Navegando nos Estados de Consciência

Texto de Ralph Metzner

Texto colhido do site Reality Sandwich, em que Ralph Metzner, uma das figuras mais importantes e ainda vivas da cultura psicodélica moderna em seu primórdio, parceiro de Timothy Leary e Richard Alpert, disserta sobre os estados de consciência durante o estado psicodélico. O texto tinha o intuito de convidar os psiconautas para um curso que ele estaria ministrando neste mês de fevereiro, de 2017, via internet. Boa leitura!


 

Android Jones — DREAMCATCHER

O conceito de  estados alterados de consciência (ASCs) entrou em destaque na psicologia ocidental nos anos 1950 e 1960, principalmente devido a três avanços paradigmáticos. Um deles foi a descoberta de movimentos oculares rápidos (REM) durante o sonho,  foi a primeira vez que as variações fisiológicas registráveis poderiam ser correlacionadas de forma confiável com um estado subjetivo específico de consciência. A segunda descoberta foi de que as gravações de atividade elétrica no cérebro (EEG), na faixa de frequência de 8 a 12 ciclos por segundo (chamadas ondas alfa) foram correlacionadas de forma confiável com estados calmos e introspectivos de relaxamento e meditação. A terceira descoberta foi a descoberta do LSD e de outras substâncias psicodélicas de “expansão da consciência”, o que significava que estados de consciência profundamente transformados e transformadores, até agora acessíveis apenas a alguns indivíduos envolvidos em práticas meditativas ou iogues, poderiam ser induzidos com confiabilidade em pessoas comuns, dada a preparação certa, salvaguardas e ‘set / setting’.

Essas descobertas de correlações entre variações nas funções neurais e variações na consciência subjetiva estimularam um enorme aumento da pesquisa, que continua até hoje, usando tecnologias como EEG, MRI, PET e outros. Essa abordagem – o estudo das associações entre medidas da atividade cerebral e estados mentais – tornou-se o paradigma dominante no estudo científico da consciência. Baseia-se na suposição filosófica subjacente da cosmovisão ocidental e materialista de que a consciência deve, de alguma forma, estar localizada no cérebro. Esta é uma visão que remonta ao trabalho do matemático francês do século XVIII, René Descartes, que especulou que a alma poderia ser encontrada na glândula pineal. As filosofias orientais do Yoga e do Budismo vêm de uma abordagem completamente diferente, baseando suas concepções da mente em observações sistemáticas de estados internos durante a meditação.

O insight chave que saiu dos estudos de Harvard com moléculas psicodélicas nos anos 60, era o significado do ajuste (intenção) e do ajuste (contexto) na compreensão de estados psicodélicos da consciência. Ao contrário das drogas que afetam o funcionamento de um ou outro órgão corporal, como o coração ou os rins, os psicodélicos expandem o alcance, o foco e a clareza da própria percepção – a maneira como vemos a realidade e a nós mesmos. Seu efeito vai muito além mesmo do humor-elevação, ou ansiedade-calmante, efeitos de drogas estimulantes ou sedativas.
Timothy Leary costumava dizer que as drogas psicodélicas eram potencialmente para a psicologia o que o microscópio era para a biologia – proporcionando a percepção consciente de faixas e níveis de realidade que anteriormente eram inacessíveis. Mas assim como o que percebemos através de um microscópio é uma função do que colocamos no slide (como a folha de uma planta, ou uma gota de sangue), então o conteúdo de uma experiência psicodélica (os pensamentos, imagens, sentimentos, sensações) é uma função do conjunto pré-existente ou intenção, do contexto escolhido ou configuração. A droga funciona meramente como uma espécie de catalisador ou gatilho que desloca o funcionamento mental para um modo novo até então.

Nos cursos de pós-graduação sobre estados alterados de consciência que eu ensinei por muitos anos, achei útil expandir esse paradigma básico de conjunto, configuração e catalisador para qualquer e todos os estados de consciência, do mais comum ao mais exótico. Os catalisadores ou desencadeadores bem conhecidos dos estados alterados de consciência (além de moléculas psicoativas) são induções hipnóticas, práticas meditativas, ritmos xamânicos, música, natureza, sexo e outros, bem como as variações cíclicas normais da química do cérebro que nos catalisam nos estados de sono ou vigília. Também é útil aplicar o paradigma ASC para entender estados psicopatológicos que são contrativos, fixos ou dissociativos e têm consequências negativas e tóxicas para os indivíduos, as famílias e as comunidades – incluindo vícios em drogas ou comportamentais, medo (ataques de pânico), raiva (ataques de temperamento), crises psicóticas ou episódios de depressão, mania e outros. Discutiremos tais estados em um capítulo posterior.

Uma questão que causa inquietação na maioria das pessoas ao considerar ou discutir o conceito de “estado alterado”, é a aparente implicação de que “alterado” é em si anormal. Como então poderíamos falar sobre ASCs sendo terapêutico, criativo, ou com desenvolvimento espiritual aumentado? Em meus cursos, eu tentei superar esse preconceito cognitivo, apontando para o fato de que todos os seres humanos estão muito familiarizados com as variações normais, profundamente alteradas no estado que chamamos de dormir, acordar e sonhar. Sigmund Freud disse que os sonhos são o “caminho real para o inconsciente”, o que significa que eles fornecem o acesso mais amplo. Mas pode-se dizer igualmente que os sonhos são o caminho dos plebeus, pois todos podem e viajam naquela passagem noturna para os reinos além. Na Índia, o “caminho real da yoga” (raja yoga) se referia ao uso intencional de práticas psicológicas para liberar a consciência de seu condicionamento comum – e esse caminho requer um certo estudo disciplinado e aplicação.

Alguns autores tentaram superar as pressuposições negativas associadas ao conceito de “estados alterados”, propondo termos como “estado alternativo” ou “estado não-ordinário”, ou (como em um manual da Associação Psicológica Americana) “Experiências anômalas”. Mas esta estratégia linguística disfarça o ponto em que algumas alterações de estado são extremamente comuns, usuais e familiares. O “sonhar” deveria ser considerado um “estado não-ordinário”? Que tal estar “bêbado” ou “deprimido” – não são aqueles estados bastante comuns, todos muito familiares? Além disso, alguns povos indígenas e praticantes xamânicos objetam que o que os ocidentais chamam de estados “não-ordinários”, lhes são muito familiares e comuns. Existe todo um espectro de estados de consciência, do familiar e comum ao anômalo e exótico extremo. Se o estado é normal ou anormal é, de qualquer modo, um juízo cultural e historicamente relativo imposto à experiência e, portanto, uma questão acadêmica de nenhum significado particular.

Cheguei finalmente a compreender meu próprio desconforto persistente com o conceito de “estado alterado”, além de confundir a distinção entre estados ordinários e não ordinários: tem haver com a construção passiva “alterada”, o que sugere que algo foi feito a você por uma agência externa. Um estado induzido por drogas parece apoiar essa visão. Mas temos que lembrar que normalmente o indivíduo escolhe ingerir a droga, seja álcool,  LSD, ou maconha, com um determinado propósito e com a intenção de alterar sua própria consciência. Da mesma forma, uma pessoa pode optar por submeter-se a um procedimento de indução hipnótica para entrar em um estado de transe no contexto da psicoterapia. Alterar deliberadamente a consciência de outra pessoa sem seu conhecimento ou consentimento, por exemplo, por uso sub-reptício de uma droga ou álcool, é universalmente considerado moralmente repreensível e ilegal.

As transições de estado da vida cotidiana também podem ser concebidas e experimentadas, em termos ativos ou passivos. Podemos “ir dormir” com a intenção consciente para o repouso e restauração das energias; podemos “adormecer” involuntariamente devido à fadiga; ou podemos ser “adormecidos”, metaforicamente e literalmente, por um falante chato em uma sala de aula. Da mesma forma para a transição oposta: podemos ser “despertados” pelo despertador; apenas “acordar” espontaneamente; ou lutar, literal e metaforicamente, contra a atração descendente da sonolência, para se tornar mais plenamente consciente e alerta.

No budismo e outros ensinamentos espirituais, como os de G. I. Gurdjieff, o que consideramos nosso estado de vigília normal é visto como uma espécie de estado de sono, no qual estamos inconscientes de nossa natureza essencial. De acordo com esses ensinamentos, o propósito das práticas yogue e meditativas é nos ajudar a despertar das condições sombrias e sonhadoras da existência ordinária e não-consciente – e despertar para os nossos mais elevados potenciais espirituais e criativos.

A fim de usar expansiva e positiva os estados de consciência de forma construtiva para aumentar a saúde, criatividade e crescimento, precisamos ser capazes de reconhecer o estado que estamos em qualquer momento, e como navegar através dele. Nas práticas de adivinhação xamânica e alquímica, métodos de “condução sonora”, tais como bater ou chocalhar, são usados para facilitar o acesso ao conhecimento para a cura, resolução de problemas e orientação. Yogis e meditadores praticam atenção plena e métodos de concentração, a fim de experimentar as dimensões mais sutis da consciência.

Com estados contracionais e insalubres, como medo e raiva, precisamos identificar o estado em que estamos e reconhecer como isso está nos afetando (nosso pensamento, nossa percepção, nosso comportamento), bem como outros com quem podemos estar relacionados. Precisamos aprender como navegar nosso caminho através dos estados negativos para estados mais saudáveis, que afirmam a vida. Ao tornarmo-nos mais conscientes do estado em que nos encontramos num determinado momento, podemos mobilizar a atenção de diferentes maneiras, aumentar a gama de escolhas que podemos fazer e assumir mais plenamente a responsabilidade pelo impacto dessas escolhas nos outros e no nosso mundo.

O MODELO DE ‘SET e SETTING’

Um estado de consciência pode ser definido como o espaço ou campo subjetivo no qual os diferentes conteúdos da consciência, tais como pensamentos, sentimentos, imagens, percepções, sensações, intuições, memórias e assim por diante, funcionam em inter-relações padronizadas. Além disso, um estado de consciência sempre implica uma divisão definida do fluxo de tempo, entre dois pontos de transição. Por exemplo, estamos no estado de sono entre o momento de adormecer e o momento de acordar. Estamos no estado de vigília funcional, também chamado de “estado ordinário”, entre os momentos de acordar e de adormecer. Os estados de intoxicação por drogas ou álcool se estendem desde o momento da ingestão até o momento de “baixar”. Um estado meditativo ou um estado de transe hipnótico começa e termina com transições que nos referimos como “entrar” ou “voltar”, como se cruzássemos algum tipo de limite.

Embora possamos (às vezes) ancorar as transições de estados subjetivos para o tempo objetivo externo (relógio), é importante reconhecer que cada estado tem sua própria linha de tempo subjetiva ou fluxo de tempo. Por exemplo, nos sonhos o tempo e o espaço são bem diferentes do que no estado de vigília. Em um sonho podemos nos encontrar com uma pessoa amada que vive a milhares de quilômetros de distância – e não leva “tempo real” para viajar para esta reunião. Distância no estado de sonho não é geográfica, mas emocional, uma função de afinidade e interesse. De fato, nos sonhos e outros estados profundos, podemos nos encontrar conversando com alguém que está morto – tendo transcendido completamente os limites espaço-temporais da realidade comum. Nas transições entre estados, há uma descontinuidade e mudamos para um fluxo de tempo diferente e um espaço da mente diferente.

A noção de estado alterado adquiriu uma certa conotação de anormalidade, talvez devido à sua associação com o uso de drogas, embora todos estejamos familiarizados com os estados profundamente diferentes de sonhar e dormir. Por esta razão, cheguei a pensar que é importante para nós aprendermos a reconhecer e identificar os tempos e situações em que estamos funcionando de forma marcadamente diferente da usual, isto é, em um estado diferente.

Se pudermos identificar os pontos de transição ou gatilho quando o modo de consciência mudar, podemos aprender a utilizar os estados positivos de acordo com nossa intenção consciente. Por exemplo, um músico ou outro artista pode achar que um período de meditação facilita o acesso ao estado de fluxo que aumenta a expressão criativa. Talvez ainda mais importante para o nosso bem-estar, temos de aprender a navegar fora dos estados negativos, destrutivos. Por exemplo, aprender a reconhecer os gatilhos verbais para um estado alterado de raiva é um aspecto importante da gestão da raiva nas relações interpessoais. As transições entre diferentes estados são pontos de interseção de diferentes linhas de tempo, onde podemos conscientemente optar por mover-nos ao longo de outra linha do tempo para um espaço mais expansivo, cheio de novas possibilidades. Se não escolhermos conscientemente, então seremos desviados para outro estado de acordo com os ventos predominantes do karma, ou reações habituais.

Alguns estados alterados são geralmente considerados positivos, saudáveis e expansivos, associados a uma compreensão mais profunda de valor espiritual: podemos pensar em unicidade mística, êxtase, transcendência, visão, transe hipnoterapêutico, inspiração criativa, união erótica, viagem xamânica, consciência cósmica, Nirvana, Satori. Outros estados alterados são considerados negativos, insalubres, contrários, associados à ilusão, psicopatologia, destruição e conflito: podemos reconhecer os estados alterados de depressão, ansiedade, trauma, psicose, loucura, histeria, raiva, mania, estimulantes e compulsões comportamentais/obsessões associadas à sexualidade, violência, jogo e gasto de dinheiro.

Em medicina de emergência, as perguntas sobre a nossa orientação no tempo e lugar (que dia é hoje? que lugar é este?) São usados para diagnosticar o estado de consciência de alguém, possivelmente em choque ou trauma. Os estados mais profundamente alterados são aqueles em que o sentido de identidade ou auto-imagem é abolido ou transcendido: estes incluem os estados de ego-morte ou despersonalização que podem ocorrer na psicose, bem como estados de nirvana ou unicidade que podem ocorrer no misticismo.

A chave para a compreensão do conteúdo de uma experiência psicodélica, tal como formulada por Timothy Leary, Frank Barron e colegas (incluindo eu) nos primeiros dias da ‘Harvard Psilocybin Research Project‘, foi a hipótese de “set and setting”. Esta hipótese, que tem sido amplamente aceita dentro do campo, afirma que o conteúdo de uma experiência psicodélica não é tanto uma função da farmacologia, isto é, um “efeito das drogas”, mas sim uma função do conjunto, que é todos os fatores internos de expectativa, intenção, humor, temperamento, atitude; e ambiente, que é o ambiente externo, tanto físico e social, e incluindo as atitudes e intenções de quem fornece, inicia ou acompanha a experiência. A droga é considerada como um gatilho, ou catalisador, impulsionando o indivíduo em um estado diferente de consciência ou espaço da mente, em que a vivacidade e as qualidades contextuais das percepções dos sentidos são muito ampliadas.

Esta hipótese ajudou os pesquisadores de Harvard a entenderem como os mesmos medicamentos podiam ser vistos e usados como indutores de uma psicose modelo (psicotomimética), como um complemento à psicanálise (psicolítica), um tratamento para a dependência ou estímulo à criatividade (psicodélico), um facilitador de viagens de cura xamânica (enteogênica); ou mesmo, como usado pelo Exército dos EUA e CIA, como um tipo de soro da verdade e ferramenta para a obtenção de segredos de espiões inimigos. Dos dois fatores de conjunto e configuração, conjunto ou intenção são claramente primários, uma vez que o conjunto normalmente determina que tipo de configuração se vai escolher para a experiência.

De acordo com o modelo heurístico que proponho, podemos estender a hipótese do conjunto e da configuração a todas as alterações da consciência, independentemente do gatilho que elas sejam induzidas e mesmo dos estados que se repetem cíclica e regularmente, como dormir e acordar. Nessas alterações cíclicas da consciência, reconhecemos que eventos bioquímicos internos normalmente desencadeiam a transição para a consciência de dormir ou acordar, mas fatores externos também podem fornecer um catalisador. Por exemplo, deitado na cama, na escuridão, desencadeia alterações nos níveis de melatonina na glândula pineal, que por sua vez promover a transição para o sono. Outras alterações bioquímicas no cérebro, luz mais brilhante e os sons de um alarme, pode ser o gatilho para o despertar, novamente observado por mudanças bioquímicas cíclicas. Além disso, fatores externos, como drogas sedativas ou estimulantes, ruídos altos ou estresse, também podem desencadear essas variações no ciclo sono-vigília.

Claramente, o conteúdo dos nossos sonhos pode ser analisado como uma função do conjunto, as nossas preocupações internas durante o dia, bem como o ambiente em que nos encontramos. Os praticantes da “incubação dos sonhos” fazem uso deliberado desse princípio, formulando conscientemente certas questões relacionadas ao seu processo ou problemas internos, à medida que entram no mundo do sonho noturno. Nos templos de Asclépio na Grécia antiga, aqueles que sofreram doenças físicas ou psíquicas foram guiados para incubar sonhos de diagnóstico e cura.

No quadro deste modelo de ajuste e configuração, depois que nosso modo de funcionamento consciente regressa ao estado de linha de base (o que alguns também chamam de estado de realidade consensual), vem o momento da avaliação e interpretação. Tendo em mente os dois pontos de transição, dentro e fora do estado alterado, torna mais fácil separar a própria experiência de nossos pensamentos e julgamentos sobre ele. É o núcleo da prática de meditação de atenção plena (vipassana), onde você apenas observa seus pensamentos, sentimentos e sensações, mas não analisa, acompanha ou avalia.

Os julgamentos avaliativos são geralmente a primeira reação imediata após qualquer estado alterado. Podemos dizer, por exemplo, que foi uma ‘bad trip’ ou pesadelo, ou que esta foi uma experiência maravilhosa ou inspiradora. Os pesquisadores em neurociência descobriram que os juízos avaliativos de sentimento sobre nossa experiência se originam no sistema límbico dos mamíferos (especialmente a amígdala) e podem ser um resíduo evolutivo de uma reação de sobrevivência instintiva à ameaça percebida. Julgamentos avaliativos não transmitem muita informação sobre uma experiência no entanto. Quanto você realmente aprende sobre um filme, por exemplo, quando seu amigo simplesmente lhe diz que ele gostou ou que foi terrível?

Para trabalhar com sonhos ou outras experiências internas em psicoterapia ou crescimento pessoal, precisamos ir além dos primeiros julgamentos e interpretações associativas e perguntar-nos o que significa essa experiência para mim ou o que eu aprendi com ela? Um aspecto crucial do que se segue a uma experiência de estado alterada é a aplicação e integração, ou falta dela, na vida em curso. Será que uma visão mística da unicidade com o divino leva a um estilo de vida moralmente melhor, mais feliz e mais santo? Os insights de uma visão ou sonho de cura levam a uma resolução de problemas? O estado depressivo que estou experimentando significa que eu tenho um traço de personalidade depressiva, ou é uma reação temporária a uma situação estressante? Este é o tipo de exame reflexivo de nossas experiências pode, então, tornar-se uma prática psicoespiritual contínua.

FONTE Reality Sandwich

 


Agradecemos imensamente a tradução feita pela colaborador Sezaru Buraga.
Seja você também um colaborador, entre em contato:

equipemundocogumelo@gmail.com

maconha sono sonhos

A maconha, o sono e os sonhos

O estudo científico da maconha vem contribuindo decisivamente para a compreensão da interação do nosso organismo com o ambiente.

 Texto por Renato Malcher e Sidarta Ribeiro


O sono do ser humano compreende quatro fases distintas, caracterizadas por diferentes padrões de atividade cerebral medidos por eletroencefalografia (EEG). As primeiras três fases formam um contínuo e se caracterizam pela reduzida atividade neuronal no córtex, que produz ondas neurais grandes e lentas. Durante essas fases de sono, coletivamente chamadas de sono de ondas lentas (SOL), quase nunca ocorrem sonhos. A última fase, ao contrário, apresenta alta atividade cortical, ondas neurais rápidas e pequenas, e muito freqüentemente a presença de sonhos. Durante essa fase observam-se movimentos oculares rápidos, dando origem em inglês ao nome rapid-eye-movement sleep, abreviado para sono REM por seus descobridores. O sono REM, quando estabilizado, sempre termina num despertar, mesmo que por minúsculos intervalos de tempo. Durante a noite, ciclamos cerca de quatro vezes por meio do sono de ondas lentas, do sono REM e da vigília.

A anandamida, o primeiro endocanabinóide a ser descoberto, é um poderoso indutor de sono de ondas lentas e de sono REM, causando redução do tempo de vigília.Entretanto, alguns estudos com altas dosagens de THC(mais que 70 mg/dia) verificaram uma diminuição significativa de sono REM. Aumento do estado de vigília e redução do sono REM também foi observado com CBD. Outros estudos reportam que doses mais baixas de THC causam aumento do sono de ondas lentas. O aumento da vigília causado por altas doses de THC contrasta com a aparência de sonolência decorrente da ingestão de maconha. Essa aparência deriva em parte das propriedades relaxantes e vasodilatadoras dos canabinóides, que causam queda das pálpebras e vermelhidão dos olhos. Quanto à sensação subjetiva de sonolência, parece depender crucialmente das dosagens dos diferentes componentes da maconha, da experiência pregressa do usuário, e da hora do dia em que a ingestão ocorre. Alguns usuários crônicos de maconha relatam que a ingestão pela manhã tende a provocar sonolência, enquanto a ingestão no turna provoca aumento da vigília. Em roedores, há evidências de que os níveis de endocanabinóides e de receptores CB1 variam de forma circadiana, se acumulando durante a vigília e decaindo durante o sono.

Os resultados sugerem que a ingestão de maconha durante o dia satura o sistema endocanabinóide de forma a produzir sonolência, mas tem o efeito inverso quando ingerida à noite, quando as doses somadas de endocanabinóides e exocanabinóides seriam menores. É importante ressaltar que entre os diversos canabinóides da maconha existem tanto agonistas do receptor CB1 (THC, por exemplo) quanto antagonistas (CBD,por exemplo). Isso faz da maconha um coquetel farmacológico extremamente complexo no que diz respeito aos efeitos sobre o sono. De modo geral, usuários crônicos de maconha relatam dificuldade de se lembrarem de seus sonhos. Esse efeito parece ser uma combinação da redução de sono REM com um possível aumento do esquecimento matinal, a seu turno ocasionado por efeitos residuais dos canabinóides ingeridos antes de dormir.
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Se por um lado a maconha diminui a ocorrência de sono REM e por extensão diminui efetivamente a oportunidade de sonhar, seus efeitos sobre a vigília são de certa forma oníricos, promovendo um afrouxamento perceptual e lógico que é descrito por muitos usuários como similar ao sonho. Vista por esse lado, a ação da maconha seria a redução do sonho no turno (night-dream) e o aumento da divagação da vigília (day-dream). Tendo em vista que os canabinóides promovem uma desorganização do processamento neuronal e conseqüente facilitação da restruturação dos traços de memória, é fácil compreender que seu uso facilita o processo criativo e a geração de insights. Além de ser um poderoso estimulador do apetite, a maconha é também utilizada como relaxante e mesmo como afrodisíaco. O aprofundamento geral da experiência sensorial enriquece a apreciação e produção das artes, fazendo da maconha uma droga especialmente utilizada pelos que vivem da sensibilidade artística. Não é por acaso que o cantor e compositor de reggae Peter Tosh, líder (assim como Bob Marley) do movimento Rastafari globalizado nos anos 1970, afirma em seu hino pela legalização da maconha (Legalize It) que a maconha é usada por muitos na sociedade, como juízes e médicos, mas começa sua lista pelos cantores e instrumentistas.

Além de favorecer a veiculação de emoções através das artes e estimular a comunicação verbal, a maconha também favorece estados de baixa ansiedade, como a contemplação lúdica, a introspecção, a empatia e o transe místico. Por esses motivos, a maconha é freqüentemente utilizada para reduzir tensões sociais nos mais variados contextos, das prisões às festas dançantes. O conjunto das manifestações comportamentais e sociais associadas ao uso da maconha reflete a ação anti-estressante atribuída ao sistema endocanabinóide por vários cientistas, entre eles o italiano Vincenzo Di Marzo, um dos líderes mundiais nesta área de pesquisa. A relevância das interações sociais para a evolução é irrefutável, adquirindo contornos únicos na espécie humana. A coesão do grupo em animais sociais é fundamental para aumentar as chances de integridade física de cada indivíduo diante da ameaça de um predador, por exemplo. Da mesma forma, em situações de escassez de alimentos, a cooperação aumenta muito as chances de sobrevivência dos indivíduos. Uma das principais funções do sistema endocanabinóide é a de reger o reequilíbrio mental e físiológico do organismo após eventos estressantes. Em animais sociais, podemos incluir também o reequilíbrio social. Os hormônios glicocorticóides iniciam e coordenam os diversos estágios da resposta de adaptação do organismo ao estresse: geram primeiro ajustes de curto e longo prazo nos diversos sistemas do organismo e, à medida que seus níveis vão se elevando também no cérebro, estimulam ali a síntese de endocanabinóides. Estes por sua vez assumem o papel de orquestrar a transição de volta à normalidade fisiológica e comportamental. Para tanto, os receptores CB1 são ativados em diversos circuitos, promovendo o alívio da dor, a dissipação da tensão psicológica e o relaxamento da musculatura. O apetite aumenta para a recuperação da energia gasta e para a estocagem preventiva de energia metabólica extra. As emoções que favorecem os laços afetivos e a interação interpessoal são intensificadas, estimulando o reagrupamento da comunidade. A ação reestruturadora das memórias possibilita o aprendizado de novas estratégias comportamentais para evitar as causas do estresse. No hipotálamo, os endocanabinóides promovem a supressão do eixo neuroendocrinológico que controla os hormônios glicocorticóides, dando um fim à resposta ao estresse.
Ilustra cannábica O sono e o sonho 3
O sistema endocanabinóide funciona, portanto, como um agente tonificante para as funções fisiológicas e mentais, incentivando o reaprendizado e facilitando o reagrupamento social. Há mais de dois mil anos, completamente alheios a estes conceitos, os Citas do norte do Mar Negro exploravam a possibilidade de ativar esse sistema com o uso da maconha, encontrando nos seus vapores um meio para sublimar a dor causada pela morte de um membro de sua comunidade. Mais ao sul, os mesmos vapores que faziam os Citas uivarem como lobos durante o luto motivavam nos aldeões que viviam às margens do Rio Aras a celebração lúdica da vida, por meio do canto e da dança. No planalto tibetano e na Índia, a mesma planta que promovia a consagração dos prazeres sensoriais e afetivos através das relações sexuais, andava de mãos dadas com o poder agregador e contemplativo da fé religiosa. Certamente, não há outra planta medicinal ou droga recreativa que se compare à maconha, tanto em termos de seu alcance étnico-cultural quanto em termos da abrangência de sua ação biológica. O que chama especial atenção nos desdobramentos antropológicos do uso da maconha é exatamente o paralelo com as funções fisiológicas e ecológicas exerci das pelo sistema endocanabinóide nos animais. O estudo científico da maconha vem contribuindo decisivamente para a compreensão da interação do nosso organismo com o ambiente. Ao mesmo tempo, aumenta as esperanças de desvendar o processo evolutivo responsável pelo surgimento dessa planta que parece saber tanto sobre a complexidade humana.

Sidarta Ribeiro é professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Renato Malcher-Lopes é professor adjunto do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (UnB).

* Artigo adaptado do livro Maconha, Cérebro e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Vieira & Lent Casa Editorial, 2007.

