Archives 2018

A Matriz Transcendental do Universo

O mergulho intelectual de Aldous Huxley na galáxia mitológica das grandes religiões do mundo resultou no livro “A Filosofia Perene”, de 1964. Baseado nos “relatos em primeira mão” dos ditos “homens santos” ou “profetas”, a obra expõe a ideia de uma doutrina comum e estável como base de toda diversidade desses sistemas religiosos que emergiram em diferentes tempos e lugares ao longo da história humana – a essa doutrina universal Huxley chamou de “Filosofia Perene”.

Na visão de Huxley, a Filosofia Perene representa o conhecimento deixado por alguns sábios e profetas que conheceram diretamente a natureza da “Realidade substancial ao mundo multiforme”, o “Princípio Absoluto de toda existência”. A experiência direta desses reconhecidos expoentes com a natureza da realidade apontaria persistentemente para um consenso acerca de uma base eterna e transcendental do ser. A ideia central da Filosofia Perene é, portanto, um retrato da sua característica histórica – ou seja, o fator perene em toda mitologia religiosa é a referência a um fator perene como origem de toda manifestação temporal. Em outras palavras, a ideia persistente de toda religiosidade humana é sobre uma dimensão una e eterna no centro de toda existência multiforme e transitória, sendo o conhecimento direto desse fato – claramente expresso na fórmula sânscrita “tat tvam asi” (Tu és Aquilo) – a finalidade de todo ser humano, para assim “encontrar Aquilo que realmente é”.

No ocidente, costumamos nos referir a algo semelhante através da palavra “alma”. Originada no latim anima, é equivalente da palavra grega psyché, que significa “sopro”, e foi tomada por Platão como metáfora para um princípio universal de movimento da vida. Mas, à luz dessas observações, a visão comum de “alma” utilizada no ocidente começa a parecer distorcida, já que normalmente é entendida como indicativo de individualidades eternas, isoladas e independentes “habitando” os seres orgânicos. Esse caráter universal, não-local e multiforme da alma, enfatizado pelos xamãs, sábios e profetas do passado, é deixado de lado em nossa cultura obcecada com a preservação da individualidade.

Mas, dentro da visão original da Filosofia Perene, a Alma – ou a Base do SER – é a matriz transcendental de todo Universo; uma unidade transdimensional multifacetada de onde tudo vem, para onde tudo vai e onde tudo está – antes, após e além da existência transitória no mundo ordinário -, e que contém em si própria todas as possibilidades da existência universal. Cada uma das miríades de manifestações do nosso universo pode ser vista como a amplificação – ou a “canalização” – de um aspecto muito específico dessa Alma universal, se aproximando daquilo que o biólogo Rupert Sheldrake, na sua tentativa de compreender a origem das formas no mundo natural, chamou de “campos morfogenéticos”.

O legado dos sábios e profetas nos diz que é possível para a consciência conhecer diretamente a natureza transcendental da Alma, mas esse conhecimento superior apenas pode ser expresso em metáforas – que no terreno religioso se transformam em mitos. A noção de um substrato eterno que dá suporte a toda manifestação temporal está presente em todos os tempos e lugares, e já foi expressa de muitas formas diferentes, variando de acordo com a cultura em que é modulada. Joseph Campbell disse que a origem e a finalidade central de qualquer mitologia é a experiência de integração entre esses dois aspectos paradoxais da existência. Huxley parece seguir a mesma lógica, afirmando que os verdadeiros ensinamentos espirituais representam relatos daqueles que “conheceram diretamente a Deus”. A idéia de “contato com Deus” é, precisamente, uma referência metafórica sobre a experiência direta de integração entre o reino da eternidade e a dimensão do tempo/espaço, ou entre o mundo perene e o mundo perecível.

“Ver o Universo num grão de areia, e o Céu em uma flor silvestre, ter o infinito nas palmas das mãos e a Eternidade em uma hora.” – William Blake.

“Para medir a alma temos que medi-la com Deus, pois a Base de Deus e a Base da Alma são unas e idênticas” – Eckhart

Referências:

– A Filosofia Perene – Aldoux Huxley

– Joseph Campbell – O Poder do Mito

– Rupert Sheldrake e o os “campos morfogenéticos”

Arqueólogos da Mente – Conectando Passado e Futuro

Nos locais mais inóspitos da Terra, homens obstinados buscam pistas sobre as nossas misteriosas origens. Ruínas, fósseis, restos de objetos humanos e pinturas em cavernas que sobreviveram no ambiente por milênios são meticulosamente garimpados e escrutinados, buscando juntar os cacos que ajudem a reconstruir a história que a nossa memória coletiva parece ter perdido. O homem, acumulador de conhecimentos, construtor de megalópoles, inventor de naves espaciais e colisores de hádrons que buscam a centelha inicial do universo, paradoxalmente não sabe de onde veio. É um estranho para si próprio. Diante dessa amnésia crônica, os raros restos deixados no mundo físico pelos nossos antepassados parecem ser as únicas pegadas do caminho tempestuoso que a nossa espécie trilhou até aqui. E, embora tenham certo êxito em encontrar e datar as pegadas do homem pré-histórico, os sacerdotes da cultura moderna parecem ter muito pouco a dizer sobre o suas reais implicações e significados.

