“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips – Walter Clark
MundoCogumelo de volta ao ar, e para marcar nosso retorno, escolhemos um artigo de 1976 de Walter Houston Clark que ilustra uma questão que vem sendo pouco debatida com a profundidade necessária. A Bad Trip, e se ela deveria ser evitada, contornada ou apreciada com a atenção que doamos a todo professor que algo possa nos ensinar.
Tendo em vista algumas abordagens perigosas de reducionismo químico, em sites e páginas de ufanismo farmacológico, que contrariam a psicologia, a redução de danos e negam a própria experiência humana enquadrando como meros desequilíbrios químicos as profundas questões psicológicas que envolvem as experiencias mais difíceis, conhecidas popularmente como “bad trips”, este artigo nos leva a debater essas experiências como momentos-chave de uma reestruturação pessoal, psicológica e social das mais impactantes que podemos alcançar. Apesar de antigo, o texto não é obsoleto e remonta, com todas as ressalvas que o tempo trouxe de atualizações, uma questão profunda e muitas vezes negligenciada.
“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips
Walter Houston Clark
Revista FATE, Abril de 1976
Uma mistura única de análise freudiana e xamanismo mexicano
pode representar um avanço para a psicoterapia.
Quase um século se passou desde que Sigmund Freud revolucionou nossa compreensão das doenças mentais e seu tratamento. Muitos pensadores importantes – como Carl Jung – foram consideravelmente além de Freud ao canalizar as profundezas da psique humana. Mas nenhuma das inúmeras técnicas psicoterapêuticas desenvolvidas durante essas décadas de pesquisa conseguiu cumprir completamente sua promessa teórica em termos de resultados práticos. A psicoterapia para a maioria das pessoas continua sendo um empreendimento duvidoso, arriscado e caro.
Um médico mexicano pouco conhecido desenvolveu uma técnica que chega tão perto de cumprir sua promessa quanto qualquer outra com a qual eu esteja familiarizado. Combina várias formas de psicoterapia ocidental com a sabedoria dos xamãs indígenas mexicanos. Essas abordagens foram combinadas com a genialidade do Dr. Salvador Roquet, um eminente médico mexicano de saúde pública cujas realizações incluem banir a febre amarela do México. As responsabilidades do Dr. Roquet o colocaram em contato com os índios mexicanos e, consequentemente, com suas abordagens incomuns em relação à saúde, incluindo o uso de plantas alucinógenas para pesquisar a alma, a fim de curar a mente.
Quando o Dr. Roquet soube do meu interesse no uso de drogas psicodélicas para a reabilitação de prisioneiros, ele me convidou para a Cidade do México para investigar sua técnica. No início de 1974, visitei o “Instituto de Psicosintesis Robert S. Hartman”, nome de sua clínica na Cidade do México. O Instituto é um dos três ramos da Associação Albert Schweitzer; os outros são uma missão médica para indígenas e uma escola baseada nos desdobramentos psicológicos descobertos pelo Dr. Roquet em seu trabalho psiquiátrico. O Dr. Roquet me convenceu de que a melhor maneira de observar sua técnica era participar pessoalmente das sessões. Dessa forma, acredito que a melhor introdução à sua psicoterapia altamente original é relacionar minhas próprias experiências com ela.
Me dirigi ao Instituto às 22h em uma noite de fevereiro, junto com vários outros pacientes. Recebemos um teste psicológico chamado “Questionário de Valores Hartman”. Depois disso, mais pacientes chegaram e nos reunimos em uma sala adjacente para nos familiarizarmos entre si. Como não sei falar espanhol, me senti um pouco isolado até que um dos participantes me pediu em inglês para dizer algo sobre mim. Enquanto ele traduzia minhas observações para os outros, senti-me mais à vontade e mais um membro do grupo. Eventualmente, havia cerca de 25 de nós.
Entre meia-noite e uma hora da manhã, fomos levados a uma sala com menos de 30 por 40 pés. Cerca de 1.000 pés quadrados foram reservados como área de tratamento para os pacientes. Durante as próximas 20 horas, nenhum paciente teve permissão para deixar a área de tratamento, exceto para ir ao banheiro adjacente. Um espaço de 10 por 30 pés alocado para o corpo médico e equipamentos eletrônicos foi dividido da área de tratamento por uma mesa na qual o Dr. Roquet, sua equipe e alguns observadores estavam sentados. Seus casacos brancos os distinguiam dos pacientes. As paredes estavam cobertas com quadros bizarros pintados por ex-pacientes e imagens de Freud, Gandhi e o ex-presidente chileno Salvador Allende, além de um crucifixo pendurado em uma parede.
