‘Psicodélicos como o LSD e os cogumelos com psilocibina, não apenas não causam problemas de saúde mental, como na verdade podem aumentá-la’
Essas são as conclusões dos pesquisadores de neurociência da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, em Trondheim, que relataram que o LSD, a psilocibina e mescalina não só não causam problemas de saúde mental a longo prazo, mas que, em muitos casos, o uso de psicodélicos é associado a uma menor taxa de problemas de saúde mental.
O estudo colheu dados da ‘Pesquisa Nacional dos EUA sobre Uso de Drogas e Saúde’, observando-se 130.152 respondentes selecionados aleatoriamente a partir da população adulta de os EUA. 13,4% desse grupo (21.967 indivíduos) relataram uso na vida de drogas psicodélicas. Comparando esses dados para medidas de triagem padronizados para a saúde mental, os pesquisadores descobriram que, nem o uso vitálicio de psicodélicos, nem o uso dentro do último ano, foram fatores de risco independentes para problemas de saúde mental e que, de fato, os usuários de psicodélicos tiveram menores taxas de problemas de saúde mental.
Os pesquisadores noruegueses, Teri S. Krebs e Pal-Ørjan Johansen também observaram que “plantas psicodélicas têm sido utilizados para fins comemorativos, religiosos ou de cura por milhares de anos” e que “psicodélicos, muitas vezes provocam profundas experiencias, pessoal e espiritualmente significativas, além de produzir efeitos benéficos”. O LSD e a psilocibina são consistentemente classificados em avaliações de especialistas como causando menos danos a usuários individuais e à sociedade do que o álcool, o tabaco, e a maioria das outras drogas recreativas comuns. Dado que milhões de doses de drogas psicodélicas foram consumidas todos os anos, por mais de 40 anos, relatos de casos bem documentados de problemas de saúde mental a longo prazo após o uso destas substâncias são raros
O estudo também não observou absolutamente nenhuma evidência de que “flashbacks” realmente afligiam os usuários de psicodélicos, matando outra superstição normalmente realizada em torno do uso psicodélico.
Os pesquisadores noruegueses trazem uma boa notícia para os mais de 30 milhões de americanos que usaram drogas psicodélicas (em comparação com 100 milhões que usaram maconha). E enquanto a mídia vem comentando sobre a revelação do Dr. Sanjay Gupta que ele “mudou sua mente por causa da maconha”, pode ser hora para as substâncias psicodélicas obterem uma retratação similar.Enquanto psicodélicos ainda evocarem imagens da era dos 60, bad trips, como a filha de Art Linkletter saltar de uma janela em ácido (um mito superestimado, como diz Snopes), poucos arriscam submetê-los a uma investigação significativa e tiveram um lento progresso em direção a aceitação clínica nas últimas décadas. Os pesquisadores ainda trabalham sob a imagem negativa da era de Timothy Leary a respeito dos psicodélicos, mas aos poucos está se desfazendo o impasse cultural criado pelo que muitos vêem como o abuso irresponsável de drogas psicodélicas durante os anos 1960 e 70.
Vários estudos estão sendo conduzidos ( na escola de medicina da Universidade de Nova York e na Johns Hopkins Bayview Medical Center) em usar psicodélicos para aliviar o medo em pacientes com estágio avançado terminal de doença , facilitando a experiência de morte e permitir que as pessoas terminam suas vidas em estados de aceitação em vez de terror. LSD e psilocibina também surgem com uma promessa para o tratamento da Cefaléia em Salvas(Cluster headache), uma condição tão debilitante e dolorosa que muitas vezes leva os doentes a considerar o suicídio .
Enquanto a maconha degusta a sua estadia no centro das atenções, pode ser hora de seus irmãos mais potentes e ainda mais potencialmente benéficos, participarem da festa.
O princípio ativo dos cogumelos alucinógenos pode apagar memórias assustadoras e incentivar novo crescimento de células cerebrais em ratos, sugere um novo estudo.
Camundongos que receberam um choque elétrico, em seguida, uma baixa dose de psilocibina, perderam a sua resposta ao medo de um som associado a um choque elétrico doloroso muito mais rapidamente do que os ratos que não receberam o medicamento.
“Eles pararam de congelar, pois eles perderam o medo”, disse o co-autor Dr. Juan Sanchez-Ramos, professor de distúrbios de movimentos da Universidade do Sul da Flórida.
Os resultados, publicados na edição de junho da revista Experimental Brain Research, aplicam-se apenas aos ratos, mas eles levantam a possibilidade de que as baixas doses da substância, podem um dia ser usadas para tratar o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
Hipocampo
Estudos anteriores descobriram que a psilocibina, a substância psicoativa dos cogumelos mágicos, poderia induzir experiências místicas que podem elevar o humor, atitude e comportamento e até mesmo alterar permanentemente a personalidade para melhor. Outros estudos mostram que a psilocibina diminui a atividade cerebral. [Trippy Tales: The History of 8 Hallucinogens]
Mas Sanchez-Ramos e seus colegas se perguntam sobre o papel da psilocibina na formação de memórias de curto prazo. Como a substância se liga a um receptor no cérebro, que estimula o crescimento de células nervosas cerebrais e a formação da memória de curto prazo, os pesquisadores queriam investigar como foi afetada a formação das memórias relacionadas ao medo. Eles esperavam que a psilocibina ajudaria camundongos a formar memórias assustadoras mais rapidamente.
Para testar essa hipótese, os pesquisadores tocaram um tom(som) auditivo e deram aos ratos um choque doloroso. Os ratos logo associaram o tom com o choque e congelavam quando ouviam isso.
Mas alguns dos ratos receberam uma dose baixa de psilocibina – provavelmente muito baixa para causar efeitos psicoativos, porém não há nenhuma maneira de ter certeza, Sanchez-Ramos disse.
“Os ratos não podem lhe dizer se eles estão tendo alucinações ou experienciando estados alterados de consciência:” Sánchez-Ramos contou a nosso site.
Depois, os pesquisadores tocaram os sons várias vezes, sem chocar os ratos. No início, os ratos congelaram quando ouviram, mas aos poucos, eles começaram a se movimentar normalmente, indicando que o som não está mais associado ao choque.
Os ratos que tomam o alucinógeno voltaram ao comportamento normal mais rapidamente do que aqueles que não tinham, sugerindo que superaram seu medo com maior rapidez. Ao mesmo tempo, seus cérebros mostraram um significativo crescimento de novas células.
Eliminando a memoria negativa?
“O estudo em ratos indica que a psilocibina, (possivelmente também em doses moderadas) pode ajudar a extinguir a memória relacionada ao medo em casos de TEPT ou outros grupos de pacientes com ansiedade,” Franz Vollenweider, o diretor do Instituto de Pesquisa Heffter em Zurique, na Suíça, escreveu em um e-mail .
A pesquisa de Vollenweider tem mostrado que a psilocibina pode reduzir o quanto os pacientes deprimidos respondem ao negativo, mas não positivamente ou com expressões faciais neutras.
“Assim, a psilocibina pode muito bem mudar o processamento de emoções positivamente em pacientes deprimidos”, disse Vollenweider, que não esteve envolvido no estudo atual.
E no tratamento de TEPT por exemplo, os veteranos poderiam levar o medicamento para desassociar barulhos altos ou espaços lotados com o trauma de um bombardeio, Sanchez-Ramos acrescentou.
Por lei, a psilocibina é uma substância ilegal, ou uma droga perigosa, sem usos médicos legítimos. Então, fazer a pesquisa para testar seus efeitos nos Estados Unidos será um desafio, disse Sanchez-Ramos.
Traduzido do arquivo da Associação Multidisciplinar para o Estudo de Psicodélicos (MAPS)
MAPS – Volume 7 N# 1, Inverno 1996-97 – pp. 10-11
Pesquisas recentes e suas implicações para o aumento da criatividade
Matthew J. Baggott
Pesquisador Associado, Centro de Pesquisa de Dependência de Drogas
Universidade da California, San Francisco
Para os estudos de Rick Doblin de acompanhamento a longo prazo da pesquisa com psilocibina originalmente conduzida ou supervisionada por Timothy Leary em Harvard de 1960 a 1963, veja o Good Friday experiment follow-up (em inglês), que investiga o uso da psilocibina como catalizador de experiências místicas, e o Concord Prison experiment follow-up (em inglês), que investiga o uso da psilocibina em promover mudança de comportamento e reduzir reincidências.
Discussão do artigo: Spitzer M, Thimm M, Hermle L, Holzmann P, Kovar KA, Heimann H, Gouzoulis-Mayfrank E, Kischka U, Schneider F (1996); Aumento da ativação de associações semânticas indiretas com o uso de psilocibina. Biol Psychiatry 39:1055-1057. Spitzer e seus colegas chegaram mais perto de compreender os efeitos dos psicodélicos. Como eles apontaram na conclusão do seu trabalho, obtiveram sucesso na utilização dos resultados de uma tarefa simples para teorizar ligações entre os relatos subjetivos dos usuários de psicodélicos, medições objetivas dos efeitos da psilocibina, e a fisiologia cerebral subjacente. No processo, eles levantaram uma série de ligações produtivas a futuras pesquisas.
A primeira onda de pesquisas sobre psicodélicos nos anos 60 viu muitas tentativas de entender os mecanismos e os efeitos dos psicodélicos. Olhando de volta para esses estudos do passado, chega-se a idéia que as substâncias psicodélicas talvez fossem complexas demais para as ferramentas científicas da época. No entanto, a onda atual de pesquisas sobre psicodélicos se mostra muito mais promissora. Desde os 60, ganhamos muitas ferramentas sofisticadas de pesquisa. Essas ferramentas incluem testes neuropsicológicos simples, tarefas repetitivas, jogos, que podem dar valiosos insights de como os psicodélicos afetam a mente. Manfred Spitzer, M.D., Ph.D., e seus colegas (1996) publicaram recentemente um fascinante relatório sobre os efeitos da psilocibina em um desses testes neuropsicológicos.
O grupo de Spitzer, de oito homens voluntários, foi oralmente administrado com 0.2 mg de psilocibina, por kg de peso corporal, junto a um grupo de controle que recebeu um placebo. Em seguida estudaram os efeitos da psilocibina em uma tarefa de reconhecimento de palavras. Nesse teste, o indivíduo identifica se uma sequência de caracteres é uma palavra, ou não. Estudos anteriores descobriram que indivíduos podem identificar uma palavra mais rápido se a sequência de caracteres que a precede for uma palavra proximamente relacionada. Por exemplo, uma pessoa pode reconhecer a palavra “preto” mais rapidamente se ela foi imediatamente precedida pela palavra “branco”. Este efeito é conhecido como “disparo semântico” (semantic priming). Em indivíduos normais, o disparo semântico ocorre somente com palavras de relação próxima. No entanto, palavras indiretamente relacionadas (“doce” e “limão,” por exemplo) produz esse disparo semântico em indivíduos esquizofrênicos de pensamento desordenado (Spitzer et al 1993a, 1993b).
Disparo semântico
Os pesquisadores descobriram que a psilocibina desacelerou o tempo de reação dos indivíduos, ao mesmo tempo que produzia um efeito de disparo semântico das palavras indiretamente relacionadas (“doce” e “limão”), semelhante ao observado na pesquisa de esquizofrenia. A descoberta de que a psilocibina desacelera o tempo de reação não era inesperada; uma pesquisa anterior com psicodélicos encontrou o mesmo efeito. No entanto, a descoberta que a psilocibina produzia disparo semântico indireto é mais interessante. Em suas discussões, os pesquisadores ressaltam que seus resultados são relevantes para a afirmação que psicodélicos “aumentam a criatividade” ou “expandem a consciência”:
Embora a maioria das medições objetivas tenham falhado em apoiar estas afirmações, nossos dados sugerem que o agente [alucinógeno] de fato leva a um aumento da disponibilidade de associações remotas e, portanto, pode trazer efeitos cognitivos à mente que, em circunstâncias normais, permaneceriam desativados; no entanto, a diminuição geral do desempenho psicológico sob efeito de agentes alucinógenos sugere que o aumento indireto do efeito de disparo se deve à diminuição da capacidade de usar informação contextual para a focalização do processamento semântico. Por isso, a experiência subjetiva de aumento da criatividade, assim como a ampliação da consciência, foram encontradas paralelamente com a diminuição nas medições objetivas de desempenho. (p. 1056-1057).
Assim, os pesquisadores sugerem que os psicodélicos podem de fato “ampliar a consciência” tornando mais disponíveis as associações mentais remotas. No entanto, isso envolve um trade-off. Embora as associações remotas se tornem mais acessíveis, os sujeitos ficam menos capazes de focalizerem a atenção, o que diminui seus tempos de reação.
Redes neurais semânticas
Os pesquisadores interpretam seus resultados utilizando um modelo que afirma que o cérebro contém redes neurais semânticas que podem ser ativadas pela informação semântica. A propagação dessa ativação pelas redes neurais determina a quantidade de disparo semântico que ocorre no teste de reconhecimento de palavras. Essa ativação se propaga de forma mais profunda e rápida em esquizofrênicos de pensamento desordenado e usuários de psilocibina do que em voluntários normais. Uma explicação para essa quantidade incomum de ativações é a dimuição da eficiência no córtex onde a informação semântica é processada (Servan-Schreiber et al 1990, Cohen and Servan-Schreiber 1992, 1993). Existem evidências de que essa ineficiência de processamento está relacionada com a diminuição da modulação dopaminérgica. Como suporte a essa teoria, os pesquisadores descobriram que a L-dopa, um precursor da dopamina, reduz a propagação da ativação e, dessa forma, reduz indiretamente o disparo semântico (Kischka et al 1995). No contexto dessa teoria, a psilocibina (que atua no sistema serotoninérgico) pode ser vista como um potencializador de ativação das redes semânticas. Essencialmente, a dopamina parece ter um efeito de focalização na ativação das redes semânticas, enquanto a psilocibina tem um efeito de desfocalização.
O teste de reconhecimento de palavras
O teste de reconhecimento de palavras usado pelo grupo de Spitzer é particularmente interessante por várias razões. Primeiro, ele permitiu aos pesquisadores testar o acesso automático, ao invés de voluntário, à memória. Mesmo quando os sujeitos não conseguiam recordar conscientemente as palavras previamente vistas (seja por causa de uma droga ou por desordens neurológicas), o teste de reconhecimento de palavras pode demonstrar se os sujeitos ainda podem acessar automaticamente essa memória. Além disso, o teste permite que os pesquisadores vejam como o foco das associações mentais do sujeito é modificado por diferentes estados farmacológicos ou psicológicos. Esse aspecto parece potencialmente promissor para a diferenciação entre diferentes tipos de memórias. Por exemplo, em algumas situações, palavras emocionais (“feliz” e “triste”) podem ser ativadas em maior medida do que palavras com pouco conteúdo emocional (“preto” e “branco”).
Spitzer e seus colegas chegaram mais perto de compreender os efeitos dos psicodélicos. Como eles apontaram na conclusão do seu trabalho, obtiveram sucesso na utilização dos resultados de uma tarefa simples para teorizar ligações entre os relatos subjetivos dos usuários de psicodélicos, medições objetivas dos efeitos da psilocibina, e a fisiologia cerebral subjacente. No processo, eles levantaram uma série de ligações produtivas para futuras pesquisas.
Referências
Cohen JD, Servan-Schreiber D (1992); Context, cortex and dopamine: A connectionist approach to behavior and biology in schizophrenia. Psychol Rev 12:45-77.
Cohen JD, Servan-Schreiber D (1993); A theory of dopamine function and its role in cognitive deficits in schizophrenia. Schizoph Bull 19:85-104.
Kischka U, Kammer T, Weisbrod M, Maier S, Thimm M, Spitzer M (1995); Dopaminergic modulation of semantic network activation (in submission). Servan-Schreiber D, Printz H, Cohen JD (1990); A network model of catcholamine effects: Gain, signal-to-noise ratio, and behavior. Science 249:892-895.
Spitzer M, Braun U, Maier S, Hermle L, Maher BA (1993a); Indirect semantic priming in schizophrenic patients. Schizoph Res 11:71-80.
Spitzer M, Braun U, Hermle L, Maier S (1993b); Associative semantic network dysfunction in thought-disordered schizophrenic patients: Direct evidence from indirect semantic priming. Biol Psychiatry 34:864-877.
Spitzer M, Thimm M, Hermle L, Holzmann P, Kovar KA, Heimann H, Gouzoulis-Mayfrank E, Kischka U, Schneider F (1996); Increased activation of indirect semantic associations under psilocybin. Biol Psychiatry 39:1055-1057.
A seguir, o capítulo VI do livro “A vida de Maria Sabina, a sábia dos cogumelos” escrito por Álvaro Estrada. Neste capítulo Maria Sabina relata a experiência onde curou sua irmã ingerindo cogumelos que contém psilocibina e invocando sua força, como os antigos mazatecas faziam.
– Capítulo VI –
Vários anos, não sei quantos, depois de eu ter ficado viúva pela primeira vez, minha irmã María Ana adoeceu. Sentia dores no ventre: eram pontadas agudas que a faziam dobrar-se e gemer de dor. Eu via que ia ficando cada vez mais grave. Quando ela se sentia mais ou menos aliviada, voltava aos afazeres domésticos. Mas, sem que ela pudesse se controlar, uma vez desmaiou na estrada.
Seus desmaios ocorreriam freqüentemente mais tarde.
Temendo por sua saúde, contratei curandeiros para tratá-la, mas pude ver, com angústia, que seu mal aumentava. Certa manhã, não se levantou da cama; tremia e gemia. Fiquei preocupada como nunca. Chamei vários curandeiros, mas foi inútil. Eles não puderam curar a minha irmã.
Naquela tarde, vendo minha irmã estirada, pensei que estivesse morta. Minha única irmã. Não, isso não podia acontecer. Ela não podia morrer. Eu sabia que os meninos santos tinham o poder. Eu os tinha comido quando criança, e me lembrava que não faziam mal. Eu sabia que nossa gente os comia para curar doenças. Então, tomei uma decisão; naquela mesma noite, eu comeria os cogumelos santos. Fiz isso. Dei a ela três pares. Eu comi muitos, para que me dessem poder imenso. Não poso mentir, devo ter comido trinta pares de “derrumbe” ¹. (¹ Variedade de cogumelo. Psilocybe Caerulescen)
Quando os meninos estavam trabalhando dentro de meu corpo, rezei e pedi a Deus que me ajudasse a curar María Ana. Pouco a pouco, senti que podia falar cada vez com mais facilidade. Aproximei-me da enferma. Os meninos santos guiaram minhas mãos para apertar seus quadris.Suavemente, fui fazendo massagem onde ela dizia que doía. Eu falava e cantava. Sentia que cantava bonito. Dizia o que osmeninos me obrigavam a dizer.
Continuei apertando minha irmã, no ventre e nos quadris; finalmente, veio muito sangue. Água e sangue, como se estivesse parindo. Nunca me assustei, porque sabia que o pequeno que brota a estava curando através de mim. Os meninos santos aconselhavam, e eu executava. Fiquei com minha irmã até que o sangue parou de sair. Logo ela parou de gemer e dormiu. Minha mãe sentou-se junto dela para socorrê-la.
Eu não pude dormir. Os santinhos continuavam trabalhando em meu corpo. Lembro que tive uma visão: apareceram uns personagens que me inspiraram a respeito. Eu sabia que eram os Seres Principais de que falavam meus ascendentes. Eles estavam sentados atrás de uma mesa sobre a qual havia muitos papéis escritos. Eu sabia que eram papéis importantes. Os Seres Principais eram vários, uns seis ou oito. Alguns me olhavam, outros liam os papéis da mesa. Outros pareciam procurar logo entre os mesmos papéis. Eu sabia que não eram de carne e osso. Sabia que não eram seres de água ou de tortilla. Sabia que era uma revelação que os meninos santos me entregavam. Logo escutei uma voz. Uma voz doce mas autoritária ao mesmo tempo. Como a voz de um pai que gosta dos filhos mas cria-os com firmeza. Uma voz sábia que disse: “Esses são os Seres Principais…”. Compreendi que os cofumelos falavam comigo. Senti uma felicidade infinita. Na mesa dos Seres Principais apareceu um livro, um livro aberto que foi crescendo, até ficar do tamanho de uma pessoa. Em suas páginas havia letras. Era um livro branco, tão branco que resplandecia.
Um dos Seres Principais falou comigo, e disse: “María Sabina, este é o Livro da Sabedoria. É o Livro da Linguagem. Tudo o que nele está escrito é para você. O Livro é seu, pegue-o para trabalhar…” . Eu exclamei, emocionada: “Isso é para mim! Recebo-o…”
Os Seres Principais desapareceram e me deixaram só diante do imenso Livro. Eu sabia que era o Livro da Sabedoria.
O Livro estava diante de mim, eu podia vê-lo, mas não tocá-lo. Tentei acariciá-lo, mas minhas mãos não tocaram nada. Limitei-me a contemplá-lo e, então, comecei a falar. Então me dei conta que estava lendo o Livro Sagrado da Linguagem. Meu Livro. O Livro dos Seres Principais.
Eu tinha atingido a perfeição. Já não era mais uma simples aprendiz. Por isso, como um prêmio, como uma nomeação, o Livro me tinha sido outorgado. Quando se tomam os meninos santos se pode ver os Seres Principais, de outro modo não² . É que os cogumelos são santos; dão Sabedoria. A Sabedoria é a Linguagem. A Linguagem está no Livro. O Livro é outorgado pelos Principais. Os principais aparecem com o grande poder dos meninos.