Arte: J.R. Bazilista

Reproduzido de Cannabica

Margens Insubordinadas: Cogumelos como Espécies Companheiras

Este texto de Anna Tsing traz uma perspectiva fúngica dos processos de estatização, sustentação de elites e principalmente da domesticação de mulheres e plantas nesses desenrolares. Através de pesquisas sobre Donna Haraway, conceitos como antropoceno, chthuluceno e outros foram aparecendo, e junto desse material o presente texto de Tsing. Senti a necessidade de traduzi-lo, afim de enriquecer debates feministas, antiespecistas, fúngicos, marginais e periféricos em geral. Um viva à maravilhosa diversidade que ainda reina nas bordas do capitalismo! Boa leitura.

(Introdução e tradução por Luiza Só, em parceria como site noosfera)


Dominação, domesticação e amor estão profundamente entrelaçados. O lar é onde dependências intra e inter espécies atingem seu estado mais sufocante. Apesar de todo o seu prazer supervalorizado, talvez essa não seja a melhor ideia para a vida multi espécies na Terra. Pense, em vez disso, na abundante diversidade que existe nas beiras das estradas.
Pense nos cogumelos

Este ensaio deve muito a Donna Haraway, não só pelo seu conceito de “espécies companheiras”, mas também pela permissão que ela nos oferece para sermos ao mesmo tempo cientistas e críticos culturais ou seja, para recusar as fronteiras que isolam natureza e cultura e, além disso, por ousar contar toda a história do mundo em uma única frase, ou em um pequeno ensaio.(1) Nesse espírito, meu ensaio começa falando de experiências de companheirismo e de biologia, antes de passar para a história da domesticação, a conquista europeia e o potencial politicamente e biologicamente variado das linhas que costuram o capitalismo global. Estes materiais apresentam um argumento fúngico contra um ideal de domesticação ávido em excesso, pelo menos no caso de mulheres e plantas.

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Cogumelos em uma paisagem multi espécies

Passear sem rumo e amar os cogumelos são duas coisas que se engendram mutuamente. Caminhar proporciona a velocidade do prazer corporal e da contemplação; é, também, exatamente a velocidade para procurar cogumelos. Depois das chuvas, o ar tem cheiro fresco de ozônio, seiva e serapilheira, e meus sentidos estão vívidos de curiosidade. Nada é melhor do que avistar as dobras laranjas dos Cantarelos abrindo caminho na escuridão molhada ou os bolinhos quentes de Reis Boletos brotando na terra revolvida.

A emoção da cor, da fragrância, do design – sem falar do orgulho de ser o primeiro a encontrá- los – vai tomando conta. Mas de todas essas delícias, as melhores, penso eu, são duas: primeiro, a sensação de ganhar um presente não merecido; segundo, a oferta de um lugar que vai guiar minhas futuras caminhadas. Esses cogumelos não são produto do meu trabalho, e como não labutei nem penei para obtê-los, eles pulam nas minhas mãos carregando os prazeres do impensado e do inesperado. Por um instante, a minha pesada carga de culpa é absolvida e, como uma ganhadora da loteria, estou acesa com a doçura da própria vida. Bismillah irachman irachim.(2)

O prazer deixa uma impressão: uma impressão do lugar. A própria excitação dos meus sentidos grava na memória o conjunto de cores e aromas, o ângulo da luz, os arranhões da roseira, o posicionamento sólido da árvore, e a ascensão da montanha diante de mim. Muitas vezes, vagando, me vem de repente a lembrança de cada toco e oco de um local onde estive – por meio dos cogumelos, uma vez eu me encontrei ali. Decisões conscientes também podem me levar a um local onde encontrei algo anteriormente, uma vez que a melhor maneira de achar cogumelos é sempre voltar para os lugares onde você os achou antes. Em muitos casos, o corpo crescente (micélio) que dá origem aos cogumelos e seus frutos perdura de estação para estação; além disso, alguns micélios são companheiros de longa vida de árvores específicas.

Se você quer encontrar cantarelos na região central da Califórnia, precisa procurar embaixo dos carvalhos, mas não de qualquer carvalho: você precisa procurar o carvalho que vive com o micélio do cantarelo, e você vai saber qual é, porque viu os cogumelos lá antes. Se você visitou o local com frequência o bastante, e conhece suas flores sazonais e suas alterações de fauna; você criou um lugar familiar na paisagem. Lugares familiares são o primeiro passo para reconhecer o valor das interações multi espécies.

O forrageamento funcionou durante a maior parte da história humana. Para encontrar plantas, animais ou fungos úteis, forrageiras se familiarizavam com lugares e retornavam a eles muitas vezes. Rifles de alta potência e a abundância de peixes tornaram possível matar algo facilmente em uma passagem aleatória pelo campo; mas os esportistas ainda se saem melhor com a ajuda de um guia local. Valendo-se de seus lugares familiares, as forrageiras aprendem não apenas sobre as relações ecológicas em geral, mas também sobre as histórias naturais estocásticas através das quais espécies e associações de espécies puderam florescer em determinados locais.

Os lugares familiares de forrageamento não exigem exclusividade territorial; outros seres ‒ humanos e não humanos ‒ aprendem sobre eles também.

Suas geografias expansivas e sobrepostas resistem aos modelos comuns, que dividem o mundo em “seu espaço” e “meu espaço”. Além disso, forrageiras nutrem o desenvolvimento de paisagens inteiras ‒ com suas múltiplas residentes e visitantes ‒ ao invés de espécies individuais. Lugares familiares engendram formas de identificação e companheirismo que contrastam com a hiper domesticação e a propriedade particular como a conhecemos. Vocês que buscam um mundo de companheiros que favorecem florescimentos mútuos, prestem atenção nos cogumelos.

Os cogumelos são bem conhecidos como companheiros. O conceito de “simbiose” ‒ a coexistência interespécies mutuamente benéfica ‒ foi inventado para o líquen, uma associação de um fungo e uma alga ou cianobactéria. Os parceiros não fúngicos abastecem o metabolismo do líquen por meio da fotossíntese; o fungo faz com que seja possível para o líquen viver em condições extremas. Ciclos repetidos de molhar e secar não perturbam o líquen, porque o parceiro fúngico pode reorganizar suas membranas assim que a água aparece, permitindo que a fotossíntese continue ocorrendo.(3) Os líquens podem ser encontrados na tundra congelada bem como em rochas do deserto mais seco.

Para os amantes de cogumelos, o companheirismo inter espécies mais intrigante é o que acontece entre fungos e raízes de plantas. Em micorrizas, os filamentos do corpo fúngico penetram ou embainham as raízes das plantas. Indian Pipes (Monotropa uniflora) e outras plantas sem clorofila são inteiramente sustentadas pelos nutrientes que recebem de fungos em suas raízes; muitas orquídeas não podem sequer germinar sem assistência fúngica.(4)

Em termos mais gerais, o fungo obtém sustento da planta enquanto oferece a ela minerais do solo circundante. Os fungos podem até perfurar rochas, disponibilizando seus elementos minerais para o crescimento das plantas. Na longa história da Terra, os fungos são responsáveis pelo enriquecimento do solo, permitindo que as plantas evoluam; fungos canalizam minerais das rochas para as plantas.(5)

As árvores são capazes de crescer em solos pobres em nutrientes graças aos fungos que trazem às suas raízes fósforo, magnésio, cálcio e mais. Na região em que eu vivo, silvicultores inoculam as raízes das mudas de abeto Douglas que plantam com Suillus (jack escorregadio) para auxiliar no reflorestamento. Muitos dos cogumelos mais apreciados da culinária são micorrízicos. Na França, os agricultores de trufas inoculam mudas de árvores em recipientes vedados.(6) Evidentemente, os fungos são perfeitamente capazes de fazer esse trabalho por si próprios, desde que contem com uma geografia mais ampla. E assim nós, os amantes de cogumelos, vagamos procurando a companhia das árvores, e não apenas as dos cogumelos.

Os fungos nem sempre são benignos em suas associações interespécies.(7) Eles são assustadoramente onívoros em seus hábitos de conversão de carbono. Vários fungos subsistem não apenas em animais e plantas mortos, mas também vivos. Alguns são patógenos ferozes. (Cryptococcus neoformans mata muitos pacientes de AIDS).(8)

Alguns são parasitas irritantes. (Pense na micose ou no pé de atleta.) Alguns deslizam através do intestinos de seus hospedeiros de modo inofensivo, esperando aterrisar em um pedacinho de excremento onde possam florescer. Certos fungos encontram substratos totalmente inesperados: Cladosporium resinae, originalmente encontrada em resinas de árvores, desenvolveu um gosto pela gasolina do avião, causando a obstrução de canos de combustível.(9) Alguns prejudicam um hospedeiro enquanto vivem felizes com outro: Puccinia graminis cria laços com o arbusto bérberis e alimenta moscas com seu néctar para produzir os esporos que as matarão à medida que crescem no trigo.(10)

Apetites fúngicos são sempre ambivalentes em sua benevolência, dependendo do seu ponto de vista. A capacidade dos fungos para degradar a celulose e a lignina da madeira morta, tão temida na proteção de casas de madeira, é também a maior dádiva dos fungos para a regeneração das florestas. Caso contrário, a floresta ficaria atrolhada de madeira morta e os demais organismos teriam uma base de nutrientes cada vez menor. O papel dos fungos na renovação do ecossistema torna mais do que óbvio que os fungos são sempre companheiros de outras espécies. A interdependência de espécies é um fato bem conhecido ‒ exceto quando se trata de seres humanos.

O excepcionalismo humano nos cega. A ciência herdou das grandes religiões monoteístas histórias sobre a dominação humana. Tais histórias alimentam pressupostos acerca da autonomia humana e direcionam questões para o controle humano da natureza, por um lado, ou para o impacto humano sobre a natureza, por outro, em detrimento da interdependência entre espécies.(11)

Uma das muitas limitações desta herança é que ela tem nos dirigido a imaginar o ser da espécie humana, isto é, as práticas de ser uma espécie, como dotadas de uma auto manutenção autônoma, e portanto constantes através da cultura e da história. A ideia de natureza humana foi entregue aos conservadores sociais e sociobiólogos, que usam esses pressupostos de constância e autonomia humanas para endossar ideologias autocráticas e militaristas das mais extremas.

E se imaginássemos uma natureza humana que muda historicamente em conjunto com teias variadas de dependências inter espécies? A natureza humana é uma relação entre espécies. Longe de questionar a genética, uma abordagem inter espécies para a nossa espécie abre possibilidades para trajetórias de pesquisa tanto biológicas quanto culturais. Poderemos entender mais, por exemplo, sobre as várias teias de domesticação em que nós, humanos, nos enredamos.

A domesticação é entendida normalmente como o controle humano sobre outras espécies. Costuma ser ignorado que tais relações também possam atingir os humanos.(12) Além disso, a domesticação tende a ser vista como uma fronteira brusca: Ou você está dentro do curral dos humanos, ou está fora, na natureza. Uma vez que essa dicotomização decorre de um compromisso ideológico com a dominação humana, ela respalda as fantasias mais ultrajantes de controle doméstico, por um lado, e de autonomia existencial das espécies selvagens pelo outro. Por meio de tais fantasias, os domesticados são condenados à prisão perpétua e à padronização genética, enquanto as espécies selvagens são “preservadas” em bancos de genes, ao mesmo tempo em que suas paisagens multi espécies são destruídas.

No entanto, apesar desses esforços imensos, a maioria das espécies, de ambos os lados da fronteira ‒ incluindo os humanos ‒ vivem em relações complexas de dependência e interdependência. A atenção a essa diversidade pode representar o início de um entendimento positivo do que significa seruma espécie dentro de um contexto inter espécies.

Os fungos são espécies indicadoras da condição humana. Poucos fungos encontraram espaço nos esquemas de domesticação humanos, e apenas alguns desses ‒ como os fungos usados na produção industrial de enzimas – sofreram grandes ajustes em seus genomas (os botões de cogumelos do supermercado são os mesmos Agaricus bisporus que brotam nos campos.) Mesmo assim, os fungos são onipresentes e acompanham todas as loucuras e experimentos humanos.

Tomemos como exemplo o Serpula lacrymans, o fungo xilófago (chamado “podridão seca”), outrora encontrado somente no Himalaia.(13) Durante suas conquistas no sul asiático, a marinha britânica o incorporou a seus navios. O S. lacrymans proliferava nas madeiras não tratadas que eram frequentemente usadas em navios nas campanhas navais, e desse modo viajou ao redor do mundo. No início do século XIX, a deterioração da madeira em navios de guerra britânicos foi chamada de “calamidade nacional” e o pânico seguiu até a introdução de navios de guerra revestidos de ferro na década de 1860.(14)

O fungo xilófago, no entanto, apenas continuou se espalhando à medida que ia encontrando novas moradas nas vigas dos porões úmidos e nos dormentes das ferrovias da civilização patrocinada pelos britânicos. A expansão britânica e a podridão seca se moviam juntas. Como neste exemplo, a presença de fungos muitas vezes nos diz algo a respeito das práticas cambiantes do ser humano.

A domesticação dos seres humanos é um lugar por onde podemos começar.

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A origem da família, da propriedade privada e do estado

(15) Os cereais domesticaram os seres humanos. O caso de amor entre as pessoas e os cereais é um dos grandes romances da história humana. Uma das suas formas mais extremas teve início cerca de dez mil anos atrás no Oriente Próximo, onde as pessoas começaram a cultivar trigo e cevada.

Nessa nascente domesticação, as pessoas transferiram sua afeição por paisagens multi espécies para derramar toda sua intimidade sobre um ou dois cultivos em particular.(16)

O mais curioso a respeito da domesticação de grãos no Oriente Próximo é que na maior parte daquela região costumava ser muito fácil colher grandes quantidades de trigo e cevada selvagens sem o trabalho duro do cultivo. Mesmo na década de 1960, grandes áreas repletas de grãos selvagens facilitavam o forrageamento.(17A história que contamos a nós mesmos sobre a “conveniência” e a “eficácia” de cultivar lavouras perto de casa não passa de uma grande mentira; o cultivo, em quase toda parte, requer mais trabalho do que forrageamento.

Devem ter havido muitas razões ‒ da religião à escassez local ‒ para se tentar experimentos de domesticação, mas o que manteve e ampliou o cultivo de grãos foi o surgimento de hierarquias sociais ‒ e a ascensão do Estado. Se existe uma coisa que a agricultura intensiva de cereais pode fazer melhor do que outras formas de subsistência é: apoiar elites. Os Estados institucionalizam o confisco de uma parte da colheita.

Por toda a Eurásia, o surgimento de estados e suas civilizações especializadas está associado com a propagação da agricultura intensiva de cereais. Em alguns lugares, Estados vieram após a agricultura, em outros, a agricultura veio após os Estados. Em cada caso, os Estados promoveram a agricultura através de seus símbolos e exércitos. Às vezes os Estados criminalizavam outras formas de subsistência; apenas criminosos recusariam a dádiva da fertilidade do Estado, e, para aqueles dentro do coração do Estado, essa dádiva da fertilidade poderia se manter, pelo menos nos bons tempos, através do amor.(18)

A transformação biológica de pessoas e plantas que acompanhou a agricultura intensiva de cereais é melhor compreendida, assim, por meio da crescente onda de acordos sociais hierárquicos e do emaranhamento do estado. Estados encorajaram as fazendas sedentárias e estáveis. Estados incentivaram as casas de família e garantiram os modelos de propriedade e herança familiares que traçavam as linhas entre famílias e dentro delas.

O pater familias era o representante do Estado no nível doméstico e do trabalho; foi ele quem garantiu que os impostos e dízimos fossem retirados da colheita para a subsistência das elites.

É dentro dessa configuração política que tanto mulheres e grãos foram confinados e gerenciados para maximizar a fertilidade.(19)

Os grãos selecionados através da domesticação tinham sementes grandes, altamente carboidratadas; dietas ricas em carboidratos permitiram que as mulheres tivessem mais filhos. Em vez de trabalhar para limitar a fertilidade, como a maioria das forrageiras fazem, as pessoas de repente queriam tantos filhos quanto possível ‒ não só por causa do fetiche da fertilidade, mas também porque a família precisava de mais trabalhadores para os cereais.

Os cereais não se importavam se o trabalho familiar ou não familiar os havia criado, e não houve escassez de pessoas; mas a propriedade apoiada pelo Estado incentivou o trabalho dentro da família, ou seja, crianças. Ter muitos filhos não era apenas a natureza seguindo seu curso. Nem todos os animais trabalham para maximizar a reprodução.

A reprodução humana fora de controle e não sustentável é característica de um tipo específico de domesticação humana: o caso de amor entre as pessoas e os grãos de cereais.

Essa obsessão com a reprodução limitou, por sua vez, a mobilidade e as oportunidades da mulher para além do cuidado com as crianças. Não obstante todas as suas possibilidades matriarcais, parece justo chamar esse caso de amor interespécies, ecoando Frederick Engels, de “a derrota histórica mundial do sexo feminino.”(20)

À medida que os agricultores intensificam seus esforços para alimentar uma população humana cada vez maior, eles recorrem a uma gama cada vez mais estreita de cultivos e modelos familiares. Apesar disso, a padronização dos cultivos e das famílias humanas não está completa. Onde quer que o poder do Estado se atenue, paisagens de maior biodiversidade e de maior diversidade social continuam a florescer. Ainda assim, o idealizado modelo de confinamento sedentário tem exercido, sozinho, força suficiente para manter as margens marginalizadas. Durante minha pesquisa com agricultores itinerantes de Kalimantan, na Indonésia, algumas mulheres disseram da minha riqueza e privilégios: “Se eu tivesse o que você tem, meus pés nunca tocariam o chão.” O confinamento das mulheres é o centro de um belo sonho de ordem e abundância.

Fungos são inimigos de fazendeiros e fazendas de monocultura. Desde que antigos Estados passaram a encorajar uma agricultura intensiva, houveram muitas e variadas pressões para padronizar cultivos. Desde o século XIX, a agricultura científica já ultrapassou esforços de domesticações anteriores na padronização de cultivos; ela fez da própria padronização o “padrão moderno.”(21) Hoje, apenas a padronização permite que os agricultores vendam suas colheitas. No entanto, a padronização torna as plantas mais vulneráveis a todos os tipos de doenças, incluindo ferrugens e cravagens de origem fúngica; sem a possibilidade de desenvolver variedades resistentes, as colheitas podem todas ir por água abaixo ao mesmo tempo. O surgimento de vastos campos de grãos ofereceram aos fungos parasitários das plantas um banquete ‒ e a reputação de inimigo da civilização e, mais tarde, do progresso. Como o cultivo de outros tipos de colheitas foi modelado nos ideais da agricultura intensiva de cereais, elas também sucumbiram a todo tipo de mofos e pragas: uma advertência para todos nós.

A mais famosa catástrofe fúngica talvez seja a praga da batata irlandesa. Batatas foram cultivadas na Irlanda com zelo de monocultura ‒ mas um zelo forjado na imagem invertida da expansão dos grãos liderada pelo Estado. A colonização britânica tinha conduzido a Irlanda às terras mais marginais; incursões militares queimavam e confiscavam plantações de grãos; apenas tubérculos subterrâneos permitiam a sobrevivência dos irlandeses.

Ao final do século XVIII, as batatas tinham se tornado o trunfo irlandês. Quando os proprietários de terra politicamente motivados liberaram novas terras para cultivo arrendado, pequenas fazendas proliferaram. Os arrendatários familiares resultantes, sustentados pelas batatas, casavam-se mais cedo e tinham mais filhos. A população humana cresceu de 5 para 8 milhões em cinquenta anos, mesmo com a economia cambaleando sob controle colonial, reforçando a dependência das batatas.(22)

O monocultivo cobra um preço. Os europeus haviam importado, estima-se, apenas duas das várias milhares de variedades de batatas crioulas domesticadas pelos sul-americanos.(23) Phytophthora infestans, um fungo da batata, foi relatado pela primeira vez em torno de 1835 como um problema local na Inglaterra. O fungo desenvolveu-se lentamente até o chuvoso e abafado verão de 1845, quando de repente cada planta irlandesa foi infectada, bem como todos os tubérculos em estoque. O resultado foi a escassez; um milhão de pessoas passou fome, e aproximadamente dois milhões imigraram para os Estados Unidos.(24)

À medida que a manipulação genética e a clonagem vão afetando outras espécies cultiváveis, o alarme fúngico continua soando. Pensemos nas plantações de acácia que os nossos sábios administradores julgaram poder substituir as florestas tropicais do Bornéu: geradas a partir de um único clone, elas são uniformemente suscetíveis a uma doença fúngica chamada “heart rot” que torna ocos seus centros.(25) Por que alguém sequer pensaria em cultivá-las é uma outra história ‒ uma história que nos leva para as dinâmicas de conquista e expansão europeias.

As plantações foram o motor da expansão européia. Elas produziram a riqueza ‒ e o modus operandi ‒ que permitiram aos europeus assumirem o controle do mundo. Costumamos ouvir falar em tecnologias e recursos superiores; mas foi o sistema de plantação que tornou possíveis as frotas navais, as ciências e, a partir de certo momento, a industrialização. Plantações são sistemas de cultivo ordenados que usam a força de trabalho de não proprietários e são concebidos tendo como objetivo a expansão. Plantações aprofundam a domesticação, reintensificando dependências de plantas e forçando a fertilidade.

Partindo do modelo da agricultura de cereais endossada pelo estado, as plantações investem tudo na superabundância de uma única lavoura. Mas um ingrediente fica faltando: elas removem o amor. Em vez do romance que conecta pessoas, plantas e lugares, os colonizadores europeus introduziram o cultivo através da coerção.(26) As plantas eram exóticas; o trabalho foi forçado através de escravidão, escritura e conquista.

Só é possível que algo floresça nesse contexto através de ordem e controle extremos; mas com hierarquia e gestão do antagonismo, lucros enormes (e pobrezas complementares) puderam ser obtidos. Uma vez que as plantações moldaram a organização do agronegócio contemporâneo, tendemos a pensar em tais arranjos como a única maneira de cultivar. Mas esse arranjo teve de ser naturalizado, até que deixássemos de questionar a alienação das pessoas daquilo que cultivam.

Pensemos na cana-de-açúcar, uma participante crucial. Ninguém ama plantações de cana-de- açúcar. Trabalhadores da cana porto-riquenhos íam à plantação para “defender-se” (se defienden) e “fazer batalha” (bregando) com a cana.(27) No entanto, entre os séculos XVII e XIX, as plantações de cana-de-açúcar produziram grande parte da riqueza que abasteceu a conquista européia e seu desenvolvimento. A cana foi levada às zonas quentes, redefinindo regiões; e assim também vieram proprietários, gerentes e os trabalhadores.(28) Escravos foram enviados da África Ocidental para o Novo Mundo. Os coolies, trabalhdores braçais contratados da Índia e da China, se deslocaram para o Pacífico.

Os camponeses foram conquistados e coagidos nas Índias. E assim, ao forjar um novo antagonismo com as plantas da monocultura, os humanos mudaram a própria natureza de ser da espécie. As elites estabeleceram seu senso de autonomia em relação a outras espécies; eles eram senhores, e não amantes, de seres não humanos, das espécies Outras que vieram a definir a auto-atribuição humana.

No caso dos donos de plantação, porém, isso só foi possível na medida em que subespécies de humanos eram formuladas e produzidas à força: alguém tinha que trabalhar a cana. A biologia veio para assinalar a diferença entre proprietários livres e trabalhadores forçados. Pessoas de cor trabalhavam a cana; pessoas brancas eram suas proprietárias e administradoras. Não havia lei ou ideal racial que pudesse impedir a miscigenação, mas eles podiam garantir que somente aqueles da raça branca herdassem as propriedades. As divisões raciais foram produzidas e reproduzidas em cada dote de casamento e herança.(29)

Desde o início, os fungos estavam lá, prontos para preencher nichos. Os fungos afastaram a cana dos pequenos agricultores; após o corte, a cana deve ser processada imediatamente para evitar fermentação fúngica. A enorme escala das plantações de cana e sua disciplina selvagem de trabalho são em parte uma resposta aos temores da fermentação, que cria a necessidade de engenhos locais de custo elevado ‒ e o desejo de mantê-los funcionando sem interrupção.

No entanto, a fermentação por fungos acabou se revelando uma dádiva para os proprietários. Não demorou para os canavieiros caribenhos observarem que o melaço, um subproduto da extração do açúcar, se dava bem com onipresentes esporos de fungos locais que o transformavam rapidamente em álcool. Assim nasceu o rum e o mortífero, porém lucrativo, “comércio triangular”, que ofertava rum por mais escravos africanos, o que aumentava a produção de açúcar, o que, por sua vez, fazia surgirem mais destilarias e financiadores na Inglaterra ou Nova Inglaterra.

Muito antes do açúcar tornar-se um objeto e símbolo do consumo de massa (assim cimentando a expectativa de públicos autônomos com relação a outras espécies, cujos alimentos irreconhecíveis pareciam surgir misteriosamente de longe), o rum fermentado de fungos tornou o açúcar das plantações rentável ‒ espalhando-o por todo o campo da conquista europeia.(30)

Nos limites da respeitabilidade, o rum abasteceu masculinidades marítimas por meio das quais o comércio se converteu em aventura. Desse modo, a fermentação desviou a atenção da crueldade da domesticação em terra firme, no que se referia tanto a humanos quanto a não-humanos.

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As mulheres brancas se tornaram agentes da higiene racial.

Ao dividir-nos firmemente em raças, as plantações remodelaram o ser da espécie humana, a prática de ser humano. As separações raciais – dependentes como são do casamento e da organização familiar ‒ exigiram transformações adicionais de gênero. Nas zonas de plantação, com sua instável mistura de nativos e estrangeiros, livres, amarrados e escravizados, selvagens e domesticados, doença e abundância, as coisas podiam facilmente sair do prumo. Aqui entram as mulheres brancas, que se tornaram responsáveis por preservar as fronteiras – dos lares, das famílias, das espécies e da raça branca.

Os fungos tropicais eram uma pequena parte do seu problema; mofo e infecções podiam sair do controle. Mantendo suas casas livres de mofo, mosquitos e miscigenação, as mulheres brancas nos trópicos tornaram-se modelos de alienação de espécies e subespécies.(31)

Ao final do século XIX, os discursos de higienismo científico e eugenia influenciaram as mulheres brancas na segregação de espécies. A teoria dos germes de Pasteur foi testada e impulsionada nos trópicos, onde espaços controlados por brancos podiam ser organizados como laboratórios, commicrorganismos detidos nas fronteiras dos lares brancos. Mulheres brancas foram chamadas para acompanhar seus maridos aos trópicos a fim de manter as coisas limpas.(32)

Reimportada à metrópole, tal higiene pública e privada aditivou dicotomias de classe, determinando distinções entre as mulheres que Barbara Ehrenreich and Dierdre English contrastaram como as “doentes” e as “repugnantes.”(33) Mulheres vulneráveis da classe alta se tornavam os anjos do lar; mulheres pobres foram responsabilizadas como agentes da infecção. Ambas receberam novas ordens para se reproduzir. As famílias pobres precisavam de mais mão de obra, especialmente nos lugares onde o trabalho infantil mantinha muitos adultos vivos.(34) Famílias privilegiadas foram encarregadas do avanço da raça. E às mulheres gerar os herdeiros.