Após um breve período de exercícios semelhantes à ioga, cada um de nós foi autorizado a selecionar uma esteira como uma espécie de base para o período do tratamento. Os pacientes se deitaram e uma música repousante foi ligada. Logo depois, as luzes foram apagadas e uma série de filmes sonoros foi exibida. Eram cenas de violência, morte e pornografia grosseira, aparentemente projetadas para chocar e perturbar a sensibilidade do paciente comum. Em contrapartida, na sequencia exibiram outras cenas que refletiam beleza natural, amor, ternura e afins, de modo que toda a paixão e experiência humanas fossem representadas. Em outras partes da sala, imagens paradas com temas semelhantes foram projetadas contra as paredes. Coforme esse show de variedades continuava, a música aumentou gradualmente em volume e cacofonia. Os pacientes podiam assistir as cenas ou não como quisessem, mas era difícil ignorar o ataque aos nossos ouvidos. No entanto, a equipe nos impediu de adormecer.
Durante esse período, um paciente após o outro foi chamado à mesa, pesado e examinado por um médico. O médico que me examinou observou que meu coração estava forte o suficiente para o tratamento, mas que eu não deveria abusar. A altitude da Cidade do México me trouxe de volta uma irregularidade cardíaca que estava sob controle antes de eu deixar os Estados Unidos. Esta notícia, acentuada por algumas das cenas do vídeo, ajudou a transformar meus pensamentos em morte e problemas associados. Os outros pacientes pareciam igualmente perturbados.
Por volta das quatro ou cinco horas, a equipe começou a administrar as substâncias psicodélicas, a droga e a dosagem foram personalizadas para cada paciente. (Meu relógio havia sido retirado de mim, para que meu senso de tempo fosse desorientado.) Minha própria vez chegou no que julguei que eram cerca de seis horas e recebi 250 microgramas de LSD-25. Logo após todas as dosagens terem sido administradas, a sobrecarga sensorial atingiu seu pico. A música cacofônica e uma alternância de luzes brilhantes e escuridão total pontuada por estranhos efeitos neon criaram uma atmosfera extremamente estranha.
A essa altura, a sala começou a se assemelhar a um poço de cobras do século XIX ou mesmo a uma confusão do século XVIII. Muitos de nós chorávamos, outros rolavam no chão e gritavam angustiados, outros vomitavam, alguns olhavam para o espaço e outros ainda faziam movimentos hostis em direção ao equipamento eletrônico. Às vezes, eu tinha medo de que alguns pacientes pudessem atacar o Dr. Roquet, sentado impassivelmente, dirigindo os efeitos da experimentação responsável por essa violência e perturbação.
Eu próprio fiquei possuído por uma noção confusa de que as pessoas de jaleco branco eram atormentadores deliberados nomeados pela Inquisição para me tirar da razão. Todos pareciam tão imperturbáveis com a confusão que estavam criando que eu andei até a mesa e os denunciei violentamente por sua presunção, um ato dificilmente característico no meu estado mental normal. Com minha rápida alternância entre preocupações com a aproximação da morte, a ansiedade que me assustava sobre a experimentação com psicodélicos e a angústia por muitas coisas que pretendia, mas deixei de fazer, toda a experiência pode ser descrita como uma descida ao inferno. Eu mal conseguia distinguir o que era externo do que era interno.
No final desta fase do tratamento, a música e outros estímulos sensoriais foram diminuídos ou desligados e as luzes acesas. Referindo-se a registros individuais quando necessário, o Dr. Roquet convocou vários pacientes à mesa em sucessão e os questionou sobre seus problemas e experiências enquanto o resto de nós ouvia. Os tradutores interpretaram as várias línguas para os outros pacientes. Alguns pacientes foram convidados a ler passagens curtas apropriadas para seus problemas, talvez algo pessoal ou talvez escolhido pelos médicos, geralmente com expressões de angústia pungente. Uma jovem leu uma passagem do romance de Flaubert, Madame Bovary, que lhe externou uma identificação dolorosa com a personalidade de Emma, descrita no romance.
Durante esta fase do tratamento, certos indivíduos receberam uma injeção de cloridrato de ketamina, uma nova e poderosa droga usada pelo Dr. Roquet. Seus efeitos variavam com pessoas diferentes, mas geralmente produzia uma ab-reação¹ violenta. Um jovem que recebeu a injeção estava dando seu relato quando, de repente, caiu no chão em uma demonstração violenta de angústia e terror, vomitando e se contorcendo em tormento.
