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O Apocalipse Psicotecnológico: Evolução Segundo a Psilocibina

A História humana é um período caótico de transição metamórfica. É um portal no qual entramos macacos e sairemos alguma outra coisa impossível de ser prevista.

O que hoje chamamos de “tecnologia” não é simplesmente uma escolha histórico-evolucionária e nem mesmo uma produção do homem, é simplesmente parte de um processo de transformação pelo qual estamos passando e nem sequer temos controle. Apenas pensamos que temos. Somos primatas numa montanha-russa cujas dimensões e direções estão fora do nosso campo de visão. Mas gostamos de brincar de sermos os maquinistas dessa coisa.

Com a tecnosfera em estado avançado de desenvolvimento, tendemos a pensar na tecnologia em termos de sistemas e máquinas avançadas, mas é importante lembrar que, o que quer que seja “isso”, é parte de nós no mínimo desde que construímos as primeiras ferramentas de pedra lascada para caçar, na pré-história. Dissolvendo por um momento nossas atuais concepções históricas e culturais, vemos que esse é o próprio processo que caracteriza nossa espécie; é o que permite nos vermos com orgulho como diferentes dos demais primatas. Não é algo que estamos “fazendo”, é algo que estamos passando, e que nos modifica em um ritmo cada vez mais acelerado.

Na medida em que avança, esse processo também acelera, pois cada avanço destranca um novo campo de potencialidade que antes não poderia ser vislumbrado. É um processo análogo ao da evolução biológica, já que a vida se desenvolve num regime de complexificação orgânica exponencial, como representado em símbolos mitológicos como a “árvore da vida”.

Num sobrevoo mais distanciado da nossa realidade cotidiana, vemos que não trata apenas de um processo análogo, mas de fato do mesmo processo. Não existe uma separação realmente rígida entre evolução tecnológica e evolução biológica, ambos podem ser vistos como estágios diferentes do mesmo movimento evolutivo. Aquilo que fez organismos unicelulares se agregarem para formar organismos complexos, iniciando a evolução da vida no planeta, agora invade o âmbito da evolução epigenética através da cultura e da tecnologia humanas, anunciando a emergência de uma nova dimensão evolucionária na Terra.

Mas isso é apenas a continuação avançada do que sempre ocorreu. À medida em que esse processo se complexifica em miríades de ramificações, cada novo salto carrega um potencial maior de transformação e acontece em um intervalo de tempo menor que o anterior, rumo a uma concrescência onde o desenvolvimento tecnológico, que é atual fio de navalha do processo, se dará de forma automática e instantânea. Nesse ponto, é como se a tecnologia assumisse as rédeas do seu próprio desenvolvimento – como o nascimento de uma nova criatura completamente imprevisível e fora dos domínios de controle humano. O mito futurista da máquina que adquire vida própria ganha aqui um fundamento lógico. E a explosão das atividades epigenéticas nos últimos 50 mil anos (que representam nada mais que o último segundo da nossa história evolutiva) é um sintoma de estamos nos aproximando disso.

O que geralmente não é levado em conta nesse tipo de história à la ficção científica é a verdadeira implicação disso na natureza da realidade humana. Considerando que a nossa percepção do tempo é um produto da exposição e processamento de informações pelo cérebro, isso significa que, nesse ponto de infinitas transformações instantâneas, em nossa percepção subjetiva, o que se passa no atual microssegundo de existência será, no próximo, tão antigo quanto a idade da pedra é hoje para nós, e o próximo será tão novo e transformador que nem sequer poderíamos imaginá-lo antes, assim como um primata em evolução nunca poderia imaginar a invenção da internet.

O passado não mais nos preparara para o futuro em nenhum nível, pois mesmo nosso futuro mais imediato é inteiramente desconhecido e imprevisível. Não há mais “farol” para iluminar o caminho à frente. Em outras palavras: Nossas faculdades cognitivas normais entram em colapso.

O tempo é a nossa rota de colisão e fusão com essa estranha entidade psicotecnológica que mantivemos contato ao longo da história. Não apenas nós estamos nos tornando máquinas, mas do ponto de vista das máquinas, elas estão se tornando nós. É um processo simbiótico que dará origem a uma criatura transhumana totalmente diferente de qualquer coisa possível de ser imaginada.

Cogumelos mágicos na minha psicoterapia: um mergulho no sagrado

Por: Fernando Beserra

É um grande prazer fazer a minha estreia como colunista aqui no Mundo Cogumelo. Me lembro que o site já era uma referência para mim quando comecei a escrever em um antigo blog: o Enteogenico, em 2009. Segui escrevendo a coluna Portas da Percepção, no Hempadão, a partir de 2010, durante quase 10 anos. E de lá para cá, o movimento psicodélico brasileiro amadureceu e os conhecimentos se tornarem mais amplos e acessíveis. Para que me conheçam um pouco: sou psicólogo, um dos membros fundadores da Associação Psicodélica do Brasil (APB) e atualmente faço meu doutorado em psicologia clínica (PUC-SP) sobre o suporte psicológico às crises induzidas por psicodélicos.

Neste primeiro texto, aqui no mundo cogumelo, vou escrever um pouco sobre uma experiência que tive com cogumelos mágicos em contexto terapêutico, no qual fiquei, durante um pouco mais de seis horas, acompanhado por uma psicóloga e um psicólogo. Estudo o tema da psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos há muitos anos, já tendo realizado grupos de estudo e dado cursos sobre o tema. Parte deste processo, no que tange seu viés coletivo, em especial sobre a integração da experiência psicodélica, foi consolidado em um projeto coletivo no TRIP (Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica), um projeto da Associação Psicodélica do Brasil (https://associacaopsicodelica.org/trip/), que teve o Sandro Rodrigues como idealizador/organizador. Mas como não há regulamentação, não é possível realizar a terapia psicodélica de forma oficial. Por esta razão, no melhor dos casos, posso informar profissionais de saúde que utilizarei meus cogumelos, por meu próprio desejo, e eles podem utilizar um manejo, por meio da uma compreensão de redução de danos e da ética profissional, isto é, não negarem o atendimento. Além, é claro, de depois de qualquer experiência pessoal com psicodélicos, também poderem contribuir com a integração da experiência, caso sejam profissionais capacitados e não sejam preconceituosos.