Os limites do lar tornaram-se os limites esperados do amor.

Com a fetichização do lar como um espaço de pureza e interdependência, as intimidades extra-domésticas, sejam intra ou entre espécies, pareciam fantasias arcaicas (a comunidade, o pequeno agricultor) ou assuntos passageiros (feminismo, direitos dos animais). Fora do lar, reinavam o domínio da racionalidade econômica e os conflitantes interesses individuais. Além disso, esse tipo de fetiche familiar reapareceu na cultura de massa dos EUA em meados do século XX ‒ e reaparece agora em nosso tempo – no momento em que os Estados Unidos assumiram uma liderança global que lhes permitiu adotarem aspectos dos regimes mais antigos de cultura colonial.

Aqui o amor simplesmente não está previsto fora dos muros da família. No seio familiar, outras espécies podem ser aceitas. Os animais de estimação são modelos de devoção familiar. Só que o modelo do pet amado e amoroso não dissemina o amor, e sim o mantém aprisionado dentro da família.

Cidadãos dos Estados Unidos aprendem a se imaginar como um povo piedoso e moral porque amam seus filhos e seus animais de estimação. Aprendem que esse amor os torna “pessoas boas”‒ ao contrário dos terroristas, que só odeiam. Eles imaginam que esse amor os qualifica para tomar decisões em nome do mundo inteiro, criando uma hierarquia moral em que a “bondade” norte-americana serve de qualificação para a liderança global.

Outros povos, e outras espécies, são julgados de acordo com sua capacidade de viver à altura das normas norte-americanas de intimidade doméstica. Caso se dediquem adequadamente ao amor da família, talvez mereçam viver. Os outros correm o risco de se tornarem “danos colaterais” nosprojetos dos EUA para melhorar o mundo; eliminá-los pode ser lamentável, mas não é “desumano”.

Sob essa tutela, o modo de ser da espécie é reconfigurado para barrar os Outros na porta de casa.

Levando em conta o poder e a infiltração desse plano biossocial, surpreende que ainda exista sobre a terra uma rica diversidade de espécies e populações. Mas tal riqueza já não pode ser tomada como garantida.

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Colhendo cogumelos nas costuras do império

A diversidade biológica e social se amontoa, defensiva, nas margens negligenciadas. Dentro das selvas urbanas, bem como nos remansos rurais, o amontoado de diversidade que os dirigentes imperiais tendem a considerar excessivo ainda prolifera. As pequenas fazendas apresentam, na grande maioria dos casos, maior diversidade biológica do que as fazendas grandes voltadas ao capital intensivo ‒ e não apenas em termos de variedades de cultivo. Mesmo os fungos do solo e outros microrganismos preferem pequenas fazendas.(35)

Apesar do ritmo frenético da genética comercial, o processo evolutivo em zonas de negligência continua a superá-la em muitas ordens de magnitude na geração de espécies e interações entre espécies úteis. Fungos são representativos. O que pode dar um jeito de florescer em minas contaminadas? Muitos cogumelos micorrízicos ‒ da iguaria Laccaria laccata ao perturbador “pé de morto” (Pisolithus tinctorius) ‒ acumulam metais pesados, protegendo seus parceiros florestais, as plantas, da contaminação.(36)

Novos fungos radioativos colonizaram as paredes da sala do reator nas ruínas em Chernobyl; se alguém decidir sequestrar a radioatividade, essas espécies serão necessárias.(37)

Claro que nem todos os desenvolvimentos das espécies são benignos, mas apenas na folia da diversidade a adaptação é possível. Apesar disso, na maioria dos lugares existe uma correlação negativa entre a diversidade e a intensidade do investimento de capital e controle do Estado! Para aqueles que amam a diversidade, talvez um projeto de desmapeamento do Capital-Estado seja necessário.

Tais projetos operam melhor na obscuridade que procuram disseminar. Para um trabalho que almeja publicidade, deveríamos nos comprometer a buscar algum conhecimento sobre o ponto de vista das margens desordenadas, porém produtivas: as costuras do império.

Os cogumelos que comemos se congregam nas margens. Os fungos são onipresentes, mas cogumelos comestíveis e medicinais crescem apenas em poucos lugares. Muitos cogumelos apreciados florescem nos traçados das costuras agrárias: entre campos e florestas, e nas margens das zonas de cultivo.

Os reis boletos e os cantarelos são espécies florestais e de beira de estrada; eles gostam de luz, mesmo crescendo com árvores. Outros, como o cogumelo do prado, preferem terras de pousio. Cogumelos como esses ainda são bons lembretes dos prazeres da variedade para além do doméstico. Enquanto isso, muitas espécies são abundantes nas florestas e montanhas que cercam vales intensamente agrários.

Desde os tempos antigos, coletores de cogumelos têm vasculhado margens montanhosas e florestais de reinos alimentados com grãos: no sudoeste da China e no adjacente Sudeste Asiático; na Coreia; dentro da Europa Oriental e no norte da Eurásia. Na América do Norte contemporânea, imigrantes dessas margens agrárias tendem a ser os maiores coletores de cogumelos que se encontram nos mercados.

Enquanto isso, o mercado mundial de cogumelos distribuiu a coleta por todo o mundo. O matsutake, iguaria japonesa, leva coletores não só para as margens asiáticas tradicionais, mas também para as margens das montanha do outro lado do Pacífico: a Colúmbia Britânica, o Noroeste dos EUA e as montanhas de Oaxaca.

A coleta comercial de cogumelos nos permite enxergar as costuras do capitalismo mundial. Os lugares são diferenciados e os produtos são específicos, mas não se trata apenas disso: as formas de conhecimento e gestão de recursos são também muito divergentes e conectadas de maneira tênue na cadeia produtiva do cogumelo.

Famílias do sudeste asiático competem por territórios em Oregon; especialistas japoneses desenvolvem hierarquias regionais de sabor. Há muitas contingências e variações aqui para imaginar um cálculo simples de oferta e procura. A imersão nesse espaço não remove o indivíduo do mundo do capital, da classe e da regulação. Este não é o lugar para procurar uma utopia. Mas perceber as costuras é um bom começo.

Nos lares protegidos de todo o império, seres humanos têm se aninhado em suas poltronas, com seus animais de estimação e seus lanches de espécies simuladas, para assistir à destruição do resto do mundo na TV. É difícil saber se os seres humanos vão sobreviver a tais sonhos domésticos.

Os fungos não estão escolhendo nenhum lado. Mesmo os bravos líquens estão morrendo por causa da poluição do ar e da chuva ácida.

Quando absorvem a radioatividade de acidentes nucleares, os cogumelos a fornecem como alimento para as renas, que por sua vez alimentam os humanos que cuidam dos rebanhos. Podemos ignorá- los, ou podemos refletir sobre o que estão nos dizendo a respeito da condição humana.

Fora da casa, entre as florestas e campos, a abundância ainda não se esgotou.


Notas de rodapé:

1. Donna Haraway. Manifesto das espécies camaradas: cães, pessoas e significativos outros. Chicago: Prickly Paradigm, 2003. Haraway expande a expressão de amantes de animais “Animal de companhia” para falar sobre relacionamentos interespécies.
2. Em nome de Deus, o mais abundante e o mais misericordioso.
3. D. H. Jennings; G. Lysek. Biologia fúngica. 2. ed. Oxford: Bios Scientific Publishers, 1999, p. 75. Estudos recentes de mutualismos interespécies enfatiza o trabalho ativo e estratégico de todas as espécies envolvidas. Por exemplo, estudos de bactérias fixadoras de nitrogênio nos nódulos radiculares de soja mostram que a soja desencoraja estirpes bacterianas que oferecem menos nitrogênio-limitando seu oxigênio (E. Toby Kiers, Robert Rousseau, Stuart Oeste, R. Ford Denison, 2003. “Host Sanctions and the Legume-Rhizobium Mutualism”,Nature 425 (4 set.). p. 78-81).
4. Orquídeas eram uma moda botânica do século XIX; os micorrízicos foram apreciados em primeiro lugar por cientistas ocidentais, quando se verificou que muitas orquídeas dependem de parceiros fúngicos. G. C. Ainsworth. Introdução à História da Micologia. Cambridge: Cambridge University Press, 1976, p. 102-4. Indian Pipes: Clyde M. Christensen.
5. Nicholas Money, Mr. Bloomfield Orchard. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 60.
6. Ibid, p. 85.
7. Termo fungos refere-se a uma classificação biológica maior (um reino contrastado com plantas e animais, entre outros), dos quais cogumelos formam uma parte. Todos os cogumelos são fungos; nem todos os fungos são cogumelos.
8. Money, p. 25.
9. Jennings and Lysek, p. 67, 138.
10. Money, p. 172-79.
11. Uma importante exceção a essa generalização é a literatura médica e ecológica sobre doenças e parasitas humanos, em que a coexistência de espécies é de preocupação central. No entanto, essa exceção sublinha o problema. Enquanto outras espécies relevantes são encontradas ‒ pelo menos às vezes ‒ dentro do corpo humano, podemos estudá-las nas relações de convivência e dependência. Se as outras espécies estão do lado de fora do corpo humano, isto é, formam parte do “ambiente” para os humanos, de repente a análise muda para um discurso de impacto humano, gestão e controle.
12. Trabalho de Haraway em cães é, naturalmente, uma interrupção-chave.
13. Jennings and Lysek, p. 138.
14. Ainsworth, p. 90-93.
15. A clássica história de  Engels enfatiza o papel da pecuária no desenvolvimento de noções de propriedade privada; a primeira propriedade, argumenta ele, foi em rebanhos (Frederick Engles. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Nova york: International Publishers, 1972). Noções de propriedade usadas para regular a reprodução de rebanhos inspiraram o controle masculino da reprodução em famílias humanas, inaugurando “a derrota histórica do mundo do sexo feminino.” Pensadoras feministas como Eleanor Leacock e Evelyn Reed trouxeram esse clássico de volta a circulação em 1970, em vivas discussões da longa história da desigualdade social, particularmente na antropologia feminista. (Ver, por exemplo, Rayna Reiter; Ed. Toward.Uma antropologia da Mulher. New York: Monthly Review, 1975; Michelle Rosaldo; Louise Lamphere, eds.Mulher, Cultura e Sociedade. Stanford: Stanford University Press, 1974; Mona Etienne; Eleanor Leacock, eds.Mulheres e Colonização: perspectivas antropológicas. Nova Iorque: Praeger, 1980; Eleanor Leacock. “Introdução”, Engels, Origem, op.cit., p. 7-67.) Em meados da década de 1980, a antropologia feminista voltou-se para a especificidade da pesquisa etnográfica para aprender mais sobre a construção cultural do gênero. Enquanto isso levou a muitas percepções importantes, também deixou o campo numa longa duração narrativa para misóginos, incluindo sociobiólogos, médicos, e s-f escritores, a maioria dos quais não são bem lidos em história e antropologia. Talvez seja a hora para as feministas re-adentrarem a briga.
16. A transição de um foco em paisagens para um foco em culturas pode ser longa e incompleta: a gestão de paisagens multi-espécies para favorecer determinado jogo ou plantas silvestres tem sido muitas vezes um passo para a domesticação de culturas (Harold Brookfield. Explorando diversidade agrícola. New York: Columbia University, 2001, p. 64-69). Além disso, um amplo espectro multi-espécies de forrageamento focado pode ser visto como um produto histórico. No Oriente Próximo, uma mudança na direção reunindo vários pequenos grãos gramíneos está associada com os 10.000 anos antes da domesticação (Ehud Weiss; Wilma Wetterström; Dani Nadel; Ofer Bar-Yosef. O Broad-Spectrum Revisited: evidências de restos vegetais, Proceedings of the Academic Nacional de Ciências, EUA 101 (26, 29 de junho de 2004): 9551-9555). Também não é completamente justo imaginar a domesticação como limitando a atenção dos agricultores para apenas uma ou duas culturas; domesticações orientais próximas produziram legumes, as culturas de fibras e vegetais verdes bem como vários grãos de cereais. Algumas delas chamaram a atenção dos agricultores pela primeira vez como fazendas de ervas, e eles tendem a manter uma posição secundária na gestão de campo.  O trigo e a cevada estabeleceram precedentes e mantiveram um lugar de destaque nos corações dos agricultores.
17. Cientista Jack Harlan realizou um experimento de colher trigo selvagem do Oriente Próximo usando uma foice de lâmina de sílex modelado como as ferramentas antigas. Ele recolheu o equivalente a um quilograma por hora de grão limpo e altamente nutritivos (Harlan, 1975, p. 12,172).
18. Richard O’Connor (1995, p. 968-996) argumenta que a agricultura intensiva de arroz foi o elemento fundamental para permitir a formação do Estado no Sudeste Asiático. Negara, de Clifford Geertz (1980), ilustra a prática autônoma da agricultura intensiva de arroz na Bali pré-colonial. Em Bali o poder do Estado não significou controle nos arranjos de irrigação, mas sim da estrutura estética de poder e amor. Eu mesma mostrei como a expansão do Estado criou paisagens intensivas de grãos no Sudeste da Ásia (Greenough; Tsing, 2003, p. 124-169).
19. A natureza ambígua desta forma de amor é sugerida pelo fato de que antigos plantadores de grãos do Oriente Próximo terem sido associados com a aproximação de uma religião “matriarcal” sugerida por muitos historiadores. A fetichização de reprodução tornou mulheres férteis ícones do sagrado. Outros talentos potenciais das mulheres não devem ter sido, entretanto, igualmente apreciados, levando ao sofrimento as mulheres estéreis.
20. Ver nota 15. Seria incorreto imaginar que o confinamento das mulheres associado à agricultura cerealista iniciou um tempo de maior facilidade para o sexo feminino. Pelo contrário, para o trabalho de processamento da colheita, especialmente de grãos, seja para comida ou para armazenamento, foram necessários cada vez mais investimentos da mão de obra feminina.
21. Jan van der Ploeg (1993, p. 209-227) descreve o ponto de partida da moderna ciência agrícola como um “tipo ideal de planta”. Esse ideal estabelece um padrão de superioridade, organiza a reprodução, e exige um refazer de toda a operação agrícola para atender as suas necessidades. Van der Ploeg contrasta a ciência da padronização de batatas com o conhecimento local sobre batatas nos Andes que, em contraste, permite a heterogeneidade.
22. Redcliffe Salaman. The History and Social Influence of the Potato. Cambridge: Cambridge University Press, 1985 [1949], Chapters XI-XVI.
23. Salaman (1985) [1949]), no Capítulo X de sua obra, elabora um relato sobre as importações europeias e as variedades desenvolvidas a partir delas. Após a fome irlandesa, novas variedades foram multiplicadas pelos criadores europeus buscando maior resistência. No entanto, o objetivo sempre foi o de encontrar a melhor variedade, em vez de incentivar a diversidade no campo. Em contraste, Jonathan Sauer (1993, p. 145-155), discute os cultivares sul-americanos. Observando a ainda grande diversidade varietal na agricultura de subsistência, ele escreve: “Uma aldeia pode ter mais de 100 clones com nomes reconhecidos por toda a aldeia” (p. 148). Sobre o míldio da batata, ele comenta: “Assim como outros parasitas de sucesso, o fungo não é, aparentemente, fatal, onde ele e seus hospedeiros têm um tempo longo de coexistência. A praga foi reconhecida como um problema na América do Sul somente após o desenvolvimento da monocultura da batata comercial, por exemplo, no Chile e no Peru, em cerca de 1950”. (p. 152).
24. A praga afetou toda a Europa, mas apenas a Irlanda foi devastada, porque somente a Irlanda era completamente dependente das batatas (Salaman, 1985 [1949], Capítulo XVI; Jennings e Lysek, 1999, p. 136; Money, 2002, p. 184-186; Christensenet, 1965, p. 98-103).
25. Harold Brookfield; Leslie Potter; Yvonne Byron. Place of the Forest: Environmental and Socioeconomic Transformations in Borneo and the Eastern Malay Penninsula. New York, United Nations Press, 1995, p. 105.
26. Sistema de plantation patrocinado pelos europeus também transferiu a força do controle da expansão agrícola dos Estados para os interesses do Capital, estabelecendo assim o primeiro contexto para a hegemonia política do Capital. Este foi um processo longo e confuso e a maioria das histórias do mundo imperial do século XVI ao século XIX é repleta de debates entre monocultores, mercantilistas, traficantes de escravos, administradores coloniais e proponentes de “livre comércio”. Por meio de tais debates é que  tal mudança foi tortuosamente negociada. Cada vez mais o lucro, ao invés do Estado, tornou-se o objetivo do desenvolvimento agrícola.
27. Sidney Mintz (1985) traça a história do açúcar, mostrando como ele se tornou um objeto de consumo disseminado na Inglaterra apenas no século XVIII, bem depois que o “comércio triangular”, estimulado pelo rum, foi estabelecido. Ele também mostra como os canaviais caribenhos formaram um modelo de trabalho protoindustrial que moldou a nascente industrialização na Europa, com as suas formas sociais, bem como a sua riqueza.
28. Sauer (1993, p. 236-250) traça as viagens dos humanos e não humanos pelo mundo na história do cultivo da cana. Formaram-se novas geografias de tipos de cana e tipos humanos. Pragas fúngicas foram participantes importantes destas jornadas: em 1882, por exemplo, a “podridão vermelha” foi introduzida nas plantações das Índias Ocidentais de forma episódica, com o recebimento de uma amostra de cana enviada das Ilhas Maurício. (Galloway, 1989, p. 141).
29. Verena [Stolcke] Martinez-Alier (1989) detalha como tal sistema foi desenvolvido em Cuba em resposta aoboom do açúcar do século XVIII, que multiplicou as fortunas dos monocultores e levou um grande número de escravos para a ilha. A raça, argumenta ela, veio para ficar na divisão de trabalho das plantations da Cuba do século XIX.
30. Sidney Mintz (1985) traça a história do açúcar, mostrando como ele se tornou um objeto de consumo disseminado na Inglaterra apenas no século XVIII, bem depois que o “comércio triangular”, estimulado pelo rum, foi estabelecido. Ele também mostra como os canaviais caribenhos formaram um modelo de trabalho protoindustrial que moldou a nascente industrialização na Europa, com as suas formas sociais, bem como a sua riqueza.
31. Como “os trópicos” passaram a ser definidos em termos de problemas médicos e de higiene racial, as mulheres brancas foram requisitadas a assumirem um papel maior na manutenção de famílias saudáveis, além da manutenção da raça branca. Arnold (1996) discute a formação colonial nos trópicos. Ann Stoler (2002) mostra como a transformação de gênero foi chave para as ideologias emergentes sobre raça e sobre medicina.
32. Como explica Bruno Latour (1986), o principal problema para demostrar a importância da teoria pasteuriana dos germes foi a necessidade da criação das condições de higiene como as de laboratório nas quais as pessoas e seus seres domesticados poderiam ser mantidos longe do ambiente geralmente saturado de microorganismos patogênicos. Latour sugere que os exércitos coloniais nos trópicos, onde as doenças corriam desenfreadas, limitando a conquistas coloniais, foram os primeiros laboratórios vivos para a medicina pasteuriana. Warwick Anderson (2003) discute a aplicação das teorias higienistas no governo colonial nos trópicos. Ann Stoler (2002) mostra a centralidade da importação de mulheres brancas para os trópicos como parte da nova eugenia do período colonial tardio.
33. Barbara Ehrenreich; Deirdre English. Complaints and Disorders: The Sexual Politics of Sickness (Old Westbury, NY: The Feminist Press, 1973).
34. Nos canaviais baseados em trabalho camponês das Índias Orientais Holandesas, por exemplo, as famílias precisavam de trabalho tanto para produção de arroz para subsistência quanto para o trabalho contratado da cana. O tamanho das famílias rapidamente disparou em resposta a tais demandas de trabalho coloniais. Havia muita gente, mas por conta das famílias serem unidades de trabalho compulsório, cada família precisava de sua própria mão de obra. O trabalho infantil geralmente era a base de toda família. Benjamin White (1982, p. 18-31) resume sua pesquisa e a dos outros sobre essa questão em Agricultural Involution’s and its Critics: Twenty Years After, no sentido de que as explosões populacionais em todo o Sul colonial devem ser consideradas em relação às demandas extorsivas das plantations.
35. John Vandermeer; Ivette Perfecto. Breakfast of Biodiversity: The Truth about Rain Forest Destruction (Oakland: Institute for Food and Development Policy, 1995).
36. John Dighton. Fungi in Ecosystem Processes. New York: Marcel Dekker, 2003, p. 323-39.
37. Dighton, Fungi. p. 350-51. Some fungi have developed ‘radiotropism’: they direct their growth to sources of radioactivity!

Ensaio escrito pela antropóloga Anna Tsing, traduzido por Luiza Só, com revisão de Daniel Galera e fotografias de Ieve Holtsausen. Edição por Vânia Möller e Caroline Barrueco.

PESQUISAS PSICODÉLICAS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO

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Este texto foi traduzido de Undergrowth #8: “The Journeybook: Travels on the frontiers of consciousness” sob permissão da licença creative commons.

Importante contribuição e tradução feita pelo pesquisador Eduardo Schenberg e originalmente postado em 2009 no site parceiro Plantando Consciência .  

Nós do Mundo Cogumelo acreditamos que este conteúdo merece uma nova leitura.


O uso de substâncias psicodélicas pode ser rastreado por milênios, desde o surgimento da história humana. Desde tempos imemoriais, materiais de plantas contendo compostos poderosos capazes de expandir a consciência eram usados para induzir estados de consciência não-ordinários, ou mais especificamente, um subgrupo importante que eu chamo de “holotrópicos”. Estas plantas desempenham papel importante na prática xamânica, em cerimônias de cura aborígene, ritos de passagem, mistérios da morte e renascimento e várias outras tradições espirituais. As culturas nativas anciãs que usavam materiais psicodélicos os tinham em grande estima e os consideravam sacramentos, “carne dos deuses” (Schultes, Hofmann and Raetsch 2001).

Grupos humanos que tinham a disposição plantas psicodélicas se aproveitaram de seus efeitos enteogênicos e as usaram como principais veículos de seus rituais e de suas vidas espirituais. As preparações feitas com estas plantas mediavam para estas pessoas contato experiencial com as dimensões arquetípicas da realidade: divindades, reinos mitológicos, animais poderosos, forças numinosas e aspectos da natureza.

Outra área importante na qual estados induzidos por psicodélicos desempenharam papel crucial foi no diagnóstico e na cura de diversas desordens. A literatura antropológica também contém muitos relatos indicando que as culturas nativas usavam psicodélicos para melhorar a intuição e a percepção extra sensorial para uma variedade de objetivos divinatórios e práticos, como encontrar pessoas e objetos perdidos, obter informação de pessoas em locais remotos e seguir os movimentos dessas pessoas durante a caça. Experiências psicodélicas também serviram como fonte importante de inspiração artística, fornecendo idéias para rituais, pinturas, esculturas e músicas.

Na história da medicina Chinesa, relatos sobre substâncias psicodélicas podem ser encontrados por aproximadamente 3 mil anos. A lendária poção divina chamada haoma no texto Persa Zend Avesta e como soma nos Vedas na Índia foi usada por tribos Indo-Iranianas a milênios. Os estados místicos de consciência induzidos pelo soma foram provavelmente a principal fonte das religiões Védica e Hindu. Preparações de diferentes variedades de erva foram fumadas e ingeridas sob vários nomes: hashish, charas, bhang, ganja, kif e marijuana – na Ásia, na África e no Caribe para recreação, prazer e durante cerimônias religiosas. Representavam um importante sacramento para grupos diversos como os Indianos Brahmans, algumas ordens de Sufis, anciãos Scythians e os Jamaicanos Rastafaris.

O uso cerimonial de várias substâncias psicodélicas também têm história longa na América Central. Plantas alteradoras de consciência altamente eficazes eram bem conhecidas em várias culturas indígenas Pré-Colombianas – entre os Astecas, Maias e Olmecas. As mais famosas destas são o cacto mexicano Peyote (Anhalonium lewinii), o cogumelo sagrado teonanacatl (Psilocybe mexicana) e a ololiuqui, ou sementes de morning glory (Rivea corimbosa). Estes materiais são usados como sacramentos até hoje por diversas tribos indígenas mexicanas (Huichols, Mazatecas, Cora entre outros) e pela Native American Church.

A famosa yajé ou ayahuasca da América do Sul é uma decocção de um cipó da selva (Banisteriopsis caapi) com outros aditivos de plantas. A área amazônica também é conhecida por uma variedade de rapés psicodélicos (Virola callophylla, Piptadenia peregrina). Preparações do arbusto iboga (Tabernanthe iboga) são usados por tribos Africanas em baixas dosagens como estimulante durante caça a leões e longas canoagens e em altas doses como sacramento ritualístico. Esta lista representa apenas uma pequena fração dos compostos psicodélicos que foram usados por muitos séculos em diversos países do mundo. O impacto das experiências vivenciadas nestes estados na vida cultural e espiritual de sociedades pré-industriais foi enorme.

A longa história do uso ritual de plantas psicodélicas contrasta marcantemente com a relativamente curta história de esforços científicos para identificar seus alcalóides psicoativos, purificá-los e estudar seus efeitos. A primeira substância psicodélica sintetizada quimicamente pura e sistematicamente explorada em condições de laboratório foi a mescalina, o alcalóide ativo do cacto peyote. Experimentos clínicos conduzidos com esta substância nas primeiras três décadas do século XX focavam na fenomenologia da experiência com a mescalina e seus interessantes efeitos sobre a percepção artística e a expressão criativa (Vondráek 1935, Nevole 1947, 1949). Surpreendentemente, eles não revelaram os potenciais terapêuticos, heurísticos e enteogênicos desta substância. Kurt Beringer, autor do influente livro Der Meskalinrausch (Inebriação com Mescalina), publicado em 1927, concluiu que a mescalina induzia um estado de psicose tóxica (Beringer 1927).

Após estes experimentos pioneiros com a mescalina, muito pouca pesquisa foi feita nesta área fascinante até a intoxicação acidental de Albert Hofmann e sua descoberta serendipituosa das propriedades psicodélicas do LSD-25, ou dietilamida do ácido lisérgico, que marcou época. Após a publicação do primeiro artigo clínico sobre o LSD por Walter Stoll no final dos anos 40 (Stoll 1947), este novo composto semissintético derivado do ergot, ativo em quantidades incrivelmente minúsculas de microgramas ou gammas (milionésimo de uma grama) tornou-se uma sensação praticamente da noite pro dia no mundo científico.

A descoberta de poderosos efeitos psicodélicos de doses minúsculas de LSD começou o que se chama “era dourada da psicofarmacologia”. Durante um período relativamente curto, o esforço conjunto de bioquímicos, farmacologistas, neurofisiologistas, psiquiatras e psicólogos foi bem sucedido em estabelecer os fundamentos de uma nova disciplina científica que pode ser chamada “farmacologia da consciência”. As substâncias ativas de diversas outras plantas psicodélicas foram identificadas quimicamente e preparadas em forma pura. Após a descoberta dos efeitos psicodélicos do LSD-25, Albert Hofmann identificou os princípios ativos do cogumelo mágico mexicano (Psilocybe mexicana), psilocibina e psilocina, e também do ololiuqui, ou as sementes de morning glory (Ipomea violacea), que é a monoetilamida do ácido lisérgico (LAE-32), muito próximo ao LSD-25.