Aprendi a sabedoria do Livro. Depois, em minhas visões posteriores, o Livro já não aparecia, porque eu já guardava seu conteúdo na memória.
Fiz a velada em que curei minha irmã María Ana como os antigos Mazatecos. Usei velas de cera pura; flores, açucenas e gladíolos (pode-se usar qualquer tipo de flor desde que tenha cheiro e cor). Também se usa copal (Resina de árvores usada como incenso) e São Pedro.
Queimei o copal em um braseiro e com a fumaça defumei os meninos santos que tinha nas mãos. Antes de comê-los falei com eles, pedi-lhes favor. Que nos abençoasse, que nos indicasse o caminho, a verdade, a cura. Que nos desse o poder de rastrear as pegadas do mal, para acabar com ele. Eu disse aos cogumelos: “Tomarei seu sangue. Tomarei seu coração. Porque minha consciência é pura, é limpa como a sua. Dêem-me a verdade. Que me acompanhe São Pedro e São Paulo…”. Ao sentir-me enjoada, apaguei as velas. A Escuridão serve de fundo para o que se vê ali.
Nesta mesma velada, logo que o Livro desapareceu, tive outra visão: vi o Supremo Senhor dos Montes, o Chicón Nindó. Vi que era um homem a cavalo que vinha até minha choça. Eu sabia, a voz me dizia, que aquele ser era um personagem. Sua cavalgadura era bela: um cavalo branco, tão branco quanto à espuma. Um belo cavalo.
O personagem parou sua cavalgadura diante da porta de minha choça. Eu podia vê-lo através das paredes. Eu estava dentro da casa, mas meus olhos tinham o poder de ver além de qualquer obstáculo. O personagem esperava que eu saísse.
Com decisão, saí ao seu encontro. Parei junto dele. Sim, era o Chicón Nindó, o que mora no Nindó Tocoxho, o que é dono das montanhas. O que tem poder para encantar os espíritos. E que , assim mesmo, cura os doentes. Para o qual sacrificam perus e ao qual os curandeiros entregam moedas (cacau), para que cure.
Parei junto dele e me aproximei mais. Vi que não tinha rosto, embora usasse um chapéu branco. Seu rosto, sim, era como uma sombra. A noite era negra, as nuvens cobriam o céu, mas o Chicón Nindó era como um ser coberto com um halo. Emudeci.
O Chicón Nindó não disse nem uma palavra. Logo fez sua cavalgadura andar para seguir seu caminho. Desapareceu pela estrada, rumo a sua morada: o enorme Monte da Adoração. O Nindó Tocoxho. Ele vive lá, eu no Monte do Fortim, o mais próximo do Nindó Tocoxho. Quer dizer que somos vizinhos. O Chicón Nindó tinha vindo porque, em minha sábia linguagem, eu o tinha chamado.
Entrei em casa e tive outra visão: vi que algo caía do céu com um grande estrondo, como um raio. Era um objeto luminoso que cegava. Vi que caía por um buraco que havia na parede. O objeto caído foi se transformando em uma espécie de ser vegetal, também coberto por um halo, como o Chicón Nindó. Era como uma planta, com flores de muitas cores, na cabeça tinha um grande resplendor. Seu corpo estava coberto de folhas e talos. Ficou ali parado, no centro da choça, olhei-o de frente. Seus braços e pernas eram como ramos, e estava empapado de frescor, e por trás dele apareceu um fundo avermelhado. O ser vegetal foi se perdendo nesse fundo avermelhado até se perder completamente. Ao esfumar-se a visão eu suava, suava. Meu suor não era morno, mas fresco. Dei-me conta de que eu chorava e minhas lágrimas era de cristal, e quando caíam no chão, tilintavam. Continuei chorando, mas assobiei e aplaudi, toquei e dancei. Dancei porque sabia que era a Polichinela grandiosa e a Polichinela Suprema… De madrugada, dormi placidamente. Dormi, mas não um sono profundo, eu sentia que me movia num sonho… Como se meu corpo se movesse uma rede gigante, pendurada no céu, qu oscilava de uma montanha a outra.
Despertei quando o mundo já estava ensolarado. Era de manhã. Lancei meu corpo no chão para ter certeza que já tinha voltado ao mundo dos humanos. Já não estava perto dos Seres Principais… ao ver o que me cercava, procurei minha irmã María Ana. Estava dormindo, não quis acordá-la. Também vi que uma parte das paredes da chocinha estava derrubada, outra estava para cair. Agora acho que enquanto osmeninos santos estavam trabalhando em meu corpo, eu mesma derrubei as paredes com o peso de meu corpo. Suponho que enquanto eu dançava choquei-me contra a parede e derrubei-a. Nos dias seguintes, as pessoas que passavam perguntavam o que tinha acontecido na casa. Limitava-me a dizer-lhes que as chuvas e vendavais dos últimos dias tinham conseguido afrouxar as paredes de barro e canabrava, acabando por destruí-las.
E María Ana sarou. Sarou para sempre. Atualmente vive bem, com seu marido e seus filhos, perto de Santa Cruz de Juárez.
A partir daquela cura, tive fé nos meninos santos. As pessoas se deram conta do quanto era difícil curar minha irmã. Muita gente ficou sabendo e dentro de poucos dias vieram procurar-me. Traziam seus doentes. Vinham de lugares muito afastados. Eu os curava com a Linguagem dos meninos. As pessoas vinham de Tenango, Río Santiago ou San Juan Coatzospan³. (³ povoado de raça mísxteca incrustado em plena região mazateca). Os doentes chegavam pálidos. Mas os cogumelos diziam-me qual era o remédio. Diziam-me o que fazer para curar. As pessoas continuaram a me procurar. E desde que recebi o Livro, passei a fazer parte dos Seres Principais. Se eles aparecem, sento-me com eles e tomamos cerveja ou aguardente. Estou entre eles desde a vez em que, agrupados atrás de uma mesa com papéis importantes, entregaram-me a sabedoria, a palavra perfeita: A Linguagem de Deus.
A Linguagem faz com que os moribundos voltem à vida. Os doentes recuperam a saúde quando escutam as palavras ensinadas pelos meninos santos. Não há mortal que possa ensinar essa Linguagem.
Depois que curei minha irmã María Ana, compreendi que tinha encontrado meu caminho. As pessoas sabiam disso, e vinham a mim para que eu curasse seus doentes. Vinham em busca de cura aqueles que tinham sido encantados por duendes, os que tinham perdido o espírito por um susto no monte, no rio ou na estrada. Alguns não tinham remédio e morriam. Eu curo com a Linguagem, a Linguagem dos meninos santos. Quando eles aconselham sacrificar franguinhos, estes são colocados em cima das partes onde dói. O resto é da Linguagem. Mas meu caminho em direção a sabedoria em breve será interrompido.
(…)
² De acordo com explicações que nos deram os anciãos de Huautla, os Seres Principais são personagens que encabeçam um cargo municipal, ou é o título que se dá a pessoas que têm cargos importantes. Em mazateco se diz ”Chotáa-tjí-tjón“ . No que diz respeito às visões de María Sabina, os Seres Principais são a personificação dos cogumelos que ela comeu.Os cogumelos se transformam em “personagens que manuseiam papéis importantes”. Outra pessoa em Huautla, disse-nos que os Seres Principais são como “sombras” ou pessoas que se “vêem” vestidas como camponeses, mas com roupas brilhantes e coloridas quando vistas durante o transe.
Texto Retirado de “A vida de Maria Sabina, a sábia dos cogumelos” de Álvaro Estrada
*Artigo extraído do livro “O Uso Ritual das Plantas de Poder” (Beatriz Caiuby Labate e Sandra Lucia Goulart [ORGS] )
Henrique Carneiro (1)
Doutor em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), professor adjunto do Departamento de História da USP, autor de Amores e sonhos da flora. Alucinógenos e afrodisíacos na botânica e na farmácia (2002) e de Filtros, mezinhas e triacas. As drogas no mundo moderno (1994).
Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. (Marcel Proust, No Caminho de Swann)
O uso de plantas e substâncias psicoativas passou, no último século e meio, a ser objeto de um estudo científico. Ludwig Lewin, o pioneiro farmacologista alemão, dizia sobre as drogas que, “com a única excessão dos alimentos, não existe na Terra substâncias que estejam tão intimamente associadas com a vida dos povos em todos os países e em todos os tempos” (apud Brau 1974, p. 7). Essa ubiquidade da droga em todas as épocas e culturas permite supor que o consumo de substâncias alteradoras da consciênciafaz parte da condição humana, que buscou sempre meios para interferir quimicamente no psiquismo. Essa é a conclusão do médico Andrew Weil (apud Furst 1980, p. 25), ao afirmar que “o desejo de alterar periodicamente a consciência é um impulso inato, normal, análogo à fome ou ao impulso sexual”. As regras sociais que disciplinam esse impulso, ou seja, o uso do álcool e de outras substâncias psicoativas, são investigadas pela história da normatização das drogas.
Dentre as drogas existe, entretanto, uma categoria especial, que se distingue dos inebriantes (como o álcool), dos excitantes (como o café e a cocaína), ou dos sedativos (como o ópio), que é um conjunto de plantas e de substâncias sintéticas que produzem efeitos psicoativos muito peculiares e característicos. Esses efeitos foram chamados de “fantásticos”, por Ludwig Lewin, e se tornaram conhecidos mais vulgarmente como “alucinógenos” ou “psicodélicos”. Essas drogas são basicamente as seguintes: o LSD, a mescalina, a psilocibina, a DMT e também as anfetaminas psicodélicas como o MDMA, das quais existem ao menos algumas centenas de análogas. Suas características fisio-químicas são a muito baixa toxicidade e a também baixíssima dose mínima necessária. Quase não produzem efeito fisiológico, exceto certa midríase (aumento da pupila) e taquicardia. A natureza fundamental do seu efeito é psíquica, esfera que sofre uma ação impactante dessas drogas.
O poderoso efeito psíquico foi o que tornou plantas como o cogumelo teonanacatl, o cacto peiote, o cipó ayahuasca, a trepadeira ololiuqui etc., substâncias sagradas de diversas religiões americanas. O fascínio do olhar antropológico sobre esses cultos e as utilizações dessas drogas em diversas culturas desencadeou uma crescente e sistemática investigação etnobotânica. O uso seletivo das plantas de poder foi identificado por diversos pesquisadores (Huxley, Escohotado, Szasz, Wasson, Allegro, McKenna, Narby, Ott, entre outros) como característico do fenômeno religioso. Diferentes estudos históricos e antropológicos têm destacado o uso específico de diferentes plantas em culturas distintas, desvendando significações particulares em cada rito e em cada substância, cuja diversidade engloba desde o tabaco em seu uso tradicional americano (Wilbert, 1987), até um conjunto de plantas muito singulares cuja denominação é objeto de controvérsia, sendo chamadas de “alucinógenas”, “enteógenas” ou “psicodélicas”.
No último século e meio, os estudos sobre as substâncias alucinógenas abrangeram tanto os usos sagrados tradicionais em diferentes culturas, como o uso contemporâneo internacional, onde diferentes consumos de tais drogas produziram diversos fenômenos dentro de uma ampla cultura da droga, que inclui o surgimento de novas religiões e de círculos científicos de pesquisa e experimentaçã, além de uma influência estética disseminada e de um uso recreacional popular, que supera a cultura exclusiva do álcool como lubrificante social. (2)
Esse uso recreacional intensificou-se com a cultura rave, dos anos 1990, onde se despreza o álcool e se consomem psicodélicos. Ver Saunders (1995)
No início do século XX, desde que a mescalina foi isolada de amostras do cacto peyote, em 1897, por Arthur Heffter, e sintetizada em laboratório, em 1919, por Ernst Späth, difundiram-se diversas experiências de cientistas, psicólogos, escritores e artistas com esta droga. Mais tarde, Aldous Huxley, que identificava nas viagens psicodélicas veículos para o transporte dos antípodas mentais, tornou-se a partir dos anos 1950 um expoente marcante de uma aventura cultural de desbravamento pioneiro de um novo campo epistemológico, quando se difundiu o LSD, descoberto por Albert Hoffman em 1943.
O que caracterizou o final da segunda metade do século XX, entretanto, foi o quase desaparecimento da pesquisa científica oficial de algumas das substâncias mais fascinantes da farmácia contemporânea e de seus promissores e florescentes usos em terapia, arte e psicologia experimental. Ao invés disso, uma política de guerra contra as drogas igualou psicodélicos, opiáceos e cocaína numa lista oficial de substâncias proibidas pela ONU e consideradas como não-possuidoras de qualquer uso médico, provocando o sufocamento da investigação sobre o LSD e outras substâncias análogas.
A política da guerra contra as drogas tem sido criticada como uma “Inquisição” que busca suprimir a dissidência psicofarmacológica e proibir o exercício da liberdade de consciência para produzir uma hipertrofia de lucros e de violência com laboratórios clandestinos, policiamento mental, lavagem de bilhões de dólares, milhões de prisioneiros, fiscalização através de testes compulsórios de urina, devastação aérea de plantações, guerras, cercos e invasões militares. Tal é o sentido do conceito de “inquisição farmacrática”, empregado por Thomas Szasz e Jonathan Ott, entre outros, para definir o fenômeno da campanha do proibicionismo das drogas, iniciada com a Lei Seca contra o álcool nos Estados Unidos, no início do século XX, e intensificada desde os anos 1960, por Nixon, através de uma “guerra” de conteúdo militar, comercial, industrial, financeiro, político e ideológico.
Vivemos simultaneamente, entretanto, a ampliação de um novo camp0o epistemológico em meio a uma guerra que utiliza os instrumentos desse potencial científico e tecnológico como armas. Por um lado, a ciência química amplia os conhecimentos e os domínios sobre as sínteses refinadas de novos arranjos moleculares, e, por outro, produz uma intersecção com os domínios das ciências da subjetividade humana. A analogia molecular entre o LSD e a serotonina (cristalizada e nomeada em 1948 por Rapport) foi o que levou a identificação da segunda como neurotransmissor (Chast 1995, p. 128). A farmácia e a psicologia se unem na psicofarmacologia. A constituição desse campo, definido sistematicamente por François Dagognet, seu primeiro epistemólogo, no texto La raison et les rémèdes (1964), une a filosofia do sujeito com a história das formas de controle e normatização da subjetividade. O estudo desse campo de atividade do pensamento estimulado na fonte neurotransmissora dos impulsos e suas consequências na determinação das formas da consciência e dos modelos de subjetividade culturalmente determinados, constitui-se como um foco de inquietação que busca instrumentos nas mais divrsas ciências – farmácia, psicologia, medicina, história, antropologia – para investigar e experimentar os psicofármacos. Em 1972, Charles Tart propôs num artigo na revista Science, a criação de ciências específicas para os estados alterados de consciência, desenvolvendo uma abordagem que se insere no campo mais amplo das “ciências da consciência” (Tart 1998)
Os estudos sobre as drogas possuem uma extensa e multidisciplinar bibliografia. Este texto não pretende realizar nenhuma descrição panorâmica, mas apenas apontar algumas obras essenciais dos estudos históricos e antropológicos sobre o papel dos alucinógenos na cultura e historiar brevemente alguns usos dessas substâncias no decorrer do século XX.
O estabelecimento e a classificação de uma bibliografia sobre plantas alucinógenas, usos enteogênicos e o psicodelismo é uma tarefa que ainda não foi feita. Diversas gerações se perfilam: desde os primeiros psicofarmacólogos como Arthur Heffter e Ludwig Lewin, no início do século XX; passando pelos trabalhos mais antropológicos sobre o peiote, de Alexandre Rouhier e Weston La Barre, nos anos 1930 (mesma época dos escritos literários de Michaux, Sartre e Artaud), chegando à descoberta (por serendipidade) do LSD por Albert Hoffman, em 1943; até a fermentação dos anos 1950, quando se destacam as obras de Aldous Huxley, Gordon Wasson e de Richard Evans-Schultes; e a explosão dos anos 1960, com o psicodelismo, Timothy Leary e Richard Alpert. Nos anos 1970 e 1980, formularam-se as visões críticas mais maduras em autores como Alexander Shulguin e Jonathan Ott. Autores como Thomas Szasz, emCerimonial chemistry (1974), e Antonio Escohotado em História de las drogas (1989), apresentam uma visão crítica do papel social, econômico e cultural das drogas e de sua regulamentação na história universal.
O enfoque sistemático de Escohotado sobre os mecanismos de controle e regulamentação do uso das plantas e dos fármacos é uma das análises mais agudas sobre a questão. A interpretação da guerra contemporânea contra as drogas como uma “inquisição farmacrática” e o próprio conceito de “farmacracia”, que Escohotado comparte com o psiquiatra Thomas Szasz, fazem parte da vertente que mais buscou, no terreno das ciências humanas, uma interpretação teórica e histórica dos regimes de consumo e regulamentação de drogas. Outros trabalhos pioneiros buscaram exposições gerais sobre a história das drogas, como é o caso de Jean Louis Brau, mas sem entrarmos nas vertentes psiquiátrica e farmacológica, podemos nos referir à etnobotânica, com Gordon Wasson e Richard Evans Schultes, e à antropologia, especialmente com os estudos do peiote e do xamanismo amazônico(3), como as disciplinas que mais contribuíram para a formação de um campo do conhecimento histórico e antropológico das drogas em geral e, especialmente, dos alucinógenos.
Entre os quais estão Aguire Beltrán, Jean-Pierre Chaumeil, Jeremy Narby, Michael Harner, Michael Taussig, Terence McKenna, Weston La Barre e, especialmente no contexto amazônico, Esther Jean Langdon, Haydée Seijas, Homer Pinkler, Luis Eduardo Luna, Melvin Bristol, M. Winkelman, Néstor Uscategui, Plutarco Naranjo e Scot Robinson, muitos dos quais alunos de Evans Schultes.
O tema do xamanismo e das plantas de poder penetrou a cultura de massas do Ocidente, a partir dos anos 1970, com o amplo sucesso dos livros de Carlos Castaneda, cuja consistência antropológica foi, entretanto, questionada, mas que inegavelmente divulgou as plantas sagradas e seus mestres xamãs. Pesquisas antropológicas e trabalhos de campo se realizaram desde então em todos os continentes, mas especialmente nas Américas, onde o número de substâncias vegetais psicoativas conhecidas pelas culturas tradicionais é superior a todo o resto do mundo.
Alguns historiadores da América abordaram as consequências do impacto da regulamentação do consumo das drogas sobre as sociedades coloniais americanas, entre os quais Aguirre Beltrán e Serge Gruzinski. Igualmente importantes também foram os autores que trabalharam sobre a questão da história das práticas de consumo alcoólico, em particular no caso do encontro intercultural entre a Europa e a América, como é o caso de Sonia Corcuera de Mancera e de William Taylor. Entre outros trabalhos que estudaram as práticas de consumo alcoólico e de alucinógenos na América podemos citar Borrachera y Memoria(Saignes 1993) e os estudos levados a cabo no Peru desde os anos 1960 (especialmente os de Marlene Dobkin de Rios), que tratam do curandeirismo psicodélico da sierra e da selva, com grande tradição de uso de San Pedro e ayahuasca. O conceito de psiquiatria folclórica, desenvolvido por Carlos Alberto Seguín, que fundou o Instituto de Psiquiatria Social, na Universidade de San Marcos, em Lima, em 1967, também constitúi uma contribuição pioneira e fundamental para a discussão do uso tradicional de alucinógenos na América do Sul. No Brasil, após algumas passagens pioneiras de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo sobre a maconha e a Jurema(4), tem havido desde os anos 1980 um crescente interesse pelo fenômeno da religião do Santo Daime, com o surgimento de diversos livros, artigos e teses acadêmicas.(5)
A Jurema (Mimosa hostilis e Mimosa nigra), elevada por José de Alencar, em Iracema, à condição de “licor de Tupã”, e onipresente no context do catimbó, teve o seu principal alcalóide, a DMT, isolado em 1946 por Gonçalves Lima que o chamou de nigerina. Ele foi o primeiro químico no mundo a isolar a DMT, anteriormente sintetizado em laboratório em 1931, de um produto natural.
No Brasil, encontramos os trabalhos de Alberto Groisman, Anthony Henman, Ari Sell, Beatriz Labate, Edward MacRae, Sandra Goulart, Wladimyr Araújo, entre outros.
O renascimento psicodélico dos anos 1990 não se restringiu à revalorização da cultura juvenil das raves,da busca dos estados alterados de consciência, mas também se expressou numa intensa atividade editorial e na articulação através da Internet(6) de círculos de investigação e debate sobre tais substâncias. Algumas obras de investigação histórica e jornalística desvendaram a complexa e misteriosa história recente dos psicodélicos (Lee e Shlain, Stafford, Lyttle, Devereux) e centros como a MAPS (Multidisciplinary Association of Psychedelics Studies), a Società Italiana per lo Studio degli Stati di Conscienza, e a Albert Hoffman Foundation têm consituído bancos de dados e bibliografias e estimulando a pesquisa.
Tão grande é a gama de publicações e instituições com sites na Internet que foi publicada em 1996 uma compilação por Jon Hanna, intitulada Psychedelic Resource List.
As diversas formas de uso dos psicodélicos têm se constituído como um campo original de conhecimento e de produção cultural, onde a psicologia, a farmácia, a medicina, a história, a literatura e a antropologia uniram-se para buscar compreender o papel das plantas e dos sintéticos produtores de estados de êxtase e que tiveram um papel histórico determinante como produtos de grande valor comercial, religioso e cultural.