A experiência narrada foi realizada em 2020. Há algum tempo estava usando apenas microdosagem e/ou minidosagem, tendo feito, inclusive, o protocolo do James Fadiman no primeiro caso. Tal uso cuidadoso se deveu a uma mudança no padrão de uso, desde que tive um quadro de ansiedade no final de 2018, quando me encontrava absolutamente absorvido por uma quantidade de trabalhos e responsabilidades sobre-humanas. Desde então, retornei a psicoterapia e utilizei durante alguns meses um antidepressivo inibidor seletivo de recaptação de serotonina (ISRS), além de manter um uso de ansiolítico em SOS, que logo abandonei. Quando abandonei o antidepressivo, após alguns meses de uso, conforme preconizado e prescrito, iniciei o protocolo de microdosagem de LSD, testados com o reagente de Ehrlich, o que acredito que tenha ajudado a realizar um desmame mais tranquilo do antidepressivo, em especial devido aos efeitos serotoninérgicos (e, quem sabe, à neurogênese) relacionados aos efeitos dos psicodélicos indois.

O uso dos cogumelos não me era desconhecido, embora nunca tenha feito uso regular deles. Desta forma, optei por uma dose de 3g de Psilocybe cubensis desidratados, de uma fonte que sabia que conseguiria cogumelos com um efeito bastante potente. Além disso, sempre estive bastante ciente, pelos usos que já realizei de substâncias psicodélicas, que o fator set-setting-matrix por vezes é mais potente do que um olhar reducionista e quimicocêntrico da dose. Não compactuo da visão, para mim uma bobagem, de achar que a dose forte ou heroica é 5, 7 ou 10g, sem considerar o sujeito e o ambiente de uso. Entre o padrão/genérico e o concreto, podem ocorrer grandes abismos, por razões que não pretendo aprofundar aqui.

Além disso, a escolha pelos cogumelos com psilocibina/psilocina parecia ser uma escolha adequada, já que estudos (GROB et al., 2011; GRIFFITHS et al, 2016; ROSS et al, 2016) demonstram a sua importância para redução de ansiedade, mesmo que em um contexto diferente do meu (nestes estudos a ansiedade teve melhoras, mas os estudos focaram na ansiedade em pacientes com doenças terminais). Na verdade, os cogumelos com psilocibina parecem ter usos terapêuticos em diferentes campos da saúde mental, como discuto neste texto (https://www.cartacapital.com.br/blogs/hempadao/cogumelos-e-saude-mental/).

Durante todo o último período de psicoterapia fui aprendendo diversas formas de manejo da minha ansiedade, assim como mergulhando em minha sombra, nas questões que surgiram do meu si-mesmo e de outros arquétipos e complexos constelados. Tomando consciência, aos poucos, dos meus demônios e potenciais latentes. Mas a questão da ansiedade permanecia lá. Mesmo com ou sem o antidepressivo. Mesmo após tanto tempo de análise e mesmo sem crises que me deixassem atordoado e com a sensação de morte, lá estava ela. E por vezes me incomodava muito. Na verdade, ainda incomoda. E, bem, me parecia que em algum momento seria bom buscar não apenas mecanismos para lidar e fazer ela diminuir, mas olhar ela de frente. Encontrar a sua raiz ou a sua finalidade. Para que ela precisava se postar ali? E por que, afinal, eu não tinha encontrado uma forma de integrar aquilo que fazia o sintoma surgir… Como ir além da razão, do racional e olhar a ansiedade de frente? Sonhos e imaginação ativa certamente eram formas que eu já utilizara. Mas, ainda assim, sentia que não tinha entrado realmente neste espaço e que era necessário ir além. Além da busca de superar a ansiedade e de cura, havia ainda uma busca, paradoxal, de viver o que tivesse que ser vivido durante a experiência psicodélica, de forma a não me fechar em uma expectativa que pudesse dificultar o mergulho no inconsciente. É importante escrever, sobre este tópico, que como psicólogo junguiano, tenho a compreensão de que a relação entre consciente e inconsciente seja marcada pela compensação.

Na psicologia analítica entende-se que, ao longo do processo de vida de uma pessoa, seu crescimento e desenvolvimento, o uso contínuo de determinadas funções psicológicas (pensamento-sentimento-sensação-intuição) levam a unilateralidade da consciência, a padrões de conduta que excluem uma parcela dos conteúdos e pulsões humanas ao inconsciente, seja por uma via de repressão ou pela pouca atenção disponibilizada para estes. A unilateralidade, aponta Jung (1958/2006, par 138): “é uma característica inevitável, porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade. A unilateralidade é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente”. Dito de outro modo, se eu ficar focado demais em uma leitura racional/conceitual do mundo, provavelmente vou deixar de observar, continuamente e cada vez mais, certas dimensões afetivas ou avaliativas sobre o mesmo mundo/fenômeno que eu me relacionava/observava. O direcionamento da consciência é compensado ou complementado pelo inconsciente, tencionando a produção de símbolos. A posição da pessoa diante do inconsciente e da emergência de imagens carregadas de afetos, até então negados ou não reconhecidos, é fundamental para o desenvolvimento deste processo. O apoio do terapeuta adequadamente treinado também seria determinante para ajudar o paciente a efetivar a reunião de consciente e inconsciente e para chegar a uma nova atitude (JUNG, 1958/2006).

Após escrever um pouco sobre o set, isto é, sobre as minhas expectativas, mas que também envolvem a minha psique como um todo, é preciso escrever sobre o setting.

O uso dos cogumelos foi equivocadamente feito antes de chegar no espaço que seria realizado o uso, em um consultório. Quando entrei no carro para seguir com o um dos terapeutas para o consultório, resolvi tomar as 10 capsulas de 300mg de cogumelos mágicos. Por sorte não tivemos trânsito e chegamos no consultório cerca de 15 minutos depois. O efeito demorou menos de 20 minutos para começar e já começou bastante forte. Quando chegamos no consultório não houve muito tempo para preparar o som e o que fosse necessário para a viagem. Deu tempo, mas foi tudo por pouco. Pensei em outras viagens que o tempo para fazer efeito demorou bem mais, cerca de 30 a 40 minutos.

