A Arte e a Revolução – Terence McKenna

a-hndO renascimento arcaico é um clarim chamando·nos para recuperarmos nosso direito de nascença, por mais desconfortáveis que possamos ficar com isso. É um chamado para percebermos que a vida na ausência da experiência psicodélica sobre a qual se baseia o xamanismo primordial é uma vida trivializada, negada, escravizada ao ego e ao seu medo de se dissolver na misteriosa matriz de sentimento que está ao nosso redor. É no renascimento arcaico que reside nossa transcendência ao dilema histórico.

Há algo mais. Agora está claro que novos desenvolvimentos em muitas áreas – dentre elas a interface entre mente e máquina, a farmacologia da variedade sintética e o armazenamento e as técnicas de recuperação de dados e de imagens – estão se fundindo numa auto-imagem verdadeiramente demoníaca ou angélica de nossa cultura. Os que estão no lado demoníaco do processo têm consciência total desse potencial, e estão correndo a toda com seus planos para capturar o platô tecnológico. É uma posição a partir da qual esperam transformar praticamente todo mundo num consumidor crédulo num fascismo bege, de cuja fábrica de imagens ninguém escapará.

A resposta xamânica, a resposta arcaica, a resposta humana a essa situação deveria ser encontrar o pedal da arte e apertá-lo até o fundo. Essa é uma das funções primárias do xamanismo, e essa função é tremendamente sinergizada pelos psicodélicos. Se os psicodélicos são exoferomônios que dissolvem o ego dominante, então eles são também enzimas que sinergizam a imaginação humana e dão força à linguagem. Eles fazem com que conectemos e reconectemos os conteúdos da mente coletiva de maneiras ainda mais implausíveis, lindas e auto-realizadoras.

Se levarmos o renascimento arcaico a sério, precisaremos de uma nova imagem paradigmática que possa levar-nos rapidamente para diante e através do gargalo histórico que podemos sentir impedindo e resistindo a uma dimensão mais expansiva, mais humana e mais atenta, que insiste em nascer. Nosso sentimento de obrigação política, da necessidade de reformar ou salvar a alma coletiva da humanidade, nosso desejo de conectar o fim da história com o início da história – tudo isso deve nos impelir a ver o xamanismo como um modelo exemplar. Na atual crise global não podemos deixar de levar a sério suas técnicas, mesmo aquelas que podem desafiar os pactos divinamente ordenados da força policial.

EXPANSÃO DE CONSCIÊNCIA

Anos atrás, antes de Humphrey Osmond cunhar o termo “psicodélico”, havia uma descrição corrente para as substâncias psicodélicas; eram chamadas de “drogas expansoras da consciência” . Creio que essa é uma descrição muito boa. Considere nosso dilema neste planeta. Se a expansão da consciência não estiver no futuro humano, que tipo de futuro ele será? Para mim, a posição pró-psicodélicos é mais fundamentalmente ameaçadora para o Sistema porque, quando se pensa total e logicamente, ela é uma posição antidrogas e antivício. E não se engane; a questão são as drogas. O quão drogado você deve ser? Ou, colocando de outro modo, o quão consciente você deve ser? Quem deve ser consciente? Quem deve ser inconsciente?

Precisamos de uma definição aproveitável do que queremos dizer com “droga”. Uma droga é uma coisa que causa comportamento não examinado, obsessivo e habitual. Você não examina o comportamento obsessivo; você simplesmente o tem. Você não deixa nada se interpor no caminho de sua gratificação. Esse é o tipo de vida que nos estão vendendo em todos os níveis. Olhar, consumir e olhar e consumir mais ainda. A opção psicodélica está de lado, num canto minúsculo, jamais mencionada; entretanto ela representa o único fluxo diretamente contrário à tendência de deixar as pessoas em estados programados de consciência. Estados que não são programados por eles mesmos, mas pela Madison Avenue, pelo Pentágono, pelas 500 corporações da Fortune. Isso não é apenas uma metáfora; está realmente acontecendo conosco.

Olhando para Los Angeles de um avião, nunca deixei de perceber que a cidade é como um circuito impresso; todas aquelas rodovias curvas e ruas sem saída com os mesmos pequenos módulos instalados de cada lado. Enquanto a Reader’s Digest continuar sendo assinada e a TV ligada, esses módulos são partes intercambiáveis de uma máquina muito grande. Essa é a realidade de pesadelo que Marshall McLuhan, Wyndham Lewis e outros previram: a criação do publico como um rebanho. O público não tem história nem futuro, o público vive num momento dourado criado por um sistema de credito que liga-o inelutavelmente a uma a uma teia de ilusões jamais criticada. Essa é a conseqüência definitiva de termos rompido o relacionamento simbiótico com a matriz Gaia do planeta. Esta é a conseqüência da falta de igualitarismo; este é o legado do desequilíbrio entre os sexos; esta é a fase terminal de uma longa descida para a confusão existencial tóxica e sem sentido.

O crédito por ter-nos dado instrumentos para resistir a esse horror pertence a heróis desconhecidos, botânicos e químicos, pessoas como Richard Schultes, os Wassons e Albert Hofmann. Graças a eles está em nossas frágeis mãos, neste mais caótico dos séculos, fazer alguma coisa para resolver nossa dificuldade. A psicologia, ao contrário, esteve complacente e silenciosa. Os psicólogos ficaram contentes com a teoria behaviorista durante cinqüenta anos, mesmo sabendo em seus corações que estavam prestando um desserviço potencialmente fatal à dignidade humana, ao ignorar o potencial dos psicodélicos.


A GUERRA CONTRA AS DROGAS

Se há um momento certo para ouvir, para contar e para tentar clarear o pensamento sobre essas coisas, o momento é agora. Durante algum tempo houve um grande ataque contra a Declaração dos Direitos com o pretexto da chamada guerra contra as drogas. De algum modo, a questão das drogas é ainda mais assustadora e insidiosa para o rebanho do público do que o foi o comunismo. A qualidade da retórica que emana da comunidade psicodélica deve melhorar radicalmente. Caso contrário, perderemos o direito de reclamar nosso direito de nascença, e toda a oportunidade de explorar a dimensão psicodélica será cortada. Ironicamente, esta tragédia poderia ocorrer quase como uma nota de rodapé para a supressão dos narcóticos sintéticos e viciantes. Não se pode dizer com muita freqüência: a questão psicodélica é uma questão de direitos e liberdades civis. É uma questão relacionada às mais básicas das liberdades humanas: a da liberdade religiosa e da privacidade da mente individual.

Já se disse que as mulheres não poderiam votar porque a sociedade seria destruída. Antes, os reis não podiam abrir mão do poder absoluto porque disso resultaria o caos. E agora dizem que as drogas não podem ser legalizadas porque a sociedade se desintegraria. Isso é um absurdo pueril! Como vimos, a história humana poderia ser contada como uma série de relacionamentos com plantas, relacionamentos criados e rompidos. Exploramos várias maneiras pelas quais as plantas, as drogas e a política se misturaram cruelmente – desde a influência do açúcar sobre o mercantilismo até a influência do café sobre os trabalhadores de escritórios hoje em dia, desde a Inglaterra forçando o ópio à população chinesa até a CIA usando heroína nos guetos para acabar com a dissidência e a insatisfação.

A história é a história desses relacionamentos com as plantas. As lições a serem aprendidas podem ser trazidas à consciência, integradas na política social e usadas para criar um mundo mais atento, mais significativo, ou podem ser negadas assim como a discussão da sexualidade humana foi reprimida até que o trabalho de Freud e outros a trouxessem à luz. A analogia é válida porque o aumento na capacidade de experiência cognitiva possibilitado pelos alucinógenos vegetais é uma parte tão básica de nossa humanidade quanto nossa sexualidade. A questão de quão rapidamente nos desenvolveremos numa comunidade madura, capaz de discutir essas questões, depende totalmente de nós.