Poderíamos descrever as três visões mais importantes do uso dessas drogas a partir da própria opção pelo termo que deve denominá-las. Três são as opções fundamentais: alucinógenos, psicodélicos ou enteógenos. A primeira corresponde ao da pesquisa científica oficial dos anos 1930 a 1950 e, até hoje, é o termo considerado científico para descrever em termos farmacológicos os efeitos de uma gama de substâncias que vão da maconha ao LSD. A segunda é a denominação criada pelo psiquiatra canadense Humphry Osmond, em 1953, e que foi adotada pelo movimento político-cultural dos anos 1960. A terceira foi proposta em 1978 pelo investigador Gordon Wasson e outros (C.A.P Ruck, D. Staples, J.Bigwood e J. Ott) para referir-se às plantas que têm sido usadas como instrumentos sagrados de êxtase (Ott 1995).
Mais recentemente, as pesquisas levadas a cabo por Alexader Shulguin e sua equipe desenvolveram diversas novas substâncias de tipo semelçhante aos psicodélicos, mas com importantes distinções. As meta-anfetaminas, concebidas a partir do anel molecular da mescalina, possibilitaram diferentes tipos de efeitos, alguns dos mais característicos, no caso do MDMA, são os de intensificação das interações interpessoais, o que levou este pesquisador a propor a denominação de entactogen para esse tipo de substância (Shulguin 1991, p. 229), que também são chamadas de empatógenos.
Prefiro, para uma designação mais genérica desse campo específico dos psicoativos, o termopsicodélico, por achá-lo mais estético, mais preciso semanticamente, e imbuído de um conteúdo político e laico. O termo enteógeno, embora seja preciso para denominar usos de tipo religioso, como os identificados nas raízes culturais de inúmeros cultos, é inapropriado para definir o uso laico contemporâneo das mesmas substâncias. O termo alucinógeno, embora seja o mais corrente, é incorreto, refletindo um preconceito que atribui à ocorrência de supostas “alucinações” o principal ou único efeito de drogas que possuem uma natureza muito mais complexa. Como termo mais vasto que abrangeria diferentes vertentes das diversas formas de usos modernos e contemporâneos e os distintos enfoques culturais dos psicodélicos, utilizarei o conceito de psiconáutica que faz parte do movimento atual de renascimento psicodélico dos anos 1990 (segundo J. Ott, o termo psiconauta foi cunhado por Ernst Jünger, em 1970).
As vertentes da psiconáutica
O uso de drogas alteradoras da consciência foi uma das fontes do estudo científico da mente humana, dando origem a diversas vertentes fundadoras do campo da psicologia no século XIX. Desde muito antes dessa época, entretanto, que as especulações sobre a consciência humana estão entrecruzadas com experiências de estados alterados de consciência por uso de substâncias psicoativas. O pharmakón grego se tornou psicofármaco, ou “remédio da alma”, quando Reinhard Lorichius publicou, em 1548, um livro chamado Psychopharmakon, hoc est: medicina animae. Um dos primeiros estudos sistemáticos sobre as drogas foi a tese doutoral de um aluno de Lineu, Olavus Reinh Alander, que escreveu em 1762,Inebriantia, que pode ser considerado o primeiro tratado sobre psicoativos. Claude Bernard (1813 – 1878) é o pioneiro da medicina e da farmacologia experimentais, tendo publicado, em 1857, Lições sobre os efeitos das substâncias tóxicas e medicamentosas e, em 1865, Introdução à medicina experimental, realizando experimentos com o “curare” (substância paralisante) dos indígenas sul-americanos. Em 1817, a morfina foi isolada como o principal alcalóide do ópio e, alguns anos depois, Thomas De Quincey publicou The Confessions of an English Opium Eater (1821) que foi o primeiro best-seller da, desde então, prolífica literatura de experiência com drogas.
O primeiro laboratório de farmacologia experimental teria se estabelecido em 1860 na cidade de Dorpat (atual Tartu), na Estônia (Ribeiro do Valle 1978). O estudo científico das drogas psicoativas tem entre seus principais iniciadores alguns cientistas como Ernst Freiherr von Briba (1806 – 1878), que, em 1855 publicou, na Alemanha, Die narkotichen Genussmittel und der Mensch, onde estudou 17 plantas; e J. J. Moreau de Tour, que, em 1845, publicou na França o primeiro estudo sistemático realizado com o haxixe,Du hachich et de l’alienation mentale, onde compara o estado produzido pela droga com a loucura, Em 1860, Mordecai Cooke (1825 – 1913) publicou The Seven Sisters of Sleep, onde divulgava de forma popular diversas informações sobre plantas narcóticas e, no mesmo ano, também era publicado, na França, Les Paradis artificiels, de Charles Baudelaire, obras que traziam para o público descrições literárias e, quase sempre, exageradas dos efeitos de certas drogas. E. Kraepelin publicou, em 1883, um artigo intitulado “Sobre a ação de algumas substâncias medicamentosas na duração de certos fenômenos psíquicos elementares” e, em 1892, um livro que abordava os efeitos comparados do chá, do álcool, da morfina, do éter et., intitulado Sobre a influência de alguns medicamentos em determinados fenômenos psíquicos elementares, onde teria utilizado pela primeira vez a palavra farmacopsicologia.
Sigmund Freud contribuiu com o campo de estudo das drogas ao teorizá-las como um dos mecanismos culturais destinados a evitar o sofrimento e buscar o prazer – o mais eficaz, enfatizou Freud -, em O Mal-Estar na Civilização, tendo experimentado entretanto apenas a cocaína e o tabaco, dos quais se tornou adepto. Nos Estados Unidos, William james experimentou o óxido nitroso e escreveu, em 1902, The Varieties of Religious Experience, comparando o êxtase religioso com o efeito provocado por drogas.
O isolamento da mecalina, como princípio ativo do peyote, cacto alucinógeno do México, por Arthur Heffter, em 1897, trouxe ao panorama da farmácia o primeiro alucinógeno quimicamente puro. Nessa época, Havelock Ellis empregou mecalina para estudos sobre a criatividade, tendo ministrado essa droga para poetas como Yeats e para pintores. Em 1911, Karl Hartwich escreveu Die menschlichen Genussmittel, onde superou a obra anterior de von Briba, enfocando sob um ângulo interdisciplinar cerca de 30 plantas. Em 1924, surgiu Phantastica, de Ludwig Lewin, a obra mais influente na classificação das substâncias psicoativas, apresentando um estudo detalhado de 28 plantas e de alguns compostos sintéticos (Evans – Schultes e Hoffman 1993, p. 185). Os cinco tipos de psicoativos eram, para Lewin, os fantásticos, os excitantes, os sedativos, os euforizantes e os inebriantes. Esta taxonomia evolui posteriormente para o odelo de três categorias: os psicolépticos, psicoanalépticos e os psicodislépticos, englobando respectivamente os depressores, os estimulantes e os alteradores da consciência(7).
Tal classificação, proposta por J.Delay desde 1952, derivou do uso psiquiátrico da cloropromazina, classificada como um psicoléptico timoléptico ou neuroléptico, ou seja, um tranquilizante não-sonífero, assim como os anti-depressivos foram classificados como timoanalépticos, enquanto os soníferos seriam noolépticos e os excitantes, como a anfetamina, nooanalépticos. Tal nomeclatura tornou-se oficial desde o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em 1957. Ver Pöldinger (1968).
Nos anos 1930, o estudo dos alucinógenos (ou psicodislépticos) começou a desenvolver-se no período de arrancada da farmacoquímica na Alemanha. A história da consciência alcançou na era dos psicofármacos psicodélicos de síntese inaugurada com as pesquisas sobre a mescalina, sobretudo as de Heinrich Klüver, uma abordagem experimental dos universos mentais, A experimentação permitia um domínio empírico sobre o quadro de alterações de consciência que nenhuma outra verificação científica poderia aferir. Além dos depoimentos, dos testemunhos, da observação clínica ou psicológica dos sujeitos experimentadores, cabia ao pesquisador o conhecimento direto e insubstituível da vivência pessoal da experiência. Também na década de 1930, setores da intelectualidade se interessaram pelos psicodélicos. Jean-Paul Sartre, após tomar mescalina, escreveu Náusea, onde expressou certos aspectos de suas vivências mescalínicas, e Henri Michaux escreveu O conhecimento pelos abismos, Infinito turbulento e O miserável milagre.
A tipologia dos “arquétipos” provocados pela mescalina, sobretudo os efeitos visuais, foram objeto de extensos estudos experimentais. A natureza do alucinógeno permitiria compreender a natureza da alucinação e da percepção da realidade. A definição precisa das “constantes alucinatórias” foi para Klüver uma das chaves para se tentar compreender a natureza dos efeitos da mescalina. A característica principal dos fenômenos alucinatórios tinha sido definida por Havelock Ellis como a sua “indescritibilidade” (indescribableness), mas Klüver irá buscar as formas constantes, tais como: “a) grade, treliça, trama, cordas, filigrana, favos de abelha, exadrezado; b) teia de aranha; c) túnel, funil, viela, cone, ou barco; d) espiral” (Klüver 1971, p. 66). As pioneiras e, em muitos aspectos, interessantes pesquisas desse período sofreram, no entanto, a limitação de buscarem enfoques parcelares e laboratoriais de uma experiência cuja natureza múltipla, polissêmica e subjetiva tornava-se inabordável pelos métodos e testes psicológicos tradicionais destinados a verificar “alucinações visuais”. O que mais se destacava na experiência dessas drogas era sua inefabilidade, sua singularidade e sua intensidade. Mais recentemente, diferentes autores identificaram nas percepções geométricas visuais um elemento recorrente em diversas culturas, desde as pinturas rupestres paleolíticas até os padrões psicodélicos contemporâneos, representando o que R. Rudgley denomina “fenômenos entópticos”, também chamados de fosfenos ou imagens eidéticas. Os efeitos dos alucinógenos produziriam dois tipos básicos de imagens: padrões geométricos entópticos, que derivariam da estrutura universal do sistema nervoso humano, e imagens icônicas alucinatórias, derivadas de elementos psicológicos e culturais (Rudgley 1995, p. 18).
Em 1953, Aldous Huxley tomou mescalina e escreveu As Portas da Percepção, que se tornou a mais famosa apologia intelectual da experiência psicodélica. O psiquiatra canadense que o iniciara na experiência era Humphry Osmond, que foi quem propôs a denominação de psicodélicos.Huxley prosseguiria desde então um estudo insaciável sobre os psicodélicos, correspondendo-se, entre outros, com o círculo de Albert Hoffman, o inventor do LSD, e o de Timothy Leary.
Nos anos 1960, despontaram movimentos culturais (ou “contraculturais”) que reinvidicavam a extensão dos direitos de livre-disposição do corpo e de autonomia sobre si próprio. Como parte desses movimentos, destacavam-se os que discutiam questôes de política sexual, de gênero (o movimento feminista) e de opção sexual (o movimento homossexual). O uso voluntário do corpo para fins de prazer sexual se coligava à reinvidicação da autonomia crítica da consciência, da recusa em se permitir ao Estado uma jurisdição química sobre a mente que busca controlar o que se ingere ou se introduz voluntariamente no interior do corpo. O movimento psicodélico representou uma defesa política oficial do proibicionismo estatal, caracterizado como Inquisição farmacrática contra o direito de escolha na estimulação química do espírito. A humanidade alcançou com os recursos de alteração química deliberada da consciência um novo patamar para o florescimento da auto-consciência do espírito. A consciência deixou de ser a mera auto-referência psicológica, sujeito filosófico do conhecimento ou identidade para tornar-se a matéria plástica, passível de programação química voluntária. Tal perspectiva trouxe a baila uma questão moral e política decisiva: quais os limites para a liberdade de autoprogramar-se quimicamente? A liberdade de consciência, os direitos do homem, a liberdade na busca dos meios de obtenção de prazer incluem o direito ao uso de drogas?
A autonomia crítica da consciência exigiu o acesso ao arsenal do saber herbário e da tecnologia psico-farmacoquímica como um dos direitos do espírito humano na busca do conhecimento de si próprio. A resposta política do Ocidente a essa demanda pelas chaves vegetais e químicas da consciência até hoje, contudo, foi negativa. O proibicionismo reinou sempre, inicialmente sob a égide da Igreja e, mais tarde, da Medicina. A Igreja Católica proibiu os frutos das árvores do conhecimento, como o ópio, os cogumelosamanita ou a cannabis, herança combatida do paganismo euroasiático e, durante a colonização moderna, desencadeou uma campanha para extirpar as “idolatrias” indígenas, e particularmente as suas plantas sagradas. A América proveu o mundo, entretanto, com algumas das mais fantásticas substâncias extraídas de plantas: a mescalina do cacto, a psilocibina do cogumelo, a harmalina do cipó, as triptaminas da leguminosa jurema, e o LSD análogo da trepadeira ipoméia.
O uso militar
O uso de técnicas de alteração de consciência por meios médicos ou químicos sempre foi objeto de pesquisa científica de uso militar. A psiquiatria do śeculo XX desenvolveu uma vasta gama de técnicas reunidas sobre a denominação de “sismoterapia”. O abalo de pacientes esquizofrênicos, antes produzido com água gelada e outros métodos rudimentares, se aperfeiçoou através de febres induzidas (paludoterapia), comas hipoglicêmicos (choque de insulina), epilepsias induzidas (choque de cardiazol) e eltro-choques. Estes últimos foram especialmente empregados quando na Primeira Guerra Mundial para os chamados “neuróticos de guerra”, soldados em trauma que se recusavam a lutar. Freud teve uma posição ambígua diante desse tipo de “tratamento”, inclusive depondo numa comissão de inquérito durante um processo movido por um oficial das forças armadas austríacas, mas a conclusão oficial continuou a legitimar o uso de eletro-choques para “arrancar o doente de suas fixações e permitir-lhe voltar ao fronte” (Rousseau 1998).
O exército alemão interessou-se pela mescalina e na época nazista floresceram os estudos médicos sobre prisioneiros em campos de concentração. No pós-guerra, os Estados Unidos recrutaram mais de seiscentos cientistas alemães de diferentes áreas, entre os quais o principal investigador responsável pelos estudos de mescalina, Dr. Hubertus Strughold, que, segundo os pesquisadores norte-americanos Martin A. Lee e Bruce Shlain, “depois de Werner von Braun, foi o segundo cientista nazista de primeiro plano a ser empregado pelo governo dos Estados Unidos, tendo sido, mais tarde, saudado pela NASA como “o pai da medicina do espaço” (Lee e Shlain 1994, p. 26). A medicina do espaço foi um dos campos onde se investigaram os estados de consciência alterada, especialmente em condições de confinamento, e se experimentaram novas drogas psicoativas potencialmente úteis para a manutenção da saúde psíquica em viagens espaciais.
O código deontológico da pesquisa científica estabelecido pelos juízes dos processos de Nuremberg, que estabelecia que nenhuma experiência poderia ser levada a cabo sem o consentimento total e voluntário, nunca foi seguido nos Estados Unidos. Após a guerra, a CIA dedicou-se a uma vasta pesquisa sobre drogas. Utilizando cientistas nazistas davam continuidade à utopia reacionária da manipulação cerebral total. Constituíram-se os projetos Blue bird e Artichoke, que se dedicavam a desenvolver técnicas de controle mental e de interrogatórios, com o uso de drogas, tortura e hipnose. Em 10 de abril de 1953, Allen Dulles, novo diretor da CIA, proferiu um discurso em Princeton, onde se referiu ao “sinsitro combate dos soviéticos para se apoderarem dos espíritos”, referindo-se a supostas técnicas de “lavagem cerebral”. Três dias depois foi lançado o projeto da CIA chamado MK Ultra, que consistiu no estudo experimental, com voluntários e não-voluntários, de diversas drogas, entre as quais o LSD, que por suas características peculiares de ínfima dosagem e magnitude dos efeitos, tornou-se uma das principais. O LSD é ativo na proporção de milésimos de miligramas, ou seja, em poucas dezenas de milionésimos de grama. Praticamente nenhuma outra substãncia age sobre o metabolismo humano nessa dosagem.
Ironicamente, alguns dos sujeitos recrutados por anúncios em jornais, que foram iniciados no LSD nesses testes de ácido, tornaram-se, depois, os maiores críticos à política oficial de drogas nos Estados Unidos, como o poeta Allen Ginsberg. A questão moral central do uso de drogas em geral, mas particularmente dessas intensas novas drogas mentais, dizia e continua dizendo respeito ao problema da liberdade de opção. Inicialmente se manteve um uso restrito às investigações militares e médicas, nas quais, na maior parte das vezes, os sujeitos que consumiam as drogas não o faziam voluntariamente. O que a CIA buscava era justamente uma droga que vencesse a vontade e as convicções, que tornasse voluntário o involuntário. Desenvolviam pesquisas para técnicas de interrogatório, armas de guerra a se usarem em bombardeios ou infiltração de sistemas de abastecimento de água (o que se verificou impossível, pois o cloro neutraliza o LSD). No uso médico e psicoterapêutico, embora tenha havido trabalhos sérios em profusão nos anos 1950 e 1960, até a proibição legal do LSD em 1966, também houve muito uso experimental psiquiátrico e todo tipo de aberrações numa época que consagrara a lobotomia com um prêmio Nobel (o português Esgas Moniz, em 1949), chegando até mesmo à prática da lobotomia num paciente a quem se havia dado LSD, para que o mesmo descrevesse verbal e conscientemente o que estava sentindo ao mesmo tempo em que lhe extirpavam pedaços do cérebro.
Ao mesmo tempo, o LSD se popularizava entre a elite norte-americana. Os agentes da CIA tomavam ácido como parte obrigatória de sua preparação. Atores famosos, milionários, generais e até mesmo presidentes norte-americanos como John Kennedy contavam entre os que experimentavam LSD. Nas universidades se desenvolviam programas de reabilitação de alcoólatras e de delinquëntes que obtinham grande êxito. O problema para as autoridades surgiu quando esse uso extravasou as comportas da CIA, da elite e das cúpulas universitárias e, a partir de Harvard, os professores de psicologia começaram a fazer proselitismo público. O resultado foi a proibição do LSD em 1966. O uso voluntário passa a ser considerado crime, o território interior da carne e mente torna-se jurisdição química do Estado que decide quais substâncias e em que momentos estamos autorizados a consumir. Ao mesmo tempo em que os serviços secretos do mundo desenvolviam ou subsidiavam pesquisas sobre drogas, especialmente os novos sintéticos, a polícia intensificava a repressão e um movimento cultural começava a desenvolver-se em torno do uso ilegal destas novas substâncias.
Usos psicoterapêuticos
Na psicoterapia, centenas de tratamentos alcançavam resultados surpreendentes; como inspirador de artistas e potencializador de criatividade, repetia-se exaustivamente, em todas as artes, as experiências do final do século XIX, quando Havelock Ellis deu mescalina para poetas e pintores. Retomava-se, com os sintéticos como o LSD, a traddição literária baseada no uso de drogas como via para a poesia.
Diversas vertentes utilizaram psicodélicos como coadjuvantes para tratamentos, com sucesso excepcional na recuperação de alcoólicos, em pacientes terminais, e em tratamentos os mais variados. Em Harvard, após experimentar cogumelos em 1960, o psicólogo Timothy Leary, aos 39 anos, converteu-se a um apostolado dos psicodélicos. Aproximou-se dos beats como Allen Ginsberg, que vinham de uma tradição de uso do peiote, e realizou algumas experiências autorizadas com recuperação de dependentes de álcool e de delinquentes. Quando o uso dos psicodélicos extravasou o controle acadêmico, Richard Alpert e Timothy Leary tornaram-se os primeiros casos de expulsão no quadro de professores de Harvard, em 1963.
Nos anos 1960, Alberto Fontana adotou, na Argentina, psicodélicos em terapia psicanalítica. Na Tcheco-Eslováquia, Stanislav Grof começou um trabalho de pesquisas, que foi desenvolvido posteriormente na Califórnia, como investigação dos estados perinatais, utilizando psicodélicos em experiências de regressão. No Brasil, houve uma utilização científica de LSD no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, inclusive com experiências sobre criatividade(8), vertente já explorada desde Havelock Ellis e, mais recentemente, por Stanley Krippner, nos Estados Unidos, mas que foram abortadas pela interdição legal de experimentação científica com psicodélicos.
O livro de memórias de Fauzi Arap, Mare Nostrum, Sonhos, viagens e outros caminhos, relata a influência lisérgica sobre o panorama cultural brasileiro dos anos 1960 e sobre diversos artistas em particular como, além dele próprio, a escritora Clarice Linspector, que deveria a uma intensa experiência com LSD a inspiração para o seu livro A Paixão segundo G. H.
A bibliografia médica sobre usos de LSD e outros psicodélicos é de muitos milhares de títulos, que compreendem usos psiquiátricos e psicoterapêuticos os mais diversos, resultado sobretudo das experimentaçoes realizadas antes da proibição legal em 1966. Entre os pesquisadores que relatam essas experiências, podemos citar autores como Masters e Houston, Claudio Naranjo e Andrew Weil, que escreveram livros sobre as virtudes médicas e terapêuticas dos psicodélicos. Durante o começo dos anos 1980, o uso de MDMA generalizou-se em diversos tratamentos psicoterapêuticos e até sua proibição, em 1986, foi apresentado como um eficiente afrodisíaco ou droga pró-sexual.