M.A.P.S.

Um dos pontos centrais era a escolha do setting musical. Para tal manifestação da mente, foram escolhidas as músicas que a Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) utiliza em psicoterapia aliada ao uso de MDMA. As músicas foram muito boas e importantes durante a viagem, mas em alguns momentos é como se estivessem “fora de tempo”, em especial no final da sessão, pensando nos momentos da terapia psicodélica desde o período da latência, passando pelo platô até a descida do efeito. Ex: músicas muito tensas ou aceleradas, que podem ser propícias para o momento do platô, podem ser pouco adequadas no momento que se espera uma saída da viagem, mais tranquila, que seria o fechamento daquela experiência.

Cabe destacar que eu me mantive com uma espécie de venda nos olhos (na verdade um tecido) durante a experiência e fiquei, boa parte dela, deitado em um sofá, enquanto escutava a música.

Genericamente, a experiência se desenvolveu em cenas. A cada música eu entrava em um território, em uma narrativa. Afetivamente foi tudo muito impactante. Eu coloquei as músicas em uma caixa bluetooth e acabei preferindo ficar sem fones de ouvido. Algumas destas narrativas, que vinham com a música, eram mais assustadoras, outras mais agradáveis. Em tempo, quando abria o olho (imagino que tenha ficado cerca de 2 horas sem abri-los), tudo se movia a todo tempo. Via as energias seguindo meus movimentos e o chão se conectando [cada fragmento] e movendo. Também pareciam padrões (o chão).

Um primeiro impacto foi pensar o quão autorizado eu estaria para falar o que eu vivia, para expressar as imagens do mistério/sagrado para os terapeutas. E o quão autorizados estávamos para realizar aquela terapia/cerimônia. Então eu percebi que eu não estava em uma sala de consultório, mas que eu estava, paradoxalmente, em um templo sagrado. O consultório deveria ser um templo para poder receber as experiências psicodélicas. Se não fosse assim, não havia autorização para conduzir a experiência. Essa mensagem foi sentida como um aprendizado, tanto na experiência, quanto após a mesma.

A psilocibina já é conhecida – no contexto da ciência – em catalisar experiências religiosas desde a pesquisa de doutorado do psiquiatra Walter Pahnke, orientada pelo psicólogo Timothy Leary em 1962, quando Pahnke forneceu psilocibina a um grupo experimental no Good Friday Experiment. No retorno das pesquisas com psicodélicos, uma nova experiência de campo foi realizada, desta vez por Roland Griffiths, Johnson e Maclean, que observaram que a experiência com psilocibina produz uma mudança de personalidade nos usuários. Os pesquisadores já sabiam que, de acordo com as pesquisas de Metzner em 1963 e McGlothlin e Arnold, de 1971, que administrada em condições de suporte, 50 a 80% dos participantes reivindicavam mudanças benéficas na personalidade, valores, atitudes e comportamentos.

Para Griffiths e outros (2011) a experiência positiva da psilocibina, para um impacto de longo termo, depende da profundidade dos insights e de experiências “tipo-místicas”, como as descritas por Pahnke em sua experiência do Good Friday Experiment. Os temas centrais da experiência mística, como definida por Stace e Hood são: sentimentos de unidade e interconexão com todas as pessoas e coisas, um senso de sagrado, sentimentos de paz e alegria, sensação de transcender o tempo e o espaço normais, inefabilidade, e uma crença intuitiva de que a experiência é a fonte de verdade objetiva sobre a natureza da realidade.

Então toda aquela psicoterapia precisava dialogar com o sagrado. Parece que precisaria ocorrer uma conexão entre a ciência e os saberes tradicionais. Não é que eu ou os psicólogos precisassem ser xamãs, mas é como se tivéssemos que estar conectados com aquele saber ancestral.

Até duas horas após o início do efeito (10:30 às 13h aprox. – primeira vez que vi a hora) certamente foram as viagens mais fortes. Foi curioso (e falei muitas vezes essa palavra, sem saber me expressar melhor), que no início da experiência é como se eu já tivesse recebido todas as informações que eu buscava. Vinham insights como mensagens de autoridade [que eu tentava expressar] e eu falava, mas muito baixo, e para os terapeutas parecia mesmo que eu estava falando comigo mesmo, o que era verdade, mas ao mesmo tempo eu tentava narrar – sem sucesso – o que estava acontecendo. E meus braços dançavam no ar, em uma busca de manter aquela conexão viva e alinhada.

Uma mensagem em particular que foi muito forte e que eu recebi foi que o segredo era me aceitar, inclusive com a minha ansiedade. Isso foi muito impactante e impressionante, quer dizer, a ansiedade compreendida como algo que me constituía e que eu deveria aceitar, olhar com carinho. Não é nada simples, mas posso dizer que esse posicionamento fez com que eu lidasse melhor com ela e evitasse o uso de medicações.

Uma imagem muito forte foi a de uma cobra. Me recordo de mais de uma vez ver os olhos da cobra, uma cobra ameríndia. Quando eu a via, eu percebia que estava entrando novamente na experiência, entrando no mundo dela. No mundo ameríndio e tradicional. A serpente era uma espécie de guardiã do espaço sagrado. Embora seus olhos fossem amedrontadores, era uma guardiã do mundo transcendental, que permitia ver além dos olhos. Depois cheguei a me lembrar, no tocante a serpente/cobra, das pinturas de Alexandre Segrégio (https://alexandreluiz.art.br/galeria/#visionario). Ao lado, um desenho que iniciei depois, buscando me aproximar da imagem.

A entrada era uma imersão no inconsciente coletivo e na autonomia de suas imagens arquetípicas e míticas, que me traziam fortes afetos. Era como se, ao mesmo tempo, tudo estivesse conectado a minha vida pessoal, mas aquelas imagens e cenas expressassem algo muito além de mim.