O dogma científico atual diz que os seres humanos anatomicamente modernos – fisicamente iguais a qualquer um de nós – já estavam plenamente formados cerca de 200 mil anos atrás. Apesar disso, os primeiros vestígios de todas as características que hoje nós consideramos como a assinatura diferenciada da nossa espécie – todas as atividades “culturais”, como religião, arte e comunicação avançada por símbolos –  surgiram “do nada” somente  cerca de 50 mil anos atrás. Muito pouco se sabe sobre as formações iniciais dessas atividades culturais, e praticamente nada sobre o grande hiato de cerca de 150 mil anos, quando foi preparado o terreno para nosso mergulho nos domínios da evolução epigenética. Considerado como “o maior enigma da nossa história”, esse é um dos grandes motores da arqueologia e paleontologia.

Do pouco que se sabe, uma coisa é certa: esses vestígios foram deixados pelos praticantes da primeira religião da humanidade, que muito recentemente ganhou o pomposo nome de “xamanismo”. Os artistas das cavernas eram, nas palavras de Joseph Campbell, “os primeiros contadores de histórias” entre os homens; os primeiros a expressar uma compreensão do mundo em linguagem inteligível para os demais; os primeiros criadores de mitos sobre o universo e o lugar da nossa espécie nele.  E a força-motora dessas novas formas de expressão foram – como continuam sendo nos locais onde ainda sobrevive a prática arcaica do xamanismo – os estados de transe nos quais os xamãs mergulham sistematicamente por meio de variadas técnicas.

A informação de que pelo menos uma grande parte dessas obras de arte primitivas representa visões e outras formas de percepção obtidas pelos xamãs durante os estados de transe é uma verdade que já passou pelo limiar de ser ridicularizada e violentamente combatida para ser finalmente reconhecida pela sua autoevidência*. Nossa dificuldade é avançar a partir daí, já que o reino das visões, seres teriantrópicos e forças mágicas que os xamãs afirmam ser a fonte primordial do seu conhecimento é um território não só desconhecido, mas completamente rejeitado pela única forma de conhecimento sancionada pela cultura ocidental moderna. Assim como 90% do DNA humano já foi declarado como “DNA lixo” porque os cientistas não conheciam suas funções (hoje se sabe que o “DNA lixo”, de lixo não tem nada), a dimensão visionária da qual os falam eloquentemente os xamãs de todas as épocas e lugares é considerada como um mero subproduto de uma anomalia mental, ou seja, sem qualquer significado ou utilidade real. Essa suposição tomada como fato ergueu uma muralha na trilha do nosso autoconhecimento histórico.

Tentar entender o que se passava milênios atrás, quando nossos ancestrais começaram a apresentar os primeiros traços dos comportamentos que agora consideramos com orgulho como aqueles que nos diferenciam dos outros animais, é uma viagem de volta no tempo em busca do que quer que seja a controversa “natureza humana” – nada mais do que o momento evolutivo em que estabelecemos as bases psicossociais para o tipo de organização que hoje chamamos de “civilização”.  Esse não pode ser um domínio restrito aos representantes oficiais das instituições culturalmente sancionadas – se fosse, já poderíamos ter declarado seu fracasso. Estamos tratando sobre os corações e mentes de seres humanos iguais a nós, quando começaram a adquirir consciência e dar significado ao mundo. Para isso, é preciso mergulhar de verdade na mente do homem pré-histórico, penetrando na natureza das experiências que catalisaram essa transformação – muito além do mero registro de dados frios.

Isso significa atravessar a trilha das cavernas físicas para as cavernas interiores, que continuam tão abandonadas quanto quando foram deixadas para trás pelos nossos ancestrais.  Significa dar voz aos arqueólogos da mente – aqueles que são capazes de atravessas as camadas de sedimentos psíquicos acumuladas por milênios e alcançar de volta a mente ancestral do homem. Pois, assim como pinturas rupestres e fósseis se ocultam nos sedimentos interiores de antigas rochas, a mente do homem pré-histórico ainda habita as camadas mais profundas da nossa psique.  Carl Jung e outros diriam que não apenas “habita”, mas exerce uma função estrutural muito maior do que gostaríamos de admitir, influenciando de forma determinante desde a formação da nossa personalidade pessoal até as mitologias de todas as épocas e lugares (Jung chamou de “arquétipos” as dinâmicas organizacionais autônomas – ou “moldes psíquicos” – que deram forma à nossa estrutura mental desde tempos imemoriais).

Tal qual a forma do nossos corpos, a estrutura das nossas mentes é uma herança do longo caminho evolutivo trilhado pelos homens primitivos durante os milhares de anos que antecederam a corrida louca da História humana. Uma complexa construção em camadas que, se explorada com seriedade, promete nos levar, passo-a-passo, de volta ao coração do macaco no momento em que ele começou a sonhar com o futuro.

Numa Era em que a civilização humana sofre com uma crise de consciência e falta de sentido sem precedentes que nos levaram à beira de uma catástrofe global, refazer essa conexão perdida com a nossa história psíquica coletiva se torna um imperativo para encontrarmos um novo lugar possível para o homem no mundo.

* “Toda verdade passa por três estágios: No primeiro, ela é ridicularizada; no segundo, é rejeitada com violência; no terceiro, é aceita como evidente por si própria.” (Schopenhauer)

Referências:

– HANCOCK, Graham.  Sobrenatural: Os Mistérios que cercam a origem da religião e da arte

– JUNG, C G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo

– CAMPBELL, Joseph.  O Poder do Mito

– MCKENNA, Terence. O Alimento dos Deuses