O HIPERESPAÇO E A LIBERDADE HUMANA

A coisa mais temida pelos que defendem a solução inexeqüível do “Diga não” é um mundo em que todos os valores comunitários tradicionais se dissolveram diante de uma busca infinita da autogratificação por parte de indivíduos e populações obcecados com as drogas. Não devemos descartar essa possibilidade muito real. Mas o que deve ser rejeitado é a noção de que esse futuro perturbador pode ser evitado com caças às bruxas, supressão de pesquisas e disseminação histérica de desinformações e mentiras.

As drogas fazem parte da galáxia de interesses culturais desde o início dos tempos. Somente com o advento de tecnologias capazes de refinar e de concentrar princípios ativos de plantas e preparados vegetais, as drogas se separaram do pano de fundo dos interesses culturais e se tomaram um flagelo.

De certo modo, o que temos não é um problema de drogas, e sim um problema com a administração de nossas tecnologias. Será que nosso futuro incluirá o surgimento de novas drogas sintéticas, cem ou mil vezes mais viciantes do que a heroína ou o crack? A resposta é absolutamente sim – a não ser que nos conscientizemos e examinemos a necessidade humana básica de uma dependência química e em seguida encontremos e sancionemos caminhos para a expressão dessa necessidade. Estamos descobrindo que os seres humanos são criaturas com hábitos químicos, com a mesma descrença horrorizada de quando os vitorianos descobriram que os humanos são criaturas com fantasias e obsessões sexuais. Esse processo de nos encararmos como espécie é precondição necessária para a criação de uma ordem social e natural mais humana. É importante recordar que a aventura de encarar quem somos não começou ou terminou com Freud e Jung. O argumento que este livro buscou desenvolver é que o próximo passo na aventura do autoconhecimento só pode começar quando levarmos em conta nossa necessidade inata e legítima de um ambiente rico de estados mentais induzidos através de um ato de vontade. Acredito que podemos iniciar o processo revendo nossas origens. De fato, fiz um grande esforço para mostrar que, no ambiente arcaico em que surgiu a auto-reflexão, encontramos pistas para as raízes de nossa história atormentada.


O QUE É NOVO AQUI

Os indóis alucinógenos, não estudados e legalmente suprimidos, são apresentados aqui como agentes de mudança evolucionária. Eles são agentes bioquímicos cujo impacto definitivo não está na experiência direta do indivíduo, e sim na constituição genética da espécie. Os primeiros capítulos chamaram atenção para o fato de que o aumento na acuidade visual, o aumento no sucesso reprodutivo e o aumento na estimulação das funções protolingüísticas do cérebro são conseqüências lógicas da inclusão de psilocibina na dieta dos primeiros homens. Se puder ser provada a noção de que a consciência humana emergiu da sinergia do neurodesenvolvimento mediado pelos indóis, mudará a imagem que fazemos de nós mesmos, de nosso relacionamento com a natureza e do dilema atual com o uso das drogas na sociedade.

Não há solução para o “problema das drogas” , para o problema da destruição ambiental ou para o problema do arsenal nuclear a não ser que nossa auto-imagem como espécie seja reconectada à terra. Isso começa com uma análise da confluência especial de condições que devem ter sido necessárias para que a organização animal desse pela primeira vez o salto para a auto-reflexão consciente. Uma vez que seja compreendida a centralidade da simbiose homem-planta mediada pelos alucinógenos no cenário de nossa origem, estaremos em posição de avaliar nosso estado atual de neurose. A assimilação das lições contidas naqueles eventos antigos e formativos podem estabelecer as bases para soluções destinadas a atender não somente à necessidade de a sociedade administrar o uso e o abuso de substâncias como também à nossa necessidade profunda e crescente de dar uma dimensão espiritual às nossas vidas.

(Extraído do livro “O Alimento dos Deuses”, de Terence McKenna)

A mente de Gaia – Terence Mckenna

 

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Nosso planeta possui um tipo de inteligência organizada. Ele é muito diferente de nós. Ele teve cinco ou seis milhões de anos para criar uma mente que funciona lentamente, que é feita de oceanos, rios, florestas e gelo. Ele está se tornando consciente de nós, a medida em que nos tornamos conscientes dele. E porque a vida de um depende da vida do outro, temos um sentimento sobre essa imensa, estranha, sagaz, velha, neutra, esquisita coisa, e tentamos descobrir por que seus sonhos estão tão atormentados, e por que tudo está tão desequilibrado.

A Terra tem uma forma de inteligência capaz de abrir um canal de comunicação com os seres humanos individualmente.

A mensagem que a natureza nos manda é: transforme tudo através da sinergia que existe entre a cultura eletrônica e a imaginação psicodélica, entre dança e idéia, entre compreensão e intuição, e dissolva as amarras em que a sociedade o prendeu. Assim você será parte integrante da supermente de Gaia.

A experiência psicodélica é muito mais do que psicoterapia instantânea ou regressão, mais do que um simples tipo de superafrodisíaco, mais do que uma ajuda para formular idéias ou descobrir conceitos artísticos. A experiência psicodélica é, na verdade, o corredor que nos leva a um continente perdido da raça humana, um continente do qual não temos mais nenhuma conexão. E a natureza deste continente perdido da mente humana é o próprio intelecto de Gaia. Se confiamos nas evidências da experiência psicodélica descobrimos que não somos a única forma de vida inteligente neste planeta; descobrimos que compartilhamos com a Terra um tipo de consciência.

Chame essa consciência de Gaia, chame-a de Zeta Reticulians, que esteve aqui há milhões de anos atrás, chame-a de Deus Todo Poderoso, não importa do que você a chama! O fato é que as alegações religiosas de que existe um tipo de poder superior pode ser verificada através dos psicodélicos. Mas isto não é, como Milton diz “O Deus que segurou as estrelas como lâmpadas no céu”; não tem nada a ver com isso. Não é cósmico em escala, e sim planetário em escala. Existe um tipo de inteligência desencarnada… está na água, está no solo, está na vegetação, está na atmosfera em que respiramos.

E nossa infelicidade, nosso desconforto, emerge do fato de que nos perdemos na história, considerando que história é um estado de ignorância originada pelos fatos ditos “reais” de como o mundo funciona.

Agora, por que será que quando ingerimos um neurotransmissor humano como o DMT, encontramos exércitos de gnomos nos ensinando uma forma perfeita de comunicação? Esta é uma pergunta muito difícil. Quando você visita culturas tradicionais como a cultura xamânica da Amazônia e pergunta isto para eles, eles respondem sem hesitação que essas pequenas entidades “são o espírito de nossos ancestrais, pelos quais trabalhamos toda a nossa mágica”. Isto acontece no mundo inteiro, é a resposta clássica que os xamãs dão… é através da intersecção dos espíritos, que é uma criatura de outra dimensão, que eles vivem em harmonia com a natureza.

Nós imaginamos muitos cenários diferentes, um futuro tecnológico cheio de inovações sociais, mas acredito que muito poucos de nós consideram seriamente o xamanismo. Xamãs são pessoas que aprenderam a penetrar em outra dimensão, onde nossos ancestrais estão presentes. Não é, vocês sabem, ir ao mundo dos mortos, e sim a descoberta de que esse tal mundo é o lugar de reencarnação dos mortos, um tipo de dimensão superior com altos graus de liberdade, com um senso maior de espontaneidade e de menor dependência do entorpecente mundo material. Este outro universo tenta influenciar o nosso universo, talvez para tentar nos resgatar de nosso drama histórico. Talvez os xamãs tenham estado desde sempre envolvidos com esses mundos invisíveis, e que é apenas o triste destino da cultura ocidental ter perdido contato e consciência com este universo, a ponto dele surgir para nós como uma revelação. Eu acredito que sucumbimos à masculina dominância do patriarcado quando quebramos vínculo com a mente de Gaia, a qual os xamãs acessam através de plantas psicoativas (sem elas o acesso é apenas um rumor inconfirmável).

