente, na França, existe um comerciante de bebidas alcoólicas para cada cem habitantes. Nos Estados Unidos, há provavelmente pelo menos um milhão de alcoólatras inveterados, além de um número bem maior de beberrões contumazes, cuja doença ainda não se tornou fatal. Quanto ao consumo de inebriantes no passado, não temos dados estatísticos precisos. Na Europa ocidental, entre os celtas e os teutões, durante toda a Idade Média e o início da época moderna, o consumo do álcool era talvez maior do que é hoje. Enquanto tomamos chá, café ou soda, nossos ancestrais se refrescavam com vinho, cerveja, hidromel e, séculos depois, com gim, brandy e “usquebaugh”.[104] Beber água regularmente era uma penitência imposta aos malfeitores, ou então considerada pelos religiosos, juntamente com o vegetarianismo ocasional, como uma mortificação muito severa. Não consumir inebriantes era uma excentricidade bastante marcante, a ponto de despertar comentários e apelidos depreciativos. Daí tais sobrenomes como o italiano Bevilacqua, o francês Boileau e o inglês Drinkwater.
O álcool é apenas uma das muitas drogas utilizadas pelos seres humanos como meio de libertação para o eu insulado. Entre os narcóticos naturais, estimulantes e alucinógenos, não há um cujas propriedades não sejam conhecidas desde tempos imemoriais. Pesquisas modernas nos deram um bom número de novos sintéticos, mas, no que se refere aos venenos naturais, simplesmente desenvolveram métodos mais aperfeiçoados de extração, concentração e nova composição dos elementos já existentes.
Do ópio ao curare, do cânhamo indiano à cocaína dos Andes e ao fungo siberiano, todas as plantas, arbustos e fungos capazes de entorpecer, excitar ou provocar visões quando ingeridos, já tinham sido descobertos e utilizados de forma sistemática. O fato é significativamente estranho; pois parece provar que sempre e em todos os lugares os seres humanos sentiram a precariedade absoluta de suas existências pessoais, a miséria de serem apenas o seu ser insulado e não outra coisa maior, alguma coisa, nas palavras de Wordsworth, “far more deeply interfused”.[105] Explorando o mundo à sua volta, o homem primitivo “experimentou todas as coisas que o cercavam e se fixou no bem”. No que se refere a autopreservação, o bem era cada fruto e folha comestíveis, cada semente, raiz e noz salubres. Mas, em outro contexto — o da insatisfação pessoal e do desejo de autotranscendência —, o bem era tudo contido na natureza por meio do que a consciência individual pudesse ser transformada.
As mudanças provocadas pelas drogas podem ser manifestamente para pior, podem causar mal-estar no momento e vício no futuro, assim como degeneração e morte prematura. Nada disso importa. Só o que interessa é a consciência, pelo menos por alguns momentos, por uma ou duas horas que seja, de ser alguém, ou, na maioria dos casos, ser outra coisa que não o ser insulado.
“Eu vivo, ou melhor, não sou eu que vivo, mas o vinho, o ópio, a mescalina e o haxixe vivem em mim.” Atravessar os limites do eu insulado representa uma tal libertação, que mesmo quando se obtém a autotranscendência por meio de náuseas que levam ao delírio, de paralisias que levam à alucinação e ao estado de coma, a experiência com drogas sempre foi considerada pelos primitivos e mesmo pelos civilizados como intrinsecamente divina. Êxtases através do uso de inebriantes constituem ainda uma parte essencial da religião de muitos africanos, sul-americanos e polinésios. Foi também outrora, o que fica provado em documentos que se conservaram, parte não menos essencial da religião dos celtas, teutões, gregos, povos do Oriente Médio e dos conquistadores arianos da Índia. A ideia não se reduz a que a “cerveja justifica melhor que Milton os objetivos de Deus em relação aos homens”. A cerveja é o deus. Entre os celtas, Sabázio era o nome divino que se dava à alienação sentida quando sob os efeitos da cerveja. Mais ao sul, Dionísio era, entre outras coisas, a concretização sobrenatural dos efeitos psicofísicos provocados pelo excesso de vinho. Na mitologia védica, Indra era o deus de um entorpecente chamado Soma, hoje em dia desconhecido. Herói exterminador de dragões, Indra era a projeção aumentada no céu do não eu estranho e glorioso experimentado pelo intoxicado. Identificado com a droga, ele se torna, como Soma-Indra, a fonte da imortalidade, o mediador entre o humano e o divino. Nos dias de hoje, a cerveja e os demais tóxicos, atalhos para a autotranscendência, não são mais adorados como deuses. Houve uma mudança na teoria, mas não na prática; pois muitos milhões de homens e mulheres civilizados continuam a prestar sua devoção, não ao espírito libertador e transfigurador, mas ao álcool, ao haxixe, ao ópio e seus derivados, aos barbitúricos e outros produtos sintéticos acrescentados ao velho catálago de venenos capazes de provocar a autotranscendência. Em cada caso, é claro, o que parece um deus é na verdade um demônio, o que simula liberação é de fato escravidão. A autotranscendência é invariavelmente descendente, no sentido do subumano, da degradação pessoal.