Em um momento senti como se estivesse passando por uma experiência de nascimento de um terapeuta, como se não contasse, de alguma forma, os anos anteriores como psicoterapeuta e eu estivesse ali passando por uma espécie de ritual de nascimento. Não senti propriamente uma morte. Tampouco me vi nascendo, mas senti essa energia e pensamentos (como se não fossem meus, mas da experiência, desta voz) que eu estava ali nascendo como terapeuta. Eu estava no alto, em um vácuo, para renascer, mas as imagens passavam rápido. Parte me parecia vago, como se eu tentasse/precisasse entender, e parte parecia claro que se tratava deste processo.

É importante recordar aqui do set que mencionei no início do texto. As expectativas que modulam a experiência psicodélica, as imagens arquetípicas que são nela constelados, dependem não apenas das expectativas conscientes, mas igualmente das inconscientes. Era óbvio que, como aquela era a minha segunda experiência psicodélica em contexto terapêutico, eu tivesse uma grande pré-ocupação com a minha formação enquanto profissional e terapeuta. E, aparentemente, este tema periférico se tornou central durante este mergulho psíquico. O processo de morte e renascimento, ou mesmo de nascimento simbólico, são temas arquetípicos, tratados nas mais diversas culturas, mitologias e religiões. Entre os Fang no Congo e no Gabão, por exemplo, ao utilizarem a Tabernantha iboga, psicodélico que contém ibogaina, falam da ocorrência de uma “pequena morte”, por meio da qual a pessoa se reúne aos seus ancestrais que são acompanhados ao reino dos vivos, trazendo generosidade (DE RIOS, 2005).

Em processos de transformação há a importância de um espaço de suporte e fechamento, denominado na alquimia de vas herméticum. Esse vaso alquímico, hermeticamente fechado, facilita a imersão nas chamas dos afetos e do inconsciente. A imersão, por vezes, é sentida como provocando um aniquilamento do eu, para um novo renascimento. No meu caso, não senti esta morte do eu. Mas senti este nascimento como algo muito importante para o meu desenvolvimento enquanto ser humano e enquanto psicoterapeuta. O vaso alquímico, no contexto psicoterapêutico, pode ser comparado ao espaço seguro – no qual o sigilo é resguardado – no qual ocorre a transformação.

Chegando no momento da saída do platô da experiência psicodélica, posso dizer que eu me sentia mais cansado e com medo. Havia um medo sub-reptício do quanto eu suportaria daquela intensidade. E o medo de não voltar já começava a aparecer à consciência… Então eu lembro de ver muito impactado um portão (com duas portas) vermelho, no meio do mar, que dava acesso ao Self e eu não tive coragem de seguir, porque é como se, caso eu abrisse aquela porta, a experiência se tornaria muito mais louca e impactante e também poderia ter muito menos a presença do Eu. Me assustei com isso, com o medo da loucura, e não abri a porta. Senti depois que isso pode ter impactado negativamente a minha experiência (não abrir). Por outro lado, que eu poderia não estar pronto para aquele encontro em particular, pois, por vezes, uma epifania pode cegar ou até matar (amplificação).

Qualquer processo de transformação pode aumentar a ansiedade e o medo, pois é da própria mudança da identidade que está em jogo. Stanislav Grof (1980) expõe que é importante encorajar a pessoa a uma completa rendição experiencial sem controlar ou bloquear o processo em decorrência de reservas ou incertezas cognitivas (GROF, 1987). Neste momento, entretanto, parecia muito difícil, mesmo que me sentisse cuidado, ir além. Parte da experiência posterior com as imagens, foi já de um cansaço mental. Eu via fluxos e não conseguia lembrar depois deles ou acompanhá-los plenamente. Mantive a consciência, mas sinto que neste momento já havia algum rebaixamento de consciência. Só conseguia seguir os fluxos, que também já eram mais brandos (por outro lado).

Várias conversas foram travadas com os terapeutas na medida em que eu ia voltando, e as vezes sentia a necessidade de parar um pouco de conversar, porque era muito cansativo. E eu voltava a deitar e fechar os olhos. Mas se não entrava na experiência, também era cansativo. Na compreensão de Grof (1980), em LSD Psychotherapy, o melhor procedimento teria sido estimular o meu retorno a experiência, mesmo que por meio da hiperventilação. Mesmo que a terapia não tenha sido conduzida desta forma, é importante recordarmos que o suporte a experiências psicodélicas ainda é um campo experimental e muito importante ser desenvolvido. Grande parte das pesquisas contemporâneas enfatiza muito mais os resultados quantitativos e dá pouca atenção a parte qualitativa e dos manejos das sessões com psicodélicos em psicoterapia.

Retorno. Neste final, no momento de descida da experiência, eu ia a um pátio algumas vezes e foi bom, porque pude ver o céu e me sentir bem. Mas posso dizer que meu sentimento ficou muito instável. Me sentia bem, me sentia mal, me sentia com medo, me sentia como um guerreiro, seguro, me sentia desconectado, me sentia de muitas formas. Certamente este foi o momento mais difícil de toda a sessão. Em alguns momentos eu dancei (pouco tempo), com os efeitos mais fortes (foi agradável) e depois tive momentos que tive vontade de dançar, cheguei a querer dançar com os terapeutas, que eles dançassem também, mas me senti afastado. Senti que era uma necessidade minha e não deles. Mas isso fez com que eu sentisse estranho (na segunda vez, que a experiência era menos intensa) e senti que o eu estava inibindo aquele processo. A consciência racional que retornava acabava bloqueando parte daquela experiencia de entrega necessária. Senti como se fosse estranho eu estar dançando no meio do consultório sozinho. Cheguei a desenhar, mas tudo que eu fazia não alterava a sensação de estranhamento e alguma solidão. Eu me sentia muito frágil e pouco seguro de sair dali, enquanto pensava na importância da minha família na minha vida e o quanto eu gostaria de estar bem para estar com ela. Enquanto isso, em uma experiência um pouco mais agradável, o tapete do consultório se tornou um enorme muro de metal, com alguns seres andando. Era um resíduo da trip que retornava, por vezes mais forte. Fiquei bastante tempo olhando aquele tapete alquímico, sem buscar qualquer interpretação.