A mente de Gaia é o que chamamos a experiência psicodélica. É uma experiência sobre o fato de que o intelecto do planeta está vivo, e que sem esta experiência nós vagamos num deserto de ideologias furadas. Com esta experiência o compasso do Eu Superior existente em cada ser humano pode ser acertado.

( Terence McKenna )

Fonte: www.deoxy.org

A Onda Temporal – Terence McKenna

Os trechos que seguem são as interpretaçoes dos irmãos McKenna após a bizarra experiência em La Chorrera descrita em “Alucinações Reais”, mesmo livro do qual foram retirados os trechos.

Com a palavra, Terence McKenna:

(…) Durante aquele dia e os que se seguiram, todos os tipos de idéias se formavam espontaneamente em meu pensamento, e inevitavelmente me levariam a alguma expansão dos temas ao redor dos quais havíamos organizado nossas vidas. Um desses temas que era apanhado e ampliado, a princípio devagar e em seguida mais rápida, radical e inclusivamente, era o conjunto de idéias e relacionamentos contidos no texto do oráculo chinês chamado I Ching. Há muito me interessavam, como parte de meu interesse geral em lógicas não-causais, esses comentários antigos e fragmentados sobre um conjunto ainda mais antigo de 64 ideogramas oraculares chamados de hexagramas. Na verdade eu ouvira falar pela primeira vez do I Ching ao ler Jung. Ele sugerira que a justaposição significativa de um hexagrama a uma situação do mundo externo, que permite que o I Ching seja usado como um dispositivo de leitura da sorte, sugeria uma conexão não-causal entre o mundo mental e a realidade exterior. Jung chamara esse fenômeno de sincronicidade.

Há vários anos era meu hábito jogar o I Ching – jogo que consiste em manipular 49 varetas de milefólio, ou, no meu caso, palitos de bambu, cuja configuração forma os hexagramas – a cada lua nova e cada lua cheia, e anotar os resultados num pedaço de papel que eu guardava dentro da capa do livro. No primeiro dia depois da experiência a voz dentro de minha cabeça sugeriu que eu pegasse as anotações dos hexagramas que eu obtivera até então. Eu mal podia imaginar as deduções e as conclusões a que essa sugestão simples levaria. Peguei essas anotações e procurei uma situação em que houvesse tirado o primeiro hexagrama; depois de achar, voltei ao início da lista e procurei por uma anotação do segundo hexagrama, e assim por diante. Minha lista cobria um período de três anos e continha cerca de oitenta jogadas e suas mutações.

Depois de meia hora determinei que, de acordo com minha listagem, eu tinha tirado cada um dos 64 hexagramas pelo menos uma vez nos três anos. Esse fato bastante improvável me pareceu carregado de significação. A probabilidade de ocorrência não é igual, e as chances de tirar todos os hexagramas em tão poucas jogadas parecia incomum. Pareceu-me que eu tinha uma espécie de identidade secreta e que estava no processo de descobri-la. Aquilo provava que eu era um reflexo do microcosmo, e que de algum modo fora escolhido para estar na situação em que me encontrava. Lágrimas rolaram facilmente com essa verificação pessoal do padrão ordenado, cujos desígnios eu estava encontrando em todos os pontos da minha vida. Recompus-me e em seguida, sob a forte sugestão daquela onda interna de compreensão, queimei a lista de minhas jogadas do I Ching. Foi uma coisa muito pouco característica de meu modo de agir.

Dennis olhou tudo aquilo e soltou uma das muitas charadas que vinha propondo naqueles dias:

– O que é que você pode fazer com um buraco num graveto e o que não pode fazer com um graveto num buraco? – gritou do outro lado do quintal arenoso para mim, que estava junto à fogueira. Supus que a resposta envolvesse um mergulho nos pressupostos alegres e quentes do Tantra, a favor da idéia de que o cachimbo era um veículo superior para a viagem interdimensional, e que isso era o que se podia fazer.

Mais ou menos uma hora depois, e após um longo silêncio pouco característico de sua nova condição, Dennis levantou os olhos de suas meditações e anunciou que tinha acabado de perceber que podia fazer qualquer telefone tocar simplesmente concentrando-se numa imagem que ele se recusou a dizer qual era. Foi mais longe ainda e afirmou que podia fazer telefones tocarem em qualquer momento do passado desde quando existiam os telefones. Para demonstrar essa habilidade, ligou para nossa mãe em algum momento no outono de 1953. Pegou-a no ato de ouvir Dizzy Dean narrar um jogo de beisebol. E de acordo com Dennis ela se recusou a acreditar que ele estava ao telefone, já que podia vê-lo em sua forma de três anos de idade dormindo diante dela. Ele disse que iria ligar para ela mais cedo, e então passou o resto da tarde ligando para todo mundo em quem podia pensar e em vários momentos do passado, conversando animadamente e rindo consigo mesmo das mentes que ele estava fundindo e das maravilhas do que ele chamava de “Ma Bell”, a companhia telefônica. E assim passou-se a tarde de 6 de março.

Uma conclusão razoável seria supor que Dennis estava toxicamente esquizofrênico, e que deveríamos deixar a Amazônia. O que complicava era eu. Eu parecia comparativamente normal, exceto por uma coisa: insistia em que tudo estava certo, e que Dennis sabia exatamente o que estava fazendo.

– Está tudo bem – tentei tranqüilizar os outros. – Ele fez aquilo que se propôs, e agora as pessoas devem tentar relaxar até que tudo se resolva.

Sentia isso apesar de não saber como ele realizara a experiência ou como descobrira a teoria. Só sabia que, depois daquele momento no alvorocer, quando tínhamos saído de nossas redes para olhar o cogumelo depois da experiência, algo muito esquisito acontecera comigo.

Eu estava num lugar muito estranho. Sentia como se houvesse me transformado em mim mesmo. Meu contato com a voz era de aluno com professor. Ela me ensinava. Além de qualquer possibilidade de argumentação, eu ficava sabendo coisas que não poderia saber normalmente. Ev passara pela experiência, mas nada acontecera com ela. Meus outros amigos pareciam muito distantes. Não podiam compreender o que sucedia e preferiram nos rejeitar. Cada um achava que os outros estavam loucos. De fato, com relação aos seus comportamentos normais, todo mundo agia de modo muito estranho.

A coisa principal que o professor invisível me disse foi: “Não se preocupe. Não se preocupe porque há algo pelo qual você tem de passar. Seu irmão vai ficar bom. Seus companheiros vão cuidar dele. Não se preocupe, mas ouça. Você precisa passar por isso.” Horas depois da experiência isso começou a martelar dentro de mim – uma coisa que eu precisava descobrir o que era.(…)

(…) No dia 21 de março fiz uma anotação no diário – a primeira em semanas e a única que eu teria condições de fazer em mais vários meses. Escrevi isso:

Faz dezessete dias desde 4 de março e da concretização do ampesand. Se entendi mais ou menos corretamente esse fenômeno, então amanhã, o décimo oitavo dia, irá marcar uma tipo de meio caminho nessa experiência. Prevejo que amanhã Dennis irá voltar ao cenário psicológico em que estava antes de 1º de março, se bem que é possível que, ao invés de uma amnésia residual com relação aos eventos em La Chorrera, ele tenha uma compreensão cada vez maior do experimento que criou. As últimas semanas foram angustiantes, e aparentemente eram compostas de tantos tempos, lugares e mentes que foi impossível fazer um relato racional. Apenas o Finnegans Wake dá alguma idéia da realidade do paradoxo que experimentamos em virtude de atravessarmos a face dupla do tempo. A despeito de mal-entendidos anteriores e de projeções errôneas relativas aos ciclos de tempo e de números atuando dentro do fenômeno, agora acredito que nesses dezessete dias experimentamos – ainda que algumas vezes correndo para trás e decerto enormemente condensado – boa parte de um ciclo total, e podemos começar a prever de um modo vago os eventos dos próximos vinte dias, mais ou menos, e ter alguma idéia da natureza aproximada e da direção da Obra.