O armamentário de substâncias psicodélicas foi então enriquecido pelos derivativos psicodélicos da triptamina: DMT (dimetiltriptamina), DET (dietiltriptamina) e DPT (dipropiltriptamina) – sintetizados e estudados pelo grupo de químicos de Budapeste chefiados por Stephen Szara; o princípio ativo do arbusto africano Tabernanthe iboga, a ibogaína; e o alcalóide do principal ingrediente da ayahuasca, o Banisteriopsis caapi, conhecido pelos nomes de harmalina, yageína e telepatina, também isolados e identificados no século XX.

Nos anos 50, havia disponível aos pesquisadores uma grande variedade de alcalóides psicodélicos em forma pura. Era então possível estudar suas propriedades no laboratório e explorar a fenomenologia de seus efeitos clínicos e potenciais terapêuticos. A revolução iniciada pela descoberta serendipituosa do LSD por Albert Hofmann estava a caminho.

Durante esta época excitante o LSD permaneceu o centro das atenções dos pesquisadores. Nunca antes uma única molécula ofereceu tantas possibilidades em tamanha variedade de áreas de interesse. Para psicofarmacologistas e neurofisiologistas a descoberta do LSD significava o começo de uma era dourada de pesquisa que poderia elucidar mistérios envolvendo neuroreceptores, transmissores sinápticos, antagonismos químicos e as intricadas reações bioquímicas subjacentes aos processos cerebrais.

Psiquiatras experimentais viram no LSD uma oportunidade única para criar um modelo de laboratório para as psicoses naturais, endógenas, que ocorrem naturalmente. Eles esperavam que a “psicose experimental” induzida por minúsculas doses desta substância poderia fornecer insights sem precedentes sobre a natureza dessas desordens misteriosas e abrir caminhos para tratamento. Era repentinamente concebível que o cérebro ou outras partes do corpo pudessem em certas circunstâncias produzir pequenas quantidades de alguma substância com efeitos similares ao LSD. Isto significava que desordens como esquizofrenia não seriam desordens mentais, mas aberrações metabólicas passíveis de se modificar com intervenção química específica. A promessa dessa pesquisa era nada menos que atingir o sonho de clínicos biologicamente orientados, o Santo Graal da psiquiatria – uma cura de tubo de ensaio para a esquizofrenia.

LSD também era altamente recomendado como uma possibilidade de aprendizagem que possibilitaria psiquiatras clínicos, psicólogos, estudantes de medicina e enfermeiras a passar algumas horas num mundo semelhante ao de seus pacientes e como resultado se tornarem mais aptos a entendê-los melhor, a comunicar-se melhor com eles e esperançosamente tratar-los mais eficientemente. Milhares de profissionais de saúde mental se aproveitaram desta oportunidade única. Estes experimentos trouxeram resultados surpreendentes e fascinantes. Não apenas forneceram insights profundos sobre o mundo dos pacientes psiquiátricos, mas também revolucionaram o entendimento da natureza e das dimensões da psique humana e da consciência.

Muitos profissionais envolvidos nestes experimentos descobriram que o modelo atual, limitando a psique a biografia pós-natal e ao inconsciente individual de Freud era superficial e inadequado. Meu próprio mapa pessoal da psique que emergiu destas pesquisas adicionou dois grandes campos transbiográficos – o campo perinatal, relacionado a memória do nascimento biológico, e o nível transpessoal, colhendo os domínios arquetípicos e históricos do inconsciente coletivo como visualizado por C. C. Jung (Grof 1975, Jung 1959). Os primeiros experimentos com LSD também mostraram que as raízes das desordens emocionais e psicossomáticas não eram limitadas a memórias traumáticas da infância, como assumido tradicionalmente por psiquiatras, mas que estas raízes iam muito mais fundo na psique, até as regiões perinatal e transpessoal (Grof 2000). Esta revelação surpreendente foi acompanhada pela descoberta de novos e potentes mecanismos terapêuticos operando nestes níveis da psique.

Usando LSD como um catalizador, se tornou possível estender o alcance da aplicabilidade da psicoterapia para categorias de pacientes outrora difíceis de alcançar – distúrbios sexuais, alcoólatras, viciados em narcóticos e reincidentes criminais (Grof 2001). Particularmente valiosos e promissores foram os primeiros esforços para usar LSD em psicoterapia de pacientes com câncer terminal. Pesquisas com esta parcela da população revelaram que o LSD era capaz de aliviar a dor severa, por vezes até em pacientes irresponsivos a tratamentos com narcóticos. Em grande porcentagem desses pacientes também era possível diminuir ou mesmo eliminar sintomas emocionais e psicossomáticos complicados como depressão, tensão generalizada e insônia, aliviar o medo da morte, melhorar a qualidade de vida durante os dias remanescentes e transformar positivamente a experiência da morte (Cohen 1965, Kast and Collins 1966, Grof 2006).

Para historiadores e críticos de arte, os experimentos com LSD forneceram novos e extraordinários insights sobre a psicologia e psicopatologia da arte, particularmente pinturas e esculturas de várias culturas nativas chamadas “primitivas”, e também de pacientes psiquiátricos, assim como de vários movimentos modernos como abstracionismo, impressionismo, cubismo, surrealismo e realismo fantástico (Roubíček 1961). Para pintores profissionais que participaram de experimentos com LSD, a sessão psicodélica por vezes marcou uma mudança radical em suas expressões artísticas. A imaginação tornou-se mais rica, as cores mais vívidas e seu estilo consideravelmente mais livre. Eles também se tornaram mais capazes de aprofundar-se no inconsciente e abordar fontes arquetípicas de inspiração. Por vezes, pessoas que nunca haviam pintado se tornavam capazes de produzir peças de arte extraordinárias.

A experimentação com LSD também trouxe a tona observações fascinantes, de grande interesse também a líderes espirituais e acadêmicos de religiões comparativas. As experiências místicas frequentemente observadas em sessões de LSD ofereceram um entendimento radicalmente novo de uma variedade de fenômenos do domínio espiritual, incluindo xamanismo, ritos de passagem, mistérios anciãos de morte e renascimento, as religiões e filosofias orientais e as tradições místicas do mundo (Forte 1997, Roberts 2001, Grof 1998).

O fato de que o LSD e outras substâncias psicodélicas eram capazes de desencadear uma grande variedade de experiências espirituais se tornou tema de calorosos debates científicos. Eles se concentravam no problema fascinante sobre a natureza e o valor deste misticismo “instantâneo” ou “químico” (Grof 1998). Como demonstrado por Walter Pahnke em seu famoso experimento da sexta-feira santa, experiências místicas induzidas por psicodélicos são indistinguíveis das demais descritas na literatura (Pahnke 1963). Este achado que foi recentemente confirmado por um estudo meticuloso de pesquisadores da Johns Hopkins University (Griffith et al. 2006) tem implicações teóricas e legais importantes.

Pesquisa psicodélica envolvendo LSD, psilocibina, mescalina e os derivados da triptamina pareciam seguir bem seu rumo de alcançar as promessas e expectativas quando foram subitamente interrompidas pela experimentação maciça e indiscriminada entre a jovem geração nos EUA e outros países ocidentais. No famoso caso de Harvard, os professores de psicologia Timothy Leary e Richard Alpert perderam suas posições acadêmicas e tiveram que abandonar a universidade após sua excessiva proselitização das promessas do LSD. As medidas repressivas que se seguiram em meios administrativos, legais e políticos tiveram muito pouco efeito no uso de rua do LSD e de outros psicodélicos, mas drasticamente terminaram com as pesquisas clínicas legítimas. Entretanto, enquanto os problemas associados a este aumento no uso foram desproporcionalmente aumentados por jornalistas sensacionalistas, os riscos possíveis não eram a única razão para a rejeição do LSD e de outros psicodélicos na cultura de massa Euro-Americana. Um fator importante que contribuiu para isso foi a atitude de sociedades tecnológicas para com os estados holotrópicos de consciência.

Como mencionado antes, todas as sociedades anciãs e pré-industriais mantinham estes estados em alta estima, fossem eles induzidos por plantas psicodélicas ou por muitas das poderosas “tecnologias do sagrado” que não usam drogas – jejum, privação de sono, isolamento social e sensorial, dança, música, percussão ou dor física. Membros desses grupos sociais tinham a oportunidade de experienciar repetidamente os estados holotrópicos de consciência durante suas vidas em uma variedade de contextos sagrados. Comparativamente, a civilização industrial tornou tais estados holotrópicos patologias, rejeitou ou mesmo proibiu os contextos e as ferramentas que os facilitam e desenvolveu métodos de suprimi-los quando ocorrem espontaneamente. Por causa da resultante ingenuidade e ignorância sobre estados holotrópicos, as culturas ocidentais estavam despreparadas para aceitar e incorporar as extraordinárias e poderosas capacidades de alterar a mente fornecidas pelo LSD e outros psicodélicos.

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antiga arte maia jaguar xamã: artista desconhecido

A emergência súbita do elemento Dionisíaco das profundezas do inconsciente e das alturas do superconscien
te era muito ameaçadora para a sociedade Euro-Americana. Ainda mais, a natureza irracional e transracional da experiência psicodélica desafiava seriamente as própria bases da visão de mundo materialista da ciência ocidental. A existência e a natureza destas experiências não podiam ser explicadas no contexto das teorias dominantes e seriamente solapavam os preceitos metafísicos da prioridade da matéria sobre a consciência, sobre a qual a cultura ocidental está construída. Também ameaçava o principal mito do mundo industrial ao mostrar que a verdadeira realização não vêm de atingir objetivos materiais, mas sim de uma profunda experiência mística.

Não era apenas a cultura em geral que estava despreparada para a experiência psicodélica, isto também era verdade para as profissões de saúde. Para a maioria dos psiquiatras e psicólogos, psicoterapia significava discussões disciplinadas cara a cara ou associações livres no divã. As emoções intensas e as dramáticas manifestações físicas das sessões psicodélicas pareciam para eles próximas ao que classificavam como psicopatologia. Era difícil para eles imaginar tais estados como sendo cura e transformação. Como resultado, eles não acreditaram nos relatos sobre os extraordinários poderes da psicoterapia psicodélica vindo dos colegas que tiveram coragem suficiente para aproveitar a chance da psicoterapia psicodélica, ou mesmo de seus clientes.

Para complicar ainda mais a situação, muitos dos fenômenos que ocorrem nas sessões psicodélicas não podiam ser compreendidos dentro do contexto das teorias que dominavam o pensamento acadêmico. A possibilidade de se reviver o nascimento ou experiências da vida embrionária, obter informações precisas sobre a história mundial e mitologia do inconsciente coletivo, vivenciar realidades arquetípicas e memórias kármicas ou perceber eventos remotos em estados fora do corpo eram simplesmente muito fantásticos para serem acreditados por um profissional mediano. Ainda assim, aqueles que tiveram a chance de trabalhar com o LSD estavam dispostos a radicalmente mudar o entendimento teórico da psique e prático da terapia e foram capazes de apreciar o enorme potencial dos psicodélicos, tanto como ferramentas terapêuticas como substâncias de extraordinário valor heurístico.

Em um de meus livros anteriores, eu sugeri que o potencial do LSD e de outros psicodélicos para a psiquiatria e a psicologia era comparável ao valor do microscópio para a biologia e a medicina ou do telescópio para a astronomia. Minha experiência posterior com psicodélicos apenas confirmou esta impressão inicial. Estas substâncias funcionam com amplificadores inespecíficos que aumentam a catexia (carga energética) associada ao conteúdo profundo e inconsciente da psique, tornando-os disponíveis para processamento consciente. Esta propriedade única dos psicodélicos torna possível estudar correntes psicológicas subjacentes que governam nossas experiências e comportamentos em um nível que não pode ser igualado por nenhum outro método ou ferramenta disponível na moderna psiquiatria e psicologia. Também oferece oportunidade única para tratamento de desordens emocionais e psicossomáticas, para transformações pessoais positivas e evolução da consciência.

Naturalmente, ferramentas com tamanho poder carregam com elas riscos maiores que as ferramentas mais conservadoras e muito menos eficazes correntemente aceitas na psiquiatria, como a psicoterapia verbal ou medicações tranquilizantes. Pesquisa clínica mostrou que estes riscos podem ser minimizados pelo uso responsável e cuidadoso controle do set e do setting (o sujeito e o ambiente, N.T.). A segurança da terapia psicodélica quando conduzida em ambiente clínico foi demonstrada pelo estudo de Sidney Cohen baseado em informação de mais de 25.000 sessões psicodélicas. De acordo com Cohen, a terapia psicodélica revelou-se mais segura que muitos outros procedimentos usados rotineiramente uma hora ou outra na psiquiatria, como choque eletroconvulsivo, terapia de coma por insulina e psicocirurgia (Cohen 1960). Entretanto, legisladores respondendo ao uso maciço e não supervisionado de psicodélicos não buscaram informações em publicações científicas, mas nas histórias de jornalistas sensacionalistas. As sanções legais e administrativas contra os psicodélicos não detiveram o uso indiscriminado, mas terminaram com as pesquisas científicas legítimas sobre estas substâncias.

Para os que tiveram a oportunidade de experimentar o potencial extraordinário dos psicodélicos, esta foi uma perda trágica para a psiquiatria, psicologia e psicoterapia. Sentimos que estes acontecimentos desafortunados desperdiçavam o que era provavelmente a mais importante oportunidade na história destas disciplinas. Se tivesse sido possível evitar a desnecessária histeria das massas e continuar as pesquisas responsáveis sobre os psicodélicos, eles poderiam sem dúvida ter radicalmente transformado a prática e a teoria da psiquiatria. Acredito que as observações desta pesquisa têm potencial para iniciar uma revolução no entendimento da psique humana e da consciência comparável ao cataclisma conceitual que os físicos modernos vivenciaram nas primeiras três décadas em relação as suas teorias sobre a matéria. Este novo conhecimento poderia se tornar parte integral de um compreensível novo paradigma científico para o século XXI.

Atualmente, passadas mais de três décadas desde que as pesquisas oficiais com psicodélicos foram efetivamente encerradas, posso tentar avaliar a história passada dessas substâncias e palpitar sobre seu futuro. Após conduzir pessoalmente mais de 4.000 sessões psicodélicas nos últimos 50 anos, eu desenvolvi grande admiração e respeito por estes compostos e seus potenciais positivos e negativos.
São ferramentas, e como qualquer ferramenta, podem ser usados de maneira habilidosa, inepta ou destrutivamente. O resultado será criticamente dependente do set e do setting. A questão de se o LSD é uma medicina fenomenal ou uma droga demoníaca faz pouco sentido, assim como um questão similar sobre o potencial positivo ou negativo de uma faca. Naturalmente, iremos receber relatos muito distintos de um cirurgião que baseia seu julgamento em operações bem sucedidas e do chefe de polícia que investiga assassinatos cometidos com facas em becos de NY. Uma dona de casa veria a faca primeiramente com um útil utensílio de cozinha e um artista a usaria em esculpir madeira. Faria pouco sentido julgar a utilidade e os perigos da faca observando crianças brincando com ela sem a necessária habilidade e maturidade. Similarmente, a imagem do LSD irá variar conforme o foco seja em resultados do uso espiritual e clínico responsável, uso maciço ingênuo pela geração jovem ou uso deliberadamente destrutivo pelos círculos militares ou polícia secreta.

Até ser entendido de maneira clara que os resultados da administração de psicodélicos são criticamente influenciados pelos fatores de set e setting, não haverá esperanças para decisões racionais sobre a política de drogas psicodélicas. Eu firmemente acredito que os psicodélicos podem ser usados de maneira que os benefícios superam em muito os riscos. Isto está amplamente provado por milênios de uso seguro de psicodélicos em práticas espirituais e rituais por gerações de xamãs, curandeiros individuais e culturas aborígenes inteiras. Entretanto, a civilização ocidental industrializada abusou de quase todas suas descobertas e há pouca esperança de que os psicodélicos serão uma excessão, a não ser que possamos evoluir como grupo para um nível superior de consciência e maturidade emocional.

Se os psicodélicos vão ou não vão retornar para a psiquiatria e se tornar parte do armamentário terapêutico é uma questão complexa e sua solução provavelmente não será determinada apenas pelos resultados da pesquisa científica, mas também por uma série de questões e fatores políticos, legais, econômicos e da psicologia de massa. Entretanto, eu acredito que a sociedade ocidental está no presente muito melhor equipada para aceitar e assimilar os psicodélicos do que nos anos 50. Quando psiquiatras e psicólogos começaram a experimentar com LSD, a psicoterapia era limitada a trocas verbais entre terapeuta e clientes. Emoções intensas e comportamento ativo eram referidos como problemáticos e vistos como violações das regras básicas da terapia.

Sessões psicodélicas estavam do outro lado do espectro, evocando emoções dramáticas, excitação psicomotora e mudanças perceptuais vívidas. Pareciam mais com estados que os psiquiatras consideravam patológicos e tentavam suprimir com todos os métodos disponíveis do que algo a que se atribuiria valor terapêutico. Isto está refletido nos termos “alucinógenos”, “delirógenos”, psicotomiméticos” e “psicose experimental”, inicialmente usados para psicodélicos e estados induzidos por eles. De qualquer maneira, sessões psicodélicas lembravam mais cenas de filmes antropológicos sobre rituais de cura de culturas “primitivas” e cerimônias aborígenes do que o esperado para um consultório psiquiátrico.

Muitas das experiências psicodélicas e observações de sessões psicodélicas pareciam desafiar seriamente a imagem da psique humana e do universo desenvolvidas pela ciência Newtoniana-Cartesiana, consideradas descrições precisas e definitivas da “realidade objetiva”. Sujeitos ao experimentar psicodélicos relatavam empatia com outras pessoas, animais e vários aspectos da natureza, durante o qual ganhavam acesso a novas informações sobre áreas que nunca tiveram contato intelectual. O mesmo era verídico para excursões a vidas de ancestrais humanos e animais, assim como memórias raciais, coletivas e kármicas.

Por vezes, esta nova informação era retirada de experiências envolvendo reviver o nascimento biológico e memórias da vida pré-natal, encontros com seres arquetípicos e visitas a reinos mitológicos de várias culturas do mundo. Em experiências fora do corpo, sujeitos experimentais eram capazes de testemunhar e descrever com precisão eventos ocorrendo em locais remotos que estavam fora do alcance de seus sentidos. Nenhum destes acontecimentos era considerado possível no contexto da ciência materialista tradicional, e ainda assim eram observados com frequência em sessões psicodélicas. Naturalmente isto causava profundo distúrbio conceitual e confusão nas cabeças de experimentadores treinados da maneira clássica. Sob estas circunstâncias, muitos profissionais escolheram afastar-se desta área para preservar sua respeitada visão científica do mundo, sua reputação profissional e proteger seu senso comum e sanidade.

As últimas três décadas trouxeram muitas mudanças revolucionárias que influenciaram profundamente o clima da psicoterapia mundial. A psicologia humanista e transpessoal desenvolveu técnicas experimentais poderosas que enfatizam a regressão profunda, expressão direta de emoções intensas e um trabalho levando a liberação de energias físicas. Entre as novas abordagens para auto-exploração estão a prática Gestalt, bioenergética e outras técnicas e métodos neo-Reicheinianos, terapia primal, renascimento e “holotropic breathwork”. As experiências internas e as manifestações externas, bem como as estratégias terapêuticas nestas terapias guardam grande semelhança com o observado nas sessões psicodélicas. Estas estratégias sem droga envolvem não apenas um espectro similar de experiências, mas também desafios conceituais comparáveis. Como resultado, para terapeutas destas linhas, a introdução de psicodélicos representaria o próximo passo lógico, ao invés de mudanças dramáticas em suas práticas.

Ademais, o pensamento científico Newtoniano-Cartesiano, que nos anos 60 gozava grande autoridade e popularidade tem sido progressivamente minado por desenvolvimentos impressionantes em uma variedade de disciplinas. Isto tem acontecido a tal ponto que um número crescente de cientistas sente como urgente a necessidade de uma visão de mundo totalmente diferente, um novo paradigma científico. Exemplos salientes deste desenvolvimento são as implicações filosóficas do relativismo quântico na física (Capra 1975, Goswami 1995), a teoria de David Bohm do holomovimento (Bohm 1980), a teoria holográfica do cérebro, de Karl Pribram (Pribam 1971), a teoria de estruturas dissipativas de Ilya Prigogine (Prigogine 1980), a teoria de campos morfogenéticos de Rupert Sheldrake (Sheldrake 1981), a síntese brilhante da teoria da informação e de sistemas, cibernética, antropologia e psicologia de Gregory Bateson (Bateson 1979) e particularmente o conceito de Ervin Laszlo sobre o campo PSI (campo akáshico), sua hipótese da conectividade e sua “teoria integral de tudo” (Laszlo 1993, 2004). É muito encorajador ver que todos estes novos modelos, que estão em conflito irreconciliável com a ciência tradicional, parecem ser compatíveis com as descobertas da pesquisa psicodélica e da psicologia transpessoal. Esta lista jamais estaria completa sem mencionar o esforço memorável de Ken Wilber para criar uma síntese compreensível de uma variedade de disciplinas científicas em sua filosofia perene (Wilber 2000).

Ainda mais encorajador que as mudanças no clima geral da ciência é o fato de que, em alguns poucos casos, pesquisadores da nova geração nos EUA, Suíça e outros países conseguiram nos últimos anos permissão oficial para começar programas de terapia envolvendo LSD, psilocibina, dimetiltriptamina (DMT), metileno-meta-anfetamina (MDMA) e ketamina. Espero que seja o começo do renascimento do interesse na pesquisa psicodélica que irá eventualmente trazer estas ferramentas extraordinárias de volta as mãos de terapeutas responsáveis.

Stanislav Grof, M.D., Ph.D. é psiquiatra com mais de 40 anos de experiência de pesquisa em estados de consciência não ordinários (induzidos por substâncias psicodélicas ou não) e um dos fundadores e principais teóricos da psicologia transpessoal e da Respiração Holotrópica.

 www.stanislavgrof.com

Este artigo é publicado com o espírito de exploração intelectual e expansão de consciência. As idéias contidas neste texto são apenas isso: idéias. Plantas alucinógenas e substâncias psicodélicas podem ser perigosas e ilegais em muitas partes do mundo e usuários as tomam sob sua própria responsabilidade. Plantando Consciência e os colaboradores individuais não endossam o uso de psicodélicos por pessoas não qualificadas e não podem ser julgados responsáveis por aventuras perigosas resultantes do mal uso desta informação.
Viajante, conheça a ti mesmo.

Nas palavras de Timothy Leary:

“Eu sou 100% a favor do uso inteligente de drogas e 1.000% contra o uso impensado delas, seja cafeína ou LSD. Drogas não são centrais em minha vida”

Bateson, G. 1979. Mind and Nature: A Necessary Unity. New York: E. P. Dutton.

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O Renascimento do LSD e Outros Psicodélicos

Assista o vídeo abaixo, legendado! Aprenda um pouco mais sobre a jornada dos psicodélicos, desde a seu surgimento, proibição e controvérsias no século passado, que perduram até os últimos anos, e as novas fronteiras da pesquisa científica sobre os potenciais benéficos dessas substâncias.

 

Em centros de pesquisa respeitados nos Estados Unidos e em outros países, os cientistas passaram muito tempo de suas vidas profissionais em programas de reabilitação de drogas. Mas não por que eles tenham um problema com o vício. O que eles estão tentando fazer é reabilitar as próprias drogas.

O foco deles está em substâncias alteradoras da mente que entraram na obscuridade devido à proibição, cerca de meio século atrás, e o LSD está entre elas. Juntamente com outros psicodélicos, o LSD foi amaldiçoado como sendo uma substância de alto potencial de abuso e que não oferece nenhum benefício medicinal e psiquiátrico. Mas nos últimos anos, pesquisadores têm procurado resgatar os alucinógenos do exílio examinando sua eficácia no tratamento de certas desordens da mente, e talvez até mesmo no seu papel importante para compreender a natureza da consciência e da espiritualidade.

O trabalho desses cientistas agora foi compilado no vídeo acima, que examina as principais características históricas desse psicodélico tão famoso.

Substâncias psicoativas, geralmente extraídas de cogumelos mágicos, têm sido parte da cultura humana das Américas Central e Sul, e até mesmo do Saara, por milhares de anos. Mas não é preciso olhar tão longe no passado: 1938 já é suficiente. Esse foi o ano em que Albert Hofmann, um químico suíço pesquisando por uma combinação química para combater problemas de circulação, acabou sintetizando a dietilamida do ácido lisérgico: o LSD, ou o ácido, como é popularmente conhecido.

Cinco anos depois, o Dr. Hofmann, que morreu no ano de 2008 na idade de 102 anos, ingeriu acidentalmente uma pequena dose de sua criação e descobriu seus potenciais expansores da mente na primeira viagem de LSD conhecida. Muitas outras jornadas se seguiriam, para ele e diversos outros indivíduos.

Nos anos 50 e 60, os pesquisadores exploraram o LSD como uma ferramenta para o tratamento de doenças mentais e diversos vícios.  Alguns segmentos do governo americano tinham suas próprias ideias. A CIA testou as possibilidades do ácido como uma poção da verdade, ou talvez como um veículo para o controle da mente. O exército quis saber se o LSD poderia ser utilizado para desorientar as tropas inimigas.

Então surge a aurora que todos se lembram quando pensam nos anos 60: a era de aquário, com hippies amorosos, roupas tie-die, óculos gigantescos e sons psicodélicos. O LSD estava disponível amplamente. Muitas pessoas jovens se convenceram que uma sociedade inteira baseada em psicodélicos poderia atingir uma consciência elevada – “a revelação mística do cristal e a libertação real da mente” – relembrando a banda “Hair”.

Muitas pessoas foram influenciadas por Timothy Leary, um psicólogo clínico na Universidade de Harvard, que se tornou o guru das viagens de ácido, pregando de maneira apaixonada sobre os psicodélicos. “Turn on, tune in, drop out”, dizia Leary, que morreu em 1996. A recomendação foi infinitamente citada. Seus discípulos fervorosos o seguiram ao pé da letra, e muitas vezes, o seguiram em seus excessos.

Entre aqueles cujo foco era o estudo da mente humana, uma visão compartilhada pela maioria era a de que Leary tinha ido longe demais, dando à ciência um nome ruim no processo. Preocupações políticas ficaram ainda piores. Oficiais eleitos do presidente temeram que a juventude da américa estavam escorregando em um precipício de drogas.

Histórias abundaram sobre suicídios, assassinatos e outros horrores cometidos por jovens sob efeitos do LSD, ou durante um flashback. Nem todas as lendas eram verdade. Naturalmente, as autoridades federais concluíram que o comportamento perigoso já era suficiente para eles entrarem em ação.

Proibições contra LSD e outros alucinógenos, como a psilocibina e a mescalina, foram codificadas no Ato de Substâncias Controladas de 1970. Nos anos 1980, o MDMA, ou ecstasy – se juntou à lista 1 de substâncias controladas, as que, segundo a lei, são as mais perigosas e que não apresentam uso médico algum.