O uso político dos alucinógenos e o movimento psicodélico
O uso aristocrático por Ernst Jünger, do círculo diretamente ligado a Hoffman, na Suiça, ou por militares norte-americanos, como o capitão Alfres M. Hubbard, são vertentes de uso restrito dos psicodélicos que sempre advogaram por um acesso muito seletivo. Contra tal controle insurgiam-se, nos anos 1960, diversos apostulados do ácido. Talvez, como advertiria André Breton no Segundo Manifesto do Surrealismo, eles quiseram “distribuir o pão maldito aos passarinhos” e pagaram o preço dessa ousadia.
A expulsão, em maio de 1963, de Richard Alpert e Timothy Leary do quadro de professores de Harvard simbolizou o mergulho na clandestinidade das pesquisas científicas com LSD. O livro Politics of Ecstasy, publicado em 1968, resumiu as posições de Leary em defesa da experimentação ampla dos psicodélicos.
Por um lado, os militares e a CIA prosseguiram com suas experiências secretas, enquanto que, por outro, um imenso movimento juvenil iria iniciar-se nos arcanos da farmácia clandestina. Em 23 de novembro de 1963, morre aldous Huxley, no mesmo dia em que Kennedy é assassinado. Huxley, ao morrer, pratica o ensinamento do Bardo Todol, o Livro Tibetano dos Mortos, que ele havia interpretado como um manual para o êxtase, e pede à sua mulher Laura que lhe injete uma dose de LSD.
Em 1965, a fabricação e venda do LSD tornaram-se ilegais. Em 1966, a Sandoz parou a fabricação. No debate que se abre no congresso norte-americano, o senador Robert Kennedy argumenta contra a proibição, alegando que sua esposa usava LSD com êxito num tratamento psicoterapêutico. Em 1968, não obstante, a posse de LSD tornou-se um crime nos Estados Unidos.
Muitos são os “apóstolos do ácido” que começam a fazer a sua distribuição como sagrada hóstia espiritual. Ken Kesey e o grupo de rock Merry Pranksters, saem num ônibus promovendo os Eletric-Cool-Aid-Acid-Test (tema do livro de Tom Wolfe, O teste do ácido do refresco elétrico). O próprio Leary funda a IFIF (International Federation for Internal Freedom) e instala-se em Cuernavaca, no México, onde faz sessões com LSD. Na esteira da radicalização do movimento estudantil, surgem as seitas psicodélicas, como os Diggers, os Yippies e a “Fraternidade do Amor Eterno”. No final de 1968, Nixon é eleito e lança a War on drugs. Em 1969, Leary declara que o LSD é perseguido por “ciúme metamórfico”, porque “as moscas invejam as borboletas”, e lança sua candidatura ao governo da Califórnia, contra Ronald Reagan, recebendo o apoio de John Lennon, que escreve a música Come Together, para a campanha.
Em 1965, Leary havia sido preso junto com a mulher e a filha por porte de pequena quantidade de maconha na fronteira com o México e condenado a trinta anos de prisão e, em 1970, após nova apreensão e recusa de recursos, é encarcerado. Após alguns meses, foge espetacularmente e exila-se na Argélia, onde se reúne com o líder pantera negra, também lá exilado, Eldridge Cleaver, renega o pacifismo e torna-se um revolucionário psicodélico. Em 1973, é preso no Afeganistão e levado para os Estados Unidos, onde colabora com a polícia, denunciando antigos companheiros. Devido ao fato de Leary aceitar capitular, no que se torna conhecido como o “Watergate hippie”, o movimento contracultural convoca uma conferência chamada de “PILL” (People Against Leary Lies). Em 1976, Leary é solto por “bom comportamento”. Nesse mesmo ano, tornam-se públicos os documentos relativos às experiências secretas da CIA com LSD, que resultaram na morte, por suicídio, de um de seus agentes, Frank Olson, em 1953. Após escrever sua autobiografia, Flashbacks, Timothy Leary dedica seus últimos anos à exaltação da Internet, constituindo-se num internauta anunciador da alteração de consciência através da realidade virtual, estado de todas as imponderabilidades.
De Woodstock à chacina de Charles Manson, a divulgação de bad trips e a proibição criaram o clima paranóico que tornou as experiências lisérgicas influenciadas por expectativas negativas, condição que apenas multiplicou o número de casos de más viagens ofuscando a época idílica do flower power.
O uso religioso
O tema do uso de drogas ligado às religiões já fora motivo de debate nos Estados Unidos com a organização da Igreja Nativa do Peyote, no início do século XX, estudada em profundidade pelo antropólogo Weston La Barre, nos anos 1930. Quando surgiu o movimento psicodélico dos anos 1960, capitaneado por Leary, argumentou-se novamente que o uso dos psicodélicos era um direito religioso. Mais ainda: Leary teorizou que um dos efeitos específicos produzido por essas drogas era a devoção. Pesquisas como as realizadas pelo psiquiatra Oscar Janinger e pelo psicólogo William McGlothlim com centenas de pacientes, mostravam que em 75% dos casos ocorriam intensas e transformadoras experiências religiosas, o que levou muitos a acreditarem que o LSD e outras substâncias eram um sacramento e a proporem, como Leary, que cada um formasse a sua própria religião fazendo a experiência da revelação lisérgica.
Richard Gordon Wasson, norte-americano, conheceu sua esposa Valentina, médica russa, em 1921. Em agosto de 1927, casados e residindo nos Estados Unidos, ao passarem a lua de mel nas montanhas Catskills, descobriram uma notável diferença cultural entre eles: ela adorava colher cogumelos e prepará-los em diversos pratos e ele simplesmente não podia conceber que se comessem coisas tão nojentas e perigosas. Essa diferença na valorização dos cogumelos, que eles denominaram de micofobia oumicofilia, levaria-os a uma verdadeira obsessão durante toda a vida: estudar os cogumelos em todo o mundo.
Em 1949, Valentina telefonou para Robert Graves, escritor britânico, autor de uma autobiografia ficcional do imperador Cláudio, para indagar-lhe sobre o último prato de cogumelos de Cláudio, que supostamente teriam sido envenenados por sua mulher, Agripina. De fato, há ao menos três tipos de Amanita bem distintos: Amanita muscaria é o alucinógeno; Amanita caesarea é um tipo comestível muito apreciado pelos imperadores; e, finalmente, o Amanita phalloides é um terrível e poderoso veneno de efeito retardado. O suco deste último teria sido posto num Amanita caesarea para Cláudio.
Três anos depois, Graves enviou aos Wasson uma notícia sobre a descoberta de um culto dos cogumelos no México pelo botânico Richard Evans Schultes, que teria estado já em duas ocasiões na região mazateca, em 1938 e 1939, e obtido amostras de cogumelo. Gordon e Valentina passaram a viajar para o México e, na sua terceira visita, em 1955, conheceram Maria Sabina, e foram os primeiros ocidentais a participarem da cerimônia secreta dos cogumelos. Valentina morreu em 1958, logo depois que publicaram seu primeiro livro: Mushrooms, Russia and History. Gordon Wasson aposentou-se da vicepresidência do banco Morgan e dedicou-se ao estudo dos cogumelos. Foi uma dezena de anos seguidos ao México, levou os cogumelos, por intermédio do micólogo Roger Heim, para Albert Hoffman, o qual, após isolar os princípios ativos, denominou-os psilocibina e psilocina (do grego psilo, “careca”, e cybe, “cabeça”). Em 1962, Hoffman acompanhou Gordon Wasson numa viagem ao México e levaram um frasco de pílulas de psilocibina para Maria Sabina, que as usou numa sessão noturna com a presença de ambos.
Se nos anos 1950 o centro da pesquisa de Wasson concentrou-se em torno do cogumelo psilocybe, nos anos 1960 ele se deslocou para a ìndia e a questão da identificação da planta sagrada dos Vedas, o Soma, que para Wasson teria sido o Amanita Muscaria.
As obras de Gordon Wasson não apenas chocaram os especialistas de diferentes áreas de erudição acadêmica como causaram um enorme impacto, pois, pela primeira vez, se apresentava uma tese global justificada com sérias investigações que afirmava a ligação indissolúvel entre droga e religião. Em 1938, Weston La Barre, ao estudar o culto do peiote, já havia argumentado em prol da idéia de uma “religião-UR”, mas a descoberta do culto dos cogumelos generalizava essa hipótese. A comprovação da permanência do uso dos cogumelos sagrados do México levou Wasson para uma investigação exaustiva de todos os usos de cogumelos e outros enteógenos através do mundo. Os Mistérios de Elêusis, o xamanismo siberiano, os magos persas e os invasores arianos da Índia foram alguns dos utilizadores das bebidas sagradas que foram investigados por Wasson, e uma equipe de pesquisadores que durante muitos anos buscou evidências do uso das plantas alucinógenas nos ritos destes cultos. A partir do uso boreal do cogumelo siberiano Amanita Muscaria, Wasson desenvolveu a tese de uma proto-religião baseada no uso dos cogumelos que teria se propagado com as invasões indo-arianas, nas formas do soma hindu e do haoma persa. O cristianismo, no entanto, elevou o vinho à condição de única droga sagrada e baniu todas as demais, proibindo o ópio, os ritos de Elêusis, os usos de plantas curativas pelos camponeses e as práticas vegetais de todos os paganismos. Tal restrição proscritiva a certas plantas se inscreve até mesmo na mitologia teogônica do Gênesis com as árvores dos frutos proibidos.
A liberdade de religião se tornou, no segundo pós-guerra, a bandeira democrática com a qual diversos movimentos buscaram legitimar o seu uso religioso de diferentes plantas. Um primeiro exemplo foi o da Igreja Nativa do Peiote nos Estados Unidos, mas foi particularmente o movimento psicodélico dos anos 1960, liderado por Timothy Leary, que transformou a defesa do direito de uso de drogas por razões religiosas numa causa popular, inicialmente nos Estados Unidos, mas com repercussões internacionais.
A partir do final dos anos 1970, o interesse renovado pelos saberes vegetalistas indígenas, especialmente na Amazônia, culminou na ampliação do campo de estudos da etnobotânica, e levou muitos autores, como Terence McKenna, por exemplo, a retomarem a tese de Gordon Wasson de uma proto-religião xamânica enteógena como inspiração para um neo-xamanismo como retorno da cultura arcaica.
A expansão no Brasil de religiões usuárias da ayahuasca, como o Santo Daime e a União do Vegetal, também trouxe um renovado interesse no estudo, especialmente antropológico, desse fenômeno, cujos únicos paralelos são a Igreja Nativa do Peiote, nos Estados Unidos, e o culto Buiti, da iboga, no Gabão.
O renascimento neo-psicodélico desde os anos 1980
Nas últimas décadas do século XX, ocorreu uma retomada internacional dos temas do psicodelismo dos anos 1960. O xamanismo, a etnobotânica, as religiões enteógenas e a onda das raves trouxeram um renovado interesse pelas formas de alteração química da consciência.
Nos anos 1980, com o uso do MDMA, conhecido como ecstasy, refleresceram diversas experiências terapêuticas psicodélicas até a decretação da sua proibição legal, adotada a partir de 1986. O mais representativo dos pesquisadores científicos dessa época é o químico e farmacologista Alexander Shulgin. Seus livros PIHKAL (Phenethylamines I Have Know and Loved) A chemical love story (1991) e TIHKAL (Tryptamines I Have Know and Loved) The continuation (1997), escritos em parceria com sua esposa Ann, são uma verdadeira síntese das repercussões da pesquisa científica com drogas psicoquímicas, resumem o que há de mais avançado na pesquisa psicofarmacológica dos psicodélicos e produzem um relato auto-biográfico intimista entretecido com as fantásticas imbricações da guerra contra as drogas nas últimas décadas. Ambos os livros contêm, na sua metade final, uma parte destinada aos farmacoquímicos, onde se reproduzem as fórmulas, receitas e descrições dos efeitos de mais de quatrocentas novas drogas.
A síntese que realiza Alexander Shulgin é, antes de tudo, a do laboratório. Ele é um importante cientista no ramo da psicofarmacologia, tendo trabalhado anos para um grande laboratório, montou um laboratório particular onde se dedicou à pesquisa dos psicodélicos e inventou cerca de duzentas novas drogas por ele testadas junto a um grupo de amigos psiconautas. Constatou que essas drogas de dividem em dois grande grupos: o das fenetilaminas e o das triptaminas. Ao primeiro pertencem a mescalina e as novas moléculas derivadas da manipulação do seu anel molecular para se tornarem diferentes meta-anfetaminas psicodélicas, da qual a mais popular se tornou o chamado ecstasy (MDMA). Ao segundo pertencem o LSD, a DMT e a psilocibina. Cada um dos seus livros é dedicado a um dos grupos: PIHKAL, às fenetilaminas (daí o seu título: “Fenetilaminas que eu conheci e amei”), e TIHKAL, às triptaminas.
Ao fornecer ao grande público as fórmulas das drogas proibidas, Shulgin adotou uma postura política que teve como consequências a perseguição e a cassação de seu laboratório pela DEA (Drug Enforcement Agency). Durante anos, Shulgin havia trabalhado no programa de pesquisas com drogas na NASA, enquanto o governo norte-americano proibia internacionalmente a liberdade de pesquisa acadêmica sobre as substâncias psicodélicas, com a exceção dos laboratórios da CIA e do exército norte-americano. Apesar das legislações que incluíram o LSD, assim como todos os demais psicodélicos, no terreno das drogas proibidas, até mesmo para experimentação acadêmica e científica, criando no final do século XX, uma guerra contra as drogas que assume dimensões inquisitoriais, houve uma continuidade no interesse e nas investigações sobre tais substâncias.
As pesquisas psicoterapêuticas, cognitivas, estéticas, entre outras, que existiam com grande atividade, foram limitadas a uma verdadeira semi-clandestinidade. Alexander Shulgin foi praticante de uma metodologia revolucionária. Ao contrário de outros cientistas estudiosos dos psicodélicos, como o ex-nazista Strughold, ele se filia à tradição libertária norte-americana, ao movimento anti-establishment dos anos 1960. Diferentemente do ativismo psicodélico, não se dedicou, no entanto,a nenhum proselitismo, mas se tornou um pesquisador de vanguarda numa área oficialmente proibida até mesmo para fim de estudos científicos. O livro PIHKAL é o resumo de trinta anos de trabalho de laboratório e apresenta a lista de 179 fenetilaminas, com os procedimentos para a síntese química, as dosagens, a duração, comentário qualitativo e extensão dos comentários. É uma verdadeira “história natural da química da mente”, uma taxonomia das fenetilaminas que correspondem cada uma a um estímulo específico de uma atividade psíquica, de um “caminho cerebral” (brain pathway), que são descritas em seus efeitos subjetivos específicos a partir de uma experimentação dirigida.
A obra de Shulgin contribui para os campos científicos da psicofarmacologia e da neurologia. Além da perspectiva farmacológica, de suas técnicas e receitas de sínteses, e da perspectiva neurobiológica que pode, a partir da localização dos mecanismos de ação destes compostos químicos, localizar e compreender também os processos naturais dos neurotransmissores, há uma contribuição metodológica de Shulgin que é revolucionária do ponto de vista científico e político ao estabelecer uma indagação sobre o direito do Estado em intervir no terreno da jurisdição química da mente acima da pesquisa científica. Seu desafio é epistemológico, exigindo, como Galileu, que todos os instrumentos da ciência sejam utilizados, em particular esses telescópios químicos interiores que quanto mais se aperfeiçoam, mais permanecem inacessíveis como “psicoscópios” indexados como substâncias proibidas, mas seu gesto também é corajosamente político num momento em que a demonização das drogas e o pânico moral construído em torno delas o torna alvo de uma perseguição governamental que invadiu sua casa e o multou em milhares de dólares após a publicação destes livros.
A metodologia de Shulgin, controle experimental voluntário dos efeitos subjetivos de novos fármacos, por ele mesmo sintetizados, produziu um dos mais vastos corpora de dados científicos relativos às fenetilaminas e às triptaminas. Durante um período nos anos 1980, o MDMA foi usado livremente por médicos e psicólogos, nos mais diversos tratamentos, com amplo sucesso, e até mesmo exaltado como “droga do amor”, por sua qualidade de intensificar a empatia humana, ou seja, muito mais do que um suposto “afrodisíaco”, ele intensificaria a dimensão afetiva das interações humanas.
Num mundo em que o sucesso comercial de “Viagras” e “Prozacs” esconde uma proibição injustificável de outras substâncias de uma utilidade e de um campo de aplicações vastíssimo, é preciso um esclarecimento das manipulações políticas e comerciais que impedem um uso mais adequado do imenso e maravilhoso arsenal que a farmacoquímica coloca ao alcance da humanidade. A dieta psicoquímica deveria ser encarada da mesma forma que a dieta alimentar. Tal distinção é puramente cultural, e a busca do bem-estar e de estados mentais atrativos constitui formas diferenciadas do consumo sensorial e de seus rituais. Tanto uma dieta alimentar como psicoquímica inadequada podem ser perniciosas e daninhas à saúde, aliás é exatamente o que ocorre na sociedade contemporânea em níveis alarmantes., As substâncias mais nocivas como o tabaco, o álcool ou os benzodiazepínicos são legais, enquanto que as antigas plantas de poder, veículos sagrados dos povos da terra e herança de um conhecimento botânico milenário, são proibidas. Seus princípios ativos, localizados pela análise química e depois sintetizados sem necessidade de matérias-primas vegetais pelo engenho da farmácia, sofrem proscrições e permanecem clandestinos até mesmo para os usos médicos. Após um século e meio de história da odisséia psiconáutica, o saber e o poder desses fármacos extraordinários ainda são perseguidos e ocultados.
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O modo como os seres humanos usam plantas, alimentos e drogas faz mudar os valores dos indivíduos e, em última instância, de sociedades inteiras. Comer alguns alimentos nos deixa felizes, comer outros nos deixa sonolentos e ainda outros nos deixam em alerta. Somos joviais, inquietos, excitados ou deprimidos, dependendo do que comemos. A sociedade encoraja tacitamente certos comportamentos que correspondem a sentimentos internos, encorajando assim o uso de substãncias que produzem comportamentos aceitáveis.
A supressão ou a expressão da sexualidade, a fertibilidade e a potência sexual, o grau de acuidade visual, a sensibilidade aos sons, a velocidade de resposta motora, a taxa de maturação e o tempo de vida são apenas algumas das características dos animais que podem ser influenciadas por plantas alimentícias com químicas exóticas. A formação simbólica do homem, sua facilidade lingüística e sensibilidade a valores comunitários também podem se alterar sob a influência de metabólitos psicoativos e fisioativos. Uma noite de observação num bar de solteiros basta como trabalho de campo para confirmar essa observação. De fato, a atividade de encontrar um parceiro sempre deu grande importância à capacidade lingüística, como atesta a atenção perene aos estilos dos bate-papos e das cantadas.
Ao pensar em drogas tendemos a nos concentrar em episódios de intoxicação, mas muitas drogas são usadas normalmente em doses de aperitivo ou de manutenção; o café e o tabaco são exemplos óbvios em nossa cultura. O resultado disso é uma espécie de “ambiência da intoxicação”. Como peixes dentro d’água, as pessoas dentro de uma cultura nadam no meio virtualmente invisível dos estados mentais culturalmente sancionados, ainda que artificiais.
As linguagens parecem invisíveis para quem as fala, e mesmo assim criam o tecido da realidade para seus usuários. O problema de confundir a linguagem com a realidade é bem conhecido no mundo cotidiano. O uso das plantas é um exemplo de uma linguagem complexa de interações químicas e sociais. Ainda assim, a maioria de nós não tem consciência dos efeitos das plantas sobre nós mesmos e sobre nossa realidade, em parte porque esquecemos que as plantas sempre mediaram o relacionamento cultural dos homens com o mundo.
Uma história de primatas
No Parque Nacional de Gombe Stream, na Tanzânia, primatologistas descobriram que folhas de uma determinada espécie apareciam sempre não digeridas nas fezes de chimpanzés. Eles descobriram que, a intevalos de alguns dias, os chimpanzés, em vez de comer frutas silvestres como sempre, caminhavam durante vinte minutos ou mais até um lugar onde crescia uma espécie de Aspilia. Os chimpanzés colocavam repetidamente os lábios numa folha de Aspilia e prendiam-na na boca. Pegavam uma folha, colocavam na boca, reviravam-na durante alguns instantes e em seguida engoliam-na inteira. Desse modo podiam ser comidas até trinta folhas pequenas.
O bioquímico Eloy Rodriguez, da Universidade da Califórnia em Irvine, isolou o princípio ativo da Aspilia – um óleo avermelhado agora chamado de thiarubrina-A. Neil Towers, da Universidade da Colúmbia Britânica, descobriu que esse composto pode matar bactérias comuns em concentrações de menos de uma parte por milhão. Registros de herbários estudados por Rodriguez e Towers mostraram que os povos africanos usavam folhas de Aspilia para tratar de feridas e dores de estômago. Das quatro espécies nativas da África, os povos nativos usavam apenas três, as mesmas três utilizadas pelos chimpanzés.
Rodriguez e Towers continuaram observando as interações entre chimpanzés e plantas e agora podem identificar cerca de doze plantas – uma verdadeira matéria médica – usadas entre as populações de chimpanzés.
Você é o que você come
A história que propomos para o surgimento do homem à luz da auto-reflexão é uma história de você-é-o-que-você-come. Grandes mudanças climáticas e uma dieta recém-ampliada, e portanto mutagênica, proporcionaram muitas oportunidades para que a seleção natural afetasse a evolução das principais características humanas. Cada contato com um novo alimento, uma nova droga, ou um condimento estava carregado de risco e consequências imprevisíveis. E isso é ainda mais verdadeiro hoje em dia, quando nossa comida contém centenas de preservativos e aditivos mal estudados.