Do mesmo modo que o uso de inebriantes, a sexualidade primária, praticada por puro prazer e afastada do amor, foi outrora um deus, adorado não só como princípio de fecundidade, mas como manifestação do Não Ser absoluto, imanente em todo o ser humano. Teoricamente, a sexualidade primária há muito deixou de ser um deus. Mas na prática ainda pode se vangloriar de um número incontável de adeptos.
Existe uma sexualidade primária que é inocente, e outra que é moral e esteticamente sórdida. D. H. Lawrence escreveu de maneira encantadora sobre a primeira; Jean Genet escreveu detalhadamente, e com uma força terrível, sobre a segunda. A sexualidade do Éden e a sexualidade do esgoto — ambas têm o poder de levar o indivíduo além dos limites de seu eu insulado. Mas a segunda e (como tristemente se deduz) mais comum variedade leva aqueles que com ela compactuam ao mais baixo nível de subumanidade, desperta a consciência e deixa uma lembrança de mais total alienação do que a primeira.
Eis aí, para todos aqueles que sentem necessidade de escapar de sua identidade aprisionada, a constante atração da libertinagem e de equivalentes exóticos da libertinagem, tais como os descritos no decorrer desta narrativa.
Na maioria das sociedades civilizadas, a opinião pública condena a depravação e o vício das drogas como sendo errados do ponto de vista ético. E à reprovação moral são somados o desencorajamento fiscal e a repressão legal. O álcool é altamente taxado, a venda de narcóticos é proibida em toda parte e certas práticas sexuais são consideradas criminosas. Mas quando passamos do vício dos entorpecentes e da sexualidade primária ao terceiro meio de obter a autotranscendência descendente, encontramos da parte dos moralistas e legisladores uma atitude bastante indulgente. Isso parece ainda mais espantoso quando se pensa que o delírio das multidões, como podemos denominar, é muito mais perigoso à ordem social, constitui uma ameaça muito mais dramática a esta tênue crosta de decência, razão e tolerância mútua que constitui uma civilização, do que a bebida ou a libertinagem. Na verdade, um hábito generalizado e já longamente arraigado de excesso de entrega total ao prazer ligado à sexualidade pode resultar, como argumentou J. D. Unwin,[106] na redução do nível de energia de uma sociedade inteira, tornando-a, por conseguinte, incapaz de atingir ou manter um alto nível de civilização.
Do mesmo modo, o vício das drogas, se suficientemente difundido, pode diminuir a eficiência econômica política e militar da sociedade em que prevalece. Nos séculos XVIII e XIX, o álcool era a arma secreta dos traficantes de escravos europeus; a heroína, a dos militares japoneses no século xx. Embriagado, o negro era uma presa fácil. Quanto ao chinês viciado, podia-se ter certeza de que não causaria problemas ao conquistador. Mas esses casos são excepcionais. Deixada a seu arbítrio, uma sociedade geralmente tende à aceitação do seu veneno favorito. O entorpecente é um parasita no organismo político, mas um parasita que seu hospedeiro (falando num sentido metafórico) tem forças suficientes e bastante bom senso para manter sob controle. E o mesmo se aplica à sexualidade. Nenhuma sociedade que baseasse suas práticas sexuais nas teorias do Marquês de Sade poderia sobreviver, e na verdade nenhuma sociedade nem sequer se aproximou de tais práticas. Até mesmo os mais liberais entre os paraísos polinésios possuem regras e regulamentos imperativos categóricos e mandamentos. Contra os excessos da sexualidade, assim como do vício das drogas, as sociedades parecem saber se proteger com bastante sucesso. As defesas contra os delírios das multidões e suas consequências desastrosas parecem ser, na maioria das vezes, muito menos apropriadas. Os moralistas profissionais que investem contra a embriaguez são estranhamente reticentes sobre o vício igualmente repugnante da intoxicação nas massas — da autotranscendência descendente no sentido da subumanidade provocada pelo processo de se reunir em multidão.