Após cerca de 4 horas eu fiquei extremamente cansado. O efeito já era periférico, mas o fato de insistir em conversar não era claro se era o melhor a fazer. Por um lado, eu não conseguia retornar completamente a experiência, e permanecia com um humor desagradável e com uma sensação de desamparo bastante profunda, mas sem objeto. Ir embora ou até ir à rua parecia algo muito difícil… Em algum momento percebi que ia ter que lidar com o estado emocional desagradável que eu estava, pois não poderia continuar ali para sempre e não era bom. A despedida foi um pouco triste, do espaço e da terapeuta. Eu não tinha animo para dar uma despedida melhor. Para sair animado de lá, apesar de ter a clareza que tinha sido a uma das experiências psicodélicas mais profundas que eu tinha experimentado.

Matrix. A matrix, de acordo com Betty Eisner (1997), envolve o pré e o pós-experiência psicodélica. Ou seja, as relações ambientais mais amplas que o setting, incluindo amigos e familiares. O modo de suporte dos amigos e familiares pode, de acordo com esta perspectiva de Eisner, alterar o próprio resultado da terapia psicodélica.

Fui me sentar em uma padaria para tomar um suco com o outro terapeuta e comer um pão com ovo. A possibilidade de sair de mim e poder perguntar como ele estava e outras coisas, reduziu levemente os sentimentos difíceis que estava vivendo. Depois disso, fui muito bem acolhido em casa. Embora a minha companheira não use substâncias psicodélicas, ela estava preparada já, ciente da experiência, e havia ligado para ela e falado como estava me sentindo, mais ou menos às 16:30h, um pouco antes de sair da psicoterapia. Tinha pensado em ver algo bem light na televisão (série), preferencialmente alguma série que a minha filha pré adolescente gosta, algo infantil-adolescente. Acabou que elas não foram ver série e vi um episódio de Witcher com a minha companheira, foi bom ela estar comigo e me senti melhor.

Pós-experiência. Fiquei com dor de cabeça a noite até a manhã seguinte. Houve um aumento da ansiedade, que foi melhorando aos poucos. Embora eu estivesse muito cansado, tive dificuldades para dormir e acordei, na verdade me levantei da cama, sincronicidade! às 4:20h da manhã. Fiquei no CPU e depois consegui dormir mais umas duas horas. Foi bom no dia seguinte não ter compromissos mais duros, pois me senti bastante cansado ainda e com instabilidade no humor (embora cada vez menor).

Os sentimentos negativos foram melhorando e três a quatro dias depois eu já estava me sentindo realmente bem. A experiência trouxe muito o que trabalhar posteriormente na psicoterapia regular e não psicodélica e de forma muito mais profunda do que o habitual. Hoje consigo olhar de forma muito positiva para trás, mesmo que tenha sido muito difícil e duro, inclusive pela piora inicial que passei nos dois dias pós-sessão. Por outro lado, tratou-se de um mergulho que eu considero que não seria viável na psicoterapia regular e que promoveu uma ampliação de consciência significativa.

Integração. Eu costumo a dizer que a sessão psicodélica, durante uma prática psicoterapêutica, é onde as coisas começam e não onde as coisas terminam. O impacto terapêutico dos psicodélicos, ao que parece, está relacionado tanto ao efeito subjetivo e fisiológico da substâncias, quanto as posteriores compreensões e integrações da experiência. Isso envolve o quanto nos transformamos na nossa vida diária e em nosso modo de ser e estar no mundo, mesmo que isso nem sempre seja trivial ou óbvio.

Na psicologia analítica, entende-se por integração uma operação psíquica de superação da dualidade e tensão entre consciente e inconsciente, por meio da elaboração de símbolo(s) que permitam incorporar porções cindidas da personalidade. Ocorre, neste caso, um maior equilíbrio psíquico e com a ampliação da consciência, a continuidade de um processo direcionado à totalidade. Em alguns autores do campo da psicoterapia com psicodélicos, a integração já se refere a um aspecto mais simples e prático, isto é, o quanto você transformou ou alterou a sua atividade de vida diária, graças as experiências psicodélicas que viveu. Daí que este processo pode ser ajudado tanto em psicoterapia individual, quanto em grupo, por outros psiconautas. Na verdade, ambas as concepções estão muito relacionadas.

Era isso o que tinha para contar! Espero que tenham gostado e que, em um futuro não muito distante, já tenhamos a psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos regulamentada no Brasil!

 

Referências:

 

BESERRA, F. R. Experienciando a Arte Visionária: uma compreensão junguiana da interação de estudantes com a obra de Alex Grey. 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2014.

 

DE RIOS, M. D. Rejoinder: the bad trip revisited. Anthropology of Consciousness. v. 16, n. 1, 2005, p. 45-48.

 

EISNER, B. Set, setting and matrix. Journal of Psychoactive Drugs, v. 29, n. 2, 1997, p. 213-216.

 

GRIFFITHS, R, R. et al. Psilocybin produces substantial and sustained decrease in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: a randomized double-blind trial. J. Psychopharmacol, v. 30, 2016, p. 1181–1197.

 

GRIFFITHS, R. R. Psilocybin occasioned mystical-type experiences: Immediate and persisting dose-related effects. Psychopharmacology. Berl. 2011; v. 218, n. 4, p. 649–665.

 

GROB, C. S. et al. Pilot study of psilocybin treatment for anxiety in patients with advanced-stage câncer. Archives of general psychiatry, 2011. v. 68, n. 1, p. 71-8.

 

GROF, S. Além do cérebro: nascimento, morte e transcendência em psicoterapia. São Paulo: McGraw-Hill, 1987.

 

GROF, S. LSD psychotherapy. California: Hunter House, 1980.

 

JUNG, Carl Gustav. A função transcendente In: A natureza da psique. Obras Completas, v. VIII/2 – 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 1958/2006b. p. IX-24.