Como exemplo de plantas com impacto potencial sobre uma população humana, considere a batata-doce do gênero Dioscorea. Em boa parte do mundo tropical as batatas-doces proporcionam uma fonte de alimento confiável e nutritiva. Não obstante, várias espécies muito próximas contêm compostos que interferem na ovulação. (Estas se tornaram a fonte de matéria-prima para as modernas pílulas anticoncepcionais.) Algo próximo do caos genético cairia sobre uma população de primatas que passasse a se alimentar dessas espécies de Dioscorea. Muitas situações assim, ainda que de magnitude menos espetacular, devem ter ocorrido enquanto os primeiros hominídeos experimentavam novos alimentos ao mesmo tempo em que expandiam seus hábitos de dieta onívora.
Comer uma planta ou um animal é um modo de invocar o seu poder, um modo de assimilar sua mágica. Na mente dos povos anteriores à escrita raramente são claras as linhas divisórias entre drogas, alimentos e condimentos. O xamã que se empanzina de pimenta para aumentar o calor interno dificilmente estará num estado menos alterado do que o entusiasta de óxido nitroso após uma longa inalação. Em nossa percepção do sabor e em nossa busca de variedade na sensação de comer, somos marcadamente diferentes até mesmo de nossos parentes primatas. Em algum ponto do caminho, nossos novos hábitos onívoros e nosso cérebro em evolução, com sua capacidade de processar dados sensórios, uniram-se na feliz idéia de que a comida pode ser uma experiência. Nasceu a gastronomia – para juntar-se à farmacologia, que certamente a precedeu, já que a manutenção da saúde através da dieta é vista entre muitos mamíferos.
A estratégia dos primeiros hominídeos era comer tudo que parecesse comestível e vomitar o que não era palatável. Plantas, insetos e pequenos animais vistos como comestíveis através desse método eram introduzidos na dieta. Uma dieta em mudança ou uma dieta onívora significa exposição a um equilíbrio químico sempre em alteração. Um organismo pode regular esse insumo químico através de processos internos, mas, em última instância, as influências mutagênicas crescerão e um número maior do que o usual de indivíduos será ofertado ao processo de seleção natural. O resultado dessa seleção natural são mudanças aceleradas na organização neural, nos estados de consciência e no comportamento. Nenhuma mudança é permanente, cada uma dá caminho a outra. Tudo flui.
Simbiose
À medida que influenciavam o desenvolvimento dos seres humanos e de outros animais, também as plantas eram afetadas. Essa co-evolução atrai a idéia de simbiose. “Simbiose” tem vários significados; uso o termo para falar de um relacionamento entre duas espécies conferindo benefícios mútuos a seus membros. O sucesso biológico e evolucionário de cada espécie está ligado ao – e é estimulado pelo – sucesso da outra. Esta situação é o oposto do parasitismo, ainda que feliz seja o parasita que evolui para se tornar um simbionte. Os relacionamentos simbióticos, onde cada membro precisa do outro, podem ter uma ligação genética muito forte ou podem ser mais abertos. Apesar das interações entre os homens e as plantas serem simbióticos em seu padrão de ganhos e vantagens mútuas, esses relacionamentos não são geneticamente programados. Em vez disso são vistos claramente como hábitos profundos, quando comparados com exemplos de verdadeira simbiose no mundo da natureza.
Um exemplo de um relacionamento ligado geneticamente, e portanto realmente simbiótico, envolve o pequeno peixe-palhaço, Amphiprion ocellaris, que passa a vida perto de certa espécie de anêmona -do-mar. Esse peixe é protegido dos grandes predadores pelas anêmonas, e o suprimento de comida das anêmonas é aumentado pelo peixe-palhaço, que atrai peixes maiores para a área onde as anêmonas estão se alimentando. Quando um arranjo mutuamente agradável como esse acontece por muito tempo, ele termina por eventualmente se “institucionalizar”, turvando cada vez mais a distinção genética entre os simbiontes. Em última instância, um organismo pode tornar-se parte do outro, como aconteceu com as mitocôndrias, as usinas de força das células animais, ao se juntarem com outras estruturas para formar a célula. As mitocôndrias têm um componente genético separado, cuja origem pode remontar às bactérias eucarióticas que, há centenas de milhões de anos, eram organismos independentes.
Outro exemplo instrutivo de simbiose, e que pode ter profundas implicações para nossa situação, é o relacionamento que se desenvolveu entre as formigas-cortadeiras e uma espécie de basilomiceto, um cogumelo. E. O. Wilson aborda esse relacionamento:
No fim da trilha as carregadoras descem apressadas pelo buraco do formigueiro, em meio a multidões de companheiras e ao longo de canais tortuosos que terminam perto do lençol freático cinco metros abaixo ou mais. As formigas largam pedaços de folhas no chão de uma câmara, para serem apanhados por trabalhadoras de um tamanho ligeiramente menor, que partem-nas em fragmentos de cerca de um milímetro. Dentro de minutos, formigas ainda menores assumem o trabalho, amassando e moldando os fragmentos em bolotas úmidas e cuidadosamente inserem-nas numa massa de material semelhante. Essa massa varia entre o tamanho de um punho fechado e uma cabeça humana, é cheia de canais e parece uma esponja cinza. É a horta das formigas: em sua superfície crescem fungos simbiontes que, junto com a seiva das folhas, formam o único alimento das formigas. O fungo se espalha como uma geada branca, penetrando suas hifas na pasta de folhas para digerir a celulose abundante e as proteínas que estão ali numa solução parcial.
O ciclo da horticultura prossegue. Formigas trabalhadoras ainda menores do que as descritas acima arrancam tiras soltas do fungo de lugares de crescimento denso e plantam-nas nas superfícies recém-construídas. Finalmente, as trabalhadoras menores de todas – e mais abundantes – patrulham as plantações de fungos sondando-os com suas antenas, lambendo as superfícies e arrancando os esporos e as hifas de espécies diferentes. Essas anãs da colônia conseguem andar através dos canais mais estreitos dentro das massas da horta. De tempos em tempos arrancam tufos de fungos e levam-nos para suas companheiras maiores.
Nenhum outro animal desenvolveu a capacidade de produzir cogumelos a partir de vegetação fresca. Esse evento evolucionário aconteceu apenas uma vez, há milhões de anos, em algum lugar da América do Sul. Isso deu enorme vantagem às formigas: agora elas podiam mandar trabalhadoras especializadas colher a vegetação, ao mesmo tempo em que mantinham o grosso da população em segurança nos abrigos subterrâneos. Em resultado disso, os diferentes tipos de formigas-cortadeiras juntos, o que compreende quatorze espécies do gênero Atta e vinte e três do Acromyrmex, dominam grande parte dos trópicos americanos. Elas consomem mais vegetação do que qualquer outro grupo de anim,ais, inclusive as formas mais abundantes de lagartas, gafanhotos, pássaros e mamíferos.
Podemos perdoar E. O. Wilson, o maior expoente na sociobiologia, por achar que apenas uma vez na história da terra um animal e um cogumelo formaram um relacionamento mutuamente benéfico. Sua descrição das formigas-cortadeiras e de seu relacionamento com a agricultura dos fungos antecipa e introduz considerações fundamentais em meu esforço de revisão do nosso complexo relacionamento com as plantas. Já que, como veremos, um subproduto do estilo de vida dos pastores nômades foi a disponibilidade cada vez maior e o uso dos fungos psicoativos. Como a atividade agrícola das formigas, os padrões de comportamento das sociedades humanas nômades serviu como um modo eficaz para a expansão do alcance de alguns cogumelos.
Uma nova visão da evolução humana
Os primeiros contatos entre os hominídeos e os cogumelos contendo psilocibina podem ter precedido em um milhão de anos ou mais a domesticação do gado na África. E durante esse período de um milhão de anos os cogumelos não foram somente colhidos e comidos, mas provavelmente também alcançaram o status de um culto. Mas a domesticação do gado selvagem, um grande passo na evolução cultural humana, ao trazer os homens para mais perto do gado, também permitiu um contato maior com os cogumelos, porque esses cogumelos crescem apenas nas fezes do gado. Em resultado disso, a interdependência entre os homens e o cogumelo foi aumentada e aprofundada. Foi nessa época que os rituais religiosos, a criação dos calendários e a magia natural começaram a existir.
Pouco depois dos homens encontrarem os fungos visionários das pradarias africanas, e como as formigas-cortadeiras, nós também nos tornamos a espécie dominante em nossa área, e também aprendemos como “manter o grosso de nossa população segura em refúgios subterrâneos”. Em nosso caso esses refúgios foram as cidades muradas.
Ao ponderar sobre o curso da evolução humana alguns observadores sérios questionaram o cenário apresentado pelos antropólogos físicos. A evolução dos animais superiores demora um tempo maior para acontecer, operando em períodos de tempo raramente menores do que um milhão de anos e mais comumente em dezenas de milhões de anos. Mas o surgimento dos humanos modernos a partir dos primatas superiores – com as enormes mudanças em tamanho de cérebro e comportamento – aconteceu em menos de três milhões de anos. Fisicamente, nos últimos cem mil anos mudamos aparentemente muito pouco. Mas a espantosa proliferação de culturas, instituições sociais e sistemas linguísticos aconteceu tão depressa que os modernos biólogos evolucionários praticamente não a podem explicar. A maioria nem mesmo tenta.
De fato, a ausência de um modelo teórico não é surpreendente; há muita coisa que não sabemos sobre a situação complexa dos hominídeos no período imediatamente anterior ao surgimento do homem e durante o tempo em que os modernos seres humanos começavam a entrar em cena. As evidências fósseis e biológicas indicam claramente que o homem descende de ancestrais que não são radicalmente diferentes de espécies primatas que ainda existem. E mesmo assim, o Homo sapiens pertence obviamente a uma classe separada dos outros membros da ordem.
Pensar sobre a evolução humana significa em última instância pensar sobre a evolução da consciência humana. Nesse caso, quais são as origens da mente humana ? Em suas explicações, alguns investigadores adotaram uma ênfase principalmente cultural. Eles apontam para nossas capacidades linguísticas e simbólicas especiais, nosso uso de ferramentas e nossa capacidade de guardar informações epigeneticamente – como em canções, artes plásticas, livros, computadores -, e com isso criando não somente cultura mas também história. Outros, assumindo uma abordagem um pouco mais biológica, enfatizaram nossas peculiaridades fisiológicas e neurológicas, inclusive o tamanho excepcional e a complexidade do neocórtex, grande parte do qual é dedicada a processos linguísticos complexos, ao armazenamento e à recuperação de informações, além de estar associada aos sistemas motores que controlam atividades como a fala e a escrita. Mais recentemente reconheceu-se que as interações de feedback entre influência cultural e ontogenia biológica estão envolvidas em certas estranhezas desenvolvimentais, como infância e adolescência prolongadas, o atraso da maturidade sexual e a persistência de muitas características essencialmente neonatais através da vida adulta. Infelizmente a união desses pontos de vista ainda não levou ao reconhecimento do poder dos constituintes psicoativos e fisioativos da dieta na modelação de genomas.
Há três milhões de anos, e através de uma combinação dos processos discutidos acima, existiam pelo menos três espécies claramente reconhecidas de proto-hominídeos no leste da África. Eram o Homo africanus, o Homo boisei e o Homo robustus. E também nessa época o onívoro Homo habilis, o primeiro hominídeo verdadeiro, surgira claramente a partir da uma divisão da espécie que também deu surgmento a dois homens-macacos vegetarianos.
As pradarias se expandiam devagar; os primeiros hominídeos moviam-se através de um mosaico de pradarias e florestas. Essas criaturas, com cérebros proporcionalmente apenas um pouco maiores do que os dos chimpanzés, já andavam eretas e provavelmente carregavam comida e ferramentas entre trechos de florestas que elas continuavam a procurar em busca de tubérculos e insetos. Seus braços eram proporcionalmente maiores que os nossos e possuíam mão mais forte para agarrar. A evolução para a postura ereta e a expansão inicial para um ambiente de pradarias ocorreram antes, entre nove e cinco milhões de anos atrás. Infelizmente não temos evidências fósseis dessa transição anterior.
Os hominídeos provavelmente expandiram sua dieta original de frutas e pequenos animais incluindo raízes, tubérculos e bulbos. Uma simples vara para cavar daria acesso a essa fonte de alimentos anteriormente indisponível. Os modernos babuínos das savanas subsistem principalmente de bulbos de capim durante certas estações. Os chimpanzés acrescentam quantidades substanciais de feijões à sua dieta quando se aventuram na savana. Tanto os babuínos quanto os chimpanzés caçam cooperativamente e atacam pequenos animais. Mas geralmente não usam ferramentas na caçada, e não há evidência de que os primeiros hominídeos tampouco as usassem. Entre os chimpanzés, os babuínos e os hominídeos a caçada parece ser uma atividade masculina. Os primeiros hominídeos caçavam tanto cooperativamente quanto sozinhos.
Com o Homo sapiens começou uma expansão súbita e misteriosa do tamanho do cérebro. O cérebro do Homo habilis pesava em média 770 gramas, comparada às 530 gramas dos outros hominídeos. O período seguinte de 2.250.000 anos trouxe uma evolução surpreendentemente rápida no tamanho e na complexidade do cérebro. Entre 750.000 e 1.100.000 anos atrás, um novo tipo de hominídeo, o Homo erectus, estava amplamente disseminado. O cérebro desse novo hominídeo pesava entre 900 e 1.100 gramas. Há boas evidências de que o Homo erectus usava ferramentas e possuía algum tipo de cultura rudimentar. Na Caverna de Choukoutien, na África do Sul, há evidências do uso de fogo junto a ossos queimados, sugerindo o cozimento de carne. Esses eram atributos do Homo erectus, que foi o primeiro hominídeo a deixar a África há cerca de um milhão de anos.
Teorias mais antigas sugerem que os homens modernos evoluíram do Homo erectus em diversos lugares. Porém, cada vez mais, os primatologistas evolucionários da atualidade aceitam a noção de que o moderno Homo sapiens também surgiu na África, há cerca de 100.000 anos, e fez uma segunda grande migração para povoar todo o planeta. Na Caverna Border e na Caverna da foz do Rio Klasies, na África do Sul, há evidências dos primeiros Homo sapiens modernos vivendo num ambiente misto de floresta e pradarias. Numa das muitas tentativas para compreender essa transição importantíssima, Charles J. Lumsden e Edward O. Wilson escreveram:
Os ecologistas comportamentais desenvolveram gradualmente uma teoria para explicar por que foi feito o avanço para uma postura ereta, uma teoria que responde por muitas das características biológicas específicas do homem moderno. Os primeiros homens-macacos saíram das florestas tropicais para habitats mais abertos, sazonais, onde passaram a uma existência exclusivamente terrestre. Construíram acampamentos-base e tornaram-se dependentes da divisão de trabalho, através da qual alguns indivíduos, provavelmente as fêmeas, andavam menos e dedicavam mais tempo ao cuidado dos jovens; outros, principalmente ou exclusivamente os machos, se dispersavam amplamente em busca de caça. O bipedalismo conferia grande vantagem na locomoção em espaços abertos. Também deixava livre os braços, permitindo que os homens-macacos ancestrais usassem ferramentas e carregassem animais mortos e outros alimentos de volta ao acampamento. A divisão da comida e formas relacionadas de reciprocidade seguiram-se automaticamente como processos centrais da vida social dos homens-macacos. O mesmo aconteceu com a ligação sexual íntima e de longo prazo e o aumento da sexualidade, que foram postos a serviço da criação dos jovens. Muitas das formas mais distintas de comportamento social humano são produto desse complexo adaptativo profundamente entrelaçado.
A um tipo avançado de hominídeo seguiu-se outro, no laboratório evolucionário da África. E, começando com o Homo erectus, representantes de cada tipo se irradiaram através da massa eurasiana nos períodos interglaciais. Durante cada glaciação, a migração para fora da África era bloqueada; novos hominídeos eram “preparados” no ambiente africano de forças intensificadas de mutação através de dietas exóticas e seleção natural climaticamente induzida.
No final desses notáveis três milhões de anos na evolução da espécie humana, o cérebro humano havia triplicado! Lumsden e Wilson chamam isso de “talvez o avanço mais rápido registrado para qualquer órgão complexo em toda a história da vida”. Uma taxa tão notável de mudança evolucionária no principal órgão de uma espécie implica a presença de pressões seletivas extraordinárias.
Como os cientistas não puderam explicar essa triplicação do tamanho do cérebro humano em período evolucionário tão pequeno, alguns dos primeiros paleontólogos estudiosos de primatas e teóricos evolucionários previram e buscaram evidências de esqueletos de transição. Hoje em dia a idéia de um “elo perdido” foi praticamente abandonada. O bipedalismo, a visão binocular, o polegar em oposição e o braço capaz de fazer lançamentos – tudo isso já foi colocado como ingrediente-chave na mistura que fez com que os humanos auto-reflexivos se cristalizassem fora do caldeirão de tipos e estratégias dos hominídeos em competição. No entanto, tudo que realmente sabemos é que a mudança no tamanho do cérebro foi acompanhada por mudanças notáveis na organização social dos hominídeos. Eles se tornaram usuários de ferramentas, de fogo e da linguagem. Iniciaram o processo como animais superiores e saíram dele, há cerca de 100.00 anos, como indivíduos conscientes e com percepção de si próprios.
O verdadeiro elo perdido
Meu ponto de vista é que os componentes químicos mutagênicos e psicoativos existentes na dieta dos primeiros humanos influenciou diretamente a rápida reorganização das capacidades de o cérebro processar informações. Os alcalóides contidos nas plantas, especificamente os compostos alucinógenos como a psilocibina, a dimetiltriptamina (DMT) e a harmalina podem ter sido os fatores químicos da dieta que catalisaram o surgimento da auto-reflexão humana. A ação dos alucinógenos presentes em muitas plantas comuns aumentou nossa atividade de processamento de informações e nossa sensibilidade ambiental, com isso contribuíndo para a súbita expansão do tamanho do cérebro. Como aconteceu num estágio posterior desse mesmo processo, os alucinógenos atuaram como catalisadores no desenvolvimento da imaginação, alimentando a criação de estratagemas internos e esperanças que podem ter sinergizado o surgimento da linguagem e da religião.
Em pesquisas realizadas no final dos anos 60. Roland Fisher deu pequenas quantidades de psilocibina a estudantes de pós-graduação e em seguida mediu sua capacidade de detectar o momento em que linhas anteriormente paralelas se desviavam. Ele descobriu que a capacidade de desempenhar essa tarefa específica era aumentada depois de pequenas doses de psilocibina.
Quando discuti essas descobertas com Fisher, ele sorriu, depois de explicar suas conclusões, e em seguida resumiu: “Você vê, o que se provou conclusivamente aqui é que, sob certas circunstâncias, somos mais bem-informados sobre o mundo real se tomamos uma droga do que se não tomamos.” Sua resposta jacosa ficou em minha mente, primeiro como uma anedota acadêmica, depois como um esforço de sua parte para comunicar uma coisa profunda. Quais seriam as consequências, para a teoria da evolução, de admitir que alguns hábitos químicos conferem vantagem adaptativa e, portanto, tornam-se profundamente gravados no comportamento e até mesmo no genoma de alguns indivíduos?
Três grandes passos para a raça humana
Ao tentar responder essa pergunta construí um cenário – algumas pessoas podem chamá-lo de fantasia; é o mundo observado de um ponto de vista para o qual os milênios são apenas estações, uma visão para a qual fui levado por anos pensando nesses temas. Imaginemos, por um instante, que estamos fora da agitação genética que é a história biológica, e que podemos ver as consequências entrelaçadas de mudanças na dieta e no clima, que certamente devem ter sido muito lentas para serem percebidas por nossos ancestrais. O cenário que se desdobra envolve os efeitos interconectados e mutuamente reforçados da psilocibina tomada em três níveis. Por ser especial em suas propriedades, creio que a psilocibina é a única substância que poderia produzir esse cenário.
No primeiro nível de uso, o mais baixo, há o efeito que Fisher observou: pequenas quantidades de psilocibina, consumida sem consciência de sua psicoatividade, e talvez mais tarde consumida conscientemente, provocam um aumento notável na acuidade visual, especialmente na detecção periférica. Como a acuidade visual é valorizada entre os caçadores-coletores, a descoberta de um equivalente de “binóculos químicos” não poderia deixar de ter um impacto sobre o sucesso da caçada e da coleta por parte dos indivíduos que dispunham dessa vantagem, Devido ao aumento de comida disponível, os descendentes desses grupos terão uma probabilidade maior de chegar à idade reprodutiva. Numa situação assim, a não-proliferação (ou o declínio) dos grupos não-usuários de psilocibina seria uma consequência natural.
Como a psilocibina é um estimulante do sistema nervoso central, quando tomado em doses ligeiramente maiores ela tende a provocar a inquietação e a excitação sexual. Assim, nesse segundo nível de uso, ao aumentar a ocorrência da copulação os cogumelos favorecem diretamente a reprodução humana. A tendência de regular e programar a atividade sexual dentro do grupo, ligando-a a um ciclo lunar de disponibilidade dos cogumelos, pode ter sido importante como um primeiro passo em direção ao ritual e à religião. Sem dúvida, no terceiro e mais alto nível de uso, as preocupações religiosas estariam no primeiro plano da consciência da tribo, simplesmente por causa do poder e da estranheza da experiência em si.