Essa anotação no diário deixa claro que, enquanto Dennis estava se recuperando de sua submersão na luta titânica, eu estava no meio de uma luta pessoal. Fora apanhado num mergulho obsessivo, quase uma meditação forçada, sobre a natureza do tempo. As preocupações comuns da vida cotidiana deixaram de ter importância. Minha atenção era inteiramente exigida por meus esforços de construir um novo modelo do que é na verdade o tempo. Chamavam minha atenção ressonâncias, recorrências e a idéia de que os conjuntos de eventos eram resultado de padrões de interferência cujas fontes estavam temporal e causalmente distantes. Naquelas primeiras especulações imaginei um ciclo mítico precisando de 40 dias para se completar. Foi só mais tarde, quando comecei a me impressionar com a natureza dos ciclos temporais – a natureza calêndrica e relacionada ao DNA – que dirigi minha atenção aos ciclos de 64 dias. Foi isso que eventualmente me levou a me voltar para o I Ching. Naquelas primeiras idéias só há uma vaguíssima sugestão da teoria eventual em seus detalhes operacionais, mas ainda assim o objetivo é claramente o mesmo. Ressonâncias, padrões de interferência e retornos fractais de tempos dentro de tempos – esses eram os materiais com os quais comecei a construir. Eventualmente, depois de alguns anos de trabalho, o resultado chegaria a uma certa elegância. Entretanto essa elegância estava reservada ao futuro; a primeira concepção era crua, auto-referente e idiossincrática. Foi apenas minha fé de que ela poderia ser racionalmente compreensível aos outros que me segurou durante os vários anos necessários para transformar a intuição original num conjunto de proposições formais.(…)

(…) Enquanto avançavam meus estudos sobre o I Ching, ou O Livro das Mutações, aprimorei a idéia de que sua estrutura era a base de uma ou de várias ondas temporais. Essas ondas são pequenos períodos de mudança que se seguem e se interpenetram. Vim a perceber que a lógica interna das ondas temporais implicava fortemente no término do tempo normal e num fim para a história comum. Nesse ponto a idéia da psicomatéria tornada concreta identificou-se em minha mente com o OVNI que eu encontrara em La Chorrera e ambos, por sua vez, com os cenários de fim dos tempos das tradições religiosas ocidentais.

O primeiro gráfico de tempo não-quantificado era cheio de coincidências com minha vida pessoal. Em particular, os pontos terminais de cada seção componente da onda pareciam ter um significado especial para mim. O posicionamento em um daqueles pontos na experiência em La Chorrera parecia tornar especialmente importantes outros pontos no passado (a morte de minha mãe e meu encontro com Ev) e pontos que, na época, estavam no futuro (meu 25º aniversário). Vi que eventos importantes em minha vida pareciam estar ocorrendo a cada 64 dias, com uma regularidade misteriosa. Era necessário trabalhar sozinho nessas idéias, já que a intensidade de meu envolvimento com elas e sua natureza paradoxal parecia absurda aos olhos das outras pessoas. Compreendi que para mim, pessoalmente, era de importância vital deixar as forças com as quais me envolvera se desenvolverem por si próprias até o fim – quer o efeito que estávamos explorando fosse um fenômeno geral da natureza ou uma idiossincrasia única.

Por mais esdrúxulo que o plano parecesse aos outros, resolvi voltar a La Chorrera, à sua solidão e sua estranheza, e passar um tempo ali simplesmente observando com calma a coisa que tinha me acontecido (…)

(…)A coisa importante com relação à segunda viagem a La Chorrera é que o ensinamento dado pelo Logos foi mais ou menos contínuo. E o que foi ensinado depois de meses e meses foi uma idéia a respeito do tempo. É uma idéia muito concreta; com rigor matemático. O Logos ensinou como fazer com o I Ching uma coisa que talvez ninguém antes soubesse fazer. Talvez os chineses tenham sabido algum dia, e perderam o conhecimento há milhares de anos. Ele me ensinou um modo hipertemporal de ver. Meus livros, minha vida pública, meus sonhos particulares, são tudo parte do esforço de sentir e entender o novo tempo que foi revelado. Uma revolução no entendimento humano não é algo que possa ser encurralado nos limites de uma conversa.

Esse novo modelo do tempo nos permite uma boa certeza sobre o futuro, o máximo que é possível de se ter. O futuro não é absolutamente determinado; não há, em outras palavras, um futuro para se “ver”, no qual todos os eventos já estejam determinados. Não é assim que o universo é feito. O futuro está para ser completado, mas é condicionado. Misteriosamente, dentre o conjunto de todos os eventos possíveis, alguns são selecionados para passar pela formalidade de ocorrer. Era a mecânica desse processo que o Logos estava querendo revelar, e realmente revelou, com a idéia da Onda Temporal.

O que me levou originalmente a olhar o I Ching foi o modo estranho como a noção simplista de ciclos de 64 dias de influências funcionou bem em minha própria vida naquela época. A morte de minha mãe foi o primeiro desses pontos temporais que isolei. Em seguida percebi que meu relacionemento com Ev, formado pelo acaso, começara 64 dias depois disso, e que a culminação da experiência em La Chorrera ocorrera outros 64 dias depois. A noção do ano lunar baseado no hexagrama surgiu da idéia de seis ciclos de 64 dias, um ano de seis partes, assim como um hexagrama do I Ching tem seis linhas.

A validade pessoal da idéia me foi confirmada quando percebi que esse ano de trezentos e oitenta e quatro dias, caso iniciado com a morte de minha mãe, terminaria em meu 25º aniversário, em 16 de novembro de 1971. Então vi que havia ciclos, e ciclos de ciclos; imaginei um ano lunar de 384 dias e em seguida a coisa da qual ele era apenas uma parte: um ciclo de 64 vezes 384 dias; e daí por diante. Os mapas que construí e eventual classificação a que cheguei estão contidos em The Invisible Landscape. Mas o que não foi dito lá é o modo como essas coincidências e minha mente inconsciente – ou algo dentro de minha mente – me guiaram para descobrir essas propriedades há muito ocultas no I Ching.

O que fazer do oceano de ressonâncias que a Onda Temporal parecia mostrar, ligando cada momento do tempo a cada outro momento através de um esquema de conexão que nada tinha de aleatório ou de causalidade? E o que fazer do fato de que certos detalhes na matemática da onda pareciam implicar que o tempo em que vivemos era o foco de um esforço de eras, e terrivelmente importante? Essas eram imagens que inflavam meu ego, e as reconheci como tal, mas a força e o fascínio delas como forma de diversão particular eram francamente irresistíveis.

A Onda Temporal parecia ser uma imagem do inconsciente coletivo que buscava provar, pelo menos em seus próprios termos, que a culminância de todos os processos do universo ocorreriam durante o nosso tempo de vida. Para cada um de nós isso é obviamente verdadeiro, nossas vidas nos parecem, a nós que estamos engastados em nossos corpos e em nossas épocas, ser de algum modo a expressão do objetivo final de todas as coisas.

A Onda Temporal previa seu fim dentro de nosso períodos de vida; na verdade, apenas uma década após a virada do século, um período de tamanha novidade que além dele poderia estar nada menos que o fim do próprio tempo. Isso era o mais atordoante de tudo, mais atordoante do que seu lado idiossincrático pessoal, esse “fim do tempo” implícito; um período em que aconteceria uma transição do regime que transformaria completamente as modalidades do real.