 

MACLEAN, K. A.; JOHNSON, M. W.; GRIFFITHS, R. R. Mystical Experiences Occasioned by the Hallucinogen Psilocybin Lead to Increases in the Personality Domain of Openness. J Psychopharmacol. nov. 2011; v. 25, n. 11, p. 1453–1461.

 

ROSS, S. et al. Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: A randomized controlled trial. J Psychopharmacol, 2016, v. 30, p. 1165–1180.

“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips – Walter Clark

 

MundoCogumelo de volta ao ar, e para marcar nosso retorno, escolhemos um artigo de 1976 de Walter Houston Clark que ilustra uma questão que vem sendo pouco debatida com a profundidade necessária. A Bad Trip, e se ela deveria ser evitada, contornada ou apreciada com a atenção que doamos a todo professor que algo possa nos ensinar.

Tendo em vista algumas abordagens perigosas de reducionismo químico, em sites e páginas de ufanismo farmacológico, que contrariam a psicologia, a redução de danos e negam a própria experiência humana enquadrando como meros desequilíbrios químicos as profundas questões psicológicas que envolvem as experiencias mais difíceis, conhecidas popularmente como “bad trips”, este artigo nos leva a debater essas experiências como momentos-chave de uma reestruturação pessoal, psicológica e social das mais impactantes que podemos alcançar. Apesar de antigo, o texto não é obsoleto e remonta, com todas as ressalvas que o tempo trouxe de atualizações, uma questão profunda e muitas vezes negligenciada.


 

“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips
Walter Houston Clark
Revista FATE, Abril de 1976

Uma mistura única de análise freudiana e xamanismo mexicano
pode representar um avanço para a psicoterapia.

 

Quase um século se passou desde que Sigmund Freud revolucionou nossa compreensão das doenças mentais e seu tratamento. Muitos pensadores importantes – como Carl Jung – foram consideravelmente além de Freud ao canalizar as profundezas da psique humana. Mas nenhuma das inúmeras técnicas psicoterapêuticas desenvolvidas durante essas décadas de pesquisa conseguiu cumprir completamente sua promessa teórica em termos de resultados práticos. A psicoterapia para a maioria das pessoas continua sendo um empreendimento duvidoso, arriscado e caro.

Um médico mexicano pouco conhecido desenvolveu uma técnica que chega tão perto de cumprir sua promessa quanto qualquer outra com a qual eu esteja familiarizado. Combina várias formas de psicoterapia ocidental com a sabedoria dos xamãs indígenas mexicanos. Essas abordagens foram combinadas com a genialidade do Dr. Salvador Roquet, um eminente médico mexicano de saúde pública cujas realizações incluem banir a febre amarela do México. As responsabilidades do Dr. Roquet o colocaram em contato com os índios mexicanos e, consequentemente, com suas abordagens incomuns em relação à saúde, incluindo o uso de plantas alucinógenas para pesquisar a alma, a fim de curar a mente.

Quando o Dr. Roquet soube do meu interesse no uso de drogas psicodélicas para a reabilitação de prisioneiros, ele me convidou para a Cidade do México para investigar sua técnica. No início de 1974, visitei o “Instituto de Psicosintesis Robert S. Hartman”, nome de sua clínica na Cidade do México. O Instituto é um dos três ramos da Associação Albert Schweitzer; os outros são uma missão médica para indígenas e uma escola baseada nos desdobramentos psicológicos descobertos pelo Dr. Roquet em seu trabalho psiquiátrico. O Dr. Roquet me convenceu de que a melhor maneira de observar sua técnica era participar pessoalmente das sessões. Dessa forma, acredito que a melhor introdução à sua psicoterapia altamente original é relacionar minhas próprias experiências com ela.

Me dirigi ao Instituto às 22h em uma noite de fevereiro, junto com vários outros pacientes. Recebemos um teste psicológico chamado “Questionário de Valores Hartman”. Depois disso, mais pacientes chegaram e nos reunimos em uma sala adjacente para nos familiarizarmos entre si. Como não sei falar espanhol, me senti um pouco isolado até que um dos participantes me pediu em inglês para dizer algo sobre mim. Enquanto ele traduzia minhas observações para os outros, senti-me mais à vontade e mais um membro do grupo. Eventualmente, havia cerca de 25 de nós.

Entre meia-noite e uma hora da manhã, fomos levados a uma sala com menos de 30 por 40 pés. Cerca de 1.000 pés quadrados foram reservados como área de tratamento para os pacientes. Durante as próximas 20 horas, nenhum paciente teve permissão para deixar a área de tratamento, exceto para ir ao banheiro adjacente. Um espaço de 10 por 30 pés alocado para o corpo médico e equipamentos eletrônicos foi dividido da área de tratamento por uma mesa na qual o Dr. Roquet, sua equipe e alguns observadores estavam sentados. Seus casacos brancos os distinguiam dos pacientes. As paredes estavam cobertas com quadros bizarros pintados por ex-pacientes e imagens de Freud, Gandhi e o ex-presidente chileno Salvador Allende, além de um crucifixo pendurado em uma parede.

Após um breve período de exercícios semelhantes à ioga, cada um de nós foi autorizado a selecionar uma esteira como uma espécie de base para o período do tratamento. Os pacientes se deitaram e uma música repousante foi ligada. Logo depois, as luzes foram apagadas e uma série de filmes sonoros foi exibida. Eram cenas de violência, morte e pornografia grosseira, aparentemente projetadas para chocar e perturbar a sensibilidade do paciente comum. Em contrapartida, na sequencia exibiram outras cenas que refletiam beleza natural, amor, ternura e afins, de modo que toda a paixão e experiência humanas fossem representadas. Em outras partes da sala, imagens paradas com temas semelhantes foram projetadas contra as paredes. Coforme esse show de variedades continuava, a música aumentou gradualmente em volume e cacofonia. Os pacientes podiam assistir as cenas ou não como quisessem, mas era difícil ignorar o ataque aos nossos ouvidos. No entanto, a equipe nos impediu de adormecer.