“Onde dois ou três se reúnem em meu nome, lá estou entre eles.” Entre duzentos ou trezentos a presença de Deus se torna mais problemática. E quando os números atingem o milhar, ou vários milhares, a probabilidade de Deus estar lá, na consciência de cada indivíduo, declina até o ponto de se extinguir por completo. Porque a natureza de uma multidão excitada (e toda multidão é automaticamente autoexcitante) é tal que, onde dois ou três mil se reúnem, há ausência não somente da divindade, mas mesmo de traços mínimos de humanidade. O fato de ser um na multidão liberta o homem da consciência de ser um eu insulado e leva-o a um estágio infrapessoal, onde não existe responsabilidade, bem ou mal, necessidade de pensamento, julgamento ou discernimento — somente um sentimento vago de estar junto, o sentimento de uma excitação partilhada, de uma alienação coletiva. E a alienação é mais prolongada e menos cansativa do que a provocada pela libertinagem; a manhã seguinte, menos deprimente do que a que se segue à autointoxicação pelo álcool ou morfina. Além disso, pode-se aderir ao delírio da multidão não somente sem sentimento de culpa, mas até na maioria dos casos com o positivo esplendor da consciência limpa. Porque, longe de condenar a autotranscendência descendente provocada pela intoxicação em meio à massa, os líderes da Igreja e do Estado encorajam-na ativamente sempre que vier a servir a seus próprios fins. Individualmente, assim como nos grupos coordenados e com um objetivo comum que constituem a sociedade, homens e mulheres demonstram uma certa capacidade para o pensamento racional e para o livre-arbítrio à luz dos princípios morais. Reunidos em multidão, os mesmos homens e mulheres comportam-se como se não possuíssem razão nem livre-arbítrio. A intoxicação provocada pela multidão os reduz a uma condição infrapessoal e de irresponsabilidade antissocial. Drogados pelo veneno misterioso que toda multidão excitada secreta, caem em um estado de alta sugestionabilidade, semelhante ao que se segue a uma injeção de sódio amital ou à indução, seja por que meio for, a um leve transe hipnótico. Enquanto estiverem nesse estado, acreditarão em qualquer bobagem que lhes gritarem e responderão a qualquer ordem ou comando que lhes derem, por mais criminoso, louco ou sem sentido que seja. Para os indivíduos sob a influência do veneno secretado pelas massas, “tudo que eu repetir três vezes é verdade” —[107] e o que eu disser trezentas vezes é a revelação, é a palavra de Deus por inspiração direta. É por essa razão que os homens que detêm a autoridade — os padres e os dirigentes do povo — nunca proclamaram virtualmente a imoralidade dessa forma de autotranscendência descendente.
Na verdade, os delírios de massas provocados pelos membros da oposição em nome de princípios heréticos foram sempre denunciados pelos que estão no poder. Mas aqueles provocados por agentes governamentais, em nome da ortodoxia, são um assunto totalmente diferente. Todas as vezes em que pode servir aos interesses dos homens que controlam o Estado e a Igreja, a autotranscendência horizontal pela intoxicação das massas é considerada legítima e altamente desejável. Romarias e reuniões políticas, manifestações religiosas e paradas patrióticas — essas coisas são eticamente corretas se se tratarem de “nossas” romarias, “nossas” reuniões, manifestações ou paradas. O fato de a maioria dos que tomam parte nessas atividades ficar temporariamente desumanizada pelo veneno coletivo é de pouca importância, se comparado com o fato de que sua desumanização pode ser usada para consolidar os poderes políticos e religiosos dominantes.
Quando o delírio das massas é explorado em beneficio do governo e das Igrejas ortodoxas, os exploradores são sempre muito cuidadosos em não deixar a intoxicação ir muito longe. As minorias governantes aproveitam-se do desejo ardente que sentem os seus governados pela autotranscendência descendente para, em primeiro lugar, distraí-los e em seguida colocá-los num estado de não individualidade altamente sugestionável. Cerimônias políticas e religiosas são bem recebidas pelas massas, como oportunidades de se embriagarem com o veneno das multidões; e por seus governantes, como ocasiões de implantar ideias em mentes que cessaram momentaneamente de ter capacidade de raciocínio ou de livre-arbítrio.