Eu estava familiarizado com a idéia da escatologia – o fim dos tempos – num contexto religioso, mas nunca antes me ocorrera que regimes da natureza poderiam passar por mudanças súbitas que reembaralhariam as leis naturais. Na verdade não há nada contra isso. Simplesmente a ciência, para poder funcionar, precisa presumir que as leis físicas não são dependentes do tempo e do contexto em que são testadas. Se não fosse assim, a idéia de experimentos não faria sentido, já que experimentos realizados em tempos diferentes poderiam dar resultados diferentes.

Durante anos continuei a elaborar essa teoria e a clarear minha compreensão do empreendimento que é formar uma teoria em termos gerais. Em 1974 consegui finalmente alcançar uma quantificação matemática completamente formal da estrutura fractal que eu desencavara da estrutura do I Ching. Durante a década de 80 trabalhei, primeiro com Peter Broadwell e depois com Peter Meyer, para criar um programa de computador, que chamei de Timewave Zero, que permite o estudo cuidadoso dessa onda. O computador é uma ferramenta poderosa que tornou possível aprimorar grandemente minhas noções do que constituía prova ou negação da teoria.

Hoje minha conclusão sobre esses assuntos é que a teoria sobre a natureza fractal e cíclica do ingresso de novidades no mundo é uma teoria autoconsistente e completamente matemática. Tem coerência interna. E traz o drama humano e as nossa vidas de volta ao próprio centro do palco universal.

É possível que, em certo sentido, todos os estados de libertação nada mais sejam que um conhecimento perfeito do conteúdo da eternidade. Se sabemos o que está contido no tempo desde seu início até o seu fim, ficamos de algum modo fora do tempo. Mesmo que ainda tenha um corpo, ainda coma e faça o que faz, você descobriu algo que o liberta para uma situação satisfatória de tudo-ao-mesmo-tempo. Há outras satisfações que surgem da teoria, e que não são citadas em sua formulação. Os tempos se relacionam uns com os outros – as coisas acontecem por um motivo, e o motivo não é casual. A ressonância, aquele fenômeno misterioso no qual uma corda que vibra parece invocar magicamente uma vibração semelhante em outra corda ou em outro objeto que não está fisicamente conectado ao original, sugere-se como um modelo para a propriedade misteriosa que relaciona um tempo a outro, ainda que possam estar separados por dias, anos ou mesmo milênios. Convenci-me de que há uma onda, ou um sistema de ressonâncias, que condiciona eventos em todos os níveis. Essa onda é fractal e auto-referencial, parecida com muitos dos mais interessantes objetos e curvas que vêm sendo descritos nas fronteiras da pesquisa matemática. Essa onda temporal exprime-se através do universo numa variedade de níveis extremamente pequenos. Ela faz com que os átomos sejam átomos, células sejam células, mentes sejam mentes e estrelas sejam estrelas. O que estou sugerindo é uma nova metafísica, uma metafísica com rigor matemático; algo que não é simplesmente uma nova crença ou uma nova convicção religiosa. Ao contrário, essa percepção assumiu a forma de uma proposição formal.

Eu sou o primeiro a admitir que não foi possível encontrar uma ponte entre essa teoria e a física normal. Uma ponte dessas pode não ser possível nem necessária. Podemos descobrir que a ciência normal indica o que é possível, enquanto a teoria temporal que proponho oferece uma explicação para o que é. É uma teoria que parece explicar como, dentre todas as classes de coisas possíveis, alguns eventos e coisas passam pela formalidade de ocorrer. Para mim é claro que a teoria não pode ser negada de fora, só pode ser negada caso seja vista como inconsistente dentro de si mesma.

Por volta de 16 de novembro de 1971 eu tinha começado a perceber que a tabela tinha muitas variáveis para fincionar como um mapa previsível do futuro. Seria necessário, percebi então, quantificar de algum modo os vários parâmetros da onda, de modo que os julgamentos pudessem ficar menos sujeitos a interferências pessoais. A última coisa que produzi em La Chorrera foi escrito na manhã do dia 16, meu 25º aniversário. Era uma espécie de fábula:

16 de novembro de 1971

Dois velhos amigos, digamos que árabes, e velhíssimos, estão num palácio muito mais velho do que eles próprios, construído numa montanha rodeada por vinhedos, tomareiras e pomares de frutas cítricas. Sem sonmo e sociáveis, passam as longas horas estreladas antes do amanhecer fumando haxixe e propondo charadas.

– Compartilhe meu prazer com este quebra-cabeça e sua solução – disse o mais moreno para o mais velho, e passou a mão sobre os olhos do companheiro. O mais velho entrou no sonho e olhou o quebra-cabeça aberto – um mundo de formas e leis, engrenagens encaixadas, paixão e intelecto. Viu suas espécies e seus impérios, famílias dinásticas e indivíduos geniais, tornou-se seus filósofos e suportou suas catástrofes. Sentiu a textura e o caráter de todos os seres do mundo que seu amigo havia criado. Buscou o padrão secreto que o amigo, ele sabia, certamente escondera em sua criação, já que esse era um jogo que disputavam com freqüência.

Finalmente, num momento de grande despotismo, numa era de ciência impetuosa e decadência brilhante, ele se viu dividido nas pessoas de dois irmãos – e através deles, através de suas viagens e de suas vidas que passaram num instante diante de seus olhos, ele percebeu a natureza intrincada e agradável da charada. Compreendendo, enfim, e rindo – um riso que os dois compartilharam – ele dissolveu a névoa e as engrenagens da fábula de sonho. E mais uma vez eles passaram o cachimbo antes de sair pelo jardim azulado, onde a alvorada os encontraria conversando entre os pavões, entre as romãzeiras e as acácias.

E então será que vamos ficar apenas com uma fábula? Ou há mais alguma coisa aqui? Alguns jardins tropicais que eu plantei têm pequenas acácias se desenvolvendo. Talvez ainda haja tempo para que elas cresçam até fazer sombra para discursos filosóficos. A vida é mais estranha do que até mesmo o mais estranho de nós pode supor.

Parecia que o trabalho em La Chorrera estava terminado. Desarmamos nosso acampamento e voltamos pelas trilhas e pelos rios. Demorou, havia livros a serem escritos, pontas soltas de uma vida levada muito frouxamente precisavam ser arrumadas e amarradas. Ficamos um tempo em Florência, na finca de um amigo, onde escrevi os primeiros capítulos de The Invisible Landscape. (…)

(…) Até que a Onda Temporal do I Ching fosse quantificada com mais dados, seu modo de integrar fatores aparentemente sem sentido e não relacionados tornava muito fácil que ela fosse vista em termos psicológicos. Parecia operar como uma espécie de teste de manchas de Rorchach; podíamos ver nela o que quiséssemos. Mesmo depois de meu vigésimo quinto aniversário, em 16 de novembro de 1971, ter se passado com muito pouca novidade seja em minha vida ou no mundo, continuei a propagar para o futuro os ciclos da tabela. Sentia que a idéia de uma estrutura oculta do tempo estava correta, mas isso não podia ser afirmado até que o alinhamento correto entre a estrututra e a história humana fosse encontrado e confirmado. Eu estava procurando uma data com características especiais relacionadas à tabela, uma data que fosse um bom candidato para o surgimento de um evento especial.

Aqui vem uma parte de minha história que achei muito perturbadora. Depois da desconfirmação de novembro de 1971, procurei no futuro outras datas em que terminariam os ciclos de 384 dias, caso eu continuasse a assumir que 16 de novembro de 1971 fosse o fim de um desses ciclos. Isso significava que a próxima data no fim do ciclo de 384 dias seria quatro de dezembro de 1972. Consultei várias tabelas astronômicas, mas a data parecia nada prometer. A data final do ciclo seguinte de 384 dias era muito mais interessante, já que caía em 22 de dezembro de 1973.