Logo em seguida, as pesquisas científicas e exploração dessas substâncias se tornaram escassas. Qualquer aproximação do LSD, que Albert Hofmann chamou de sua “criança problema”, era um pedido para ter sua carreira totalmente destruída.

Nos anos recentes, entretanto, drogas psicodélicas estão entrando novamente nas mídias de massa.

Essencialmente, cientistas modernos estão continuando os que os dos anos 50 e 60 já haviam feito. Eles estão estudando o potencial dos alucinógenos para auxiliar os fumantes a largarem o vício, a se livrarem de problemas com álcool e outras drogas, na diminuição de cefaléias em salva e a depressão, e no tratamento de transtornos como o obsessivo compulsivo e os estresses pós-traumáticos. Instituições em que tais pesquisas estão em andamento incluem a New York University, a Johns Hopkins University, a University of California, o Psychiatric University Hospital em Zurique, e o Imperial College of London.

O interesse da pesquisa sobre a psilocibina é muito aguçada na américa. Esse é um ingrediente psicoativo nos fungos conhecidos como cogumelos mágicos. O que auxilia nesse processo é a ausência da carga negativa que continua assombrando o LSD, disse Matthew W. Johnson, um professor de psiquiatria e ciência comportamental na Johns Hopkins.

O que também ajuda é o fato de que os cientistas trabalham em uma nova situação legal para algumas drogas. A maconha, por exemplo, é uma substância controlada 1, mas já está legalizada em alguns estados americanos.

A psilocibina e outros alucinógenos, embora não viciantes, permanecem um tabu em todas as partes. Os pesquisadores precisam de uma autorização legal da FDA (Food and Drug Administration) e a aprovação de comitês profissionais. Seus experimentos não se assemelham em nada ao uso livro do ácido dos anos 60. Os pacientes são introduzidos  e preparados no que eles podem esperar da experiência, e então são monitorados com cuidado.

Considerando que a morte nos aguarda, um objetivo intrigante do uso dos psicodélicos para aliviar a ansiedade profunda – estresse existencial, alguns a chamam – naqueles que estão próximos de enfrentá-la. Elas são pessoas como Sherry Marcy, uma mulher de Ann Arbor, que descobriu que tinha câncer endometrial.

Ela sucumbiu à depressão. Quatro anos atrás, Marcy, que agora tem 73 anos, foi para Johns Hopkins para duas sessões de tratamento com psilocibina. O alívio que ela sentiu continua com ela.

“Não foi algo psicodélico para mim”, ela disse em uma entrevista com a Retro Report. “Era somente eu – de volta. Eu não sei como eu fiz aquilo, exatamente. É como se você levantasse a cabeça e olhasse por um longo período de tempo, e então você começa a ver as coisas novamente”.

Os cientistas estão tentando descobrir como exatamente a droga ajuda esses pacientes a se livrarem do medo. Além disso, eles têm observado efeitos positivos permanentes, e até mesmo despertares espirituais em alguns casos. Se administrados com cuidado, eles dizem, os psicodélicos podem reorientar as percepções dos pacientes do seu lugar no universo e colocá-los longe de pensamentos negativos. Em um artigo do New Yorker de 2015, um pesquisador inglês, Robin Carhart-Harris, chamou o fenômeno de “sacudir o globo de neve”.

Os estudos têm sido em escala pequena, e os resultados, enquanto encorajadores, são preliminares. É necessário cuidado, o Dr. Johnson da Hopkins informou à Retro Report, tanto pelo rigor científico, quanto pelos potenciais perigos dos psicodélicos.

A senhora Marcy, que agora está livre do câncer, diz que Timothy Leary acertou em um terço de sua frase. “O “turn on” não deve ser enfatizado, ela disse. “O “drop out” é um erro absoluto. Mas o crucial é o “tune in”.

“Eu entrei em sintonia”, ela disse. “Em sintonia com o mundo, comigo mesma, com as coisas que eu costumava amar, com os meus relacionamentos, com a minha família. Sintonize-se: tudo se trata disso”.

Fonte

Como a droga de festas Ketamina combate a depressão.

A popular droga de festa ketamina — ou ‘Special K’ — também é um antidepressivo de rápida ação, mas seu funcionamento tem iludido os cientistas. Agora um time relata na Nature que o efeito elevador de humor pode não ser causado pela droga em si, mas por um dos produtos formados quando o corpo quebra a droga em moléculas menores.

Se os achados, de um estudo em ratos, permanecerem válidos em humanos, eles podem sugerir um caminho para fornecer um alívio rápido para pessoas com depressão — sem que os pacientes tenham que experimentar a onda da ketamina. Tal droga seria uma notícia bem vinda para muitas pessoas com depressão profunda que não encontram alívio nos antidepressivos disponíveis atualmente. Ketamina também alivia a depressão em questão de horas, enquanto as outras drogas demoram semanas para atingirem a totalidade de seus efeitos.

“O campo todo se interessou na ketamina,” diz Todd Gould, um neurocientista na Escola de Medicina da Universidade de Maryland em Baltimore que liderou o estudo. “Ela faz algo diferente nos pacientes do que qualquer outra droga que nós temos disponíveis.”

Mas a Ketamina tem seus inconvenientes: algumas pessoas são desligadas pela onda — uma sensação de dissociação e distorção sensorial que dura por cerca de uma hora. Para outros, o efeito é um incentivo para o mal uso da droga. Ketamina ainda não foi aprovada para tratar depressão nos Estados Unidos, mas clínicas de ketamina floresceram por todo país para que seja administrada off-label (N.T. forma de administração de medicamento diferente daquela recomenda na bula)

Pesquisadores têm corrido para encontrar outras drogas que produzem o efeito antidepressivo da ketamina sem sua onda, mas têm encontrado dificuldades para faze-lo sem possuírem uma ideia clara sobre como a ketamina combate a depressão. Muitos desses esforços têm se concentrado em drogas que possuem como alvo os receptores celulares no cérebro chamados receptores NMDA. Eles eram tidos com o alvo da ketamina, mas os estudos clínicos que também visavam atingir esses receptores com outras drogas tiveram efeitos amplamente decepcionantes na depressão, diz Gould.

Elevação Metabólica

“A ketamina provavelmente representa um novo capítulo no tratamento da depressão,” diz Roberto Malinow, um neurocientista na Universidade da Califórnia, San Diego. “Mas têm havido algumas grandes questões à respeito de como ela funciona.”

Gould se juntou a clínicos, químicos analistas e neurofisiologistas para preencher as lacunas na compreensão. Gould e seus colegas usaram uma bateria de testes comportamentais em ratos para demonstrar que um dos produtos gerado pela quebra da ketamina — um composto chamado (2R,6R)-hydroxynorketamine — é responsável por muito dos efeitos antidepressivos da droga.

E para surpresa de Gould, o metabolito não causou efeitos colaterais em ratos mesmo em doses cerca de 40x maiores que a dose antidepressiva de ketamina. Os ratos também não tenderam a apertar a alavanca para receber o metabolito quando dada a opção de auto-administração.

Os pesquisadores planejam recolher dados sobre a segurança necessários para levar o metabolito para os testes clínicos em humanos, um processo que, alerta Gould, pode ainda levar anos.

Mas Husseini Manji, chefe de pesquisa e desenvolvimento neurocientífico na Janssen Pharmaceutical Companies em Titusville, Nova Jersey, alerta sobre presumir que os resultados em ratos irão se repetir em humanos. “Nós temos que nos lembrar que os dados clínicos são de roedores“, ele diz. Janssen desenvolveu uma forma especifica de ketamina, chamada esketamina, que estão sendo testada em cinco grandes estudos clínicos.

Alvos Receptivos

O estudo de Goul em ratos apresentou uma outra surpresa: o metabolito que é ativo nos ratos não agiram pelos receptores NMDA. O grupo não encontrou seu alvo direto, mas encontraram evidências que ele estimula outro grupo de receptores chamados receptores AMPA. Se o mesmo resultado se repetir com humanos, ele poderá fornecer uma explicação do porque drogas que possuem como alvo os receptores NMDA falharam ao capturas todos os efeitos da ketamina. “Isso pode balançar as janelas e abalar as paredes dessas companhias que vêem colocando muito dinheiro nessa pesquisa”, diz Malinow.

Manji, que descreve o estudo como elegante, não está pronto para abrir mão dos receptores NMDA até os resultados forem confirmados em estudos humanos. Mas ele está junto com outros pesquisadores que acreditam que os receptores AMPA podem sem igualmente importantes. Janssen e outros têm considerados esses receptores e proteínas associadas à eles como alvos de drogas em potenciais. “Esse estudo nós dá ainda mais impeto para ir atrás deles,” diz Manji.


Texto escrito por Heidi Ledford em 04/05/2016 na Nature.

 

O que o LSD pode nos ensinar sobre a natureza humana.

Eu estava em São Francisco semana passada, visitando meu irmão e revisitando os anos que passei lá quando jovem. Nós andamos pelo parque Golden Gate, dois caras na casa dos 60, admirando as gigantes sequoias, jardins exóticos, e as pastagens verde-douradas em cascata ao oeste, em direção ao oceano. E relembramos a nossa viagem de ácido épica em 1969, neste mesmo lugar, quando estávamos preparados para aventura e autodescoberta.

Nós éramos em quatro. Cada um de nós engoliu nossos pequenos comprimidos roxo — Feliz aterrizagem, pessoal!” — então começamos andar em direção ao oeste pelo parque. Cerca de meia hora depois vieram os surtos de energia em nossos estômagos, antecipação de algo enorme prestes a acontecer, entusiasmo e medo como se aproximar à beira de uma cachoeira desconhecida. O parque estava tão bonito. O canto dos pássaros estava por toda parte, com mais nuances do que havia alguma vez percebido.

E então o mundo se transformou. Os padrões dos galhos, o aroma do eucalipto, a confusão das outras pessoas, cachorros latindo, pássaros cantando, misturado e desintegrado ao mesmo tempo. Meu senso de “Eu” esticou, estendendo os limites da minha percepção como um desabrochar de um bouquet. Perdi a noção de quem eu era, onde estava, onde eu terminava e o mundo exterior começava… e então tudo isso se desintegrando, reconvergindo e se embaralhando de alguma formou se colapsou em uma sonora unicidade, o zumbido ensurdecedor de um universo totalmente pacífico.

Holotropics (113)

LSD era assustador, belo, e incompreensivelmente, transformador de vidas —  você pode dizer “educacional” com um sorriso irônico — para os não iniciados. Não apenas isso. Juntamente com outras drogas psicodélicas que formaram nossa subcultura, tornou-se símbolo de um momento e lugar únicos. Era um farol para um bando de crianças com intenção de descobrir algo verdadeiro e universal subjacente aos absurdos políticos e sociais da sociedade mainstream, Nixon, a guerra do Vietnã, e todo o resto.

O que nós procuramos no LSD era o que os humanos sempre haviam procurado — o significado oculto por trás da estupidez transitória dos esforços humanos que não levam a nada. O que buscávamos era a iluminação que Buda ansiava em nos mostrar, e que por milhares de anos permaneceu tão elusiva.

Era isso apenas uma loucura idealista, uma febre de droga? Temos nossas cabeças enfiadas até nossos traseiros, imaginando a beleza suprema porque estávamos tão completamente no escuro, tão narcisistamente especializados, tão sem inspiração pelos desafios que nossos pais e mentores desejavam que nós enfrentássemos?

 

“O BÓSON DE HIGGS DA NEUROCIÊNCIA”

Quando cheguei em casa novamente, três dias atrás, alguns experimentos neurocientíficos haviam sido publicados em dois jornais simultaneamente, alegando mostrar exatamente o que ocorria no cérebro quando alguém toma LSD. Em dois dias, essas descobertas migraram de publicações cientificas para jornais e mídia pelo mundo, incluindo o The Guardian. Um dos autores líderes da pesquisa, David Nutt, um respeitado neurofarmacologista, foi citado dizendo “Isso foi para a neurociência o que o bóson de Higgs foi para a física de partículas. ”

Embora isso possa exagerar seu caso, nós podemos perdoar o entusiasmo de Nutt: os achados são, de fato, extraordinários. Voluntários saudáveis foram injetados com LSD enquanto deitavam em um scanner MRI, e submetidos a diversos outros métodos de neuroimagem ao mesmo tempo. Isso somou um arsenal de medidas que os pesquisadores psicodélicos de décadas passadas podiam apenas sonhar. Com certeza não era o parque Golden Gate, mas deitados naquela câmara magnética, com os seus olhos fechados e cérebros abertos, com fluxos de números espirrando de seus lobos em arquivos de dados que logo seriam traduzidos em imagens, esses indivíduos observaram intrincadas alucinações do LSD se desdobrarem por trás de suas pálpebras. E ao mesmo tempo reportaram experiências de “dissolução do ego” muito parecida com aquela que experimentamos no parque.

O que foi mais notável sobre a pesquisa foi que o nível de dissolução de ego relatada pelos participantes se correlacionava com uma transformação neural especifica. Para enfrentar o dia-a-dia pragmático e as demandas da sobrevivência, a atividade cerebral naturalmente se diferencia em diversas redes distintas, cada uma responsável por uma função cognitiva particular.

As três redes mais intimamente examinadas por esses cientistas incluem a rede que presta atenção no que é mais notável, a rede para solução de problemas, e a rede para refletir sobre o próprio passado e futuro. Existe também uma segregação natural entre área de cognição de alto nível (abstrato) e área de percepção baixo nível (concreto), mais notavelmente no córtex visual. Essas distinções são tidas como um design essencial de um cérebro humano funcional.

O impacto do LSD era para diminuir a conexão dentro de cada uma dessas redes, relaxando os laços que as mantinha intactas e distintas, enquanto aumenta a conversa cruzada entre elas. Em outras palavras, a etiqueta normal do cérebro requer segregação entre as redes que possuem diferentes funções, e essa etiqueta foi explodida em pedaços.

Agora a maioria das partes do cérebro estavam se comunicando com a maioria das outras partes do cérebro. Experiências sensoriais completas, como a visão, misturadas com a cognição abstrata, e as abstrações cognitivas reformulou as imagens visuais. Talvez seja isso que explique o intrincado padrão fractal que as pessoas enxergam nos galhos de um arbusto quando estão viajando no ácido. A percepção de relevância e o refinamento do senso de “eu” foram misturadas juntas como batatas e molho. O cérebro e seu proprietário não mais distinguiam o que era mais importante, como realizar tarefas, e quem de fato julga a importância daquilo que precisa ser feito.

 

Os cérebros dos participantes permanecendo despertos com os olhos fechados, sob um placebo, esquerda, e a droga LSD, direita, visualizadas usando MRI funcional. Foto: Imperial College London-The Beckley Foundation/Reuters

RELIGIÃO VS. PSICODÉLICOS

Há alguns milhares de anos, o Buda definiu a personalidade humana como um ciclo recursivo de hábitos — hábitos de aquisição, de desejo e apego. Eles levam à busca de prazeres que temos certeza que vão evanescer-se e a evitar o sofrimento que não pode ser evitado num ciclo de vida, envelhecimento e morte. Em resposta, seus seguidores escolheram o asceticismo, a prática de excesso de controle. Dos monges Budistas que se livraram do conforto e os sadhus Hindus com seus rituais de auto-mortificação novas religiões evoluíram.

Houve intermináveis listas de editais Judeus, Muçulmanos, e Cristãos que ainda impõe-se: o que não era permitido fazer, em quais dias, quais as consequências de seu fracasso. Nossas tentativas de libertar-se do hábito, da universalidade do costume local, verdade da ilusão, de modo geral juntaram-se a um conjunto de regras para aumentar o controle, particionar e segregar, desenhar hierarquias e obedecer códigos.

Parece que nossos cérebros, com sua tendência intrínseca para analisar e segregar, foram projetados para inclinar-se em direção ao controle excessivo em resposta às dificuldades da existência. Ou, mais precisamente, nós temos a tendência de ter controle excessivo, porque se manifesta como um principio fundamental do design cerebral.

Mas a natureza nos proveu com diferente antídotos para o isolamento e irrelevância. LSD foi criado em um laboratório na Suíça em 1930. Mas outros químicos com as mesmas propriedades psicodélicas habitam a carne de cactos por toda a America do Norte (mescalina), cogumelos encontrados na maior parte do hemisfério norte (psilocibina), e a vinha da Amazônia (DMT-ayahuasca). Esses compostos químicos evoluídos desfaz as travas que nossos cérebros constroem para nos manter limitados, buscando vitórias de curto prazo sobre fracassos inevitáveis. Os humanos se reuniram, cultivaram, destilaram, e produziram todo tipo de drogas por milhares de anos. Algumas delas aliviam a dor e conferem conforto. Outras fornecem energia que as vezes precisamos pra completar nossas tarefas. E nosso velho amigo álcool nos ajuda a relaxar e se divertir. Mas os psicodélicos não contribuem em nada para o nosso funcionamento diário. Pelo contrário, nós usamos para enxergar o quadro maior, para conectar-se com uma realidade que é difícil de ver usando nosso cérebro em funcionamento normal. Nós somos literalmente “mentes-pequena” na maior parte do tempo. E embora meditação e mindfulness (atenção plena) no coloca em direção à abertura, aceitação e abandono de nossos egos, os humanos continuam a se voltar para os psicodélicos para despertar-nos para as possibilidades de uma perspectiva universal.

Nem todas as drogas são criadas iguais, e eu nunca vou encorajar ninguém a aliviar seu desconforto existencial com heroína ou anfetaminas, ambas as quais eu já tomei. Mas os psicodélicos possuem um valor que não posso evitar de admirar. E agora nós entendemos mais sobre como eles fazem o que fazem. Um simples código libera os portões em nossos cérebros, portões que normalmente agem como muralhas.

Eu espero que essas descobertas dissipem apenas o suficiente para encorajar-nos a continuar explorando.


Matéria escrita originalmente por Marc Lewis para o The Guardian em 15/04/2016

Os efeitos do LSD sobre Cromossomos, Mutação Genética, Desenvolvimento Fetal e Malignidade

 

Apêndice II do LSD Psychotherapy,

© 1980, 1994 por Stanislav Grof
Hunter House Publishers, Alameda, Califórnia.
ISBN 0-89793-158-0 (edição de 1994, paperback)


Na última década, uma nova dimensão grave foi adicionado à controvérsia sobre o LSD. Uma série de trabalhos científicos foram publicados indicando que LSD pode causar mudanças estruturais nos cromossomos, mutações genéticas, distúrbios do desenvolvimento embrionário, e degeneração maligna das células. No entanto, um número comparável de publicações contestam a veracidade dessas alegações. Alguns são estudos experimentais independentes que mostraram resultados negativos, outros criticam os documentos originais por graves deficiências conceituais e metodológicas. Apesar de todo o trabalho experimental feito nesta área, em que há grande dispêndio de tempo e energia, os resultados são ambíguos e contraditórios. Parece oportuno incluir neste livro uma revisão crítica de toda a pesquisa relevante, porque a questão é extraordinariamente importante para o futuro da psicoterapia com LSD.

A discussão a seguir é baseada quase que exclusivamente no estudo cuidadoso da literatura existente. Tenho muita experiência de pesquisa em primeira mão nesta área, e a genética não é a minha área primária de interesse e experiência. No estudo realizado com LSD no Instituto de Pesquisa Psiquiátrica em Praga, nós não examinamos o efeito do LSD nos cromossomos ou suas implicações para a hereditariedade; naquele tempo não havia observações experimentais ou clínicas que sugerissem a necessidade de tais estudos. O primeiro trabalho que atraiu a atenção dos cientistas para esta área não apareceu até o final dos anos 1960. Após minha chegada nos Estados Unidos, participei de um grande estudo concentrando-me em alterações estruturais dos cromossomos nas células brancas do sangue após a administração de LSD. Este foi um dos poucos estudos genéticos, utilizando LSD puro farmacêutico, numa abordagem duplo-cego, e comparação das amostras antes e após a administração do fármaco.

O material discutido nesta revisão será dividido em vários grupos temáticos. O primeiro grupo inclui artigos descrevendo as alterações estruturais dos cromossomas produzidos por LSD ‘in vitro’, nestas experiências várias concentrações de LSD foram adicionadas às culturas de células de tecidos vegetais humana, animal, ou em um tubo de ensaio. O segundo grupo envolve estudos ‘in vivo’ de LSD; neste tipo de investigação do efeito, o LSD é estudado após a substância ter sido ingerida ou injetada em animais ou em seres humanos. Os trabalhos do terceiro grupo descrevem os resultados de experimentos que estudam a influência do LSD sobre os genes, e seus efeitos mutagênicos. Ele inclui um pequeno número de trabalhos relacionados com o mecanismo pormenorizado da ação de LSD no ácido desoxirribonucleico (DNA), o constituinte mais importante dos cromossomas. O quarto grupo consiste de publicações que descrevem as consequências da administração do LSD no crescimento, desenvolvimento e diferenciação de embriões humanos e animais. Finalmente, o quinto grupo compreende documentos sobre a possível ligação entre o LSD e o desenvolvimento de alterações malignas nas células, especialmente no caso de leucemia.

Nas seções seguintes, os achados mais relevantes destas cinco categorias temáticas serão brevemente revisados e avaliados criticamente.

 

O EFEITO DO LSD NA ESTRUTURA CROMOSSÔMICA

A possibilidade de indução de alterações estruturais nos cromossomas por agentes exógenos, tais como radiação, vírus, e uma variedade de produtos químicos, tem sido um assunto de grande interesse científico por um longo tempo. A controvérsia sobre genética e LSD começou em 1967, quando Cohen, Marinello e Back publicaram um artigo sugerindo que LSD deveria ser adicionado à lista de substâncias capazes de causar anormalidades nos cromossomos. Por causa do uso generalizado de LSD, esta informação criou vívido interesse no meio científico, e um número de investigadores concentraram sua atenção sobre esta área. Duas abordagens principais foram utilizadas nestes estudos; em alguns foi estudado o efeito do LSD nos cromossomas no tubo de ensaio (in vitro), em outras no organismo vivo (in vivo). As células que foram estudadas na maioria dos casos, foram as células brancas do sangue (linfócitos).

Nos estudos ‘in vitro’, as amostras de sangue foram retiradas de pessoas normais e saudáveis, sem histórico de uso de drogas por injeção, exposição à radiação, ou infecção viral recente. Após incubação a 37 ° centígrados, em meios apropriados, colcemide foi adicionado para parar a divisão celular na fase de metáfase. As células foram então colhidas, transformadas em preparações citológicas especificamente coradas e examinadas por microscopia de contraste de fase. Durante o período de incubação, o LSD dissolvido em água destilada estéril foi adicionado às culturas experimentais em várias concentrações.

Nos estudos ‘in vivo’, as amostras de sangue foram retiradas de indivíduos que haviam sido expostos a qualquer um ‘street acid’ (material ilícito supostamente contendo LSD) ou LSD farmacêutico puro. Na maioria desses estudos, os cromossomos foram examinados após a exposição ao LSD (abordagem retrospectiva); numa minoria destes estudos, os exames foram realizados antes e depois da administração do fármaco (abordagem potencial). O procedimento técnico empregue nos estudos ‘in vivo’ não diferiu significativamente do que foi descrito para a abordagem ‘in vitro’. Um subgrupo especial e bastante importante dos estudos ‘in vivo’ são os relatórios sobre a influência do LSD sobre os cromossomos das células germinativas (cromossomos meiose).

 

OS ESTUDOS ‘IN VITRO’

Cohen, Marinello e Back adicionaram LSD para leucócitos humanos cultivados obtidos a partir de dois indivíduos saudáveis. Usaram cinco concentrações variando, 001-10,0 microgramas de LSD por centímetro cúbico (cc), e o tempo de exposição foi de 4, 24, e 48 horas. A incidência de quebras cromossômicas para células tratadas foi de pelo menos o dobro de células de controle para todos os tratamentos, exceto na concentração mais baixa em tempo (0,001 microgramas de LSD por cc, durante quatro horas), onde não houve diferença entre as células tratadas e controle. Não houve relação linear simples entre a frequência dessas aberrações e a dosagem de LSD ou duração da exposição. Em um estudo posterior, Cohen, Hirschhorn e Frosch descreveram os resultados de um estudo mais amplo, no qual utilizaram culturas de leucócitos periféricos de seis pessoas normais, saudáveis; as concentrações de LSD e os tempos de exposição foram os mesmos que no estudo original. Eles encontraram uma inibição significativa da divisão celular (mitose) em adição do fármaco, em qualquer concentração. A supressão da mitose foi diretamente proporcional à duração da exposição. A menor frequência de quebra cromossômica entre os controles foi de 3,9 por cento das células; entre as culturas tratadas, a menor frequência foi quase duas vezes o controle (7,7 por cento) e variou de mais de quatro vezes o valor controle (17,5 por cento).

Em 1968, Jarvik et al. tentaram replicar algumas das experiências ‘in vitro’ do grupo de Cohen. Além de LSD, eles usaram como teste as substâncias ergonovina (a droga comumente usada na prática obstétrica), aspirina e streptonigrine. Eles encontraram uma maior incidência de quebras de cromossomas nas amostras de LSD (10,2 por cento com a gama de 0,0-15,0), em comparação com as amostras de controle (5,2 por cento, com a gama de 0,0-9,0). Eles descobriram, no entanto, aproximadamente a mesma taxa de ruptura com aspirina (10,0 por cento) e ergonovina (9,6 por cento). A concentração de LSD em sangue utilizadas neste estudo se aproxima do nível alcançado uma a quatro horas após a injeção de 1.000 microgramas de LSD. Por outro lado, o nível de aspirina utilizada foi consideravelmente abaixo do nível terapêutico comum. Streptonigrine, uma substância com um efeito dramático bem conhecido nas cromossomas, promoveu uma ruptura induzida em 35 por cento das células examinadas de cromossomas. É interessante notar que dois dos oito casos descritos neste documento não responderam ao LSD com um aumento de quebras cromossômicas.

Corey et al. realizaram um estudo ‘in vitro’, em dez indivíduos; 1 micrograma por cc de LSD foi adicionado à cultura durante as últimos vinte e quatro horas de incubação. Os autores encontraram um aumento de quebras cromossômicas em todos os dez indivíduos. Embora a concentração ‘in vitro’ de LSD tenha sido muito maior do que qualquer dosagem ingerida comparavelmente conhecida, o aumento significativo de 4,65 quebras por 100 células foi pequena em comparação com a gama de frequências (0,0-15,2) observada nas culturas não tratadas.

Neste contexto, é interessante mencionar que Singh, Kalia e Jain encontraram uma maior incidência de quebras cromossômicas nas células da raiz cevada como resultado da exposição ao LSD na concentração de 25 microgramas por cc. Por outro lado, MacKenzie e Stone relataram resultados negativos das experiências com linfócitos, fibroblastos de hamsters e sobre a planta ‘Vicia faba’.

Os achados de alterações estruturais nos cromossomos após a administração de LSD acima mencionados se tornou a base de especulações sobre a possível influência dessa droga sobre mutações genéticas, desenvolvimento fetal e malignidade. Na atmosfera de histeria nacional então existente, o relatório original de Cohen, Marinello e Back que foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação de massa. Como resultado, o significado de suas descobertas foram consideravelmente mais enfatizados, e muitas conclusões prematuras foram atraídas para as quais não havia justificativa científica suficiente.