Esse terceiro nível, então, é o nível do êxtase xamânico totalmente desabrochado. A intoxicação por psilocibina é um êxtase cujo sopro e profundidade são o desespero da prosa. É totalmente Outro, e não menos misterioso para nós do que era para nosso ancestrais que mastigavam cogumelos. A capacidade de dissolução de fronteiras do êxtase xamânico predispõe os grupos tribais usuários de alucinógenos aos laços comunitários e a atividades sexuais grupais, o que promove a mistura de genes, taxas maiores de nascimento e um senso comunitário de responsabilidade pela prole do grupo.
Em qualquer dose que o cogumelo fosse usado, ele possuía a propriedade mágica de conferir vantagens adaptativas sobre os usuários arcaicos e seus grupos. O aumento da acuidade visual, a excitação sexual e o acesso ao Outro transcendente levaram ao sucesso na obtenção de comida, à capacidade e ao vigor sexual, à prole abundante e ao acesso a esferas de poder sobrenatural. Todas essas vantagens podem ser facilmente auto-reguladas através da manipulação das doses e da frequência de ingestão. O capítulo 4 detalhará a notável propriedade da psilocibina, estimulando a capacidade do cérebro de formar linguagem. Seu poder é tão extraordinário que a psilocibina pode ser considerada a catalisadora do desenvolvimento da linguagem entre os homens.
Afastando-se de Lamarck
Uma objeção a essas idéias surge inevitavelmente e deve ser enfrentada. Esse cenário de surgimento do homem pode ter cheiro de lamarckismo, que teoriza que as características adquiridas por um indivíduo durante seu tempo de vida podem ser passadas à sua prole. O exemplo clássico é a afirmação de que a girafa tem pescoço comprido porque o estica para alcançar ramos mais altos. Essa idéia fácil de compreender e que faz bastante sentido é um completo anátema entre os neo-darwinistas, que atualmente estão na vanguarda da teoria evolucionária. A posição deles é que as mutações são totalmente aleatórias, e que somente depois das mutações serem expressas como características dos organismos a seleção natural cumpre inconsciente e desapaixonadamente sua função de preservar os indivíduos que receberam vantagem adaptativa.
A objeção deles pode ser colocada da seguinte forma: ainda que os cogumelos possam ter-nos dado melhor visão, sexo e linguagem quando comidos, como esses desenvolvimentos entraram no genoma humano e se tornaram inatamente humanos? Os desenvolvimentos não-genéticos do funcionamento de um organismo feitos através de agentes externos retardam os reservatórios genéticos correspondentes a essas facilidades, tornando-os supérfluos. Em outras palavras, se um metabólito necessário é comum na comida disponível, não haverá pressão para desenvolver uma característica para a expressão endógena desse metabólito. Assim, o uso dos cogumelos criariam individuos com menos acuidade visual, menos facilidade de linguagem e menos consciência. A natureza não proporcionaria esses desenvolvimentos através da evolução orgânica porque o investimento metabólico necessário à sua sustentação não valeria a pena, comparado ao minúsculo investimento metabólico necessário para comer cogumelos. E mesmo assim todos temos hoje em dia esses desenvolvimentos, sem ingerir cogumelos. Então, como as modificações proporcianadas pelos cogumelos entraram no genoma?
A resposta curta a essa pergunta, uma resopsta que não exige defender as idéias de Lamarck, é que a presença da psilocibina na dieta dos hominídeos mudou os parãmetros do processo de seleção natural ao mudar os padrões comportamentais sobre os quais essa seleção vinha operando. A experimentação com muitos tipos de alimentos estava causando um aumento geral no número de mutações aleatórias oferecidas ao processo de seleção natural, ao passo que o aumento da acuidade visual, do uso de linguagem e da atividade ritual através do uso de psilocibina representavam novos comportamentos. Um desses novos comportamentos, o uso da linguagem – que era anteriormente uma característica de importância apenas marginal – subitamente tornou-se muito útil no contexto dos novos estilos de vida caçadora e coletora. Nesse caso a inclusão de psilocibina na dieta mudou os parâmetros do comportamento humano em favor dos padrões que promoviam o maior uso da linguagem; a aquisição da linguagem levou a um maior vocabulário e à expansão da capacidade de memória. Os indivíduos usuários de psilocibina desenvolveram regras epigenéticas ou formas culturais que lhes permitiram sobreviver e se reproduzir melhor do que outros indivíduos. Finalmente, os estilos epigenéticos de comportamento mais bem-sucedidos se espalharam entre as populações junto com os genes que os reforçam. Desse modo, a população evoluiria genética e culturalmente.
E quanto à acuidade visual, talvez a ampla necessidade de lentes corretivas entre os homens modernos seja um legado do longo período de aumento “artificial” da visão através do uso de psilocibina. Afinal de contas, a atrofia das capacidades olfativas dos seres humanos é vista por uma escola como o resultado da necessidade de os famintos onívoros tolerarem cheiros e gostos fortes, talvez até de carniça. Permutas desse tipo são comuns na evolução. A supressão da agudeza no olfato e no paladar permitiria a inclusão, na dieta, de alimentos que seriam deixados de lado como “fortes demais”. Ou isso pode indicar alguma coisa mais profunda em nosso relacionamento evolucionário com a dieta. Meu irmão Dennis escreveu:
A aparente atrofia do sistema olfativo humano pode representar uma mudança funcional num conjunto de receptores químicos primitivos externamente dirigidos, levando-os a uma função reguladora interna. Essa função pode estar relacionada com o controle do sistema feromonal humano que, em grande parte, está sob controle da glândula pineal, e que media, num nível subliminar, uma quantidade de interações psicossociais e psicosexuais entre os indivíduos. A pineal tende, entre outras funções, a suprimir o desenvolvimento gronadal e o surgimento da puberdade, e esse mecanismo pode representar um papel na persistência das características neonatais na espécie humana. O atraso na maturação e a infãncia e adolescência prolongadas representam um papel crítico no desenvolvimento neurológico e psicológico do indivíduo, já que proporcionam as circunstãncias que permitem o desenvolvimento pós-natal do cérebro nos primeiros anos de infância, os anos formativos. Os estímulos simbólicos, cognitivos e linguísticos que o cérebro experimenta durante esse período são essenciais para seu desenvolvimento, e são os fatores que nos tornam os seres únicos, conscientes, manipuladores de símbolos e usuários da linguagem que somos, As aminas neuroativas e os alcalóides presentes na dieta dos antigos primatas podem ter representado um papel na ativação bioquímica da glândula pineal e nas adaptações resultantes disso.
Gostos adquiridos
Os seres humanos sentem-se ao mesmo tempo atraídos e repelidos por substâncias cujo sabor esteja no limite da aceitabilidade. Comidas muito temperadas, amargas ou aromáticas provocam fortes reações em nós. Dizemos que é preciso “adquirir o gosto” por esses tipos de comida. Isso é verdade para alimentos como queijos macios ou ovos em conserva, mas também acontece, e é mais verdadeiro, com relação às drogas. Lembrar o primeiro cigarro ou a primeira dose de conhaque é lembrar-se de um organismo rejeitando violentamente a aquisição de um gosto em particular. A repetição do contato parece ser a chave para se adquirir um gosto, o que sugere que o processo é complexo e envolve adaptações comportamentais e bioquímicas.
Isso que estamos falando começa a se parecer estranhamente com o processo do vício em drogas. Uma coisa estranha ao corpo é repetidamente introduzida nele através da decisão consciente. O corpo se ajusta ao novo regime químico como sendo correto e adequado e dá sinais de alarme quando esse regime é ameaçado. Esses sinais podem ser psicológicos e fisiológicos e serão sentidos sempre que o novo ambiente químico dentro do corpo correr algum tipo de perigo, inclusive a decisão consciente de interromper o uso da substância química em questão. Dentre o vasto número de substâncias químicas que constituem o armazém molecular da natureza, temos discutido um número relativamente pequeno de componentes que interagem com os sentidos e o processo neurológico de processar dados. Esses compostos incluem todas as aminas psicoativas, os alcalóides, os fermônios e os alucinógenos – na verdade, são todos componentes que podem interagir com quaisquer dos sentidos, do paladar e do olfato até a visão e audição e combinação de todos eles. A aquisição de um gosto por esses compostos, a aquisição de um hábito reforçado comportamental e fisiologicamente, é o que defende a síndrome básica do vício químico.
Esses compostos têm a capacidade notavel de, ao mesmo tempo, lembrar-nos de nossa fragilidade e de nossa capacidade para as coisas magníficas. As drogas, como a realidade, parecem destinadas a confundir quem procura fronteiras nítidas e uma divisão fácil do mundo em termos de preto e branco. O modo como iremos enfrentar o desafio de definir nossos relacionamentos futuros com esses componentes, e com as dimensões de risco e oportunidade que eles oferecem, pode dar a palavra final sobre nosso potencial para a sobrevivência e para a evolução como espécie consciente.
Capítulo 3 – A Busca da Árvore Primal do Conhecimento
Os aluconógenos como o verdadeiro elo perdido
A noção que estamos explorando neste livro é que uma família particular de compostos químicos ativos, os alucinógenos indóis, representaram um papel decisivo no surgimento de nossa humanidade essencial, da característica humana de auto-reflexão. Por isso é importante saber exatamente o que são esses compostos e que papel eles desempenham na natureza. As características definidoras desses alucinógenos são estruturais: todos têm um grupo pentexil, de cinco lados, em associação com o anel benzeno, mais conhecido (ver Figura 28). Esses anéis moleculares tornam os indóis altamente reativos quimicamente e, portanto, moléculas ideais para a atividade metabólica no mundo de alta energia da vida orgânica.
Os alucinógenos podem ser psicoativos e/ou fisiologicamente ativos e podem ter como alvo muitos sistemas dentro do corpo. Alguns indóis são endógenos ao corpo humano – um bom exemplo é a serotonina. Muitos outros são exógenos, encontrados na natureza e nas plantas que podemos comer. Alguns se comportam como hormônios e regulam o crescimento ou a taxa de maturação sexual. Outros influenciam o humor e o estado de alerta. São quatro as famílias dos compostos indóis que são fortes alucinógenos visionários e que também ocorrem em plantas:
1. Os compostos do tipo LSD. Encontrados em três gêneros relacionados de ipoméias e fungos de cereais, os LSDs são raros na natureza. O fato de serem os alucinógenos mais conhecidos deve-se indubitavelmente a milhares de doses de LSD terem sido fabricadas e vendidas durante os anos 60. O LSD é um psicodélico, mas são necessárias doses relativamente grandes para provocar o paradis artificiel de alucinações vívidas e absolutamente transmundanas que é produzido pela DMT e pela psilocibina em doses bastante tradicionais. Não obstante, muitos pesquisadores enfatizaram a importância dos efeitos não-alucinógenos do LSD e de outros psicodélicos. Dentre esses efeitos pode-se citar um sentimento de expansão mental e aumento na velocidade do pensamento; a capacidade de compreender e de se relacionar com questões complexas de pensamento, com a estruturação da vida e com redes complexas e decisórias de ligação conectiva.
O LSD continua a ser fabricado e vendido em quantidades maiores do que qualquer outro alucinógeno. Foi visto como auxiliar na psicoterapia e no tratamento do alcoolismo crônico: “Sempre que foi experimentado, em todo o mundo, mostrou-se um interessante tratamento para uma doença muito antiga. Nenhuma outra droga até hoje pôde igualar-se a ele em salvar as vidas atormentadas dos alcoólatras inverterados – diretamente, como tratamento, ou indiretamente, como meio de produzir informações valiosas.” Mas, em consequência da histeria da mídia, pode ser que seu potencial jamais venha a ser conhecido.
2. Os alucinógenos triptamínicos, especialmente a DMT, a psilocina e a psilocibina. Os alucinógenos triptamínicos são encontrados em todas as famílias de plantas superiores – por exemplo, nos legumes – e a psilocina e a psilocibina ocorrem nos cogumelos. A DMT também ocorre endogenamente no cérebro humano. Por esse motivo, talvez não se deva pensar na DMT como uma droga, mas a intoxicação por DMT é o mais profundo e visualmente espetacular dos alucinógenos, notável por sua breviedade, intensidade e atoxidade.
3. As betacarbolinas. As betacarbolinas, como a harmina e a harmalina, podem ser alucinógenos perto do nível tóxico. São importantes para o xamanismo visionário porque podem inibir sistemas enzimáticos do corpo que, caso isso não acontecesse, despotencializariam os alucinógenos do tipo DMT. Portanto as betacarbolinas podem ser usadas em conjunção com a DMT para prolongar e intensificar as alucinações visuais. Essa combinação é a base da infusão alucinógena ayahuasca ou yagé, usada na Amazônia. As betacarbolinas são drogas legais, e até muito recentemente eram virtualmente desconhecidas do público geral.
4. A família de substâncias ibogana. Essas substâncias ocorrem em dois gêneros aparentados de árvores africanas e sul-americanas, a Tabernanthe e a Tabernamntana. A Tabernathe iboga é um pequeno arbusto de flores amarelas aparentado com o café e tem uma história de utilização como alucinógeno na África ocidental tropical. Seus componentes ativos têm uma relação estrutural com as betacarbolinas. A ibogana é mais conhecida como poderoso afrodisíaco do que como alucinógeno. Não obstante, em doses suficientes ela é capaz de induzir uma podrosa experiência visionária e emocional.
Esses poucos parágrafos numerados podem conter as informações mais importantes e excitantes, relativas ao mundo vegetal, que os seres humanos coletaram desde o esquecido nascimento da ciência. Mais precioso do que as notícias sobre o antineutrino, mais cheio de esperança para a humanidade do que a detecção de novos quasares é o conhecimento de que certas plantas, certos compostos, destrancam portas esquecidas levando a mundos de experiência imediata que confundem nossa ciência e, de fato, nos confundem. Adequadamente entendida e aplicada, essa informação pode se tornar uma bússola que nos guie de volta ao jardim perdido de nossas origens.
Em busca da árvore do conhecimento
Na tentativa de compreender quais alucinógenos indóis e quais plantas podem ter tido implicação causal no surgimento da consciência, vários pontos importantes devem ser observados:
A planta que estamos procurando deve ser africana, já que há enormes evidências de que o gênero humano surgiu na África. Mais especificamente, a planta africana deveria ser nativa das pradarias, já que foi aí que os nosso ancestrais recém-onívoros aprenderam a se adaptar, a coordenar seu bipedalismo e a refinar os métodos de sinalização existentes.
A planta não deve exigir qualquer preparação; deve ser ativa em seu estado natural. Supor algo diferente é forçar a credulidade – misturas, drogas compostas, extratos e concentrações pertencem a estágios posteriores de cultura, quando a consciência humana e o uso da linguagem já estavam bem estabelecidos.
A planta deve estar continuamente disponível para uma população nômade, facilmente perceptível e em grande quantidade.
A planta deve conferir benefícios imediatos e tangíveis para os indivíduos que a estão comendo . Somente assim ela se estabeleceria e se manteria como parte da dieta dos hominídeos.
Essas exigências reduzem dramaticamente o número de concorrentes. A África tem poucas plantas alucinógenas. Essa escassez e a contrastante superabundância desse tipo de planta nos trópicos do Novo Mundo nunca foram satisfatoriamente explicadas. Será mera coincidência que, quanto maior o tempo pelo qual um ambiente foi exposto aos seres humanos, menor o número de alucinógenos nativos e menor o número de espécies de plantas em que eles ocorrem naturalmente? A África atual praticamente não tem plantas nativas que sejam bons candidatos para a catálise da consciência entre os hominídeos em evolução.
As pradarias têm muito menos espécies vegetais do que as florestas. Devido a essa escacez, é muito provável que um hominídeo testasse qualquer planta que encontrasse nas pradarias em busca de seu potencial alimentício. O eminente geógrafo Carl Saur achava que não existem pradarias naturais. Ele sugeriu que todas as pradarias eram artefatos humanos, resultantes do impacto cumulativo das queimadas sazonais. Baseou esse argumento no fato de que todas as espécies das pradarias podem ser encontradas na base das florestas que as margeiam, ao passo que uma grande percentagem das espécies encontradas nas florestas estão ausentes nas pradarias. Saur concluiu que as pradarias são tão recentes que podem ser vistas como concomitantes às populações humanas usuárias de fogo.
Eliminando os candidatos
Hoje em dia, apenas a religião do Bwiti, dos fang do Gabão e do Zaire, pode ser chamada de um verdadeiro culto africano baseado numa planta alucinógena. É concebível que a planta utilizada, a Tabernanthe iboga, possa ter tido alguma influência sobre os povos pré-históricos do século XIX. Em nenhuma época, por exemplo, ela foi mencionada pelos portugueses, que tiveram uma longa história de comércio e exploração na África Ocidental. Essa falta de evidências é difícil de se explicar, caso se acredite que o uso da planta seja muito antigo.
Analisando sociologicamente, o Bwiti é uma força não somente de coesão grupal como de manutenção de casamentos. Historicamente, o divórcio é uma fonte crônica de ansiedade grupal entre os fang. Isso deve-se ao fato de que o divórcio é facilmente obtido, mas logo depois ele deve ser acompanhado de negociações complicadas, longas e potencialmente caras com a famíla do cônjuge, relativas à devolução de parte do dote. Talvez a iboga, além de ser um alucinógeno, ative um feromônio que promova a união do casal. Sua reputação como afrodisíaco poderia estar parcialmente relacionada a essa promoção do laço entre o casal.
A planta em si é um arbusto de tamanho médio, não é nativa das pradarias, e sim das florestas tropicais. Raramente é encontrada fora da área de cultivo.
Como resultado dos contatos dos europeus com a África tropical, a iboga tornou-se o primeiro indol a entrar em voga na Europa. Tônicos baseados no extrato da planta tornaram-se extremamente populares na França e na Bélgica depois da iboga ser apresentada ao público na Exposição de 1867 em Paris. Esse extrato simples era vendido na Europa com o nome de Lambarene, como cura para tudo, da neurastenia à sífilis e, acima de tudo, um afrodisíaco.
Somente em 1901 o alcalóide foi isolado. A onda inicial de pesquisas que se seguiu parecia promissora. Antecipou-se ansiosamente a cura para a impotência masculina. No entanto, a ibogaína, depois de caracterizada quimicamente, foi logo esquecida. Ainda que não surgisse qualquer evidência de que fosse perigoso ou viciante, o composto foi colocado, nos Estados Unidos, na Lista I, a categoria mais restritiva e controlada, tornando extremamente improváveis outras pesquisas. Até hoje a ibogaína continua praticamente sem ser estudada nos seres humanos.
O que sabemos sobre o culto da iboga aprendemos com o trabalho de campo dos antropólogos. Raspas das raízes da planta são tomadas em quantidades prodigosas. Os fang acreditam que esse hábito foi adquirido durante uma migração que durou séculos, na qual eles estiveram algum tempo próximos ao povo pigmeu, que lhes ensinou o poder espiritual contido no Bwiti. A casca da raiz da Thabernathe iboga contém a parte psicoativa da planta. De acordo com os fang, devem ser comidos muitos gramas desse material da raiz para “abrir a cabeça”. A partir daí, quantidades menores tornam-se eficazes pelo resto da vida da pessoa.
Apesar do culto da iboga ser muito interessante, não creio que essa planta tenha sido o catalisador da consciência nos humanos em evolução. Como já foi mencionado antes, não foi demonstrada uma longa história de sua utilização, e ela não é uma planta de pradarias. Além disso, em pequenas doses ela diminui a visão comum ao facilitar a persistência de imagens, halos e “listras” visuais.
Não é conhecido o uso de qualquer planta contendo LSD na África. Tampouco existe qualquer exemplo marcante de plantas ricas nesses compostos.
A Peganum Harmala, a gigantesca arruda da Síria, é rica na harmina betacarbolina e atualmente ocorre em estado selvagem em todas as partes áridas da África do Norte junto ao Mediterrâneo. Mas não há qualquer registro de seu uso na África como alucinógeno, e , de qualquer modo, ela deve ser concentrada e/ou combinada com DMT para ativar seu potencial visionário.
A planta de UR
Então ficamos, por um processo de eliminação, com os alucinógenos do tipo triptamina – a psilocibina, a psilocina e a DMT. Num ambiente de pradarias pode-se esperar que esses compostos ocorram num cogumelo coprófilo (que nasce sobre esterco) contendo psilocibina ou numa erva contendo DMT. Mas, a não ser que a DMT fosse extraída e concentrada, algo além do alcance técnico dos primeiros seres humanos, essas ervas jamais poderiam suprir quantidades suficientes de DMT para proporcionar um alucinógeno eficaz. Por um processo de eliminação, somos levados a suspeitar de um cogumelo que pudesse estar envolvido no processo.
Quando nossos ancestrais remotos afastaram-se das árvores e passaram a ocupar as pradarias, cada vez mais encontraram gado selvagem que comia vegetação. Esses animais tornaram-se uma grande fonte de sustento potencial. Nossos ancestrais também encontraram o esterco desse gado selvagem e os cogumelos que cresciam sobre ele.
Vários desses cogumelos das pradarias contêm psilocibina: os da espécie Panaeolus e o Stropharia cubensis, também chamado de Psilocybe cubensis (ver a Figura 1). Este último é o conhecido “cogumelo mágico”, atualmente cultivado por entusiastas em todo o mundo.