O sintoma derradeiro de intoxicação das massas é uma violência maníaca. Exemplos de delírios de multidões que culminam em destruição gratuita, em automutilação brutal, em selvageria fratricida sem objetivo e contra os interesses elementares de todos os envolvidos são encontrados em quase todas as páginas dos livros dos antropólogos e — um pouco menos frequentemente, mas com desoladora regularidade — nas histórias mesmo das mais adiantadas civilizações. A não ser quando desejam liquidar com uma minoria impopular, os representantes do Estado e da Igreja são prudentes em não provocar um furor capaz de escapar de seu controle. Tais escrúpulos não constrangem o líder revolucionário que odeia o status quo e que só tem um desejo: criar um caos sobre o qual possa — quando tomar o poder — impor um novo tipo de ordem. Quando o revolucionário explora essa ânsia de autotranscendência descendente, vai até o limite mais frenético e demoníaco. Para homens e mulheres desgostosos de serem seres insulados e cansados das responsabilidades que têm como membros de um grupo humano com determinados objetivos, ele oferece oportunidades animadoras de “livrar-se disso tudo” durante paradas, manifestações e reuniões públicas. Os departamentos de organizações políticas são grupos objetivos. Uma multidão é o equivalente social do câncer. O veneno que ela secreta despersonaliza seus membros até o ponto de começarem a agir com uma violência selvagem da qual em seu estado normal seriam inteiramente incapazes. O revolucionário encoraja seus seguidores a manifestar esse derradeiro e pior sintoma de intoxicação das massas e então passa a dirigir sua fúria contra os inimigos, os que detêm o poder econômico, político e religioso.
Nos últimos quarenta anos, as técnicas utilizadas na exploração do desejo do homem em relação a essa forma mais perigosa de autotranscendência descendente alcançaram um extremo de perfeição jamais visto na história. Para começar, há mais pessoas por milha quadrada do que em qualquer outra época, e os meios de transporte para arrebanhar grandes grupos e, percorrendo enormes distâncias, concentrá-los em um único edifício ou condomínio são muito mais eficientes que no passado. Enquanto isso, mecanismos novos e outrora inimagináveis para animar as multidões foram inventados. Existe o rádio, que ampliou enormemente o alcance da voz estridente do demagogo. Há o alto-falante. amplificando e repetindo incessantemente a música violenta que expressa os ódios de classe e o nacionalismo agressivo.
A câmera (da qual já se disse ingenuamente que “não pode mentir”) e seus frutos: o cinema e a televisão; esses três tornaram a concretização de fantasias tendenciosas absurdamente fácil. E há finalmente a maior de nossas invenções sociais, a educação gratuita e compulsória. Todos sabem ler e estão portanto à mercê dos propagandistas, tanto do governo quanto do comércio, que possuem as fábricas de papel, de máquinas de linotipo e de prensas rotativas. Junte uma turba de homens e mulheres previamente condicionados pela leitura diária de jornais; submeta-os a uma orquestra com amplificadores, luzes brilhantes e o discurso de um demagogo que (como acontece com todos os demagogos) é ao mesmo tempo explorador e vítima da intoxicação das massas, e em pouco tempo você pode reduzi-los a um estado de subumanidade. Nunca tão poucos foram capazes de transformar tantos em tolos, maníacos e criminosos.
Na Rússia comunista, na Itália fascista e na Alemanha nazista, os exploradores da tendência fatal da humanidade para a intoxicação das massas têm seguido o mesmo método. Quando em oposição revolucionária, encorajaram a multidão sob sua influência a se tornar destrutivamente violenta. Mais tarde, quando tomaram o poder, só permitiram à intoxicação das massas se expandir livremente em relação a estrangeiros e bodes expiatórios escolhidos. Tendo alcançado um status quo que desejavam manter, passaram então a controlar a descida até a subumanidade, conservando-a no ponto ideal aquém da agitação. Para esses neoconservadores, a intoxicação das massas tornou-se daí em diante de valor inestimável como um meio de aumentar a sugestionabilidade dos indivíduos e assim torná-los mais dóceis às manifestações de autoritarismo. O melhor antídoto conhecido contra o pensamento livre é estar em uma multidão. Daí a repulsa total dos ditadores à “psicologia pura” e à vida particular.
Drogas, sexualidade primária e intoxicação das massas — são esses os três caminhos mais conhecidos para a autotranscendência descendente. Há muitos outros, não tão trilhados quanto essas estradas em declive, mas levando não menos certamente para o mesmo objetivo de degradação pessoal.