Vários fatos importantes têm de ser levados em consideração antes de podermos tirar conclusões substanciais dos achados de aumento de quebras cromossômicas associadas com LSD nos experimentos ‘in vitro’. Deve-se ressaltar que as próprias conclusões não foram completamente consistentes. Em vários estudos não havia indícios de aumento de quebras cromossômicas após a exposição ao LSD. Além disso, as concentrações de LSD e durações de exposição utilizadas nestes estudos eram geralmente muito maiores do que aqueles que ocorrem no organismo humano depois da ingestão de LSD em dosagens normalmente utilizadas. Cohen, Marinello e Back, eles próprios não encontraram aumento de ruptura dos cromossomas na concentração mais baixa em tempo (0,001 microgramas de LSD por cc, durante quatro horas). Loughman et al. salientou que é precisamente a concentração mais baixa e a duração de exposição utilizado neste estudo que mais se aproxima da concentração esperada no sangue, fígado e outros órgãos após uma dose de 100 microgramas de LSD ingeridas por um homem de 70 kg. Se a degradação metabólica do LSD é considerada, então a concentração eficaz ‘in vivo’ do LSD inalterado seria consideravelmente inferior a este, aproximando 0,0001 microgramas por cc, uma concentração utilizada apenas por Kato e Jarvik, que não encontrou nenhum aumento na quebra desta dosagem.

Em geral, todo cuidado é necessário na extrapolação dos resultados ‘in vitro’ para a situação no organismo vivo. O organismo humano intacto difere de células isoladas no tubo de ensaio em sua enorme complexidade e na sua capacidade de desintoxicar e excretar compostos nocivos. As substâncias que são tóxicas ‘in vitro’ não têm necessariamente o mesmo efeito ‘in vivo’. Além disso, algumas das técnicas utilizadas nos estudos em vitro pode criar uma situação artificial e introduzir fatores que não existem no organismo vivo. Esta questão tem sido discutida em detalhes em uma excelente revisão sobre LSD e dano genético por Dishotsky et al. Estes autores apontam para o fato de que todos os estudos em culturas de linfócitos foram utilizadas modificações de uma técnica na qual os linfócitos são estimulados por fito-hemaglutinina para entrar no ciclo celular reprodutivo. No estado normal ‘in vivo’, linfócitos pequenos se encontram numa fase de crescimento que precede a síntese de DNA; eles não crescem, se dividem ou entram no ciclo celular. Assim, nos estudos ‘in vitro’, os linfócitos são expostos a agentes químicos durante a fase de desenvolvimento do ciclo celular, incluindo a síntese de DNA, o qual normalmente não ocorrem nessas células do corpo. Danos a um linfócito nesta fase geralmente não se manifestará como no tipo cromátide de mudança de uma divisão subsequente. A maioria, se não todas as alterações do tipo de cromatídeos, são iniciadas por processos técnicos, e a grande maioria de lesões relatados na ‘in vitro’ e ‘in vivo’ eram do tipo cromatídeos. As conclusões de um aumento da taxa de ruptura cromossômica em linfócitos expostos ao LSD ‘in vitro’ deve, portanto, ser interpretados com grande cautela.

Muitos estudos recentes acerca das mudanças estruturais causadas nos cromossomos por LSD deram a impressão de que este efeito foi algo específico e único. A maioria desses relatórios têm silenciosamente ignorado um fato que teria feito a questão muito menos interessante e sensacional. As alterações na estrutura cromossômica descrita não são exclusivamente causada por LSD; que pode ser induzida por uma variedade de outras condições e substâncias. Os fatores que têm sido conhecidos por causar a ruptura cromossômica ‘in vitro’ incluem radiação, mudanças de temperatura, variações de pressão de oxigênio, impurezas na água da torneira, a menos que seja destilada duas vezes, e uma variedade de vírus comuns. A longa lista de substâncias químicas que aumentam as taxas de ruptura cromossômicas contém muitos medicamentos comumente usados, incluindo a aspirina e outros salicilatos, adoçantes artificiais, o inseticida DDT, morfina, cafeína, teobromina, teofilina, tranquilizantes do tipo phenothiazine, algumas vitaminas e hormônios, e muitos antibióticos tais como aureomicina, cloromicetina, terramicina, estreptomicina e penicilina.

Neste contexto, é interessante citar Sharma e Sharma, que escreveram um resumo alargado da literatura sobre quebras cromossômicas induzidas quimicamente: “Desde a primeira indução de mutações cromossômicas por produtos químicos e a demonstração de definitivas quebras cromossômicas por Oehlkers, uma vasta multidão tão grande de produtos químicos têm mostrado possuir propriedades que quebram os cromossomos, que o problema tornou-se cada vez mais complexo”. Jarvik, discutindo o papel por Judd, Brandkamp e McGlothlin, foi ainda mais explícito: “… e é provável que qualquer composto adicionado no momento oportuno, na quantidade adequada, para o tipo de célula apropriada, irá causar quebras cromossômicas”.

Devido às limitações da abordagem ‘in vitro’, os estudos ‘in vivo’ são preferidos para avaliar os possíveis perigos genéticos associados com a administração de LSD. Infelizmente, dos vinte e um relatórios que foram publicados por dezessete laboratórios, muitos têm graves deficiências metodológicas e são mais ou menos inadequados, enquanto os relatórios individuais contradizem uns aos outros e os seus resultados globais são inconclusivos. Duas principais abordagens têm sido utilizadas em estudos ‘in vivo’. Em catorze desses projetos, os indivíduos foram expostos a substâncias ilícitas de composição e potências desconhecidas, alguns dos quais foram alegados como LSD. Em onze estudos, os indivíduos foram expostos a quantidades conhecidas de LSD farmacêutico puro em ambientes experimentais ou terapêuticos.

Dishotsky et al. publicaram uma revisão em que apresentou uma sinopse dos estudos desse tipo realizadas antes de 1971. De acordo com essa avaliação, de um total de 310 indivíduos estudados, apenas 126 foram tratados com LSD puro; os outros 184 indivíduos foram expostos a ilícitos ou “suposto” LSD. Dezoito dos 126 indivíduos (14,29 por cento) no grupo que recebeu LSD puro mostrou uma maior frequência de aberrações cromossômicas do que os controles. Em contraste, 89 dos 184 indivíduos (48,9 por cento) no grupo que tomou LSD ilícito mostrou um aumento na incidência de aberrações de mais de três vezes a frequência relatada por matérias dados como LSD farmacologicamente puro. Apenas 16,67 por cento (18 de 108) de todos os entrevistados que disseram ter danos cromossômicos receberam LSD puro. Há, portanto, uma boa razão para discutir as duas categorias de estudos ‘in vivo’, aqueles com puro e aqueles com “suposto” LSD, separadamente.

 

LSD ILÍCITO E O DANO CROMOSSÔMICO

Os resultados iniciais de danos cromossômicos em usuários de LSD ilícito foram relatados por Irwin e Egozcue. Eles compararam um grupo de oito utilizadores de LSD ilícito com um grupo de nove controles. Os usuários tiveram uma taxa de quebra média de 23,4 por cento, mais que o dobro da taxa de 11,0 por cento nos controles. Apenas dois dos oito usuários não tiveram aumentada as taxas de ruptura. Em um estudo posterior e mais extenso realizado por Egozcue, Irwin e Maruffo, a taxa de quebra média de quarenta e seis usuários de LSD ilícito foi 18,76 por cento (com um intervalo entre 8 e 45 por cento); este foi mais que o dobro da taxa de 9,03 por cento encontrados em células de controle. Apenas três dos quarenta e seis usuários não tiveram uma taxa de ruptura maior do que a taxa média de controle. Além disso, os autores estudaram os cromossomos de quatro crianças expostas ao LSD no útero. Todos os quatro apresentaram taxas de ruptura acima do valor de controle de média. Não houve evidência de doença ou malformação física em qualquer destas crianças.

Estes resultados foram apoiados por Cohen, Hirschhorn e Frosch, que estudaram dezoito indivíduos expostos ao LSD ilícito. Eles descreveram um aumento da quebra cromossômica neste grupo (média de 13,2 por cento), o que era mais do que o triplo do grupo controle (3,8 por cento). Os autores também examinaram os cromossomos de quatro filhos de três mães que tomaram LSD durante a gravidez. A frequência de quebras cromossômicas foi elevada em todos os quatro, e foi maior nas duas crianças que foram expostas ao LSD durante o terceiro e quarto meses de gravidez do que nos dois bebês expostos a baixas doses de LSD no final da gravidez.

Num artigo posterior, Cohen et al. relataram que treze adultos expostos a LSD ilícito apresentaram taxas de quebras cromossômicas que estavam acima da média controle. Em nove crianças expostas ao LSD ilícito ‘in utero’, eles encontraram uma quebra média de 9,2 por cento, em comparação com 4,0 por cento em quatro crianças cujas mães haviam usado LSD ilícito antes, mas não durante a gravidez. A taxa de ruptura no grupo controle foi de 1,0 por cento. Todos, mais dois filhos, tinham sido expostos a outras drogas durante a gravidez; todos estavam em boas condições de saúde e não apresentaram defeitos de nascimento.

Nielsen, Friedrich e Tsuboi constataram que os seus dez indivíduos expostos ao LSD ilícito tiveram uma taxa de quebra média de 2,5 por cento; esta foi significativamente maior do que a do grupo de controle (0,2 por cento). No entanto, a taxa de 2,5 por cento alegadamente patológica, é menor do que a dos controles em outros estudos positivos.

Um número de pesquisadores não foram capazes de demonstrar o aumento quebras cromossômicas em usuários de LSD. O papel sinóptico feito por Dishotsky et al., cita nove grupos de pesquisadores que relataram resultados negativos dos estudos semelhantes. No presente momento, por conseguinte, os resultados dos estudos ‘in vivo’ são considerados bastante controversos, e no melhor dos casos, inconclusivos.

Muitos investigadores têm tentado oferecer explicações para as discrepâncias existentes entre os relatórios positivos e negativos. Alguns criticaram a taxa de ruptura para os controles nos estudos de Cohen et al. (3,8 por cento) e Irwin e Egozcue (11,9 por cento e 9,03 por cento) como sendo anormalmente elevada. Outros sugeriram que os altos valores de controle poderiam ter resultado de contaminação viral das culturas, meios que interferem com o reparo do cromossomo, variação técnica em cultura de células, e a abordagem da avaliação de cromossomo insuficientemente fortificada. Também foi apontado que nesses estudos, do tipo de cromossomos e do tipo cromátide nas mudanças não foram relatados separadamente, mas foram combinados e então convertidas em “números equivalentes de pausas”. A combinação dos dois tipos de aberrações em um único índice obscurece a distinção entre danos nos cromossomas real que ocorrem ‘in vivo’ e danos que surgem no decurso da cultura de células.

No entanto, esses fatores não podem explicar as discrepâncias entre os resultados de várias equipes de investigadores. Se o fizessem, as aberrações decorrentes desses efeitos seriam distribuídos aleatoriamente entre os grupos expostos ao LSD ilícito e os grupos controle. Como a distribuição é desigual, esses fatores não explicam as taxas de ruptura significativamente elevadas em oitenta dos oitenta e seis indivíduos expostos ao LSD ilícito estudados por Cohen et al. e por Irwin e Egozcue.

Uma pista muito mais importante para a compreensão desta controvérsia parece estar relacionada a determinadas características do grupo dos “usuários de LSD”. Nesse tipo de pesquisa, os investigadores dependem da recordação e confiabilidade dos sujeitos na determinação do tipo de drogas que eles usaram no passado, o número e a frequência das exposições, as alegadas doses e intervalo desde a última exposição. Mesmo nos casos em que os relatórios são precisos, os indivíduos geralmente não sabem o conteúdo e a qualidade das amostras que estão usando. O conteúdo de LSD puro nas amostras de LSD ilícitas é quase sempre questionável, há várias impurezas e adições bastante frequentes. As amostras analisadas no passado tem demonstrado que contêm anfetaminas, mescalina, DOM (4-metil-2, 5-dimethoxyamphetamine, também chamado STP), fenilciclidina (phenylcyclohexylpiperidine, PCP ou “pó de anjo”), benactizina e mesmo estricnina. Além disso, todos os sujeitos testados utilizaram ou abusaram de outras drogas além do LSD. Estes medicamentos incluíram, entre outros, Ritalina, fenotiazinas, álcool, anfetaminas, cocaína, barbitúricos, heroína e outros opiáceos, e várias substâncias psicodélicas, como a maconha, haxixe, a psilocibina, a mescalina, STP, metilenodioxianfetamina (MDA), e dimetiltriptamina (DMT) . Dadas as circunstâncias, se questiona a lógica de se referir a este grupo em trabalhos científicos como “usuários de LSD”. A maioria destes pacientes eram, na verdade, os utilizadores de múltiplas drogas ou abusadores expostos a uma variedade de produtos químicos de composição, qualidade e potências desconhecidas.

Além disso, tem sido repetidamente relatado que essa população sofria de desnutrição e tinha muito elevadas as taxas de doenças venéreas, hepatite e várias outras infecções virais. Foi mencionado acima que os vírus são um dos fatores mais comuns a causarem lesões cromossómicas; o possível papel da desnutrição continua a ser avaliado. Dishotsky et al. concluíram suas revisões dos estudos ‘in vivo’ envolvendo LSD ilícito, relacionando os achados de aumento de quebras cromossômicas a uma combinação de fatores, como ao longo prazo excessivo de exposição a agentes químicos ilícitos, a presença de contaminantes tóxicos, a via de administração intravenosa e a debilidade física de muitos usuários de drogas. De acordo com eles, os resultados positivos, quando encontrados, estão relacionados com os efeitos mais gerais do abuso de drogas e não, como inicialmente relatado, especificamente para o uso de LSD.

 

LSD PURO E O DANO CROMOSSÔMICO

Estudos cromossômicos de pessoas que receberam LSD farmacêutico puro num quadro experimental ou terapêutico são muito mais relevantes e confiáveis como fonte de informação do que os estudos de usuários de drogas ilícitas. Nestes estudos, não há incerteza quanto a pureza, a dosagem, frequência de exposição e o intervalo entre a última exposição e amostragem de sangue. Duas abordagens diferentes podem ser distinguidas nos estudos cromossômicos usando LSD puro. Os estudos do primeiro tipo são retrospectivos e usaram um design “post hoc”; examinam as alterações cromossômicas em indivíduos que foram expostos ao LSD puro no passado. Os estudos do segundo tipo são em perspectiva; os padrões cromossômicos são examinados antes e após a exposição ao LSD, e cada sujeito serve como seu próprio controle.

‘Estudos Retrospectivos de Mudanças Cromossômicas nos Usuários de LSD Puro’. Uma revisão dos estudos nesta categoria revela que apenas dois grupos de investigadores relataram um aumento da taxa de quebras cromossômicas em seus assuntos. Cinco outras equipes não conseguiram confirmar estes resultados positivos.

Cohen, Marinello e Back relataram em seus estudos iniciais que eles encontraram danos cromossômicos nas células brancas do sangue de um paciente esquizofrênico paranoico que tinha sido tratado quinze vezes no passado com LSD em doses entre 80 e 200 microgramas. Nielsen, Friedrich e Tsuboi examinaram os cromossomos de cinco pessoas tratadas com LSD e não encontraram “nenhuma correlação entre qualquer medicamento específico e a frequência de falhas, quebras, e células hiperdiploide”. Os autores mais tarde reagruparam seus dados, formando pequenos grupos em função da idade e do sexo. Após esta revisão do material original, eles concluíram que o LSD induzia danos cromossômicos. Tjio, Pahnke e Kurland criticaram este estudo com base no número insuficiente de células analisadas para uma determinação fiável de taxas de ruptura. Três dos cinco indivíduos/LSD estudados não tinham aberrações cromossômicas, e os dois indivíduos restantes foram responsáveis por todas as seis quebras encontradas. Além disso, a taxa de quebra de 1,7 por cento ainda está dentro dos valores reportados para a população em geral. Outro estudo realizado pela Nielsen, Friedrich e Tsuboi, que geraram um aumento da taxa de quebra de 4,3 por cento em um grupo de nove ex-usuários de LSD tem sido criticado por Dishotsky et al., com base na sua abordagem diferente para a análise de dados.

Sparkes, Melnyk e Bozzetti não encontraram um aumento na quebra de cromossomas em quatro pacientes tratados com LSD no passado por razões médicas, resultados negativos também foram relatados por Bender e Siva Sankar, que examinaram os cromossomos de sete filhos esquizofrênicos que tinham sido tratadas no passado, por administração prolongada de LSD. Estas crianças receberam diariamente LSD em duas doses divididas de 100 a 150 microgramas por um período de semanas ou meses. A frequência de ruptura dos cromossomas neste grupo foi inferior a 2 por cento e não diferiu da do grupo de controle.

Siva Sankar, Rozsa e Geisler estudaram os padrões de cromossomos em quinze crianças com problemas psiquiátricos que receberam LSD, UML ou uma combinação de ambos. LSD foi administrado diariamente; a dose média para a totalidade do grupo foi de 142,4 microgramas por dia por paciente, e a duração do tratamento variou de 2 a 1366 dias. A taxa de ruptura para o grupo tratado com o LSD foi de 0,8 por cento, para o grupo tratado com ambos LSD e UML 1,00 por cento. Isto não foi significativamente mais elevada do que a taxa de quebra nos controles. Os pacientes neste estudo receberam LSD dois a quatro anos antes de os estudos cromossômicos. Os autores admitiram que os efeitos do LSD sobre os cromossomos de leucócitos pode ter sido retificado por um longo período de tempo. Em qualquer caso, isto indica que a terapia de LSD e seus efeitos sobre os cromossomas não é duradoura.

Tjio, Pahnke e Kurland publicaram os resultados da análise dos cromossomos de um grupo de oito indivíduos “normais” que receberam LSD puro em experimentos de pesquisa 1-26 vezes, dois a quinze meses antes de dar a amostra de sangue. A taxa de aberração cromossômica total média para este grupo foi de 2,8 por cento, e a taxa individual em nenhum deles ultrapassou o pré-LSD médio de 4,3 por cento encontrados nas amostras por pacientes.

Corey et al. relataram o resultado de um estudo cromossômico retrospectivo de dezesseis pacientes, cinco dos quais tinham sido tratados apenas com LSD, cinco com mescalina, e seis com LSD mais mescalina. Nos onze indivíduos que foram tratados clinicamente com doses de LSD que variam de 200 microgramas para 4.350 microgramas, a frequência de quebras cromossômicas não diferiu daquela encontrada nos treze controles. As respectivas frequências foram de 7,8 por cento para o LSD, 5,6 por cento para a mescalina, 6,4 por cento para LSD mais mescalina, e 7,0 por cento para o grupo controle.

Em um estudo inédito, Dishotsky et al. examinaram os cromossomos de cinco indivíduos expostos no passado com LSD puro. A taxa de ruptura média neste grupo (0,40 por cento) não foi significativamente diferente do das oito pessoas de controle (0,63 por cento). Em seu artigo de revisão, Dishotsky et al. indicam que cinquenta e oito de setenta (82,9 por cento) dos indivíduos estudados após o tratamento com LSD puro não tiveram danos cromossômicos. Por causa de dados incompletos sobre nove dos restantes doze sujeitos, eles não foram capazes de calcular a percentagem exata de indivíduos com taxas de ruptura elevadas. No entanto, eles estimaram que este valor se situaria entre 17,1 por cento e 4,9 por cento. Todos, exceto um dos doze temas, foram relatados por uma única equipe de investigadores. Os autores concluíram que, em vista dos procedimentos, dados incompletos, reanálise questionável dos dados, e as taxas de ruptura relatados como baixos, não há nenhuma evidência definitiva deste tipo de experimento que o LSD puro provoca danos cromossômicos.

‘Estudos Prospectivos de Mudanças Cromossômicas em Usuários de LSD Puro’. Os estudos que compararam as alterações cromossômicas, antes e após a exposição ao LSD puro, representam a abordagem científica mais adequada para o problema do ponto de vista metodológico, e são a fonte mais confiável de informações científicas. O primeiro relatório nesta categoria foi publicado em 1968 por Hungerford et al. que examinou os cromossomos de três pacientes psiquiátricos antes e após administrações terapêuticas repetidas de LSD. Amostras de sangue foram coletadas de todos os pacientes antes de qualquer terapia de LSD, uma hora antes e uma hora e 14 horas após cada dose; amostras de acompanhamento foram feitas em intervalos de um a seis meses. Observou-se um aumento de aberrações cromossômicas após cada uma das três injeções intravenosas de LSD. O aumento foi pequeno em dois dos três indivíduos; Contudo, os números dicêntricos e multiradial apareceram somente após o tratamento, e fragmentos acêntricos apareceram com mais frequência após o tratamento. No estudo que deu seguimento, um retorno aos níveis anteriores foi observado em todos os três pacientes. Os dados deste estudo indicam que o LSD puro pode produzir aumentos transitórios de anormalidades cromossômicas, mas que estes não são mais evidentes depois de um mês após a administração da dose final. Os resultados foram ligeiramente complicados pela administração de clorpromazina (Torazina), que por si só pode produzir aberrações cromossômicas. É interessante notar que o estudo de Hungerford é o único em que o LSD foi administrado por via intravenosa.

 

AS ALTERAÇÕES CROMOSSÔMICAS EM CÉLULAS GERMINAIS

No passado, os resultados positivos de alguns estudos cromossômicos foram usados como uma base de longo alcance para especulações sobre os perigos hereditários associados ao LSD. Jornalistas, e também vários trabalhadores científicos, descreveram suas visões apocalípticas sobre a descendência de usuários de LSD. Tais especulações eram bastante prematuras, e insuficientemente fundamentadas em dados experimentais. O raciocínio que se refere a alterações estruturais dos cromossomos como “dano” e relaciona-os automaticamente para riscos genéticos tem graves lacunas na sua lógica. Na realidade, não é muito claro se ou não as mudanças estruturais nos cromossomos das células brancas do sangue têm qualquer significado funcional, e se eles estão associados com anormalidades genéticas. Existem muitas substâncias químicas que causam quebras cromossômicas, mas não têm efeitos adversos sobre a mutação genética ou o desenvolvimento fetal. A complexidade deste problema pode ser ilustrado com o caso de vírus. Uma variedade de doenças virais (como herpes simplex e herpes, sarampo, catapora, gripe, febre amarela, e, possivelmente, caxumba) induziram dano cromossômico marcado sem causar malformações fetais. De acordo com Nichols, uma das exceções é a rubéola (sarampo alemão), uma doença que é conhecida por causar malformações fetais graves, quando adquirida pela mãe no primeiro trimestre da gravidez.

Além dos problemas metodológicos envolvidos e a inconsistência das conclusões acima discutidas, um fato mais importante tem de ser levado em consideração. Em todos os estudos citados, o efeito de LSD ilícito ou puro, ‘in vitro’ ou ‘in vivo’, foi avaliado nos cromossomas das células brancas do sangue. Sem conclusões diretas sobre os perigos hereditários associados com a administração de LSD pode ser desenhado com base nestes estudos que os linfócitos não estão envolvidos nos processos reprodutivos. Especulações sobre tais perigos poderiam ser feitas apenas com base em achados cromossômicos em células germinativas, tais como os espermatozoides e óvulos, ou as células precursoras. Infelizmente, os poucos estudos existentes sobre os cromossomos de células germinativas (os chamados cromossomos meióticos) apresentaram resultados inconclusivos tanto quanto os estudos dos cromossomos de células somáticas.

Skakkebaek, Phillip e Rafaelsen estudaram cromossomos meióticos de seis camundongos saudáveis do sexo masculino injetados com altas doses de LSD (1.000 microgramas por kg); o número de injeções e os intervalos entre as exposições foram variadas. Várias quebras cromossômicas, lacunas e fragmentos não identificáveis foram encontrados nos animais tratados, mas, com poucas exceções, não nos animais de controle. Os autores consideram que a sua tentativa de encontrar evidências de que altas doses de LSD podem influenciar cromossomos meióticos em camundongos. Eles admitiram que o número de anormalidades foram pequenas e os erros técnicos não podem ser excluídos, mas concluíram que as alterações encontradas poderiam ter influência sobre a fertilidade, o tamanho da maca, e o número de malformações congênitas. Num estudo posterior, Skakkebaek e Beatty injetaram em quatro camundongos, por via subcutânea, doses de 1.000 microgramas de LSD por kg duas vezes por semana durante cinco semanas. Análise realizada numa base cega mostrou uma frequência elevada de anormalidades em dois dos ratos tratados. Além disso, os espermatozoides de ratinhos tratados com LSD também mostraram diferenças morfológicas, com um lado convexo mais arredondado da cabeça, cabeças mais amplas, em geral. O significado prático destes resultados é consideravelmente reduzido pelo fato de que as dosagens usadas superam qualquer coisa usada na prática clínica. Uma dose comparável em humanos viria a 60,000-100,000 microgramas por pessoa, o que é 100 a 1000 vezes mais do que as doses normalmente utilizadas em trabalho experimental e clínica com LSD.

Outro resultado positivo de danos cromossômicos meióticos induzidos por LSD foi relatado por Cohen e Mukherjee. Estes autores injetaram em treze ratinhos machos uma única dose de LSD a uma concentração de 25 microgramas por kg. Neste estudo as células meióticas foram aparentemente menos vulneráveis do que as células somáticas. No entanto, houve um aumento de dez vezes em danos nos cromossomos óbvios entre os ratinhos tratados com o LSD. Este atingiu um máximo entre dois e sete dias após a injeção, com uma diminuição subsequente e retorno a níveis quase normais depois de três semanas. Com base nas evidências de estudos citogenéticos clínicos em humanos, os autores concluíram que as anomalias cromossômicas desse tipo pode levar à redução da fertilidade, anomalias congênitas e perda fetal.

Os outros estudos existentes sobre o efeito de LSD em células meióticas trouxe resultados essencialmente negativos. Egozcue e Irwin estudaram os efeitos da administração de LSD em ratinhos e macacos Rhesus. Os ratinhos neste estudo receberam 5 microgramas de LSD por kg diariamente numa série de injeções crescente de um a dez. Quatro adultos machos de macacos Rhesus ingeriram doses de 5, 10, 20 ou 40 microgramas de LSD por kg. Seis meses após a dose única do LSD, três dos quatro macacos receberam outras doses cada, em intervalos de dez dias, de 40 microgramas de LSD por kg em doses. Os autores relataram resultados essencialmente negativos em ambos os ratos e os macacos. Em camundongos, obtiveram quebras cromossômicas ocasionais e fragmentos foram observados em proporções semelhantes nos grupos controles e experimentais. Nos macacos Rhesus, não foram encontradas diferenças significativas, antes ou após o tratamento agudo ou crônico.

Jagiello e Polani publicou os resultados de um estudo detalhado e sofisticado do efeito do LSD sobre as células germinativas do rato. Eles realizaram experiências agudas e crônicas em ambos os sexos de camundongos, masculino e feminino. A dosagem de LSD em experiências crônicas variaram entre 0,5-5,0 microgramas; nas experiências agudas foi administrada uma dose única subcutânea de 1.000 microgramas de LSD por kg. Os resultados deste estudo foram essencialmente negativos. Os autores atribuíram as discrepâncias com outros estudos para o modo de administração, posologia e da estirpe animal envolvida.