Dessas espécies de cogumelo, apenas o Stropharia cubensis contém psilocibina em quantidades concentradas e está livre de compostos que produzam náusea. Só ele é pandêmico – ocorre em todas as regiões tropicais, pelo menos em todos os lugares onde exista gado do tipo zebu (Bos indicus). Isso levanta várias questões. Será que o Stropharia cubensis ocorre exclusivamente no esterco de zebu ou pode ocorrer também o esterco de outro tipo de gado? Há quanto tempo ele chegou aos seus vários habitats? O primeiro espécime de Psilocybe cubensis foi coletado pelo botânico americano Earle em Cuba, em 1906, mas o atual pensamento botânico coloca o ponto de origem da espécie no sudeste da Ásia. Numa escavação arqueológica na Tailândia, num local chamado Non Nak Tha – datado em quinze mil anos – , foram encontrados ossos de gado zebu junto com túmulos humanos. Atualmente o Stropharia cubensis é comum na área de Non Nak Tha. O sítio de Non Nak Tha sugere que o uso dos cogumelos foi uma característica que surgiu sempre que populações de homens e gado evoluíram juntos.
Amplas evidências apóiam a noção de que o Stropharia cubensis é a superplanta ou o umbigo da mente feminina do planeta, que, quando seu culto estava intacto – o culto paleolítico da Grande Deusa de Chifres – , transmitia o conhecimento de que somos capazes de viver num equilíbrio dinâmico com a natureza, com os outros e com nós mesmos. O uso de cogumelos alucinógenos evoluiu como uma espécie de hábito natural com consequências comportamentais e evolucionárias. Esse relacionamento entre seres humanos e cogumelos teria de incluir também o gado, os criadores da única fonte dos cogumelos.
Esse relacionamento provavelmente não tem mais de um milhão de anos, já que data dessa época a era dos caçadores nômades. Os últimos cem mil anos são provavelmente uma quantidade de tempo mais do que generosa para permitir a evolução do pastoralismo a partr de seu primeiro vislumbre. Como todo o relacionamento não passa de um milhão de anos, não estamos discutindo uma simbiose biológica que pode levar muitos milhões de anos para se desenvolver. Em vez disso falamos de um costume profundamente arraigado, um hábito cultural extremamente poderoso.
Independentemente de como a chamamos, a interação dos homens com o cogumelo Stropharia cubensis não foi um relacionamento estático,e sim dinâmico, através do qual fomos levados, por méritos próprios, a níveis culturais cada vez mais altos e a níveis de autoconsciência individual. Acredito que o uso dos cogumelos alucinógenos nas pradarias da África nos deu o modelo para o surgimento de todas as religiões. E quando, após longos séculos de lento esquecimento, de migrações e mudanças climáticas, o conhecimento do mistério finalmente se perdeu, em nossa angústia trocamos a parceria pelo domínio, a harmonia com a natureza pelo estupro da natureza, a poesia pelo sofisma da ciência. Resumindo, trocamos nosso direito inato de parceiros no drama da mente viva do planeta pelos cacos da história, pela guerra, pela neurose e – se não acordarmos rapidamente para a nossa situação difícil – pela catástrofe planetária.
O que são os alucinógenos vegetais?
À luz da sua importância, conforme sugeri, para a evolução humana, é natural investigar o que os mutagenes e outros subprodutos secundários estão fazendo pelas plantas em que eles ocorrem. Esse é um mistério botânico que permanece controvertido entre os biólogos evolucionários da atualidade. Foi sugerido que os compostos tóxicos e bioativos são produzidos nas plantas para torná-las não-palatáveis e portanto indesejáveis como alimento. Também sugeriu-se, por outro lado, que esses compostos foram desenvolvidos para atrair insetos ou pássaros que polinizam ou distribuem sementes.
Uma explicação mais provável para a presença de compostos secundários baseia-se no reconhecimento de que, na verdade, eles não são secundários ou periféricos. A evidência disso é que os alcalóides, geralmente vistos como secundários, são formados na maior quantidade em tecidos que são mais ativos no metabolismo geral. Os alcalóides, inclusive todos os alucinógenos mencionados aqui, não são produtos inertes nas plantas onde ocorrem, mas estão num estado dinâmico, flutuando em concentração e na taxa de declínio metabólico. O papel desses alcalóides na química do metabolismo deixa claro que eles são essenciais à vida e à estratégia de sobrevivência do organismo, mas agem de maneiras que ainda não compreendemos.
Uma possibilidade é que alguns desses compostos possam ser exoferomônios. Os exoferomônios são mensageiros químicos que não atuam entre os membros de uma única espécie, mas sim entre as espécies, de modo que um indivíduo influencia membros de uma espécie diferente. Alguns exoferomônios agem de modo a permitir que um pequeno grupo de indivíduos afete uma comunidade ou todo um nicho biológico.
A noção de natureza como um todo organísmico e planetario que medeia e controla seu próprio desenvolvimento através da liberação de mensagens químicas pode ser um tanto radical. Nossa herança do século XIX é que a natureza não passa de “dentes e garras”, onde uma ordem natural impiedosa e irracional promove a sobrevivência dos que são capazes de garantir sua própria existência continuada à custa dos concorrentes. Concorrentes, nessa teoria, significa todo o resto da natureza. Entretanto, a maioria dos biólogos evolucionários há muito considera incompleta essa visão darwinista clássica da natureza. Hoje em dia há uma compreensão geral de que a natureza, longe de ser uma guerra infinita entre as espécies, é uma infinita dança de diplomacia. E a diplomacia é em grande parte questão de linguagem.
A natureza parece maximizar a cooperação mútua e a coordenação mútua de objetivos. Ser indispensável aos organismos com os quais compartilhamos um ambiente é a estratégia que garante a reprodução bem-sucedida e a sobrevivência contínua. É uma estratégia onde a comunicação e a sensibilidade ao processamento de sinais são de importância vital. Essas são habilidades de linguagem.
Só agora começa a ser estudada com atenção a idéia de que a natureza pode ser um organismo cujos componentes interconectados agem uns sobre os outros e se comunicam mutuamente através da liberação de sinais químicos no ambiente. Mas a natureza tende a agir com uma certa economia; uma vez desenvolvida, uma determinada resposta evolucionária a um problema será aplicada repetidamente em situações onde seja adequada.
O Outro Transcendente
Se os alucinógenos funcionam como mensageiros químicos entre espécies, então a dinâmica da relação íntima entre primata e planta alucinógena é uma dinâmica de transferência de informações entre uma espécie e outra. Onde não existem alucinógenos vegetais, essas transferncias de informação acontecem muito mais devagar, mas na presença dos alucinógenos uma cultura é rapidamente apresentada a informações cada vez mais novas, a dados sensórios e a comportamentos, e assim é elevada a estágios cada vez mais altos de auto-reflexão. Chamo isso de contato com o Outro Transcendente, mas este é apenas um rótulo, e não uma explicação.
De certo ponto de vista, o Outro Transcendente é a natureza percebida como coisa viva e inteligente. De outro, ele é a união espantosamente estranha de todos os sentidos com a memória do passado e a antecipação do futuro. O Outro Trascendente é o que encontramos nos alucinógenos poderosos. É o ponto crucial do Mistério de existirmos, tanto como espécie quanto como indivíduos. O Outro Transcendente é a Natureza sem sua máscara alegremente confortadora de espaço comum, tempo comum e causalidade comum.
Claro que não é fácil imaginar esses elevados estágios de auto-reflexão. Porque quando procuramos fazer isso estamos agindo como se esperássemos que a linguagem, de algum modo, abarcasse algo que, no presente, está além da linguagem, algo translinguístico. A psilocibina, o alucinógenos que só ocorre nos cogumelos, é um instrumento eficaz nessa situação. O principal efeito sinergístico da psilocibina parece estar, em última instância, no âmbito da linguagem. Ela exercita a verbalização; dá força à articulação; transmuta a linguagem em algo visível. Ela poderia ter provocado um impacto sobre o aparecimento súbito da consciência e da linguagem usada pelos primeiros homens. Nós podemos, literalmente, ter comido o caminho para a consciência mais elevada. Nesse contexto é importante observar que os mais poderoso mutagenes que existem no ambiente natural ocorrem nos bolores e nos fungos. Os cogumelos e os grãos de cereal infectados por bolores podem ter tido grande influência sobre as espécies animais, inclusive os primatas, evoluindo nas pastagens
Trechos do primeiro capítulo: Xamanismo: Arrumando o Palco
Um mundo feito de linguagem
As evidências reunidas em milênios de experiência xamânica dizem que, de certo modo, o mundo é na verdade feito de linguagem. Ainda que contrariando as expectativas da ciência moderna, essa proposição radical concorda com boa parte do atual pensamento linguístico. “A revolução linguística do século XX”, segundo a antropóloga Misia Landau, da Boston University, “é o reconhecimento de que a linguagem não é apenas um instrumento para a comunicação de idéias sobre o novo mundo, mas, em primeiro lugar, uma ferramenta para dar vida ao mundo. A realidade não é simplesmente “experimentada” ou “refletida” na linguagem; em vez disso é, de fato, produzida pela linguagem.”
Segundo o ponto de vista do xamã psicodélico, o mundo parece existir mais na natureza de uma expressão vocal ou de uma narrativa do que relacionado de qualquer modo aos léptons e bárions ou carga e spin dos quais falam nossos sumos sacerdotes, os físicos. Para o xamã, o cosmo é uma narrativa que se torna real enquanto é contada e enquanto conta a si própria. Essa perspectiva implica que a imaginação humana pode controlar o leme de estar no mundo. A libertdade, a responsabilidade pessoal e uma consciência humilde do verdadeiro tamanho e da inteligência do mundo combinam-se neste ponto de vista para torná-lo uma base adequada a uma verdadeira vida neo-arcaica. Uma reverência pelos poderes da linguagem e da comunicação e uma imersão neles são as bases do caminho xamânico.
É por isso que o xamã é o ancestral remoto do poeta e do artista. Nossa necessidade de fazer parte do mundo parece exigir que nos expressemos através da atividade criativa. As fontes definitivas dessa criatividade estão ocultas no mistério da linguagem. O êxtase xamânico é um ato de rendição que autentica o Eu individual e aquilo a que ele se rende, o mistério do ser. Como nossos mapas da realidade são determinados pelas circunstâncias atuais, tendemos a perder a consciência dos padrões mais amplos de tempo e espaço. Somente através do acesso ao Outro Transcendente podem ser vislumbrados esses padrões de tempo e espaço e nosso papel dentro deles. O xamanismo procura esse ponto de vista mais alto, que é alcançado através de um feito de perícia linguística. Um xamã é alguém que conseguiu uma visão dos princípios e dos fins de todas as coisas, e que consegue comunicar essa visão. Para o pensador racional isso é inconcebível, mas as técnicas do xamanismo são dirigidas para esse objetivo, e essa é a fonte do seu poder. Dentre as técnicas do xamã, a mais importante é o uso de alucinógenos vegetais, repositórios da gnose vegetal vive que se encontra – agora praticamente esquecida – em nosso passado.
Uma realidade dimensional mais elevada
Ao entrar no domínio da inteligência vegetal o xamã ganha, de certo modo, acesso privilegiado a uma perspectiva dimensional mais elevada sobre a experiência. O bom senso presume que, apesar da linguagem estar sempre evoluindo, a matéria-prima daquilo que a linguagem expressa é relativamente constante e comum a todos os seres humanos. Além disso, também sabemos que a língua hopi não tem tempos ou conceitos de passado ou futuro. Como, então, o mundo hopi pode ser igual ao nosso? E os inuítes não tem o pronome pessoal da primeira pessoa. Como, então, o mundo deles pode ser igual ao nosso?
As gramáticas das línguas – suas regras internas – têm sido cuidadosamente estudadas. Ainda assim, muito pouca atenção foi dedicada a examinar o modo como a linguagem cria e define os limites da realidade. Talvez a linguagem seja mais adequadamente compreendida quando pensadas em termos de magia, já que a postura básica da magia é de que o mundo é feito de linguagem.
Se a linguagem é aceita como primeiro elemento do conhecimento, então nós, do ocidente, fomos tristemente enganados. Somente as abordagens xamânicas poderão nos dar as respostas que achamos mais interessantes: quem somos, de onde viemos e para que destino estamos nos dirigindo? Essas perguntas nunca foram mais importantes do que hoje em dia, quando as evidências do fracasso da ciência em nutrir a alma da humanidade estão ao nosso redor. O nosso tédio não é somente um tédio temporal do espírito; se não tivermos cuidado, nossa condição será uma condição temporal do corpo e do espírito coletivos.
O preconceito racional, mecanicista e antiespiritual de nossa cultura tornou impossível apreciarmos a estrutura mental do xamã. Somos cultural e linguisticamente cegos ao mundo das forças e interconexões que permanecem claramente visíveis aos que mantiveram o relacionamento arcaico com a natureza.
É claro que quando cheguei à Amazônia, vinte anos atrás, não sabia de nada disso. Como a maioria dos ocidentais, acreditava que a magia era um fenômeno dos ingênuos e primitivos, que a ciência poderia dar uma explicação para o funcionamento do mundo. Nessa posição de ingenuidade intelectual, encontrei pela primeira vez cogumelos contendo psilocibina em San Augustine, no alto Magdalena, ao sul da Colômbia. Mais tarde, e não muito distante dali, em Florencia, também encontrei e usei infusões visionárias feitas com cipós banisteriopsis, o yagé ou ayahuasca das lendas underground dos anos 60.
As experiências que tive durante essas viagens foram pessoalmente transformadoras e, mais importante, me apresentaram a uma classe de experiências vitais para a restauração do equilíbrio entre nossos mundos social e ambiental.
Compartilhei da mente grupal gerada nas sessões de visões dos ayahuasqueros. Vi os dardos mágicos de luz vermelha que um xamã pode mandar contra outro. Porém, mais reveladores do que os feitos paranormais dos magos e dos curandeiros espirituais foram as riquezas interiores que descobri em minha mente no auge dessas experiências. Ofereço meu relato como uma espécie de testemunho, um Homem Comum; se essas experiências aconteceram comigo, elas podem fazer parte da experiência geral dos homens e das mulheres em todo o mundo.
Um memento xamânico
Minha educação xamânica não foi especial. Milhares de pessoas de um modo ou de outro, concluíram que as plantas psicodélicas e as instituições xamânicas implicadas por seu uso são instrumentos profundos para a exploração das profundezas internas da psique humana. Agora os xamãs psicodélicos constituem uma subcultura mundial e crescente de exploradores hiperdimensionais, muitos dos quais são cientificamente sofisticados. Uma paisagem começa a entrar em foco, uma região ainda pouco vislumbrada, mas que vem surgindo, chamando a atenção do discurso racional – e possivelmente ameaçando confundi-lo. Anida podemos nos lembrar de como devemos nos comportar, de como assumir o lugar correto no padrão de conexão, na teia contínua de todas as coisas.
A compreensão de como alcançar esse equilíbrio depende das culturas esquecidas e maltratadas que vivem nas florestas úmidas e nos desertos do Terceiro Mundo e nas reservas para onde as culturas dominadoras forçam os povos aborígenes. A gnose xamânica pode estar morrendo; certamente está mudando. Mas os alucinógenos vegetais que são sua origem, origem da mais antiga religião humana, continuam como uma fonte que jorra, refrescante como sempre. O xamanismo é vital e real devido ao encontro do indivíduo com o desafio e o espanto, o êxtase e a exaltação induzidos pelas plantas alucinógenas.
Meus contatos com o xamanismo e os alucinógenos na Amazônia me convenceram de sua importância salvadora. Depois de me convencer, decidi filtrar as várias formas de ruído linguístico, cultural, farmacológico e pessoal que obscureciam o Mistério. Tive a esperança de destilar a essência do xamanismo, de descobrir o esconderijo da Epifania. Quis ver além dos véus de sua dança sinuosa. Como um voyeur cósmico, sonhei confrontar a beleza nua.
Um cínico do tipo dominador poderia se contentar em rejeitar isso como ilusão da juventude romântica. Ironicamente, já fui este cínico. Sentia a loucura da busca. Sabia das dificuldades. “O Outro? A beleza platônica nua? Você deve estar brincando!”
E devo admitir que houve muitas desventuras loucas pelo caminho. “Devemos nos tornar os loucos de Deus”, falou uma vez um entusiasmado amigo zen, querendo dizer: “Vai fundo.” Buscar e encontrar era um método que funcionara para mim no passado. Eu sabia que na Amazônia ainda sobreviviam práticas xamânicas baseadas no uso de plantas alucinógenas e estava determinado a confirmar minha intuição de que por trás desse fato havia um grande segredo não descoberto.
A realidade superou a apreensão. O rosto manchado da velha leprosa ficou ainda mais horroroso quando as chamas da fogueira saltaram subitamente no momento em que ela colocou mais lenha. Na semi-escuridão por trás da mulher pude ver o guia que me trouxera a esse lugar sem nome no rio Cumala. Antes, no bar da cidade junto ao rio, este encontro casual com o barqueiro disposto a me levar para ver a milagrosa feiticeira do ayahuasca, lendária do local, pareceu uma grande ocasião para uma história. Agora, após três dias de viagem pelo rio e de meio dia lutando por trilhas tão enlameadas a ponto de ameaçar arrancar as botas a cada passo, eu não tinha tanta certeza.
Neste ponto, o objetivo original de minha busca – o autêntico ayahuasca da floresta, que diziam ser muito diferente da lavagem oferecida pelos charlatães do mercado – praticamente não tinha mais interesse para mim.
– Tomé, caballero! – cacarejou a velha enquanto me passava um copo cheio do líquido negro e espesso. Sua superfície tinha o brilho de óleo de motor.
Ela deve ter crescido representando esse papel, pensei enquanto bebia. O líquido era quente e salgado, áspero e agridoce. Tinha o gosto do sangue de uma coisa velha, muito velha. Tentei não pensar no quanto estava à mercê daquelas pessoas estranhas. Mas na verdade minha coragem estava fraquejando. Os olhos zombeteiros de Doña Catalina e do guia tinham ficado frios e parecidos com olhos de louva-deus. Uma onda de sons de insetos passando rio acima pareceu respingar a escuridão com cacos de luz amolada. Senti os lábios ficando dormentes.
Tentando não parecer tão pesado quanto estava, fui até minha rede e deitei de costas. Por trás de meus olhos fechados havia um rio de luz magenta. Ocorreu-me, numa espécie de pirueta mental, que devia haver um helicóptero pousando sobre a cabana, e esta foi a minha impressão.
Quando recuperei a consciência, parecia estar surfando no tubo de uma onda de informações transparentes e iluminadas, com dezenas de metros de altura. A empolgação deu lugar ao terror quando percebi que minha onda acelerava em direção a um litoral rochoso. Tudo desapareceu no caos trovejante de onda informacional indo de encontro à terra virtual. Mais tempo perdido e em seguida a impressão de ser um marinheiro naufragado, lançado a uma praia tropical. Sentia que estava apertando o rosto contra a areia quente. Tenho sorte de estar vivo! Ou será que estou vivo para ter sorte? Comecei a rir.
Nesse ponto a velha começou a cantar. Não uma canção comum, e sim um icaro, uma canção mágica de cura, que em nosso estado intoxicado e extático mais parece um peixe de recife tropical ou uma encharpe de seda com muitas cores do que um desempenho vocal. A canção é uma manifestação visível de poder, envolvendo-nos e deixando-nos seguros.
O xamanismo e mundo arcaico perdido
O xamanismo foi maravilhosamente definido por Mircea Eliade como “as técnicas arcaicas do êxtase”. O uso que Eliade faz do termo “arcaico” é importante aqui porque nos alerta para o papel que o xamanismo deve representar em qualquer renascimento autêntico das formas arcaicas vitais de ser, viver e compreender. O xamã consegue entrar num mundo que está oculto para quem vive na realidade comum. Nesta outra dimensão se escondem tanto poderes úteis como malévolos. Suas regras não são as regras de nosso mundo; parecem mais as regras que atuam nos mitos e nos sonhos.
Os curandeiros xamânicos insistem na existência de um Outro inteligente em alguma dimensão próxima. A existência de uma ecologia de almas ou uma inteligência não encarnada não é uma coisa com a qual a ciência possa se atracar e em seguida imergir com suas premissas intactas. Particularmente se esse Outro tem feito parte da cultura terrestre há muito tempo, presente porém invisível, compartilhando um segredo global.
Os textos de Carlos Castaneda e de seus imitadores resultaram numa coqueluche de “consciência xamânica” que, mesmo confusa, transformou o xamã de uma figura periférica na literatura da antropologia cultural, no modelo colocado pela mídia para a entrada na sociedade neo-arcaica. A despeito da atração que o xamanismo provoca sobre a imaginação popular, os fenômenos paranormais que ele presume serem reais e verdadeiros nunca foram levados a sério pela ciência moderna, ainda que os cientistas, num caso raro de deferência, tenham chamado psicólogos e entropólogos para analisar o xamanismo. Essa cegueira em relação ao mundo paranormal criou um ponto cego intelectual em nossa visão normal de mundo. Somos completamente inconscientes do mundo mágico do xamã. Ele é simplesmente mais estranho do que podemos supor.
Considere um xamã que use plantas para conversar com um mundo invisível habitado por inteligências não-humanas. Pareceria perfeito para manchete de um tablóide sensacionalista. Entretanto, os antropólogos registram essas coisas o tempo todo e ninguém ergue uma sobrancelha. Isso porque tendemos a presumir que o xamã interpreta sua experiência da intoxicação como comunicação com espíritos ou ancestrais. A implicação é que você ou eu interpretaríamos essa mesma experiência de modo diferente, e que portanto não é de se espantar que um campesino pobre e desinformado ache que estava falando com um anjo.