Basta pensar, por exemplo, no movimento rítmico. Nas religiões primitivas, o movimento rítmico prolongado é frequentemente usado com a finalidade de provocar um estado de êxtase impessoal e subumano. A mesma técnica visando o mesmo fim tem sido utilizada por muitos povos civilizados — pelos gregos, por exemplo, pelos hindus, por muitas seitas dervixes no mundo islâmico, e por seitas cristãs tais como as dos shakers e crentes. Em todos esses casos, o movimento rítmico, prolongado e repetitivo é uma forma de ritual praticada deliberadamente visando a uma autotranscendência descendente. A história também registra muitas explosões esporádicas de danças agitadas, balanços e meneios de cabeça involuntários e incontroláveis. Essas epidemias que numa região denominam de tarantismo, em outra de dança de são Vitor, têm ocorrido geralmente em tempos difíceis que sucedem a guerras, pestes e fome, e são mais comuns onde a malária é endêmica. O objetivo inconsciente dos homens e mulheres que se entregam a essas loucuras coletivas é o mesmo que perseguem os membros das seitas que usam a dança como um rito religioso — ou seja, o de fugir do eu insular através de um estado de irresponsabilidade, sem culpas passadas ou anseios futuros, mas apenas o presente com a feliz sensação de ser outro.
Intimamente associado com o rito produtor de êxtase do movimento rítmico encontra-se o ritual produtor do som ritmado. A música é tão grandiosa quanto a natureza humana e tem alguma coisa a dizer ao homem em todos os aspectos de seu ser, do sentimental ao intelectual, do visceral ao espiritual. Em uma de suas diversas modalidades, a música é uma droga poderosa, em parte estimulante e em parte narcotizante, mas inteiramente alteradora. Nenhum homem, não importa quão altamente civilizado seja, consegue ouvir durante muito tempo tambores africanos, contos indianos ou hinos patrióticos galeses e manter sua personalidade crítica e consciente intacta. Seria interessante juntar um grupo dos mais eminentes filósofos das melhores universidades, trancá-los num quarto quente com dervixes marroquinos ou voduístas haitianos e medir, com um cronômetro, a força de sua resistência psicológica aos efeitos do som ritmado. Os positivistas lógicos resistiriam mais que os idealistas subjetivos? Os marxistas se provariam mais fortes que os tomistas ou vedantistas? Que campo de experiência fascinante e fértil! Por enquanto, o que podemos seguramente prever é que, se expostos o suficiente aos ritmos monótonos e aos cantos, cada um de nossos filósofos acabaria por dar pulos e gritos juntamente com os nativos.
Os movimentos rítmicos e o som ritmado são geralmente, por assim dizer, somados à intoxicação das massas. Mas existem também caminhos privados que podem ser tomados pelo viajante solitário que não gosta de multidões ou não tem fé suficiente nos princípios, instituições e pessoas em torno dos quais as multidões se reúnem. Um desses caminhos particulares é o do mantra, ao qual Cristo denominou de “vã repetição”. Nos cultos religiosos públicos, a vã repetição é quase sempre associada com o som ritmado.
As litanias e similares são cantadas ou pelo menos entoadas. É com música que obtêm seus efeitos semi-hipnóticos. A vã repetição, quando praticada na privacidade, age sobre a mente não devido à sua associação com o som rítmico (pois funciona mesmo quando as palavras são apenas imaginadas), mas por meio do poder de concentração e memória. A repetição constante da mesma palavra ou frase leva frequentemente a um estado de percepção ou mesmo transe profundo. Uma vez induzido, o transe pode ser desfrutado em si mesmo como uma deliciosa sensação de um “não eu infrapessoal”, ou então utilizado deliberadamente com o objetivo de melhorar a conduta pessoal através da autossugestão e de preparar o caminho para a realização máxima da autotranscendência ascendente. Da segunda possibilidade falaremos mais tarde em outro trecho. No momento, estamos preocupados com a vã repetição como um caminho descendente que leva à completa alienação infrapessoal.