Durante esse período, um paciente após o outro foi chamado à mesa, pesado e examinado por um médico. O médico que me examinou observou que meu coração estava forte o suficiente para o tratamento, mas que eu não deveria abusar. A altitude da Cidade do México me trouxe de volta uma irregularidade cardíaca que estava sob controle antes de eu deixar os Estados Unidos. Esta notícia, acentuada por algumas das cenas do vídeo, ajudou a transformar meus pensamentos em morte e problemas associados. Os outros pacientes pareciam igualmente perturbados.

Por volta das quatro ou cinco horas, a equipe começou a administrar as substâncias psicodélicas, a droga e a dosagem foram personalizadas para cada paciente. (Meu relógio havia sido retirado de mim, para que meu senso de tempo fosse desorientado.) Minha própria vez chegou no que julguei que eram cerca de seis horas e recebi 250 microgramas de LSD-25. Logo após todas as dosagens terem sido administradas, a sobrecarga sensorial atingiu seu pico. A música cacofônica e uma alternância de luzes brilhantes e escuridão total pontuada por estranhos efeitos neon criaram uma atmosfera extremamente estranha.

A essa altura, a sala começou a se assemelhar a um poço de cobras do século XIX ou mesmo a uma confusão do século XVIII. Muitos de nós chorávamos, outros rolavam no chão e gritavam angustiados, outros vomitavam, alguns olhavam para o espaço e outros ainda faziam movimentos hostis em direção ao equipamento eletrônico. Às vezes, eu tinha medo de que alguns pacientes pudessem atacar o Dr. Roquet, sentado impassivelmente, dirigindo os efeitos da experimentação responsável por essa violência e perturbação.

Eu próprio fiquei possuído por uma noção confusa de que as pessoas de jaleco branco eram atormentadores deliberados nomeados pela Inquisição para me tirar da razão. Todos pareciam tão imperturbáveis com a confusão que estavam criando que eu andei até a mesa e os denunciei violentamente por sua presunção, um ato dificilmente característico no meu estado mental normal. Com minha rápida alternância entre preocupações com a aproximação da morte, a ansiedade que me assustava sobre a experimentação com psicodélicos e a angústia por muitas coisas que pretendia, mas deixei de fazer, toda a experiência pode ser descrita como uma descida ao inferno. Eu mal conseguia distinguir o que era externo do que era interno.

No final desta fase do tratamento, a música e outros estímulos sensoriais foram diminuídos ou desligados e as luzes acesas. Referindo-se a registros individuais quando necessário, o Dr. Roquet convocou vários pacientes à mesa em sucessão e os questionou sobre seus problemas e experiências enquanto o resto de nós ouvia. Os tradutores interpretaram as várias línguas para os outros pacientes. Alguns pacientes foram convidados a ler passagens curtas apropriadas para seus problemas, talvez algo pessoal ou talvez escolhido pelos médicos, geralmente com expressões de angústia pungente. Uma jovem leu uma passagem do romance de Flaubert, Madame Bovary, que lhe externou uma identificação dolorosa com a personalidade de Emma, descrita no romance.

Durante esta fase do tratamento, certos indivíduos receberam uma injeção de cloridrato de ketamina, uma nova e poderosa droga usada pelo Dr. Roquet. Seus efeitos variavam com pessoas diferentes, mas geralmente produzia uma ab-reação¹ violenta. Um jovem que recebeu a injeção estava dando seu relato quando, de repente, caiu no chão em uma demonstração violenta de angústia e terror, vomitando e se contorcendo em tormento.

¹ ab-reação

PSICOLOGIA

descarga emocional pela qual um indivíduo se liberta do afeto que acompanha a recordação de um acontecimento traumático [Pode ser provocada, por exemplo, por hipnose, ou ocorrer de forma espontânea no decorrer do processo psicoterápico.].

Nesse momento, dois funcionários com sacolas e toalhas vieram em seu auxílio, demonstrando infinita gentileza e compaixão. Essa cena me impressionou com tanta força quanto minha convicção anterior de que os funcionários eram perseguidores. Percebi que toda a provação havia sido fabricada para o benefício dos pacientes e que o que parecia um inferno tinha se convertido em um paraíso. Essa percepção chamou minha atenção para os aspectos positivos do tratamento e me ajudou a voltar à normalidade.

Depois de mais ou menos uma hora, esta fase do tratamento terminou, as luzes foram apagadas novamente, música suave voltou a ser tocada e fomos convidados a descansar por várias horas. No final deste período, as janelas foram abertas, deixando entrar a luz do sol. Não tínhamos permissão para sair da sala, mas fomos convidados a nos exercitar e nos expressar dançando, se quiséssemos. A essa altura, senti-me intensamente sensível aos meus colegas e grato aos funcionários. Como não conseguia me comunicar na língua deles, me vi expressando meus sentimentos na dança improvisada.

Após o período de descanso, os poucos pacientes não processados receberam atenção. A equipe distribuiu a cada paciente fotos significativas de seus próprios arquivos – geralmente fotografias de família, fotos do próprio paciente em várias idades ou fotos de amigos e amantes. Por vezes, isso desencadeou mais cenas emocionais. Mas no final da tarde, cerca de 20 horas depois de eu ter chegado ao Instituto, todos haviam retornado a um estado normal de consciência. A essa altura, os respectivos parentes começaram a chamar pelos pacientes e senti grande consolo ao ver minha esposa. Por volta das nove horas, tivemos a cerimônia final; uma rosa foi dada de presente a cada sujeito. Nas minhas três semanas de permanência na Cidade do México, todos os pacientes que encontrei como observador ou como participante haviam retornado à consciência normal ao final do tratamento.

Alguns dias depois, os membros do meu grupo se reuniram para sessões de terapia em grupo de cinco horas ou, para alguns indivíduos, sessões privadas de menor duração. Cada paciente compôs um relato escrito de sua sessão para sua ficha. Essas sessões de acompanhamento continuaram até que a equipe decidisse que o paciente se beneficiaria com outra sessão longa, às vezes um mês depois, embora o espaço de tempo fosse maior à medida que o paciente melhorava. A melhora foi medida pelo teste de Hartman e também pelas impressões clínicas dos psiquiatras.