¹ ab-reação
PSICOLOGIA
descarga emocional pela qual um indivíduo se liberta do afeto que acompanha a recordação de um acontecimento traumático [Pode ser provocada, por exemplo, por hipnose, ou ocorrer de forma espontânea no decorrer do processo psicoterápico.].
Nesse momento, dois funcionários com sacolas e toalhas vieram em seu auxílio, demonstrando infinita gentileza e compaixão. Essa cena me impressionou com tanta força quanto minha convicção anterior de que os funcionários eram perseguidores. Percebi que toda a provação havia sido fabricada para o benefício dos pacientes e que o que parecia um inferno tinha se convertido em um paraíso. Essa percepção chamou minha atenção para os aspectos positivos do tratamento e me ajudou a voltar à normalidade.
Depois de mais ou menos uma hora, esta fase do tratamento terminou, as luzes foram apagadas novamente, música suave voltou a ser tocada e fomos convidados a descansar por várias horas. No final deste período, as janelas foram abertas, deixando entrar a luz do sol. Não tínhamos permissão para sair da sala, mas fomos convidados a nos exercitar e nos expressar dançando, se quiséssemos. A essa altura, senti-me intensamente sensível aos meus colegas e grato aos funcionários. Como não conseguia me comunicar na língua deles, me vi expressando meus sentimentos na dança improvisada.
Após o período de descanso, os poucos pacientes não processados receberam atenção. A equipe distribuiu a cada paciente fotos significativas de seus próprios arquivos – geralmente fotografias de família, fotos do próprio paciente em várias idades ou fotos de amigos e amantes. Por vezes, isso desencadeou mais cenas emocionais. Mas no final da tarde, cerca de 20 horas depois de eu ter chegado ao Instituto, todos haviam retornado a um estado normal de consciência. A essa altura, os respectivos parentes começaram a chamar pelos pacientes e senti grande consolo ao ver minha esposa. Por volta das nove horas, tivemos a cerimônia final; uma rosa foi dada de presente a cada sujeito. Nas minhas três semanas de permanência na Cidade do México, todos os pacientes que encontrei como observador ou como participante haviam retornado à consciência normal ao final do tratamento.
Alguns dias depois, os membros do meu grupo se reuniram para sessões de terapia em grupo de cinco horas ou, para alguns indivíduos, sessões privadas de menor duração. Cada paciente compôs um relato escrito de sua sessão para sua ficha. Essas sessões de acompanhamento continuaram até que a equipe decidisse que o paciente se beneficiaria com outra sessão longa, às vezes um mês depois, embora o espaço de tempo fosse maior à medida que o paciente melhorava. A melhora foi medida pelo teste de Hartman e também pelas impressões clínicas dos psiquiatras.
Como eu não era propriamente um paciente e como minha estadia no México seria breve, não participei de todo esse acompanhamento, mas participei de uma segunda longa sessão, cerca de duas semanas após a minha primeira.
Eu esperava tomar cloridrato de ketamina durante a minha segunda sessão, mas a irregularidade do meu coração persistiu e os médicos julgaram isso desaconselhável. Esta decisão mais uma vez voltou a minha mente para o tema da morte. Na minha segunda sessão, havia apenas 10 pacientes, um número mais gerenciável e ainda suficiente para uma interação valiosa entre os pacientes. Em todo caso, o procedimento foi semelhante à primeira vez, exceto que agora eu havia ingerido cogumelos Psilocybe frescos enviados em meu benefício pela própria Maria Sabina, uma curandeira de Huautla.
Dessa vez, re-experimentei o fenômeno da morte, mas em vez de descer ao inferno, a experiência assumiu quase o caráter de um festival, embora num contexto de solenidade alimentada pelas tensões do Requiem de Brahms. Não apenas obtive insights deliciosos e comoventes sobre minha própria vida subjetiva, mas também pude ver aspectos engraçados associados à minha morte, o que trouxe risos refrescantes. Eu também percebi como a cacofonia e a sobrecarga sensorial que foram projetadas para “me assustar completamente” têm um paralelo na sociedade em que a ocorrência perfeitamente natural da morte é transformada em um evento assustador que provoca medo na mente das pessoas comuns.