Percebi que era um solstício de inverno. Ali estava uma pista. O solstício de inverno é tradicionalmente a época do nascimento do messias salvador. É um tempo de pausa, quando há uma mudança no mecanismo cósmico. É também no momento de transição do sol de Sagitário para Capricórnio. Não dou muita importância à astrologia, mas notei que Dennis é Sagitário e Ev é Capricórnio. Consultei meus mapas astronômicos e acrescentei outra coincidência; vi que onde a eclíptica cruza a cúspide de Sagitário e Capricórnio, a 23 graus de Sagitário, era o ponto, com um ou dois graus de variação, em que o centro da galáxia estava localizado naquele momento. Durante 26 mil anos o centro da galáxia, como todos os pontos na eclíptica, move-se devagar entre os signos, mas ele estaria na cúspide de Sagitário e Capricórnio no dia de solstício de inverno.

Parecia um número incomum de coincidências, de modo que continuei minha busca. Consultas no almanaque do Observatório Naval trouxeram uma verdadeira surpresa. Exatamente naquele dia que eu estava pesquisando, 22 de dezembro de 1973, haveria um eclipse anular total do sol, e o caminho de totalidade passaria diretamente sobre La Chorrera e a bacia amazônica. Fiquei pasmo. Sentia-me como um personagem de romance; aquela fiada de indícios era verdadeira! Pesquisei o eclipse para determinar exatamente onde ele alcançaria a totalidade. Descobri que ela ocorreria diretamente sobre a cidade de Belém, no Brasil, no delta do rio Amazonas. O vertiginoso matraquear élfico do hiperespaço aumentou de volume até um guincho agudo em meus ouvidos. Estaria zombando de mim ou me instigando?

A meditação sobre a data desse eclipse tirou minha mente do âmbito das coincidências astronômicas, trazendo-a de volta para os temas dos transes em La Chorrera. A cidade se chama Belém. Minhas percepções, sensíveis a qualquer possibilidade messiânica, ligaram-se a isso. Belém, a cidade de nascimento do Messias; e está no delta do Amazonas. Delta é o símbolo para a mudança no tempo; delta, em Joyce e para os grafiteiros através de toda a história, representa a vagina. Dennis nasceu em Delta, Colorado. Seria possível que todas as nossas experiências fossem uma premonição de um evento que ocorreria dali a dois anos no Brasil? Seria essa, absurdamente, a conclusão da experiência em La Chorrera, os acordes do hino “Oh, Cidadezinha de Belém” ecoando em minha mente? No final da primavera de 1972 eu sabia de tudo que acabo de mencionar. Por que a onda apontava para 22 de dezembro de 1973? E por que havia tamanha coincidência apontando para aquele momento? Será que eu já sabia do eclipse em algum nível do inconsciente? Será que eu sabia que ele alcançaria a totalidade em Belém? Por que as datas importantes em minha vida se alinhavam com aquela data, de acordo com a onda que eu aprendera a construir após o contato com o OVNI em La Chorrera? Parecia-me impossível que eu, de algum modo, já soubesse dessas coisas e tivesse manipulado minha consciência para imaginar que ela estivesse “descobrindo” essas coisas. Eu era como um viajante cego pela neve, apanhado por uma nevasca de coincidências.

Por fim, no início da primavera de 1973, ocorreu um evento que oferecia uma prova perfeita de que algo maior que meu inconsciente, aparentemente maior ainda que a consciência coletiva de toda a raça humana, estava posto em funcionamento. Foi a descoberta do cometa Kohotek, anunciado como o maior cometa da história humana, deixando até mesmo o Halley como um anão.

“O Cometa Mais Brilhante Que Já Se Dirigiu à Terra”, era a manchete do San francisco Chronicle. Enquanto lia o artigo, deixei sair um grito de espanto. O cometa faria sua aproximação máxima no dia 23 de dezembro! Um cometa não-periódico, desconhecido de todos na terra antes de março de 1973, se aproximava para um encontro com o sol a poucas horas do solstício e do eclipse sobre a Amazônia. Era uma enorme coincidência, se definirmos coincidência como uma improbabilidade que impressiona profundamente seu observador. Ela não foi diminuída pelo fato de Kohotek não ter correspondido às expectativas, porque apenas as expectativas já se transformariam numa onde de milenarismo e inquietude apocalíptica que só morreria com a volta do cometa à escuridão da qual havia emergido. Será que aconteceu alguma coisa em Belém no dia do eclipse? Não sei; eu não estava lá. Na época era um prisioneiro de obrigações mundanas. Mas realmente sei que a compressão de eventos que ocorreu naquela data, e o modo como as tabelas a previam, era espantosa.

Somente com o desenvolvimento do programa para computadores pessoais pude entender o modo como a Onda Temporal descreve o fluxo e refluxo de novidades no tempo em muitos períodos temporais diferentes: alguns durando apenas minutos, outros durando séculos. Agora qualquer um que se familiarize com a teoria pode juntar-se a mim nessa aventura intelectual e ver por si próprio o imenso desafio envolvido em prever uma concretude. Não me contentei em meramente compreender a teoria, mas continuei os esforços para aplica-la especificamente a predizer o curso dos eventos futuros. Se, durante anos de estudos, uma pessoa torna-se convencida de que a onda realmente mostra o curso futuro de novidades, a antecipação comum do futuro é gradualmente substituída por uma apreciação e uma compreensão quase zen do padrão total. (…)

Diga o que isso significa ?

Onde tento ligar nossas experiências à ciência que é qualquer coisa, menos normal.

Apesar de ter saído da Amazônia, essa história estranha e enrolada continua por mais um pouco. Ainda é tempo de destilar algumas conclusões das idéias que foram geradas em La Chorrera.

Um modelo do mundo é um modo de ver, e assimilar a teoria da onda temporal que nos foi forçada é ver o mundo de um jeito diferente. Minha abordagem tem sido a de garantir a possibilidade da teoria ser verdadeira, uma vez que não foi refutada. Pode ser que algum dia a refutem; mas até então devo acreditar nela, ainda que com uma ponta de ironia. Talvez outros reforcem e contextualizem a idéia caso se dignem a ouvi-la. Muitas boas idéias simplesmente morrem por falta de um contexto. Mas esta idéia propõe uma reconstrução fundamental no modo como vemos a realidade. E pode ser ensinada. Ela preenche minhas aspirações espirituais porque é feita de compreensão: simples e puramente compreensão.

A teoria elaborada no início da experiência em La Chorrera não nega nenhuma classe de conhecimentos; ela os aumenta. Há um argumento para isso ao nível físico, se bem que a idéia é muito complicada, tocando, como toca, áreas envolvendo física quântica, biologia submolecular e estrutura do DNA. Essas são as noções que espero ter delineado com cuidado e atenção em The Invisible Landscape.