Como eu não era propriamente um paciente e como minha estadia no México seria breve, não participei de todo esse acompanhamento, mas participei de uma segunda longa sessão, cerca de duas semanas após a minha primeira.

Eu esperava tomar cloridrato de ketamina durante a minha segunda sessão, mas a irregularidade do meu coração persistiu e os médicos julgaram isso desaconselhável. Esta decisão mais uma vez voltou a minha mente para o tema da morte. Na minha segunda sessão, havia apenas 10 pacientes, um número mais gerenciável e ainda suficiente para uma interação valiosa entre os pacientes. Em todo caso, o procedimento foi semelhante à primeira vez, exceto que agora eu havia ingerido cogumelos Psilocybe frescos enviados em meu benefício pela própria Maria Sabina, uma curandeira de Huautla.

Dessa vez, re-experimentei o fenômeno da morte, mas em vez de descer ao inferno, a experiência assumiu quase o caráter de um festival, embora num contexto de solenidade alimentada pelas tensões do Requiem de Brahms. Não apenas obtive insights deliciosos e comoventes sobre minha própria vida subjetiva, mas também pude ver aspectos engraçados associados à minha morte, o que trouxe risos refrescantes. Eu também percebi como a cacofonia e a sobrecarga sensorial que foram projetadas para “me assustar completamente” têm um paralelo na sociedade em que a ocorrência perfeitamente natural da morte é transformada em um evento assustador que provoca medo na mente das pessoas comuns.

No geral, essa segunda sessão foi a mais rica das minhas 10 a 15 experiências com materiais psicodélicos. Foi a primeira experiência desse tipo em que a culpa não teve papel consciente. Não credito o resultado feliz dessa “trip” aos cogumelos, mas o importante condicionamento da minha “descida ao inferno” (a bad trip) anterior.

A eficácia da técnica do Dr. Roquet é evidente em meu estado de espírito desde que minhas experiências com ele ocorreram. Há quase dois anos, meu entusiasmo pela vida tem sido mais positivo do que nunca. Minha apreciação pela música cresceu quase a um vício e outros aspectos da minha vida foram igualmente enriquecidos. Naturalmente, isso me deu uma visão subjetiva do que o tratamento pode realizar para pessoas cuja saúde mental não está tão bem estabelecida quanto a minha.

Quais são as implicações da emocionante técnica do Dr. Roquet para o campo da saúde mental? Com base nas minhas três semanas de intenso envolvimento com seu programa, sinto que o que o psicanalista médio realiza em cinco ou seis anos,  Salvador  alcança com frequência em meses – e melhor, com custo de 10 a 20 vezes menor! O Dr. Roquet trouxe a psiquiatria para o século XX. Sem dúvida, um dia, seus métodos serão aprimorados, mas não duvido que sejam considerados um avanço crucial no progresso da psiquiatria.

Em minha pesquisa com drogas psicodélicas, muitas vezes descobri que as “bad trips” são as melhores trips, especialmente quando lidamos adequadamente com elas. O Dr. Roquet induz deliberadamente uma viagem ruim para trazer à tona os piores medos e problemas do paciente, embora isso possa significar, e geralmente significa, uma visita ao seu submundo particular, onde a ‘loucura’ se esconde. Por essa razão, o Dr. Roquet se refere à sua técnica como “psicodisléptica”, que significa “temporariamente perturbadora das funções da mente”. O objetivo específico dessa técnica é sobrecarregar as defesas cuidadosamente construídas que muitas vezes tornam a neurose ou psicose do paciente invulnerável ao médico. Muitos psiquiatras convencionais podem argumentar que esses métodos violentos podem prejudicar a psique. O resultado bem-sucedido de quase 3.000 pacientes tratados no Instituto obviamente responde melhor a essas objeções.

Qual a importância das substâncias no tratamento? Roquet diz que os medicamentos não representam mais de 10% do total do tratamento. Eu poderia concordar, mas também argumentaria que são 10% muito importantes. As substâncias psicodélicas parecem multiplicar a força da experiência e permitir que ela penetre nos níveis do inconsciente raramente visitados na psicoterapia comum.

Entre os outros fatores importantes na técnica estão os relacionamentos interpessoais. A naturalidade da equipe e a falta de alarme garantem ao paciente que o Dr. Roquet e seus colegas estão completamente no controle da situação. Mais importante, sua atitude ativamente compassiva durante as fases finais da terapia atua como uma influência vital de cura. Tão importante quanto é a interação entre os próprios pacientes – incluindo o toque de apoio e a consciência de que cada própria angústia é acompanhada pela de outra pessoa do outro lado da sala.

O Dr. Roquet desenvolveu uma teoria intuitiva e perspicaz subjacente à sua terapia, mas isso é muito complexo para ser apresentado aqui. Sem dúvida, ele eventualmente falará por si mesmo na tradução para o inglês.


Em 21 de novembro de 1974, o Dr. Salvador Roquet, seus assistentes e 25 pacientes foram presos durante uma sessão de terapia em grupo pela polícia mexicana, que invadiu o Instituto brandindo pistolas e metralhadoras. O ataque foi instigado por Guido Belasso, diretor ‘Centro Mexicano de Independência das Drogas’, de acordo com a revista mexicana “Tiempo”.

Os pacientes foram presos apenas brevemente, mas o Dr. Roquet e seu assistente, o Dr. Pierre Favreau, foram presos por vários anos devido à gravidade das acusações de crimes relativos à drogas. O Dr. Roquet operava sua clínica em total abertura por mais de seis anos tendo ganho a gratidão de oficiais do governo por sua ajuda na contenção de distúrbios na Universidade do México, tratando com sucesso um líder estudantil radical.

Uma organização dos ex-pacientes de Roquet, liderada por influentes mexicanos, veio em defesa do doutor e vários ilustres psiquiatras americanos testemunharam a validade e a eficácia de seus métodos. Por fim, os drs. Roquet e Favreau foram liberados das acusações e autorizados a reabrir o Instituto.

 

Traduzido diretamente de Psychedelic Libraby