No geral, essa segunda sessão foi a mais rica das minhas 10 a 15 experiências com materiais psicodélicos. Foi a primeira experiência desse tipo em que a culpa não teve papel consciente. Não credito o resultado feliz dessa “trip” aos cogumelos, mas o importante condicionamento da minha “descida ao inferno” (a bad trip) anterior.
A eficácia da técnica do Dr. Roquet é evidente em meu estado de espírito desde que minhas experiências com ele ocorreram. Há quase dois anos, meu entusiasmo pela vida tem sido mais positivo do que nunca. Minha apreciação pela música cresceu quase a um vício e outros aspectos da minha vida foram igualmente enriquecidos. Naturalmente, isso me deu uma visão subjetiva do que o tratamento pode realizar para pessoas cuja saúde mental não está tão bem estabelecida quanto a minha.
Quais são as implicações da emocionante técnica do Dr. Roquet para o campo da saúde mental? Com base nas minhas três semanas de intenso envolvimento com seu programa, sinto que o que o psicanalista médio realiza em cinco ou seis anos, Salvador alcança com frequência em meses – e melhor, com custo de 10 a 20 vezes menor! O Dr. Roquet trouxe a psiquiatria para o século XX. Sem dúvida, um dia, seus métodos serão aprimorados, mas não duvido que sejam considerados um avanço crucial no progresso da psiquiatria.
Em minha pesquisa com drogas psicodélicas, muitas vezes descobri que as “bad trips” são as melhores trips, especialmente quando lidamos adequadamente com elas. O Dr. Roquet induz deliberadamente uma viagem ruim para trazer à tona os piores medos e problemas do paciente, embora isso possa significar, e geralmente significa, uma visita ao seu submundo particular, onde a ‘loucura’ se esconde. Por essa razão, o Dr. Roquet se refere à sua técnica como “psicodisléptica”, que significa “temporariamente perturbadora das funções da mente”. O objetivo específico dessa técnica é sobrecarregar as defesas cuidadosamente construídas que muitas vezes tornam a neurose ou psicose do paciente invulnerável ao médico. Muitos psiquiatras convencionais podem argumentar que esses métodos violentos podem prejudicar a psique. O resultado bem-sucedido de quase 3.000 pacientes tratados no Instituto obviamente responde melhor a essas objeções.
Qual a importância das substâncias no tratamento? Roquet diz que os medicamentos não representam mais de 10% do total do tratamento. Eu poderia concordar, mas também argumentaria que são 10% muito importantes. As substâncias psicodélicas parecem multiplicar a força da experiência e permitir que ela penetre nos níveis do inconsciente raramente visitados na psicoterapia comum.
Entre os outros fatores importantes na técnica estão os relacionamentos interpessoais. A naturalidade da equipe e a falta de alarme garantem ao paciente que o Dr. Roquet e seus colegas estão completamente no controle da situação. Mais importante, sua atitude ativamente compassiva durante as fases finais da terapia atua como uma influência vital de cura. Tão importante quanto é a interação entre os próprios pacientes – incluindo o toque de apoio e a consciência de que cada própria angústia é acompanhada pela de outra pessoa do outro lado da sala.
O Dr. Roquet desenvolveu uma teoria intuitiva e perspicaz subjacente à sua terapia, mas isso é muito complexo para ser apresentado aqui. Sem dúvida, ele eventualmente falará por si mesmo na tradução para o inglês.
Em 21 de novembro de 1974, o Dr. Salvador Roquet, seus assistentes e 25 pacientes foram presos durante uma sessão de terapia em grupo pela polícia mexicana, que invadiu o Instituto brandindo pistolas e metralhadoras. O ataque foi instigado por Guido Belasso, diretor ‘Centro Mexicano de Independência das Drogas’, de acordo com a revista mexicana “Tiempo”.
Os pacientes foram presos apenas brevemente, mas o Dr. Roquet e seu assistente, o Dr. Pierre Favreau, foram presos por vários anos devido à gravidade das acusações de crimes relativos à drogas. O Dr. Roquet operava sua clínica em total abertura por mais de seis anos tendo ganho a gratidão de oficiais do governo por sua ajuda na contenção de distúrbios na Universidade do México, tratando com sucesso um líder estudantil radical.
Uma organização dos ex-pacientes de Roquet, liderada por influentes mexicanos, veio em defesa do doutor e vários ilustres psiquiatras americanos testemunharam a validade e a eficácia de seus métodos. Por fim, os drs. Roquet e Favreau foram liberados das acusações e autorizados a reabrir o Instituto.
Traduzido diretamente de Psychedelic Libraby