Em dois dos estudos existentes, os efeitos do LSD nos cromossomas meióticos foram testados na mosca da banana, ‘Drosophila melanogaster’, um organismo que tem desempenhado um papel importante na história da genética. Em um desses estudos, Graça, Carlson e Goodman injetaram num macho concentrações de 1, 100 e 500 microgramas por cc. A dosagem utilizada é equivalente a cerca de um litro da mesma solução em seres humanos (1000, 100.000 e 500.000 microgramas, respectivamente). Nenhuma quebra cromossômica foi observada nos espermatozóides pré-meióticos, meiose ou pós-meiótico. Os autores concluíram que o LSD é uma classe bastante distinta da de radiação ionizante e gás mostarda. Se é um agente mutagênico ou radiomimético em cromossomas humanos, não é um muito poderoso. Em outro estudo, Markowitz, Brosseau e Markowitz alimentaram com LSD as os machos da fruta em uma solução de sacarose a 1 por cento durante vinte e quatro horas; as concentrações utilizadas foram de 100, 5.000 e 10.000 microgramas por cc. Nestas experiências, o LSD não teve nenhum efeito detectável sobre a ruptura dos cromossomas. Os autores concluíram que o LSD é um agente de quebra do cromossomo relativamente ineficaz em ‘Drosophila’.

Considerável cautela é necessária à extrapolação dos dados sobre o efeito de LSD nos cromossomos meióticos obtidos a partir de experimentos com animais para os seres humanos, por causa de uma pouco ampla variabilidade entre espécies. O único relatório sobre o efeito de LSD em células germinais humanas foi publicada por Hulten et al. Esses autores examinaram a biópsia testicular em um paciente que tinha usado doses maciças de LSD ilícito no passado, até a uma alegada 1.000 microgramas. Por um período de quatro semanas, ele praticou a administração dessas doses diárias. Não houve evidência de um aumento da frequência de aberrações cromossômicas estruturais no tecido germinal dos testículos.

Concluindo esta discussão dos efeitos do LSD na estrutura cromossômica, pode-se dizer que os resultados dos estudos existentes são inconclusivos apesar do fato de que as dosagens utilizadas em muitas experiências excedem em muito as doses utilizadas na prática clínica. Se LSD provoca alterações estruturais nos cromossomos ou não, continua a ser uma questão em aberto. Se isso acontecer, as circunstâncias, a dosagem e o intervalo em que estes ocorrem não foram estabelecidos, e a interpretação dessas mudanças e da sua importância funcional é ainda mais problemática. Esta questão não pode ser respondida, mesmo com base em resultados de estudos cromossômicos metodologicamente perfeitos. Em pesquisas futuras, muito mais ênfase deve ser colocada no estudo do efeito de LSD em mutação genética e desenvolvimento embrionário.

 

EFEITOS MUTAGÊNICOS DO LSD

No passado, o animal experimental clássico para o estudo de mutações genéticas foi a mosca de banana, ‘Drosophila melanogaster’. Vários estudos existem em que o efeito do LSD em mutação genética tem sido observado nesta mosca. Grace Carlson e Goodman estudaram os efeitos mutagênicos de injeções intra-abdominais de LSD em concentrações que variam de 1 a 500 microgramas por cc. Eles não encontraram um aumento na mutações induzidas no grupo tratado com LSD. Na base destes resultados negativos, os autores consideram ser improvável que o LSD induza a mutação em seres humanos. Markowitz, Brosseau e Markowitz alimentaram com LSD moscas machos, em concentrações de 100, 5.000 e 10.000 microgramas por cc. Neste experimento, o LSD produziu um aumento significativo na frequência de mutações letais recessivas ligadas ao sexo. Os autores concluíram que o LSD em concentrações elevadas é um agente mutagênico fraco em Drosophila.

Em vários estudos realizados em ‘Drosophila’, a menor concentração de LSD não teve efeitos mutagênicos, mas um aumento da frequência de mutações induzidas foi observado após doses excessivas. Vann relatou que doses de 24 mil microgramas por kg não produziu nenhum aumento significativo na frequência de letais recessivos, enquanto que uma dose de 470 mil microgramas por kg o fez. Browning administrou injeções intraperitoneais de 0,3 microlitros de uma solução contendo 10.000 microgramas por cc de LSD; esta dosagem corresponde a cerca de 4.000.000 microgramas por kg de peso corporal. Fora de setenta e cinco moscas, apenas quinze sobreviveram a esse procedimento, e dez eram férteis. Nestas circunstâncias, um aumento significativo em mutações letais recessivos no cromossomo X de moscas macho foi observado pelo autor. A diluição 1:1 da solução inicial, quando injetado em cem machos, resultou em trinta e cinco sobreviventes das quais trinta estavam férteis; a frequência de mutações marcadamente caiu. Sram concluiu, com base em suas experiências com LSD na mosca ‘Drosophila’ que o LSD produz mutações genéticas e cromossômicas apenas quando utilizado em concentrações muito elevadas, é um mutagênico fraco; este achado está de acordo com o básico da literatura existente sobre os efeitos mutagênicos de LSD.

Os efeitos do LSD foram também testados em outro sistema genético padrão, ou seja, o fungo ‘Ophistoma multiannulatum’. Zetterberg expôs as células deste fungo de 20-50 microgramas por cc de LSD; ele não encontrou qualquer diferença entre as células tratadas e controle. Os dados sobre moscas ‘Drosophila’ e fungos sugerem que o LSD é um agente mutagênico fraco que só é eficaz em doses muito superiores aos comumente usado por seres humanos.

Existem vários estudos interessantes com foco na interação de LSD com ácido desoxirribonucleico (DNA) e ácido ribonucleico (RNA); estes estudos podem contribuir para a nossa compreensão do mecanismo de interação entre o LSD e os cromossomos ou genes. Yielding e Sterglanz, usando métodos espectrofotométricos, foram capazes de demonstrar a ligação do LSD, o seu isómero óptico inativo, e o seu análogo bromado inativo por ADN helicoidal do timo de vitela. A ligação não ocorreu com RNA ou DNA de levedura ‘nonhelical’, sugerindo que esta ligação é específica para DNA helicoidal.

Wagner conclui, com base em suas experiências, que o LSD interage diretamente com o DNA de timo de vitela purificada, provavelmente por intercalação, causando alterações conformacionais no DNA. De acordo com ele, é pouco provável que isso poderia influenciar a estabilidade interna da hélice de DNA o suficiente para causar ruptura cromossômica. No entanto, isso pode levar à dissociação de histonas, que poderiam tornar o DNA suscetível ao ataque enzimático. Smythies e Antun realizaram experimentos semelhantes e chegaram à conclusão de que o LSD se liga a ácidos nucleicos por intercalação. De acordo com Dishotsky et al., a evidência de LSD em intercalação na hélice do DNA fornece uma pista para o mecanismo físico envolvido nos efeitos mutagênicos de altas doses de LSD em ‘Drosophila’ e do fungo, como revisado acima.

Nosal investigou os efeitos do LSD sobre as células de Purkinje do cerebelo de ratos em crescimento. Estes estudos foram especificamente focados na ação de ribonucleoproteína (RNP) do sistema de núcleo-ribossomo diferenciação. Só as grandes doses de LSD (100-500 microgramas por kg) pareciam induzir mudanças na estrutura e coloração das propriedades deste sistema celular.

Obviamente, muito mais pesquisas são necessárias para o esclarecimento final da interação interessante entre LSD e várias substâncias químicas envolvidas nos mecanismos genéticos.

 

EFEITO TERATOGÊNICO DO LSD

Tem sido frequentemente hipótese no passado, que o LSD poderia ser uma causa potencial de abortos, perda fetal e malformações congênitas. Os estudos experimentais reais do efeito do LSD no desenvolvimento embrionário têm sido feitos principalmente em roedores. Como a transferência transplacentária livre de LSD foi demonstrada em um estudo realizado por autoradiografia de Idanpään-Heikkilä e Schoolar, é concebível que ele pode influenciar o desenvolvimento do feto. Neste estudo, o LSD injetado, rapidamente passa a barreira placentária para o feto; no entanto, de acordo com os autores, a afinidade relativamente elevada de LSD para os órgãos maternos pareceram diminuir a quantidade de droga disponível em transferência para o feto em si.

Os dados experimentais de camundongos, ratos e hamsters têm sido bastante controversos. Auerbach e Rugowski relataram uma alta taxa de malformações embrionárias em ratos após doses relativamente baixas de LSD administrados no início da gravidez. Em todos os casos as malformações induzidas envolviam defeitos cerebrais característicos. Anomalias na mandíbula inferior, mudanças na posição dos olhos e de alterações do contorno facial foram frequentemente associados com estes defeitos. Não houve efeito observável sobre o desenvolvimento embrionário e se a exposição ao LSD ocorreu mais tarde do que o sétimo dia de gestação. Estes resultados foram parcialmente apoiados por Hanaway, que experimentou LSD em ratinhos de uma estirpe diferente. Usando doses comparáveis, ele descreveu uma alta incidência de anormalidades na lente; no entanto, ele não foi capaz de descobrir qualquer malformação do sistema nervoso central, mesmo em exame histológico. DiPaolo, Givelber e Erwin administraram LSD para ratos e hamsters grávidas. A quantidade total de LSD injetado em camundongos variou de 0,5 microgramas até 30 microgramas por animal grávida; Hamsters sírios foram injetados com uma única dose que varia entre 10 e 300 microgramas. Os autores concluíram que a investigação não conseguiu demonstrar se o LSD é teratogênico em camundongos e hamsters sírios. Eles interpretaram o aumento da frequência de embriões malformados em algumas das experiências, como uma indicação de um efeito de potenciação de LSD em diferenças nos limiares individuais. É necessário ressaltar que as doses utilizadas neste estudo foram de 25 a 1.000 vezes a dose humana. Alexander et al. administraram 5 microgramas por kg de LSD a ratas prenhes. Eles descreveram um aumento significativo da frequência de natimorto e retardo de crescimento em duas das suas experiências em que o LSD foi administrado no início da gravidez. Na terceira experiência, onde os animais receberam injeções únicas similares de LSD no final da gravidez, não houve qualquer efeito óbvio na prole. Geber relatou um estudo em hamsters grávidas no qual ele administrou LSD, mescalina e um derivado bromado de LSD. Ele descreveu um acentuado aumento da frequência de nanismo, fetos mortos e fetos reabsorvidos nos grupos experimentais. Além disso, ele observou uma variedade de malformações do sistema nervoso central, tais como exencefalia, espinha bífida, meningocele interparietal, onfalocele, hidrocefalia, mielocele e hemorragias de áreas cerebrais locais, bem como edema ao longo do eixo da coluna vertebral e em várias outras regiões do corpo . As dosagens de LSD utilizados nesta experiência variou entre 0,8 microgramas por kg e 240 microgramas por kg. No entanto, não houve correlação entre a dose e o percentual de malformação congênita. O LSD e a mescalina produziram malformações semelhantes; mescalina parecia ser um agente teratogênico menos potente, como julgado pela dose.

Existem uma série de estudos em que os resultados negativos foram relatados em todas as espécies mencionadas. Roux, Dupois e Aubry, administraram doses de LSD de 5-500 microgramas por kg por dia para camundongos, ratos e hamsters. Não houve aumento da mortalidade fetal ou diminuição do peso médio dos fetos para qualquer grupo de animais experimentais. Não houve aumento significativo na incidência de malformações externas, e cortes realizados em aproximadamente 40 por cento dos animais experimentais não mostraram quaisquer malformações viscerais. Os autores concluíram, com base nos resultados, que nas três espécies estudadas, não foram observadas abortivos, fatores de crescimento deprimentes embrionários ou teratogênicos, mesmo após doses enormes.

Pelo menos quatro estudos sobre o efeito teratogênico do LSD realizados em ratos trouxe resultados negativos. Warkany e Takacz não encontraram anormalidades em seus ratos Wistar experimentais, apesar do fato de que eles usavam grandes doses de LSD (até oitenta vezes, dado por Alexander et al.), o único achado foi uma redução no tamanho de um dos jovens. Nosal administrou LSD a ratos fêmeas grávidas em doses de 5, 25 e 50 microgramas por kg no quarto e sétimo dias de gestação. Ele não observou malformações externas da cabeça, coluna vertebral e extremidades, ou lesões macroscópicas do sistema nervoso central e vísceras. Não houve diferenças em relação aos controles quanto à mortalidade e a reabsorção fetal ou redução no número e tamanho das crias, mesmo com dosagens mais elevadas. Os resultados negativos também foram obtidos em dois estudos realizados e publicados por Uyeno.

Fabro e Sieber (35) estudaram o efeito de LSD e talidomida no desenvolvimento fetal de coelhos brancos. A talidomida teve um efeito embriotóxico marcado e produziu um aumento na incidência de reabsorção, redução do peso fetal média, e malformações induzidas de fetos. Coelhas grávidas dado LSD em uma dosagem de 20 ou 100 microgramas por kg de peso corporal ninhadas produzidas as quais não foram significativamente diferentes dos controles. Diminuição do peso fetal médio em 28 dias foi o único efeito que poderia ser detectada nas ninhadas de não tratados com doses diárias tão elevadas como 100 microgramas por kg.

Como enfatizou Dishotsky et al., uma visão do conjunto de estudos com roedores, indica uma ampla gama de indivíduos, tensão, e susceptibilidade das espécies para os efeitos do LSD. O efeito, quando encontrado, ocorre num momento altamente específico no início da gestação; nenhum efeito foi relatado com exposições ocorridas no final da gravidez. Extrema cautela é necessária à extrapolação dos resultados dos estudos com roedores com a situação humana, uma vez que o desenvolvimento fetal e crescimento dessas espécies é marcadamente diferente. Roedores carecem das vilosidades coriônicas na placenta, de modo que o sangue fetal é separado dos seios maternos apenas por paredes endoteliais. Isso faz com que os roedores sejam muito mais sensíveis do que os humanos ao potencial teratogênico de uma determinada substância.

No estudo experimental existente apenas em primatas, Kato et al. administraram múltiplas injeções subcutâneas de LSD em macacos Rhesus grávidas. Dos quatro animais tratados, um teve um bebê normal, dois eram natimortos com deformidades faciais e um morreu de um mês. Os dois animais de controle tiveram prole normal. A dose usada neste estudo foi de mais do que 100 vezes a dose experimental normal para o ser humano. Os próprios autores concluíram que o pequeno tamanho de sua amostra tornou impossível tirar qualquer conclusão definitiva.

As informações sobre a influência do LSD sobre o desenvolvimento de embriões humanos é escassa e só existe sob a forma de observações clínicas. Por razões óbvias, este problema não pode ser abordado de forma experimental em seres humanos. Há seis casos notificados de crianças malformadas nascidas de mulheres que ingeriram LSD ilícito, antes ou durante a gravidez. Abbo, Norris e Zellweger descreveram uma criança que nasceu com uma anomalia congênita do membro. Ambos os pais da criança tinha tomado LSD de alegada desconhecida pureza e quantidade a partir de uma fonte não identificada em um número indefinido de vezes. A mãe ingeriu LSD quatro vezes durante a gravidez, duas vezes durante os primeiros três meses, que é o tempo em que os membros são diferenciados. Zellweger, McDonald e Abbo relataram o caso de uma criança que nasceu com uma deformidade complexa unilateral da perna. Esta anomalia, a chamada síndrome aplástica fibular, inclui ausência de fíbula, arqueamento anterior da tíbia encurtada, ausência de raios laterais do pé, encurtamento do fêmur, e luxação do quadril. Os pais desta criança tomou LSD ilícito, a mãe no dia 25 e três vezes entre o dia 45 e 98 depois de seu último período menstrual. Os autores enfatizaram o fato de que a sétima semana de gestação é o período de diferenciação mais ativo dos membros inferiores; este também foi estabelecido para a embriopatia talidomida. Hecht et al. observaram malformação do braço, no caso de uma criança cujos pais tinham tomado LSD e fumavam maconha. A mãe usou quantidades desconhecidas de LSD antes e durante a gravidez precoce. Os autores concluíram que a relação da deformação ao LSD, neste caso, não é clara. Carakushansky, Neu e Gardner relataram um caso similar. Tratava-se de uma criança com um déficit de terminal transversal das porções de dedos na mão esquerda e sindactilia da mão direita com os dedos mais curtos. Esta malformação é caracterizada por uma insuficiência dos dedos para separar e funcionar independentemente. A mãe acreditava ter sido exposta ao LSD e maconha durante a gravidez. Eller e Morton apresentaram um relatório de um bebê severamente deformada com uma anomalia envolvendo desenvolvimento defeituoso da parte torácica do esqueleto (displasia spondylothoracic). Esta condição rara havia sido descrita anteriormente apenas em filhos de pais porto-riquenhos. A mãe, neste caso, tomou LSD uma vez em torno do momento da concepção. Os autores questionam a relação causal entre o LSD e a deformidade. Finalmente, Hsu, Strauss e Hirschhorn publicaram o relatório de um bebê do sexo feminino nascido com malformações múltiplas, de pais que eram ambos usuários de LSD antes da concepção. Durante a gravidez, a mãe também usou maconha, barbitúricos e metedrina. As malformações neste caso foram associadas com aberrações cromossômicas que indicam a chamada síndrome de trissomia 13.

Berlin e Jacobson estudaram 127 gestações em 112 mulheres em que um ou ambos os pais admitiram tomar LSD antes ou após a concepção da criança. Segundo os autores, sessenta e duas gravidezes resultaram em nascidos vivos, seis dessas crianças tinham anormalidades congênitas, com um óbito neonatal. Um dos cinquenta e seis recém-nascidos normais morreu de uma hemorragia intrapulmonar. Sessenta e cinco gestações foram interrompidas por aborto; sete abortos foram espontâneos e quatro desses fetos eram anormais. Fora de catorze abortos terapêuticos, havia quatro fetos anormais. A taxa de defeitos do sistema nervoso central foi de cerca de dezesseis vezes maior do que na população normal. Uma das descobertas em todos os espécimes de aborto foi o fracasso da fusão do córtex. Três das seis crianças anormais nascidas vivas tinham mielomeningocele e hidrocefalia; um tinha apenas hidrocefalia. Os próprios autores enfatizaram que as mães neste estudo foram de uma população de muito alto risco obstétrico, por muitas razões. Além da ingestão alegada de LSD, houve uso de múltiplas drogas (15 por cento usaram narcóticos), doenças infecciosas e desnutrição. A maioria dos abortos terapêuticos foram feitos por razões psiquiátricas. Trinta e seis por cento das mulheres tinham sido submetidos a extensas investigações radiológicas para queixas abdominais.

Berlin e Jacobson estudaram, bem como todos os relatórios de casos mencionados anteriormente de anormalidades fetais, crianças nascidas de pais que ingeriram substâncias ilícitas de dosagem e origem desconhecidas, que foram consideradas como LSD; até o momento não há relatos de malformações congênitas na prole humana exposta a LSD puro. Além disso, como Blaine apontou em sua crítica bastante amarga e enfática do papel por Eller e Morton, não há nenhuma evidência científica nessas histórias de casos individuais de uma relação causal entre a ingestão de substâncias ilícitas e o desenvolvimento posterior da malformação embrionária. Os resultados poderiam representar coincidências puras e estar relacionados com qualquer número de situações que contribuem para anomalias congênitas, como a nutrição materna, fisiológica, estados psicológicos e patológicos, as circunstâncias socioeconômicas, ou várias práticas culturais. Diferenças no tipo e gravidade das malformações pode ser devida a fatores genéticos, tanto embrionárias e parentais.

Não existe uma quantidade considerável de evidências clínicas contradizendo ou limitando as conclusões anteriores. Três estudos com foco principalmente na frequência das interrupções cromossômicas em crianças expostas ao LSD ilícito ‘in utero’ relataram as taxas de ruptura elevadas dos cromossomos. No entanto, todas as quatorze crianças estudadas estavam em boas condições de saúde e não tinham indicações de defeitos congênitos. É interessante notar, neste contexto, que a hipótese de uma possível ação teratogênica do LSD foi originalmente derivada a partir de observações de aumento da quebra de cromossomas. Na maioria dos casos notificados de malformações congênitas reais atribuídas ao LSD, os achados cromossômicos foram normais. Por outro lado, as crianças expostas ao LSD ‘in utero’ e relatados como tendo danos cromossômicos não mostraram anormalidades físicas. Embora não seja comum, por razões óbvias, a publicar histórias de casos com resultados negativos, Sato e Pergament apresentaram em sua discussão do caso de Zellweger et al. Eles descreveram um recém-nascido cuja mãe tinha tomado LSD antes e durante a gravidez precoce seis vezes. A gravidez foi normal e ela deu à luz em prazo total a uma menina saudável. As doses alegadas de LSD tomadas pela mãe foram suficientes para produzir um efeito psicodélico. Ela tomou LSD durante a fase crítica para a produção de deformidades nos membros, como no caso de Zellweger, mas sem deformidades fetais.

Aase, Laestadius e Smith observaram um grupo de dez mulheres grávidas que foram verificadas como tendo ingerido LSD em dosagens alucinatórias. Essas mulheres, posteriormente, tiveram dez crianças saudáveis. Não houve evidência de efeitos teratogênicos ou dano cromossômico em qualquer um desses dez bebês considerados de terem sido expostos ao LSD no útero. Os autores apontam um fato mais interessante, que todas as crianças entregues eram meninas. A baixa probabilidade de este ser um acontecimento aleatório sugere que o LSD pode ter uma influência sobre a proporção entre sexos. Healy e Van Houten calcularam que a probabilidade de toda a série de dez gestações de crianças do mesmo sexo é de 1:1024. Eles sugeriram que o LSD poderia melhorar a incompatibilidade imunológica básica entre fetos masculinos e seus hospedeiros maternos; isto resulta na detecção do tecido fetal como antigênico. Uma hipótese semelhante foi oferecida no passado como uma explicação sobre a observação de que mulheres que se tornaram esquizofrênicas no prazo de um mês da concepção deram a luz apenas a descendentes do sexo feminino.

McClothlin, Sparkes e Arnold estudaram 148 gestações humanas após a ingestão de LSD; isso era parte de um estudo maior de 300 pessoas escolhidas aleatoriamente em uma população de 750 que receberam LSD por via oral em um cenário experimental qualquer ou psicoterápico. O número de sessões variaram entre um e oitenta e cinco, e as doses habituais eram 25-400 microgramas. Para vinte e sete gravidezes, houve a utilização adicional de LSD em condições não-médicas. Em uma pequena porcentagem maconha (8 por cento) e fortes psicodélicos, como o peiote, mescalina e psilocibina também foram utilizados. Os autores não encontraram evidências de que o uso de LSD em doses razoáveis por homens antes da relação que levaram à concepção, estavam relacionados a um aumento da taxa de abortos, nascimentos prematuros ou defeitos de nascimento. No entanto, eles encontraram alguma evidência de que o uso de LSD pelas mulheres antes da concepção pode aumentar a incidência de abortos espontâneos; o nexo de causalidade entre esses dois eventos não é claro e requer mais pesquisas. Havia pouco para sugerirem que a exposição de um dos pais para o LSD antes da concepção e nos montantes descritos neste estudo aumentou o risco de ter um filho com um defeito congênito. O único risco aumentado observado no presente estudo, portanto, foi uma possível maior incidência de abortos espontâneos entre as mulheres expostas ao LSD. Abortos espontâneos ocorreram significativamente mais frequentemente quando a mãe tinha tomado LSD do que quando o pai tinha tomado. Os autores ofereceram duas explicações para esse achado: (1) O período necessário para o processo de maturação dos óvulos é muito longo; leva vários anos, em comparação com algumas semanas para os espermatozoides. (2) Em metade dos casos, foram dados às mães LSD médico para fins terapêuticos. É um fato bem conhecido que há maior estresse emocional em pacientes neuróticos aumenta a incidência de abortos, e isso sugere que a conexão encontrado na amostragem entre LSD e aborto não pode ser causal em tudo, mas mera coincidência.

Arendsen-Hein apresentaram no Congresso da Associação Médica Europeia para Terapia Psicolítica, em Wurzburg, em 1969, dados sobre a descendência de 4.815 ex-pacientes de LSD de vários países europeus, incluindo a Inglaterra. De 170 crianças nascidas, esses pacientes, depois de terem concluído a terapia com LSD, envolvidos frequentemente em múltiplas exposições, apenas dois apresentaram anomalias congênitas. Uma criança teve uma luxação da articulação do quadril esquerdo; outra criança, nascida de um casal em que o pai usava LSD, teve o dedo mindinho e o dedo anelar por um lado crescido juntos (sindactilia). Duas mulheres desta amostra tomaram LSD dentro de 14 dias após a concepção (em um caso de 400 microgramas), e os dois filhos estavam normais. Assim, de 170 crianças, apenas duas apresentaram patologia; o autor sentiu que mesmo nesses dois casos, as anomalias eram de um tipo comum e não poderia ser atribuída ao LSD, por qualquer motivo somente.

A evidência experimental e clínica para os efeitos teratogênicos do LSD podem ser resumidos como se segue. Aumento da incidência de malformação congênita tem sido relatada em camundongos, ratos e hamsters; no entanto, existem uma série de documentos que contradizem esses achados. As informações a partir de experimentos em primatas inferiores, ainda que preliminar, sugere um possível efeito teratogênico e merece uma investigação mais aprofundada. Existem vários relatos de casos de crianças malformadas nascidas de usuários de LSD ilícito, e um estudo sugerindo uma alta incidência de defeitos congênitos e abortos neste grupo. A relação causal dessas malformações ao uso de LSD não foi estabelecida. A composição química desconhecida das amostras do alegado LSD, bem como a existência de muitas outras variáveis importantes que caracterizam o grupo de “usuários de LSD” (tais como infecções, desnutrição, uso múltiplo de drogas e distúrbios emocionais) deixaram todas as conclusões em aberto para a pergunta. Não há indicações de um risco aumentado de abortos espontâneos relacionados com a utilização de LSD. Não há nenhuma evidência neste momento que o LSD puro causa defeitos de nascimento ou perda fetal em seres humanos. No entanto, para fins clínicos práticos, gravidez deve ser considerada uma contraindicação para a administração de LSD. Isso não é algo único e específico para LSD; cautela semelhante é necessária em relação a muitas outras substâncias. O equilíbrio entre o organismo materno e o desenvolvimento do feto, especialmente no primeiro trimestre de gravidez, é muito precário e pode ser perturbado por uma ampla variedade de influências externas.

 

EFEITOS CANCERÍGENOS DO LSD

Tem sido repetidamente mencionado na literatura que o LSD pode ter potencial carcinogênico. Esta especulação apareceu pela primeira vez no jornal por Cohen, Marinello e Back. Os autores chegaram a essa conclusão a partir de suas descobertas de uma acentuada maior frequência de quebra cromossômica em uma figura de câmbio do cromossomo quadriradial em um paciente com esquizofrenia paranoide que havia sido submetido à extensa psicoterapia com LSD. Esta é uma combinação que ocorre em três doenças hereditárias: a síndrome de Bloom, anemia e ataxia teleangiectatica de Fanconi. Estes distúrbios estão relacionados com uma incidência elevada de leucemia e outras doenças neoplásicas. Os autores também apontaram que as células de origem neoplásica mostraram uma variedade de aberrações cromossômica, muitas das quais não são diferentes das que tinham encontrado em indivíduos após a ingestão de LSD. Além disso, alguns dos agentes conhecidos para a produção de aberrações cromossômicas semelhantes, tais como vírus e várias radiações, são conhecidos cancerígenos.