Devemos agora considerar um método estritamente fisiológico de fugir ao eu insulado: o caminho da penitência corporal. A violência destrutiva, que é o sintoma final da intoxicação das massas, não é sempre dirigida para o exterior. A história da religião está repleta de casos sinistros de autoflagelações, automutilações, autocastrações e até suicídios coletivos. Esses atos são consequência de delírio da multidão e são praticados em estados de exaltação. Muito diferente é a penitência corporal praticada privadamente e de cabeça fria. Nesse caso, o ato de flagelação é iniciado por uma determinação da vontade pessoal; mas sua consequência (ao menos em alguns casos) é uma transformação temporária da personalidade insulada em alguma coisa diferente. Essa outra coisa é a consciência, em si mesma intensa demais, por ser única, da dor física. A pessoa que se autoflagela se identifica com sua dor e, ao se transformar em apenas a percepção de seu corpo sofredor, livra-se daquele sentimento de culpa ligado ao passado e da frustração presente, daquela ansiedade obsessiva em relação ao futuro, que constituem uma grande parte do ego neurótico. Houve uma fuga de individualidade, uma passagem descendente para um estado de martírio puramente fisiológico. Mas a autoflagelação não precisa permanecer necessariamente nessa região de consciência. Como o homem que faz uso da vã repetição para superar-se a si mesmo, há possibilidade de fazer uso da alienação temporária da individualidade como uma ponte, digamos, levando ascensionalmente para a vida do espírito.
Isso levanta uma questão muito importante. Até que ponto e em que circunstâncias é possível a um homem usar o caminho descendente para atingir a autotranscendência espiritual? À primeira vista, tudo parece indicar que o caminho para baixo jamais terá a oportunidade de ser o caminho para cima. Mas no domínio da existência os problemas não são tão simples como são no nosso mundo bem organizado das palavras. Na vida real, um movimento descendente pode algumas vezes ser o início de um ascendente.
Quando a concha do ego é partida e começa a surgir uma consciência subliminar e fisiológica do não eu sob nossa personalidade aparente, acontece algumas vezes que captamos um lampejo, rápido mas apocalíptico, daquela alteridade que é o Fundamento de todo o nosso ser. Enquanto permanecemos isolados em nossa identidade, não temos consciência dos diversos não eus aos quais estamos ligados — o não eu orgânico, o não eu subconsciente, o não eu coletivo do meio psíquico no qual nossos pensamentos e sentimentos possuem sua vida, e o não eu imanente e transcendente do Espírito. Qualquer fuga, mesmo através de um caminho descendente, para fora da individualidade insulada, torna possível uma percepção ao menos momentânea do não eu em cada nível, incluindo o mais elevado. William James, em seu Varieties of religious experience, dá exemplos de “revelações anestésicas” que se seguem a inalações de gás hilariante. Teofanias semelhantes são algumas vezes experimentadas por alcoólatras e talvez existam momentos, durante a intoxicação produzida por quase qualquer tipo de droga, quando a percepção de um não eu superior ao eu em processo de desintegração torna-se possível por um breve lapso de tempo. Mas esses surtos momentâneos de revelação custam muito caro. Para os viciados em drogas, o momento de percepção espiritual (se ele realmente acontece) cede lugar bem cedo a um estupor subumano, exaltação ou alucinação, seguidos por terríveis ressacas e, a longo prazo, por um enfraquecimento permanente e fatal da saúde física e mental. Uma vez ou outra, uma única “revelação anestésica” pode agir, como qualquer outra manifestação da divindade, no sentido de estimular quem a experimenta a um esforço de autotransformação e autotranscendência ascendente. Mas pelo fato de tal coisa poder eventualmente acontecer não se justifica o emprego de métodos químicos de autotranscendência. Esse é um caminho descendente, e a maioria dos que o tomam atingirá um estado de degradação em que períodos de êxtase subumano se alternarão com períodos de uma individualidade consciente tão miserável que qualquer fuga, mesmo que seja para o suicídio lento do vicio das drogas, será preferível.
O que é verdade quanto às drogas, também o é, mutatis mutandis, quanto à sexualidade primária. O caminho leva para baixo, mas durante o percurso pode haver teofanias ocasionais. Os Deuses das Trevas, como os chamava Lawrence, podem mudar suas características e se tornar reluzentes. Na Índia existe uma ioga tântrica, baseada em técnicas psicofisiológicas complicadas, cujo propósito é transformar a autotranscendência descendente da sexualidade primária em autotranscendência ascendente. No Ocidente, o equivalente que mais se aproximou dessas práticas tântricas foi a disciplina sexual imaginada por John Humphrey Noyes e praticada pelos membros da Comunidade Oneida. Em Oneida, a sexualidade primária era não apenas civilizada com sucesso; era também compatível e subordinada a uma forma de protestantismo sinceramente pregada e firmemente praticada.