Apesar da idéia que desenvolvi poder não ter sido causada pelo que Dennis fez na Amazônia, tenho a forte intuição de que o foi. No início da experiência minhas preocupações particulares foram substituídas por pensamentos tão absolutamente estranhos que não pude reconhecê-los como produtos de minha personalidade. Ele realizou sua experiência e eu tive uma espécie de retroalimentação informativa a partir do meu DNA ou de alguma outra armazenagem molecular de informação. Isso aconteceu precisamente porque as moléculas psicodélicas ligaram-se ao DNA e em seguida se comportaram do modo que havíamos previsto; elas realmente irradiaram um símbolo da totalidade, cuja estrutura profunda reflete os princípios organizacionais das moléculas da própria vida. Essa totalidade entrou no tempo linear – na presença da consciência comum – disfarçada em um diálogo com o Logos. O Logos proporcionou uma voz narrativa capaz de estruturar e dar coerência à torrente de novas percepções que, de outra forma, teriam me esmagado. Minha tarefa tornou-se desencavar e replicar a estrutura simbólica que havia por trás da voz, e descobrir se ela tinha algum significado fora de mim e de meu pequeno círculo de conhecidos. Era como criar um sistema de arquivos para um mundo recém-revelado de infinita variedade. A onda temporal é uma espécie de mandala matemática descrevendo a organização do tempo e do espaço. É uma representação dos padrões de energia e de intenções dentro do DNA. O DNA desdobra esses mistérios através do tempo como uma gravação ou uma canção. Essa canção é a nossa vida, e é toda a vida. Mas sem uma visão conceitual não podemos entender a melodia que ele toca. A teoria da onda temporal é como a partitura da sinfonia biocósmica.

Estou interessado em refutar a teoria. Uma boa idéia não é frágil, e pode suportar grande pressão. O que aconteceu em La Chorrera não pode ser atenuado com palavras, ao contrário, aquilo pede simplesmente para ser explicado. Se não é o que eu digo que é, então o que é a concrescência, a centelha, o encontro com o totalmente Outro? O que isso realmente representa?

É, como parece ser, o ingresso de uma época pertencente a uma dimensão mais elevada, que reverbera através da história? É uma onda de choque sendo gerada por um evento escatológico no fim dos tempos? As leis naturais são mais fáceis de entender se assumirmos que não existem constantes universais; e sim fenômenos de fluxo que se desenvolvem lentamente. Afinal de contas a velocidade da luz, que é vista como uma constante universal, só foi medida nos últimos cem anos. É um pensamento puramente indutivo extrapolar o princípio da não-variação da velocidade da luz a todos os tempos e lugares. Qualquer bom cientista sabe que a indução é um salto de fé. Ainda assim a ciência é baseada no princípio da indução. É esse princípio que esta teoria desafia. A indução presume que se fazemos A, e disso resultar B, significa que sempre que fizermos A, B será o resultado. O fato é que no mundo real não acontece nenhum A ou B no vácuo. Outros fatores podem se intrometer em qualquer situação real, mandando-a para uma conclusão diferente ou incomum..

Antes de Einstein o espaço era visto como uma dimensão onde colocamos coisas. O espaço era visualizado como uma analogia para o vazio. Mas então Einstein mostrou que o espaço é uma coisa que tem torque, e que é afetada pela matéria e pelos campos gravitacionais. A luz passando através de um campo gravitacional no espaço será curvada porque o espaço através do qual ela viaja está curvado. Em outras palavras, o espaço é uma coisa, e não um lugar onde você põe coisas.

O que proponho, em síntese, é que o tempo – que também foi previamente considerado uma abstração necessária – também é uma coisa. O tempo não apenas muda, como também há diversos tipos de tempo. Enquanto esses tipos de tempo vem e vão em progressão cíclica em muitos níveis, as situações se desenvolvem à medida que a matéria responde às condições de tempo e espaço. Esses dois padrões condicionam a matéria. Há muito tempo a ciência está consciente dos padrões de espaço, chamamos isso de “leis naturais”, mas e quanto aos padrões de tempo? Essa é uma consideração completamente diferente.

A matéria, que sempre foi considerada a epítome da realidade, tem algumas características mais próximas do pensamento. A matéria passa por mudanças definidas por dois agentes padronizadores que estão correlacionados: espaço e tempo. Essa idéia implica em axiomas. Um dos maiores é tirado do filósofo Gottfried Wilhelm von Liebnitz. Liebnitz imaginava as mônadas como partículas minúsculas que são infinitamente replicadas em todos os pontos do universo e que contêm em si todos os lugares. As mônadas não estão meramente aqui e agora. Estão em todos os lugares o tempo todo. Ou têm dentro de si todo o espaço e todo o tempo, dependendo do ponto de vista. Todas as mônadas são idênticas, mas dependendo do modo como se interconectam elas constroem um continuum mais amplo enquanto ao mesmo tempo mantêm suas perspectivas individualmente únicas. Essas idéias liebnitzianas anteciparam o novo campo da matemática fractal, do qual minha idéia de um padrão temporal é um exemplo exótico.

Idéias como essa oferecem uma explicação possível para os mecanismos de memória que, de outro modo, seriam misteriosos. A destruição de noventa e cinco por cento do cérebro não danifica a função de memória. Parece que a memória não está guardada em lugar nenhum; a memória parece permear o cérebro. Como um holograma, toda a memória está em cada parte. Podemos pegar uma prancha holográfica do monte Fuji e corta-la ao meio; quando uma metade é iluminada, toda a imagem está presente. Podemos fazer isso de novo e de novo, o holograma é feito de um número quase infinito de minúsculas imagens, cada uma, em combinação com as outras, apresenta uma imagem inteira.

O aspecto “holográfico” da memória foi visto como de importância central por pensadores como David Bohm e KarlPribram. Mas foi Dennis e eu quem chegamos ao ponto de sugerir que essa forma de organização poderia ser estendida para além do cérebro, para incluir o cosmo inteiro.

A física quântica faz afirmações semelhantes dizendo que o elétron não está em algum lugar ou em algum tempo, o elétron é uma nuvem de probabilidades, e isso é tudo que podemos dizer dele. Uma característica semelhante liga-se a esta idéia do tempo e da comparação do tempo com um objeto. A pergunta óbvia a ser feita é: qual a menor duração relevante para os processos físicos? A abordagem científica seria dividir o tempo até sua menor parte, para descobrir se há uma unidade. O que estamos procurando é um crônon, ou uma partícula de tempo. Acredito na existência do crônon, mas não como uma coisa distinta do átomo. Os sistemas atômicos são crônons; os átomos são muito mais complicados do que se suspeitava. Acredito que os átomos têm propriedades ainda não descritas, que podem responder não apenas pelas propriedades da matéria, mas também pelo comportamento do espaço/tempo.

Os crônons podem não ser redutíveis a átomos, mas suspeito de que o que estamos procurando seja uma onda/partícula que compõe a matéria, o espaço/tempo e a energia. O crônon é mais complicado do que a descrição clássica dos sistemas atômicos feitas por Heisenberg e Bohr. O crônon tem propriedades que o tornam capaz de funcionar como constituinte fundamental de um universo no qual surgem mentes e organismos. Até agora fomos incapazes de definir as propriedades dinâmicas que permitiria uma partícula atuar como parte necessária de um organismo vivo ou de um organismo pensante. Até mesmo uma bactéria como E. coli é um feito estonteante para o átomo de Heisenberg e Bohr.

O modelo de Heisenberg/Bohr permite-nos simular o universo físico de estrelas, galáxias e quasars; mas não explica os organismos ou a mente. Temos de sobrepor diferentes características àquele modelo atômico para modelar fenômenos mais complexos. Devemos imaginar um átomo com novos parâmetros caso desejemos compreender como podemos existir, como os seres humanos pensantes, usuários de ferramentas, puderam surgir do substrato universal.

Não afirmo que já tenha feito isso. Mas realmente creio que tropecei numa avenida intelectual que poderia ser seguida para chegar a essa compreensão. A chave está em ciclos de variáveis temporais aninhadas em estruturas hierárquicas que geram vários tipos de relacionamentos fractais se desdobrando em direção a conclusões que são, com freqüência, surpreendentes.

A pessoa que estabeleceu a base mais firme para compreender filosoficamente este tipo de noção é Alfred North Whitehead. Nada do que sugerimos está além do poder de seu método de previsão. O formalismo de Whitehead responde pelas mentes, pelos organismos e por uma quantidade de fenômenos mal resolvidos pela abordagem cartesiana.