A hipótese cancerígena foi apoiada pelo achado de Irwin e Egozcue, de que nove indivíduos que tinham tomado LSD ilícito tinha fragmentos cromossômicos que assemelhavam-se a chamada Philadelphia (Ph.) Cromossomo, geralmente associado a leucemia granulocítica crônica. Grossbard et al. encontraram um cromossomo Ph1-como em todos os trinta e cinco leucócitos periféricos de um indivíduo que tinha usado LSD e outras drogas ilícitas e que mais tarde desenvolveu leucemia aguda.

Várias sérias objeções podem ser levantadas contra essa hipótese. Em primeiro lugar, a evidência de que o LSD puro provoca aberrações cromossômicas são bastante problemáticas e inconclusivas. Em segundo lugar, a causa das lesões cromossômicas nos transtornos herdados, acima mencionados, não é conhecido, nem foi estabelecido se essas lesões têm qualquer relação com os desenvolvimentos neoplásicos subsequentes. Existem muitos agentes de quebra de cromossomas que não estão associadas com a leucemia, e outras figuras de rearranjo quadriradial também foram encontradas nas células brancas do sangue de indivíduos normais. Em terceiro lugar, a comparação de Cohen dos efeitos do LSD com os de radiação não parece ser bem fundamentada pelos achados clínicos e experimentais. De acordo com Dishotsky et al., lesões cromossômicas de longo prazo de injeção após o LSD, foi avaliado em três estudos retrospectivos. Em dois relatos de indivíduos estudados antes e depois, eles tomaram LSD (abordagem prospectiva), o dano ocasional que foi encontrado foi, sem exceção, transitório, o que sugere uma reversibilidade do efeito, ao contrário do que se relaciona com a radiação. Em quarto lugar, o cromossomo Ph1-apreciado foi relatado em apenas dois estudos; em ambos foi encontrado em leucócitos periféricos. Na leucemia granulocítica crônica, o cromossoma Ph1 é característica única de células mieloides e eritroides, que normalmente não se dividem no sangue periférico. Dishotsky et al. faz citação de Nowell e Hungerford, que inicialmente descrevram esta lesão: “Um cromossomo compatível com o Ph teria que ser observado em outras células do sangue do que os linfócitos a ser relevante para a questão da leucemia granulocítica crônica”.

Apenas dois casos de leucemia foram relatados em indivíduos que foram tratados no passado com LSD puro. Em ambos ele continua a ser estabelecido se a associação representa uma relação causal ou uma coincidência. Em um desses casos, relatados por Garson e Robson, houve uma “notável incidência de neoplasias malignas fortemente sugestivas de uma predisposição familiar à doença maligna de infância”. No presente momento a hipótese cancerígena parece estar bastante mal apoiada por dados experimentais e clínicos e permanece no reino da pura especulação. Não parece haver nenhuma evidência definitiva de que o LSD é um agente cancerígeno.

 

RESUMO E CONCLUSÃO

Dois terços dos estudos ‘in vitro’ existentes relataram algum grau de aumento da quebra de cromossomas, após a exposição ao LSD ilícito ou puro. Com uma exceção, essas mudanças foram observadas com concentrações de LSD e durações de exposição que excedeu em muito as doses normalmente utilizadas em seres humanos. Em nenhum dos estudos estava lá uma relação clara de dose-resposta. Desde achados semelhantes foram relatados com muitas substâncias comumente usadas, incluindo adoçantes artificiais, aspirina, cafeína, tranquilizantes fenotiazínicos e antibióticos, não há nenhuma razão para que LSD deva ser destacado e colocado em uma categoria especial. Não há justificativa para se referir às mudanças estruturais dos cromossomos como “dano cromossômico”; sua relevância funcional e relação com hereditariedade ainda não foi estabelecida. Além disso, o fato de que os experimentos ‘in vitro’ contornam o sistema excretor e desintoxicantes presente no organismo integrante, lança dúvidas sobre a relevância global dos resultados ‘in vitro’.

Nos estudos cromossômicos ‘in vivo’, a maioria dos resultados positivos foi relatado em pessoas que haviam sido expostos ao ilícito, “suposto” LSD. Dishotsky et al., em sua excelente revisão sinóptica dos estudos cromossômicos feitos no passado, resumiu as provas existentes nos jornais ‘in vivo’ da seguinte forma:. “Em vinte e um estudos ‘in vivo’ cromossômicas, foram registrados um total de 310 indivíduos. Destes, 126 foram tratados com LSD puro, os outros 184 foram expostos ao ilícito, alegando ser LSD. Apenas 18 dos 126 (14,3 por cento) dos indivíduos do grupo de LSD puro foram relatados para ter frequência de aberrações cromossômicas acima das taxas médias de controle. Em contraste, 89 de 184 (48,9 por cento) dos indivíduos no grupo LSD ilícito tinham elevadas frequências de aberrações. De todos os entrevistados que disseram ter danos cromossômicos, apenas 18 dos 108 (16,7 por cento) foram expostos a LSD puro. A frequência de indivíduos com danos cromossômicos relatados entre os usuários de drogas ilícitas foi quase o triplo que associado com o uso de LSD farmacologicamente puro. “Estes resultados indicam que aberrações cromossômicas quando encontradas foram relacionados com os efeitos mais gerais do abuso de drogas e não do LSD por si só; é altamente improvável que o LSD puro, ingerido em doses moderadas, produza aberrações cromossômicas nas células brancas do sangue”.

Os resultados positivos em alguns dos estudos cromossômicos usando leucócitos humanos foram interpretados como uma indicação de danos genéticos e de perigo para as gerações futuras. Para ser relevante genético direto, no entanto, o dano cromossômico teria que ser demonstrado nas células germinais, os espermatozoides e óvulos, ou suas células precursoras. Vários estudos existentes sobre o efeito do LSD nos cromossomas meióticos foram inconclusivos, apesar do uso de doses excessivas. Os estudos de mutação em ‘Drosophila melanogaster’ não indicam nenhum efeito mutagênico, 28-500 microgramas de LSD por cc e um efeito mutagênico definitivo de 2,000-10,000 microgramas de LSD por cc. O fato de que as dosagens verdadeiramente astronômicas tem que ser utilizado para induzir mutações em ‘Drosophila’ mostra o LSD como um mutagênico bastante fraco; que é pouco provável que seja mutagênico em qualquer concentração usada por indivíduos humanos.

Em alguns dos primeiros estudos, o LSD foi implicado como uma potencial causa de malformações congênitas, abortos e perda fetal. Os relatórios originais dos efeitos teratogênicos em hamsters, ratos e camundongos não foram confirmados por estudos posteriores. As experiências em roedores indicaram uma vez vasta gama de tensão individual e susceptibilidade das espécies para os efeitos do LSD. É altamente questionável se e em que medida os resultados de tais investigações podem ser extrapolados para a situação em humanos. Houve seis casos concretos relatados de crianças malformadas nascidas de pais que usaram LSD ilícito. Apenas uma equipe de trabalhadores relataram um aumento da frequência de malformações congênitas na prole de usuários de LSD ilícito. Em relação à alta frequência de defeitos congênitos inexplicáveis “espontâneos” e ao abuso generalizado de LSD, as observações acima podem ser coincidência. O aumento da ocorrência de malformações em utilizadores LSD relatados em um dos estudos podem ser explicados por muitas outras variáveis que caracterizam este grupo, e não há nenhuma razão lógica para implicar LSD como o fator único ou mais importante. No presente momento não há evidências claras de que o LSD puro é teratogênico em humanos. No entanto, em virtude da elevada vulnerabilidade do feto em desenvolvimento para uma grande variedade de substâncias e condições, a administração de LSD está contraindicado para o período de gestação.

Não há dados clínicos ou experimentais que demonstrem que o LSD tem propriedades cancerígenas, como sugerido por alguns dos primeiros estudos. Já foi detectado que não há nenhum aumento na incidência de tumores entre os utilizadores de LSD. Relatos de casos de leucemia e tumores malignos na população de usuários de LSD têm sido extremamente raros. Nos três relatos de casos existentes de leucemia, não houve nenhuma prova ou mesmo indício de uma relação causal, e a associação de leucemia com o uso de LSD pode ter sido apenas uma coincidência.

Como esta análise mostra, não existe nenhuma evidência experimental ou clínica convincente para provar que as doses comumente utilizados de LSD puro produza mutações genéticas, malformações congênitas ou tumores malignos. Na medida em que está em causa o LSD ilícito, a situação é muito mais complexa, e os resultados dos estudos de usuários de LSD ilícito não deve ser considerado relevante para a questão dos perigos biológicos do LSD. Incertezas sobre a dosagem, e a contaminação de amostras de drogas psicodélicas por várias impurezas e aditivos no mercado negro contribuem com uma dimensão muito importante para os já graves problemas psicológicos associados com a autoexperimentação sem supervisão. Watch UK online porn https://mat6tube.com/ Diana Dali, Patty Michova, Alina Henessy, Kira Queen etc.

Não há absolutamente nenhuma indicação nos dados de pesquisas disponíveis atualmente que o uso responsável experimental e terapêutico de LSD por profissionais experientes deve ser interrompido.

FONTE psychedelic-library.org 

Agradecemos imensamente a tradução feita pelo colaborador Cezar Braga.
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equipemundocogumelo@gmail.com


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Os Benefícios de Microdoses de LSD e Psilocibina

Se há alguma verdade na teoria do símio chapado de Terence McKenna então a evolução do ser humano pode dever muito à microdosagem de psicodélicos – a prática de tomar uma dose sub-percentual (uma quantidade muito pequena para produzir efeitos psicodélicos) de uma substância como o LSD ou a psilocibina. Assim como aqueles que leram O Alimento dos Deuses de Terence Mckenna sabem, o autor propôs que a jornada coletiva de nossa espécie do Homo erectus ao Homo sapiens pode ter começado com primatas caçadores e coletores que tomavam doses baixas de cogumelos mágicos para melhorar suas habilidades de caça.

De acordo com o autor James Oroc, a prática de tomar microdoses para melhorar a acuidade visual, energia e tempo de resposta está viva e bem durante os dias atuais, especialmente entre alguns entusiastas de esportes extremos. “Virtualmente, todos os atletas que aprendem a utilizar o LSD em doses psicolíticas (baixas a médias) acreditam que o uso desse composto melhora sua energia e suas habilidades”, escreveu Oroc na edição de primavera de 2011 da MAPS Bulletin.

Deixando os poderes atléticos de lado, inúmeros experimentos e participantes de pesquisas relataram que doses sub-limiares de psicodélicos melhoraram seu bem-estar geral e/ou aliviaram condições específicas como a depressão e cefaleias em salvas. Outros, como em uma discussão em um tópico sobre microdosagem no Reddit, utilizaram microdoses como ferramentas na resolução de problemas.

Doutor James Fadiman.
Doutor James Fadiman.

O Doutor James Fadiman, Ph.D, que foi parte de um grupo de pesquisadores da Califórnia que estudaram o uso dos psicodélicos na resolução de problemas em 1966, tem analisado os efeitos da microdosagem desde 2010. “Essa prática aparenta melhorar tudo o que você faz um pouco”, disse Fadiman à Reset. “Muitas pessoas disseram que ficam mais confortáveis com o que estão fazendo, e o fazem um pouco melhor”.

Os participantes do estudo de Fadiman inicialmente o contataram através do email jfadiman@gmail.com. Ele responde enviando um protocolo que consiste essencialmente de uma sugestão em que os participantes façam microdosagem todo quarto dia do mês, e façam notas de como eles estão se sentindo de um dia para o outro. Fadiman não providencia os psicodélicos, ao invés disso, ele oferece informações e orientações para ajudar a maximizar a experiência de usuários que já tenham seu próprio material. Desse modo, Fadiman coletou aproximadamente 30 relatos, variando em seu tamanho de 3 parágrafos a textos com 30.000 a 40.000 palavras.

Em um capítulo do livro de Fadiman chamado “O Guia do Explorador Psicodélico” chamado “Podem microdoses de psicodélicos melhorarem o funcionamento normal?”, um participante do estudo descreve uma dose de 10 a 20 microgramas de LSD como um estimulante e um agente calmante. De acordo com suas notas, microdoses parecem aumentar sua inteligência, tempo de resposta e acuidade visual e mental. “Sub-doses de 10 a 20 microgramas me permitiram aumentar meu foco, abrir meu coração, e alcançar resultados integrados em minha rotina”, segundo seu relato.

Esse foco e claridade melhorados podem ser especialmente úteis para artistas, escritores e outras pessoas trabalhando em campos criativos. “O que as pessoas relatam sobre a realização de seus trabalhos criativos é que eles não estão criando em um nível mais elevado, mas eles estão criando mais, eles ficam na inspiração por mais tempo”, afirmou Fadiman, que também coletou dados sobre microdosagem de um tópico sobre doses baixas de LSD no bluelight.org. Ele disse que conhece dois escritores notáveis  que utilizaram doses sub-limiares de psicodélicos enquanto escreviam os primeiros rascunhos de todos os capítulos de seus livros mais recentes.

Cogumelos mágicos
Cogumelos mágicos

Juntamente com o que um participante do estudo definiu como um “melhorador do chakra completo”, microdoses mostram promessas no tratamento de cefaleias em salvas, dor que é dita ser maior que a do parto e de pedras nos rins. Através do seu trabalho com um grupo chamado Clusterbusters®, Fadiman entrou em contato com um número de pacientes que sofrem de cefaleias que encontraram alívio de sua condição através do uso de LSD e cogumelos depois que todos os outros tratamentos falharam. Embora as doses que os pacientes utilizam para curarem suas dores de cabeça são geralmente muito altas para serem consideradas sub-limiares, Fadiman mencionou um paciente que utilizou uma microdose de LSD para se livrar de uma dor de cabeça em cinco a dez segundos. O usuário atingiu o mesmo resultado diversas vezes nos meses seguintes. Desde então, suas cefaleias cessaram.

Diversos participantes da pesquisa também disseram a Fadiman que microdosagens aliviaram seus quadros clínicos de depressão. Um paciente, que sofre da doença de Parkinson, relatou que depois de um mês microdosando com LSD seus sintomas de Parkinson não melhoraram, mas sua depressão subjacente sim. Fadiman ressaltou, entretanto, que devido aos dados dessa pesquisa serem coletados em uma base mensal de microdoses, ele não sabe ainda até que ponto essa prática pode auxiliar na melhora da depressão a longo prazo.

Se estudos futuros mostrarem que a microdosagem é tão efetiva quanto um anti-depressivo em longo prazo quando ela aparenta ser em curto prazo, então ela pode ser uma alternativa viável para estabilizadores de humor prescritos, muitos dos quais são altamente viciantes. Em vista de seus efeitos energizantes e de foco, doses sub-limiares de psicodélicos podem também fornecer um substituto confiável para medicações anti-TDAH e outros farmacêuticos melhoradores da cognição. Dando credibilidade para essa informação, um participante do estudo de Fadiman contou que microdoses o auxiliaram a se livrar do vício em Adderall, uma droga viciante anti-TDAH também utilizada por muitos estudantes durante sessões de estudos noturnas.

Parafraseando Carl Hart, Ph.D, um professor de bioquímica em Columbia, Fadiman disse, “O Adderral não é diferente das anfetaminas de rua fabricadas no porta malas do carro de alguém. Então as drogas que apodrecem seu cérebro e pelas quais pessoas estão sendo presas são as mesmas drogas que estamos dando para milhares de crianças todas as manhãs”.

Adderall
Adderall

Expondo as propriedades aditivas de certas drogas prescritas, Fadiman observou, “Como uma pista geral, se a bula diz ‘não perca uma dose, e não tente parar essa medicação sem auxílio médico’, você já sabe que você tem uma droga que é difícil de se livrar. É uma área muito complicada, por que a indústria farmacêutica parece não se preocupar com esse problema. Em fato, há um termo na literatura médica para quando você está tentando parar de utilizar essas substâncias. Não é chamado de “abstinência”, assim como para as drogas ilegais, mas sim “afunilamento”.

Ele adicionou que esse afunilamento pode ser um processo longo: alguns pacientes que tomavam cápsulas de liberação longa preenchidas com algumas centenas de micropontos cada uma passaram a tratar a dependência dessas drogas diminuindo a quantidade ingerida para um microponto simples com intervalos de alguns dias a semanas.

Albert Hofmann, o químico suíço que descobriu o LSD, é conhecido por ter sido um  proponente da microdosagem como uma alternativa para a droga estimulante anti-TDAH chamada Ritalina (também conhecida como “a droga mais abusada nos EUA” pelo site AddictionHope.com). É muito provável que Hofmann, que microdosava com LSD com frequência nas últimas décadas de sua vida e considerava essa prática a área de pesquisa psicodélica a menos pesquisada, consideraria que doses sub-limiares de psicodélicos seriam um substituto viável para anfetaminas anti-TDAH recentes como o Adderall ou Vyvanse. Ambas não vêm sem efeitos colaterais muito perigosos. O website Web MD lista uma série de efeitos colaterais negativos para ambas as drogas. Entre elas, estão problemas de sono crônicos, arritmia cardíaca, problemas sexuais, agressividade, ataque cardíaco, pressão sanguínea elevada, problemas na respiração, risco de aneurisma – somente para citar algumas.

Diversos participantes do estudo afirmaram que microdosar os auxiliou a largar medicamentos antidepressivos, contra ansiedade, estabilizadores de humor e melhoradores cognitivos, e seguindo essas informações, Fadiman disse que está esperançoso que doses sub-limiares de psicodélicos irão atingir os benefícios desses medicamentos sem seus efeitos colaterais negativos e perigosos. Ele adicionou, entretanto, que todos os estudos oficiais nessa área terão que ter lugar nas universidades, por que “as indústrias farmacêuticas não vão comparar seus produtos com algo que é 1) ilegal e 2) que pode ser melhor”

Em adição à auxiliar as pessoas a tratar sua dependência em drogas legalizadas pela FDA (Food and Drug Administration), a microdosagem mostra um futuro promissor no auxílio no tratamento da dependência de substâncias ilegais. Representantes de um centro de tratamento no México contaram a Fadiman que depois de usar ibogaína para auxiliar os pacientes a se livrarem de problemas de abuso, eles sugeriram que esses pacientes ingerissem microdoses da substância por alguns meses para “segurar suas conquistas”.

Dados os efeitos positivos que muitas pessoas experimentam quando fazem microdosagem, algumas questões foram levantadas em relação à essa prática: se ela não se tornaria por si mesma um vício. Na visão de Fadiman, é improvável que alguém se torne dependente em substâncias que são naturalmente contra o vício: se você toma o mesmo psicodélico todos os dias, ele para de funcionar.

“Vamos supor que você tome uma dosagem elevada na segunda”, ele propôs. “Se você tomar a mesma dosagem na terça, você tem muito pouco efeito, e se você toma a mesma dose na quarta-feira, nada acontece. É como se seu organismo dissesse: “Não, eu não posso manifestar nenhum desses efeitos até que eu tenha limpado o sistema”.

Embora a pesquisa até o momento tenha indicado que microdosar não é perigoso ou prejudicial, alguns pacientes de Fadiman reportaram efeitos desagradáveis: um parou com a prática pois sentiu que estava ficando muito emotivo, enquanto outros dois observaram que suaram mais em dias que microdosaram. Ambos os pacientes que reclamaram do suor excessivo – um utilizou LSD e o outro cogumelos mágicos – não tinham certeza se o suor era parte da cura ou um efeito colateral negativo. Um desses dois participantes afirmou que estava maravilhado com a produtividade elevada e sensação de calma que ele obteve com a microdosagem, enquanto o outro achou a prática útil, porém ficou incomodado com o suor excessivo.

Diversos usuários relataram que quando começaram a microdosar, adquiriram dietas mais saudáveis e não retornaram/tomaram medicamentos. O último desses relatos se alinha com a experiência do autor e pesquisador Myron Stolaroff, que recomendou dosagens baixas de psicodélicos como um auxílio na meditação.

Embora a microdosagem não gere as mesmas catarses espirituais da maneira que dosagens mais elevadas de psicodélicos conseguem fazer, Fadiman observa que através do tempo, a prática produz efeitos muito mais semelhantes aos efeitos pós-experiência de tais catarses. “As pessoas estão dizendo: ‘depois de um mês ou mais de microdosagem, eu estou comendo melhor; estou sendo mais legal com minhas crianças; não fico chateado quando as pessoas fazem coisas más”, ele aponta. “Um homem estava dizendo, ‘eu estou muito mais no presente. Eu costumava, mesmo quando gostava de alguma coisa, estar realmente pensando no que eu iria fazer quando aquilo acabasse e assim por diante. Agora quando estou fazendo algo, eu estou realmente fazendo aquilo'”.

Ele adicionou que microdosar parece dar às pessoas uma orientação melhor sobre elas mesmas. “Eu acho que é um pouco parecido com a maneira com que as pessoas lhe indicam que se você meditar de manhã, fazer yoga e comer melhor, sua vida vai melhorar. Parece que microdosar segue nessa direção”.

Fonte

Os benefícios do LSD vão mudar a forma como falamos sobre drogas

Falar sobre ácido sempre envolveu apenas a viagem. Deveríamos focar nos efeitos de longo prazo.

img-thingTemos olhado para o LSD da forma errada. Ao longo do último meio século, temos focado sobre os efeitos a curto prazo de tomar ácido os variantes efeitos visuais, as cores vibrantes, a desconexão da realidade ordinária quando deveriamos estar incidindo sobre os benefícios de longo prazo, incluindo os efeitos terapêuticos que só agora os cientistas estão descobrindo. O renascimento da pesquisa psicodélica em curso, essencialmente, uma onda de estudos em pequena escala, mostra que os usuários de LSD se tratam preventivamente de doenças mentais e até certo ponto   contra o alcoolismo, depressão e Síndrome de Estresse pós-traumático. A legislação ainda faz a prescrição médica do LSD se isolar em um futuro próximo, mas a conversa sobre como ficar doidão pode ser apenas um efeito colateral do uso da substância, pode começar agora.

Os mitos que cercam LSD, perpetuados por hedonistas modernos como Lana del Rey John Misty, tornam difícil para os legisladores aceitarem-na como uma droga psiquiátrica tal qual o Prozac, o Zoloft, ou o Celexa. Mas este era de fato o uso pretendido desde o início. Albert Hofmann, ao descobrir a droga em 1943, imediatamente começou a lhe procurar aplicações psiquiátricas. E esse impulso continua forte na comunidade científica: Mais de 1.000 trabalhos de pesquisa acadêmica sobre os efeitos do LSD foram publicados antes do Verão do Amor resignificar o ácido como uma forma de se rebelar contra o status quo.
Atualmente, o FDA lista o LSD como substância de categoria 1, alegando que não há nenhum uso médico aceitável. Sob uma perspectiva científica, isso é uma mentira. Da perspectiva cultural do senso comum, é a verdade estabelecida (porém a visão está mudando)

Mais cedo, agora em fevereiro/2016, os pesquisadores britânicos Dr. Robin Carhart-Harris e David Nutt PhD (famoso pela frase “ecstasy é mais seguro que andar a cavalo”) publicaram um artigo na Psychological Medicine descrevendo a habilidade paradoxal do LSD para disparar psicoses em curto prazo enquanto deixa um resíduo de alteração cognitiva no meio e longo prazo que é decisivo para uma melhora do bem estar psicológico.

Dr. Robin Carhart-harris
Dr. Robin Carhart-harris
David Nutt PhD
David Nutt PhD

No ano passado, Carhart-Harris e Nutt também observaram os efeitos do LSD sobre o cérebro de 20 voluntários usando ressonância magnética, relatando que os primeiros resultados foram promissores para o tratamento de depressão e alcoolismo. O trabalho deles tem sido limitado por uma escassez de financiamento. Ainda assim, existem estudos suficientes para que haja meta-estudos, inclusive um recente, sobre LSD e alcoolismo, publicado no Journal of Psychopharmacology em 2012, que revelou que o uso de LSD em combinação com programas de dependência de álcool ajudou os voluntários a diminuirem o abuso da substância.

Outro estudo altamente divulgado, publicado no Journal of Nervous e Mental Disease em 2014, observou que o LSD, quando administrado ao longo de dois meses, sob condições cuidadosamente controladas, promove a redução da ansiedade em doenças terminais, a longo prazo. Este estudo, realizado na Suíça, país que acolheu a pesquisa psicodélica, enquanto o resto das Nações Unidas se apavorou na década de 1970, foi o primeiro estudo controlado do LSD publicado em mais de 40 anos.

É importante perceber que estes estudos receberam uma enorme cobertura da imprensa, porque foram publicados em revistas científicas com revisão por pares. O fato de isso não acontecer mais frequentemente não é necessariamente um reflexo da inadequação ou da escassez de outros estudos psicodélicos em curso; na verdade, aponta, pelo menos em certa medida, para o preconceito com as drogas alucinógenas, que persiste mesmo na comunidade científica. Credibilidade científica, infelizmente, é a única coisa que puxa o financiamento. Sem dinheiro, os estudos são enfraquecidos as licenças necessárias para estudar substâncias de categoria 1 são incrivelmente caras e assim torna necessário o impulso para reclassificar a substância como algo que valha a pena considerar medicamente. Sendo assim, o financiamento se torna ainda mais escasso.

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Porém os benefícios a longo prazo do LSD apresentam um tratamento para a ignorância cultural, bem como para o abuso de outras substâncias. Eles forçam a conversa sobre a droga longe dos efeitos imediatos da droga, que é uma coisa difícil de fazer, dada a qualidade extrema que esses efeitos podem tomar. O que as pessoas estão começando a perceber lentamente é a idéia de que substâncias psicoativas fazem uma coisa no curto prazo e outra a longo prazo. É bastante claro que não estamos culturalmente preparados para falar sobre os benefícios ou problemas a curto prazo. Mas podemos falar sobre os efeitos na saúde a longo prazo. Isso é essencialmente o que aconteceu com a questão sobre os cigarros, ainda que em sentido inverso. Uma conversa sobre o quão legal o cigarro faz as pessoas parecerem, se torna uma conversa sobre como eles causam câncer. Neste caso, uma conversa sobre o quão estranhas as pessoas podem se sentir com LSD, pode tornar-se uma conversa sobre seus benefícios psicológicos de longo prazo.
Uma vez que nós mudamos substancialmente a forma como falávamos sobre outras substâncias no passado, há muita esperança para o futuro. Há também o fato de que, e isso é realmente importante, boa ciência está sendo feita. Os pesquisadores da vanguarda do campo não são um bando de Josh Tillman doidões no deserto da Califórnia; eles são acadêmicos que podem, ao contrário dos rapazes a executar o divórcio do LSD de seu passado colorido com o FDA. Eles não estão nem aí para os anos 60.
Traduzido do Original em Inverse.com