A intoxicação das massas desintegra o ego muito mais profundamente que a sexualidade primária. Suas exaltações, suas loucuras, sua sugestionalidade elevada ao mais alto grau só podem ser comparadas às intoxicações provocadas por drogas como álcool, haxixe e heroína. Mas mesmo a um componente de uma multidão excitada pode ocorrer (num estágio ainda inicial de autotranscendência descendente) uma revelação autêntica da alteridade que está acima da individualidade. Eis a razão por que algumas vezes pode surgir algum bem das reuniões mais coribânticas visando a despertar o fervor religioso. Algum bem tanto quanto um grande mal pode também resultar do fato de que as pessoas em meio à multidão tendem a se tornar sugestionáveis além da conta. Enquanto se encontram nesse estado, são sujeitas a estímulos que têm o poder de operar como ordens dadas a hipnotizados, mesmo depois que voltam a seu estado normal.
Como o demagogo, o pregador e o ritualista desintegram o ego de seus ouvintes reunindo-os em grupo e deixando-os sonados pelo excesso de vã repetição e som rítmico. Então, ao contrário do demagogo, fazem sugestões, algumas das quais são autenticamente cristãs. Isso, se funciona, resulta em uma reintegração das individualidades destruídas num nível mais elevado. Pode haver também reintegrações de personalidade sob a influência de ordens pós-hipnóticas transmitidas por políticos demagogos. Mas essas ordens são todas incitamento ao ódio, por um lado, e obediência cega e ilusão compensatória, por outro. Iniciada com uma dose maciça de veneno em meio a multidões, confirmada e orientada pela retórica de um maníaco que é ao mesmo tempo um explorador maquiavélico da fraqueza dos outros homens, a catequização política resulta na criação de uma nova personalidade, pior que a antiga e muito mais perigosa, porque inteiramente devotada a um partido cujo objetivo primordial é liquidar seus oponentes.
Fiz uma distinção entre demagogos e religiosos baseando-me no fato dos últimos poderem algumas vezes fazer algum bem, enquanto os primeiros podem apenas, pela própria natureza das coisas, fazer o mal. Mas não imaginemos que os exploradores religiosos da intoxicação das massas são inteiramente inocentes. Pelo contrário, foram os responsáveis no passado por males quase tão imensuráveis quanto os causados às suas vitimas (junto com as vítimas daquelas vítimas) pelos demagogos revolucionários de nossos dias. No decorrer das últimas seis ou sete gerações, o poder das organizações religiosas para fazer o mal diminuiu consideravelmente por todo o mundo ocidental. Deve-se isso primeiramente ao incrível progresso tecnológico e à consequente procura, pelas massas, de ilusões compensatórias que parecem ser mais positivistas que metafísicas. Os demagogos oferecem tais ilusões pseudopositivistas, enquanto as Igrejas não o fazem. Enquanto a sedução das igrejas declina, diminuem também sua influência, sua riqueza, seu poder político e, junto com tudo isso, sua capacidade para praticar o mal numa escala maior. As circunstâncias libertaram o sacerdote de certas tentações a que seus antecessores quase sempre não resistiam em séculos passados. Fariam bem em se afastarem voluntariamente de tais tentações que ainda persistem. Entre elas, destaca-se a tentação de obter poder através do estímulo ao desejo humano insaciável de autotranscendência descendente. Produzir deliberadamente a intoxicação das massas — mesmo que seja em nome da religião e supostamente “para o bem” do intoxicado — não se justifica moralmente.
No que se refere à autotranscendência horizontal, pouco precisa ser dito — não porque o fenômeno não seja de importância (longe disso), mas por ser por demais óbvio para exigir análise e por ocorrer com tanta frequência que se torna difícil de classificá-lo em poucas palavras.