Por mais xenofóbica que seja essa atitude, ela sugere um bom procedimento operacional, já que o que se diz é: “Mostre as técnicas de seu êxtase e julgarei por mim mesmo a sua eficácia.” Eu fiz isso. Essa é a minha credencial para as teorias e opiniões que ofereço. A princípio fiquei aterrorizado pelo que descobri: o mundo do xamanismo, dos aliados, dos alteradores de forma e do ataque mágico é muito mais real do que as construções da ciência jamais poderão ser, porque esses espíritos ancestrais e seu mundo podem ser vistos e sentidos, podem ser conhecidos, na realidade não-habitual.
Uma coisa profunda, inesperada, quase inimaginável nos espera se levarmos nossas atenções investigativas para o fenômeno dos alucinógenos vegetais xamânicos. Os povos que estão fora da história ocidental, que continuam na época do sonho da pré-escrita, mantiveram acesa a chama de um mistério tremendo. Seria humildade admitir isso e aprender com eles, mas tudo isso faz parte do renascimento arcaico.
Daí não se deve deduzir que devemos ficar de queixo caído diante das realizações dos “primitivos” numa outra versão da Dança do Selvagem Nobre. Todo mundo que já fez trabalho de campo sabe dos choques frequentes entre nossas explicações sobre como o “verdadeiro povo das florestas úmidas” deve se comportar e as realidades da vida tribal cotidiana. Ninguém compreende ainda a misteriosa inteligência que há nas plantas ou as implicações da idéia de que a natureza se comunica numa linguagem química básica, inconsciente porém profunda. Ainda não compreendemos como os alucinógenos transformam a mensagem inconsciente em revelações contempladas pela mente consciente. Enquanto afiavam suas intuições e seus sentidos, usando as plantas que estivessem à mão para aumentar sua vantagem adaptativa, os povos arcaicos tinham pouco tempo para a filosofia. Até hoje ainda não se manifestaram totalmente as implicações da existência dessa mente descoberta pelos povos xamânicos dentro da natureza.
Enquanto isso, silenciosamente e fora da história, o xamanismo prosseguia seu diálogo com o mundo invisível. O legado do xamanismo pode atuar como uma força estabilizadora destinada a redirecionar nossa consciência para o destino coletivo da biosfera. A fé xamânica é de que a humanidade tem aliados. Existem forças favoráveis à nossa luta para nascermos como espécie inteligente. Mas são forças silenciosas e tímidas; devem ser procuradas não na chegada de frotas alienígenas no céu da terra, e sim aqui perto, na solidão dos locais ermos, junto às cachoeiras; e, sim, nas pastagens agora tão raras sob nossos pés.
Pretendo estar postando uma seqüência de alguns trechos que estou digitalizando do livro “O Alimento dos Deuses” do Terence McKenna, lançado em 1992. Considero um livro extremamente importante para qualquer um que se interesse pelos assuntos ligados a enteógenos, drogas e evolução humana. É uma verdadeira obra de arte. Vou começar pela própria Introdução do livro.
Introdução: Manifesto para um novo pensamento sobre drogas
Há um espectro assombrando a cultura planetária: o espectro das drogas. A definição de dignidade humana, criada pela Renascença e elaborada nos valores democráticos da moderna civilização ocidental, parece a ponto de se dissolver. A grande mídia nos informa a todo volume que a capacidade humana para o comportamento obsessivo e o vício realizou um casamento satânico com a farmacologia moderna, com o marketing, com o transporte a grandes velocidades. Formas anteriormente obscuras de utilização de substâncias químicas agora competem livremente num mercado global bastante desregulamentado. Governos e nações do terceiro Mundo são mantidos escravos de entidades legais e ilegais que promovem o comportamento obsessivo.
Esta situação não é nova, mas está ficando cada vez pior. Até recentemente os cartéis internacionais das drogas eram criações obedientes de governos e serviços secretos que buscavam fontes de dinheiro “invisível” com o qual financiar seu próprio tipo de comportamento obsessivo institucionalizado. Atualmente esses cartéis das drogas evoluíram, através do crescimento sem precedentes da demanda por cocaína, transformando-se em elefantes desgarrados diante de cujos poderes até mesmo seus criadores se sentem inquietos.
Somos assediados pelo triste espetáculo das “guerras das drogas” promovidas por instituições governamentais que geralmente são paralisadas pela letargia e ineficiência ou estão em evidente conluio com os cartéis internacionais das drogas – que essas instituições prometem publicamente destruir.
Nenhuma luz poderá ser lançada sobre essa situação de uso e abuso pandêmico das drogas se não fizermos uma dura reavaliação de nossa situação atual e um exame de alguns padrões antigos, praticamente esquecidos, de experiência e comportamento relacionados às drogas. A importância dessa tarefa não pode ser subestimada. Sem a menor dúvida a auto-administração de substâncias psicoativas, tanto legais quanto ilegais, cada vez mais fará parte do desdobramento futuro de uma cultura global.
Uma reavaliação dolorosa
Qualquer reavaliação do uso que fazemos das substâncias deve começar com a noção do hábito, “uma tendência ou prática estabelecida”. Familiares, repetitivos e geralmente não examinados, os hábitos são simplesmente as coisas que fazemos. Segundo um velho ditado, “as pessoas são criaturas de hábito”. A cultura é em grande parte questão de hábito, aprendido com os pais e as pessoas ao nosso redor, e depois lentamente modificados pelas mudanças nas condições e por inovações inspiradas.
Mas, por mais lentas que sejam essas modificações culturais, a cultura apresenta um espetáculo de novidade violenta e contínua quando comparada com a modificação lentíssima das espécies e dos ecossistemas. Se a natureza representa um princípio de economia, a cultura certamente deve exemplificar o princípio de inovação através do excesso.
Quando os hábitos nos consomem, quando nossa devoção a eles excede as normas culturalmente definidas, nós os chamamos de obsessões. Nesses casos sentimos que a dimensão unicamente humana do livre-arbítrio foi violada de algum modo. Podemos ficar obcecados com quase tudo: com um padrão de comportamento como o de ler jornal matutino ou com objetivos materiais (o colecionador), com terras e propriedades (o construtor de impérios) ou com o poder sobre outras pessoas (o político).
Enquanto muitos de nós podem ser colecionadores, poucos têm a oportunidade de se entregar às obsessões a ponto de se tornarem construtores de impérios ou políticos. A obsessões das pessoas comuns tendem a se concentrar no aqui e agora, no âmbito da gratificação imediata através do sexo, da comida e das drogas. Uma obsessão com os constituintes dos alimentos e das drogas (também chamados de metabólitos) é rotulada de vício.
Os vícios e as obsessões são exclusivos dos seres humanos. Sim, existem amplas evidências relatadas sobre as preferências por estados intoxicados entre elefantes, chimpanzés e algumas borboletas. Mas, assim como acontece quando comparamos as capacidades lingüísticas de chimpanzés e golfinhos com a fala humana, vemos que os comportamentos desses animais são enormemente diferentes dos comportamentos humanos.
Hábito. Obsessão. Vício. Essas palavras são marcos de sinalização em um caminho de livre arbítrio decrescente. A negação do poder do livre-arbítrio está implícita na noção de vício, e em nossa cultura os vícios são levados à sério – especialmente os vícios exóticos ou não-familiares. No século XIX o vício do ópio era o “demônio de ópio”, uma descrição que trazia de volta a idéia de uma possessão demoníaca levada a cabo por uma força externa. No século XX a idéia do viciado como uma pessoa possuída foi trocada pela noção do vício como doença. E com a noção do vício como doença o papel do livre-arbítrio finalmente é reduzido até desaparecer. Afinal de contas, não somos responsáveis pelas doenças que podemos herdar ou desenvolver.
Mas hoje em da a dependência humana às substâncias químicas representa um papel mais consciente na formação e manutenção dos valores culturais do que em qualquer época anterior.
Desde meados do século XIX, e com velocidade e eficiência cada vez maiores, a química orgânica vem colocando nas mãos de pesquisadores, médicos e – em última instância – qualquer pessoa uma cornucópia infinita de drogas sintéticas. Essas drogas são mais poderosas, mais eficazes, de maior duração e, em alguns casos, muitas vezes mais viciantes do que seus parentes naturais. (Uma exceção é a cocaína, que, apesar de natural, quando refinada, concentrada e injetada torna-se particularmente destrutiva)
O surgimento de uma cultura global levou à ubiqüidade de informações sobre as plantas recreacionais, afrodisíacas, estimulantes, sedativas e psicodélicas que foram descobertas por seres humanos inquisitivos vivendo em partes remotas e anteriormente desconhecidas do planeta. Ao mesmo tempo em que esta torrente de informações botânicas e etnográficas chegava à sociedade ocidental, enxertando hábitos de outras culturas dentro da nossa e proporcionando-nos mais escolhas do que nunca, foram dados grandes passos na síntese de moléculas orgânicas complexas e na compreensão da mecânica molecular dos genes e da hereditariedade. Essas novas idéias e tecnologias estão contribuindo para um conhecimento muito diferente sobre a engenharia psicofarmacológica. Drogas projetadas em laboratório como o MDMA, o u Ecstasy, e os esteróides anabólicos usados por atletas e adolescentes para estimular o desenvolvimento dos músculos são arautos de uma era de intervenção farmacológica cada vez mais freqüente e eficaz sobre a nossa aparência, nosso desempenho e nosso sentimentos.
A idéia de regulamentar num nível planetário primeiro centenas, e depois milhares de substâncias sintéticas facilmente produzidas, intensamente procuradas, porém ilegais, é estarrecedora para qualquer pessoa que tenha esperança de um futuro mais aberto e menos regimentado.
Um renascimento arcaico
Este livro irá explorar a possibilidade de um renascimento do arcaico – ou da atitude pré-industrial e pré-alfabetizada com relação à comunidade, ao uso de substâncias e à natureza; uma atitude que serviu bem e por muito tempo aos nossos ancestrais nômades pré-históricos, antes do surgimento do estilo de cultura que chamamos de “ocidental”. O termo arcaico refere-se ao paleolítico superior, um período entre sete e dez mil anos atrás, precedendo à intervenção e à disseminação da agricultura. O arcaico foi um tempo de pastoreio nômade e de igualitarismo, de uma cultura baseada na criação de gado, no xamanismo e no culto à Deusa.
Organizei a discussão numa ordem mais ou menos cronológica, com as últimas seções, mais orientadas para o futuro, retomando e revendo os temas arcaicos dos primeiros capítulos. A argumentação segue de acordo com as linhas de progresso de uma peregrinação farmacológica. Assim chamei as quatro sessões do livro de “Paraíso”, “Paraíso Perdido”, “Inferno” e, espero que sem ser exageradamente otimista, “Paraíso Reconquistado”. Um glossário de termos especiais é dado no final do livro.
Obviamente, não podemos continuar pensando como antigamente sobre o uso de drogas. Sendo uma sociedade global, devemos encontrar uma nova imagem orientadora para nossa cultura, uma imagem que unifique as aspirações da humanidade com as necessidades do planeta e do indivíduo. Uma análise da imperfeição existencial que nos leva a formar relacionamentos de dependência e vício com plantas e drogas mostrará que, no início da história, perdemos alguma coisa preciosa, cuja ausência nos tornou doentes de narcisismo. Somente uma recuperação do relacionamento que des
envolvemos com a natureza através do uso de plantas psicoativas antes da queda na história pode nos oferecer a esperança de um futuro humano e aberto.
Antes de nos comprometermos irrevogavelmente com a quimera de uma cultura livre de drogas, comparada ao preço de um abandono completo dos ideais de uma sociedade planetária livre e democrática, devemos nos fazer perguntas duras: por que, como espécie, somos tão fascinados por estados alterados de consciência? Qual tem sido o impacto deles sobre nossas aspirações estéticas e espirituais? O que perdemos ao negar a legitimidade do impulso de cada indivíduo para o uso de substâncias visando experimentar pessoalmente o transcedental e o sagrado? Minha esperança é de que a resposta a essas perguntas vai nos forçar a enfrentar as conseqüências de negar a dimensão espiritual da natureza, de ver a natureza como nada mais que um “recurso” a ser dominado e esgotado. A discussão bem-informada sobre esses temas não dará conforto a quem é obcecado pelo controle, não dará conforto ao fundamentalismo religioso ignorante, a qualquer forma de fascismo.
A pergunta de como, enquanto sociedade e indivíduos, nos relacionamos com as plantas psicoativas no final do século XX, levanta uma questão mais ampla: como, com o passar do tempo, fomos moldados pelas alianças mutáveis que formamos e rompemos com vários membros do mundo vegetal enquanto caminhávamos pelo labirinto da história? Esta é uma questão que irá nos ocupar detalhadamente nos próximos capítulos.
O grande mito de nossa cultura se inicia no Jardim do Éden, quando foi comido o fruto da Árvore do Conhecimento. Se não aprendermos com o passado, essa história pode terminar com um planeta intoxicado, suas florestas sendo apenas uma lembrança, sua coesão biológica despedaçada, nosso legado um deserto de ervas daninhas. Se deixamos de perceber alguma coisa em nossas tentativas anteriores de compreender nossas origens e nosso lugar na natureza, será que agora estamos em condições de olhar para trás e compreender não somente o passado, mas também o futuro, de um modo inteiramente novo? Se pudermos recuperar o sentimento perdido da natureza como um mistério vivo poderemos ter confiança em novas perspectivas na aventura cultural que certamente nos espera adiante. Temos a oportunidade de nos afastar do triste niilismo histórico que caracteriza o reino de nossa cultura profundamente patriarcal e dominadora. Estamos em posição de recuperar a avaliação arcaica de nossa relação praticamente simbiótica com as plantas psicoativas como uma fonte de idéias e coordenação fluindo do mundo vegetal para o mundo humano.
O mistério de nossa consciência e de nosso poderes de auto-reflexão está de algum modo ligado a este canal de comunicação com a mente invisível que os xamãs afirmam ser o mundo vivo da natureza. Para os xamãs e as culturas xamânicas a exploração desse mistério sempre foi uma alternativa crível à vida numa cultura materialista confinadora. Nós, que pertencemos às democracias industriais, podemos escolher explorar agora essas dimensões estranhas ou podemos esperar até que a destruição cada vez maior do planeta vivo torne irrelevante qualquer outra exploração.
Um novo manifesto
Portanto chegou o tempo, no grande discurso natural que é a história das idéias, de repensar totalmente nosso fascínio pelo uso habitual das plantas psicoativas e fisioativas. Temos de aprender com os excessos do passado, especialmente da década de 1960, mas não podemos simplesmente advogar o “Diga não”, do mesmo modo que não podemos advogar o “Experimente, você vai gostar”. Nem podemos apoiar uma visão que deseje dividir a sociedade entre usuários e não-usuários. Precisamos de uma abordagem ampla a essas questões, uma abordagem que envolva as implicações evolucionárias e históricas mais profundas.
A influência da dieta em induzir mutações nos primeiros humanos e o efeito de metabólitos exóticos na evolução de sua neuroquímica e sua cultura ainda é um território não estudado. A adoção de uma dieta onívora por parte dos primeiros hominídeos e a descoberta do poder de certas plantas foram fatores decisivos para afastá-los da corrente da evolução animal, levando-os para a maré acelerada da linguagem e da cultura. Nossos ancestrais remotos descobriram que certas plantas, quando auto-administradas, suprimem o apetite, diminuem a dor, proporcionam jorros de energia súbita, conferem imunidade contra patogenes e sinergizam atividades cognitivas. Essas descobertas levaram-nos à longa jornada para a auto-reflexão. Assim que nos tornamos onívoros usuários de ferramentas, a própria evolução de um processo de modificação vagarosa para uma rápida definição de formas culturais através da elaboração de rituais, linguagens, escrita, capacidades mnemônicas e tecnologia.
Essas mudanças imensas ocorreram em grande parte como resultado das sinergias entre os seres humanos e as várias plantas com as quais eles interagiram e co-evoluíram. Uma avaliação honesta do impacto das plantas sobre as bases das instituições humanas descobriria que elas são absolutamente fundamentais. No futuro, a aplicação de soluções estáveis botanicamente inspiradas, como o crescimento zero de população, a extração do hidrogênio da água do mar e os programas maciços de reciclagem podem ajudar a reorganizar nossas sociedades e nosso planeta em termos mais holísticos, conscientes do meio ambiente, neo-arcaicos.
A supressão do natural fascínio humano com relação aos estados alterados de consciência e a atual situação de perigo por que passa toda a vida na terra estão íntima e causalmente conectadas. Quando suprimos o acesso ao êxtase xamânico represamos as águas refrescantes da emoção que flui de um relacionamento profundamente ligado, quase simbiótico, com a terra. Em conseqüência disso se desenvolvem e se mantêm os estilos sociais mal-adaptados que encorajam a superpopulação, o mau uso dos recursos e a intoxicação ambiental. Nenhuma cultura na terra é tão profundamente narcotizada, em termos de se acostumar às conseqüências do comportamento mal-adaptado, quanto o ocidente industrializado. Buscamos uma atitude tranqüila numa atmosfera surreal de crise cada vez maior e contradições irreconciliáveis.
Como espécie, precisamos reconhecer a profundidade de nosso dilema histórico. Continuaremos a jogar com um baralho pela metade enquanto continuarmos a tolerar os cardeais do governo e da ciência que pretendem ditar onde a curiosidade humana pode se concentrar e onde não pode. Essas restrições à imaginação humana são aviltantes e absurdas. O governo não somente restringe a pesquisa sobre substâncias psicodélicas que poderiam talvez produzir valiosas idéias psicológicas e médicas; ele pretende impedir também seu uso religioso e espiritual. O uso religioso das plantas psicodélicas é uma questão de direitos civis; sua restrição é a repressão de uma legítima sensibilidade religiosa. De fato, não é uma sensibilidade religiosa que está sendo reprimida, mas a sensibilidade religiosa, uma experiência da religio baseada no relacionamento entre plantas e seres humanos que existe desde muito antes do advento da história.
Não mais podemos adiar uma reavaliação honesta dos verdadeiros custos e benefícios do uso habitual das plantas e das drogas versus os verdadeiros custos e benefícios da supressão de seu uso. Nossa cultura global corre o risco de sucumbir a um esforço orwelliano de acabar com o problema através do terrorismo militar e policial contra os consumidores de drogas em nossa população e os produtores de drogas no Terceiro Mundo. Essa resposta repressiva é alimentada em grande parte por um medo não examinado que é produto de desinformação e ignorância histórica.
Preconceitos culturais profundamente arraigados explicam porque a mente ocidental torna-se subitamente ansiosa e repressiva com relação às drogas. As mudanças de consciência induzidas por substâncias revelam dramaticamente que nossa vida mental tem fundamentos físicos. Assim, as drogas psicoativas desafiam a suposição cristã da da inviolabilidade e do status ontológico especial da alma. De modo semelhante, elas desafiam a idéia moderna do ego, de sua inviolabilidade e de suas estruturas de controle. Resumindo, os contatos com as plantas psicodélicas questionam toda a visão de mundo da cultura dominadora.
Abordaremos frequentemente esse tema do ego e da cultura dominadora nesse reexame da história. De fato, o terror que o ego sente ao contemplar a dissolução de fronteiras entre o Eu e o mundo não está somente por trás da supressão dos estados alterados da consciência, mas, de modo mais geral, explica a supressão do feminino, do estrangeiro e exótico e das experiências transcedentais. Nos tempos pré-históricos, porém pós-arcaicos, de cerca de 5000 a 3000 a.C., a supressão da sociedade igualitária pelos invasores patriarcais arrumaram o cenário para a supressão da investigação experimental e aberta da natureza, feita pelos xamãs. Em sociedades altamente organizadas essa tradição arcaica foi substituída por uma tradição do dogma, da politicagem clerical, das guerras e, finalmente, dos valores “racionais e científicos” ou dominadores.
Até aqui usei sem explicação os termos “igualitários” e “dominadores” para falar de estilos de cultura. Devo essas expressões úteis a Riane Eisler e sua importante revisão da história no livro The Chalice and the Blade. Eisler desenvolveu a noção de que os modelos de sociedade “igualitária” precederam e mais tarde competiram e foram oprimidos pelas formas de organização social “dominadora”. As culturas dominadoras são hierárquicas,, paternalistas, materialistas e de domínio masculino. Eisler acredita que a tensão entre as organizações igualitárias e dominadoras e a superexpressão do modelo dominador são responsáveis pelo nosso afastamento da natureza, de nós mesmos e ins dos outros.
Eisler escreveu uma brilhante síntese do surgimento da cultura no antigo Oriente Próximo e do desdobramento do debate político relativo à feminização da cultura e à necessidade de superar padrões de domínio masculino para a criação para a criação de um futuro viável. Sua análise política dos sexos eleva o nível do debate para além dos que saudaram estridentemente um ou outro “matriarcado” ou “patriarcado” antigo. The Chalice and the Blade introduz a noção de “sociedades igualitárias” e “sociedades dominadoras” e usa os registros arqueológicos para argumentar que, sobre vastas áreas e durante muitos séculos, as sociedades igualitárias do Oriente Médio antigo não tinham guerras nem levantes. A guerra e o patriarcado chegaram com o aparecimento de valores dominadores.
A herança dominadora
Nossa cultura, auto-intoxicada pelos subprodutos venenosos da tecnologia e pela ideologia egocêntrica, é a infeliz herdeira da atitude dominadora que diz que a alteração da consciência através do uso de plantas ou de substâncias é errada, onanística e perversamente anti-social. Irei argumentar que a supressão da gnose xamânica, com sua confiança e insistência na dissolução extática do ego, roubou-nos o significado da vida e tornou-nos inimigos do planeta, de nós mesmos e de nossos netos. Estamos matando o planeta para manter intactas as suposições equivocadas do estilo cultural dominador do ego.