Para escapar dos horrores do eu insulado, a maior parte dos homens e mulheres escolhe, na maior parte das vezes, não subir nem descer, mas escapar para os lados. Eles se identificam com uma causa maior que seus próprios interesses imediatos, mas que não os faz cair na degradação, e, se mais elevada, sem ultrapassar os níveis dos valores sociais correntes. Essa autotranscendência horizontal ou quase horizontal pode estar em qualquer coisa tão trivial quanto um hobby, ou tão valiosa quanto um casamento por amor. Pode ser produzida através da autoidentificação com qualquer atividade humana, desde a gerência de um negócio até a pesquisa sobre física nuclear, de compor músicas até colecionar selos, do dever político de educar crianças aos estudos dos hábitos matinais dos pássaros. A autotranscendência horizontal é da maior importância. Sem ela não haveria arte, ciência, lei, filosofia nem civilização na verdade. E não haveria também guerra, odium theologicum ou ideologicum, nem intolerâncias constantes, nem perseguições. Esses grandes bens e males imensos são decorrentes da capacidade do homem para uma autoidentificação total e constante com uma ideia, um sentimento, uma causa. Como poderemos ter o bem sem o mal, uma civilização avançada sem bombardeio de saturação ou extermínio de hereges políticos ou religiosos? A resposta é que não poderemos possuir isso enquanto nossa autotranscendência permanecer apenas horizontal. Quando nos identificamos com uma ideia ou causa estamos de fato adorando alguma coisa comum, incompleta e provinciana, alguma coisa que, embora nobre, é contudo ainda demasiadamente humana.
“Patriotismo”, como uma grande patriota concluiu no dia de sua execução pelos inimigos de seu país, “não é o suficiente”.
Nem o socialismo, nem o comunismo, nem o capitalismo; nem a arte, a ciência, a ordem pública, nenhuma religião ou igreja. Tudo isso é indispensável, mas nada disso é o bastante.
A civilização exige do indivíduo uma autoidentificação devotada às mais elevadas causas da humanidade. Mas se essa autoidentificação com o que é humano não é acompanhada por um esforço consciente e congruente visando a atingir a autotranscendência ascendente no sentido da vida universal do espírito, os bens alcançados estarão sempre misturados a males que os contrabalançam. “Fazemos”, escreveu Pascal, “da verdade um ídolo; porque a verdade sem caridade não é Deus, mas Sua imagem e ídolo, a quem não devemos amar nem venerar.” E não é apenas errado adorar um ídolo; é também excessivamente inconveniente. A adoração da verdade separada do amor cristão — autoidentificação com a ciência, não acompanhada de identificação com o Fundamento de todo o ser — resulta no tipo de situação com que presentemente nos defrontamos. Todo ídolo, por mais sublime que seja, transforma-se, com o tempo, num Moloch, sedento de sacrifiício humano.
Sobre o Autor
Aldous Leonard Huxley nasceu em 26 de Julho de 1894 no condado de Surrey, na Inglaterra. Seu primeiro livro foi publicado em 1916, uma coletânea de poemas. Autor de uma linhagem de reconhecidos intelectuais, em que sobressai o avô, o biólogo Thomas Henry Huxley, defensor das idéias evolucionistas de Darwin, Aldous teve sua reputação literária estabelecida a partir de 1921 com a novela Crome Yellow. Imediatamente seguiram-se sátiras brilhantes (Antic Hay, de 1923; Folhas inúteis, de 1925; Contraponto, de 1928), nas quais o autor analisa de maneira espirituosa, porém implacável, as agruras da sociedade contemporânea.
No período anterior a segunda guerra mundial, a obra de Huxley adquire um tom mais sombrio. São desse período Admirável Mundo Novo (publicado em 1932 denuncia os aspectos desumanizadores do “progresso” científico e material) e Sem olhos em Gaza (novela pacifista de 1936), além de uma série de ensaios.
Em 1937, no auge da fama, Huxley deixa a Europa e se muda para a Califórnia. No momento em que o Ocidente se preparava para a guerra, ele começa a acreditar que a chave para a resolução dos problemas do mundo estaria na troca da razão individualista ocidental pela “sabedoria perene”, de caráter místico, centrada na idéia da unidade. São dessa fase tanto as obras de ficção O Tempo Deve Parar, de 1944 e A Ilha, de 1962 (uma espécie de sequência de Admirável Mundo Novo), quanto o famoso relato de sua primeira experiência com Mescalina, As Portas da Percepção, de 1954, onde Jim Morrison buscaria o nome para sua ainda desconhecida banda “The Doors”. Os Demonios de Loudun, cujo epílogo foi apresentado neste artigo, foi a obra anterior a Portas da Percepção.
Nos últimos dias de sua vida, já impossibilitado de falar, Huxley escreveu um pedido à sua mulher para injetar 100 µg de LSD. Ela injetou uma dose às 11:45 da manhã e outra algumas horas depois. Ele morreu às 17:21 do dia 22 de novembro de 1963, aos 69 anos. As cinzas de Huxley foram enterradas no jazigo da família,[2] no cemitério de Watts, casa de Watts Mortuary Chapel em Compton, uma vila perto de Guildford, Surrey, Inglaterra.
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