Outros pensadores visionários estão sondando essas áreas; a Dinâmica do Atrator Caótico é a idéia de que qualquer processo pode ser relacionado a qualquer outro através de uma equação matemática, simplesmente em virtude de todos os processos fazerem parte de uma classe comum. A derrubada de um ditador, a explosão de uma estrela, a fertilização de um ovo; tudo deveria ser descrito através de um conjunto de termos.

O desenvolvimento mais promissor nessa área foi o surgimento do novo paradigma evolucionário de Ilya Prigogine e Erich Jantsch. Seu trabalho chegou a nada menos do que um novo princípio ordenador da natureza. É a descoberta e a descrição matemática da auto-organização dissipativa como um princípio criativo subjacente à dinâmica de uma realidade aberta e de múltiplos níveis. As estruturas dissipativas fazem o milagre de gerar e preservar a ordem através de flutuações – flutuações cuja base, em última instância, está na indeterminação da mecânica quântica.

Se alguém tivesse um perfeito espelho filosófico do universo, poderia dizer a uma pessoa, aplicando seu método filosófico, quanto dinheiro ela tem no bolso. Como é um fato, essa quantia deveria, pelo menos em princípio, ser possível de se calcular. O importante é compreender as verdadeiras fronteiras da realidade, e não os limites prováveis de possíveis eventos futuros. Se bem que condições limites operem no futuro, elas são restrições probabilísticas, e não fatos absolutamente determinados. Presumimos que daqui a dez minutos o cômodo em que estamos continuará a existir. É uma condição limite que irá definir os próximos dez minutos em nossa coordenada espaço-temporal. Mas não podemos saber quem estará no cômodo daqui a dez minutos; isso está para ser determinado.

Pode-se perguntar se realmente podemos saber que o cômodo ainda existirá em qualquer momento futuro. Aí é que entra a indução no quadro geral, já que na verdade não podemos saber com certeza. Não há um modo absolutamente rigoroso de estabelecer isso. Mas podemos fazer o salto indutivo de fé, que tem a ver com a experiência acumulada. Projetamos a idéia de que a existência do cômodo irá seguir como condição limite mas, em princípio, poderia haver um terremoto nos próximos dez minutos e esse prédio poderia não ficar de pé. Entretanto, para que isso aconteça, a condição limite teria de ser radicalmente rompida de algum modo inesperado e improvável.

O curioso é que esse tipo de coisa poderia acontecer. É isso que a onda temporal nos permite prever: que há condições em que podem ocorrer eventos de grande novidade. Entretanto há um problema. Como sugerimos um modelo de tempo cuja matemática dita uma construção em estrutura espiral, os eventos vão-se reunindo em espirais cada vez mais apertadas, que levam inevitavelmente a um tempo final. Como o centro de um buraco negro, o tempo final é necessariamente uma singularidade., um local ou um evento em que as leis comuns da física não funcionam. Em princípio é impossível imaginar o que acontece numa singularidade e, naturalmente, a ciência tem evitado essa idéia. A singularidade definitiva é o Big Bang, que os físicos acreditam ter sido responsável pelo nascimento do universo. A ciência pede que acreditemos que o universo inteiro explodiu do nada, num único ponto e sem motivo discernível. Essa noção é o caso limite para a credulidade. Em outras palavras, se você acredita nisso, pode acreditar em qualquer coisa. Uma noção que é, de fato, absolutamente absurda, e mesmo assim terrivelmente importante para todas as suposições racionais que a ciência deseja preservar. Essas suposições partem daquela situação inicial impossível.

A religião ocidental tem sua própria singularidade na forma do Apocalipse. Esse evento é localizado não no princípio do universo, mas no fim. Isso parece uma posição mais lógica do que a da ciência. Se existem as singularidades, parece mais fácil supor que elas possam surgir de um cosmo antigo e altamente complexo como o nosso do que de um megavácuo sem forma e sem dimensões.

A ciência olha de cima de seu nariz empinado para as fantasias apocalípticas da religião. A visão da ciência é de que o tempo final pode apenas significar um tempo entrópico de não-mudança. A visão da ciência é de que todos os processos terminam por se esgotar, e que a entropia é maximizada apenas num futuro muitíssimo distante. A idéia da entropia cria uma suposição de que as leis do continuum espaço-tempo são infinita e linearmente expansíveis para o futuro. No esquema de tempo espiral da onda temporal não se faz essa suposição. Ao invés disso, o tempo final significa passar de um conjunto de leis que estão condicionando a existência para outro conjunto de leis radicalmente diverso. O universo é visto como uma série de eras compartimentadas, tendo leis bastante diferentes umas das outras, com transições de uma época para outra ocorrendo com inesperada subitaneidade.

Ver através dessa teoria é ver nosso lugar no esquema espiral e antecipar quando irá ocorrer a transição para uma nova época. Vemos isso no mundo físico. O planeta tem cinco ou seis bilhões de anos. A formação do universo inorgânico ocupa a primeira volta da espiral. Então surge a vida. Se examinarmos este planeta, o único planeta que podemos examinar em profundidade, descobrimos que os processos vão sempre acelerando em velocidade e complexidade.

Um planeta gira através do espaço dois bilhões de anos antes de aparecer a vida. A vida representa uma nova qualidade emergente. No instante em que a vida inicia, começa uma corrida louca. Espécies aparecem e desaparecem. Isso acontece durante um bilhão e meio de anos e, subitamente, uma nova propriedade nascente assume o palco; surgem espécies pensantes. Essa nova época da mente é breve em comparação com a que a precedeu; do confronto silencioso com a pedra lascada até a nave estelar passam-se cem mil anos. O que poderia ser essa era a não ser o ingresso de um novo conjunto de leis? Uma nova psicofísica permite nossa espécie manifestar propriedades peculiares: linguagem, escrita, sonho, e o tecer da filosofia.

Como as cascavéis e os álamos, os seres humanos são feitos de DNA. Ainda assim nós detonamos as mesmas energias que iluminam as estrelas. Fazemos isso na superfície de nosso planeta. Ou podemos criar uma temperatura de zero absoluto. Fazemos essas coisas porque, apesar de sermos criados no barro, nossas mentes nos ensinaram a aumentar nosso alcance através do uso de ferramentas. Com ferramentas podemos liberar energias que normalmente só ocorrem sob condições muito diferentes. O centro das estrelas é o lugar normal para os processos de fusão.

Fazemos essas coisas usando a mente. E o que é a mente? Não temos qualquer pista. Vinte mil anos para passar da caça e da coleta nômade para a cibernética e a viagem espacial. E continuamos acelerando. Ainda há mais espirais à frente. Do Ford modelo T até a nave espacial. Cem anos. Do homem mais rápido, capaz de mover-se a quarenta quilômetros por hora, ao homem mais rápido movendo-se a quatorze quilômetros por segundo. Sessenta anos.

Mais desconcertantes são as previsões que a teoria faz das próximas mudanças de eras, tornadas necessárias pela congruência da onda temporal com os dados históricos. A onda temporal parece dar uma melhor configuração dos dados históricos quando se supõe que um ingresso máximo de novidades irá ocorrer em 21 de dezembro de 2012. Estranhamente, essa é a data final que os Maias puseram em seu calendário. Bom, o que é isso que dá a um indivíduo do século XX e uma antiga civilização mesoamericana a mesma data para a transformação do mundo? Será porque ambos usaram cogumelos psicodélicos? Poderia a resposta ser tão simples? Não creio. Ao invés disso suspeito de que, quando inspecionamos a estrutura de nosso inconsciente profundo, fazemos a descoberta inesperada de que ele está ordenado sob o mesmo princípio do universo mais amplo, do qual emergiu. Esta noção, a princípio surpreendente, logo passa a ser vista como óbvia, natural e inevitável.

Uma analogia que explica por que isso pode ser assim é dada ao se olhar dunas de areia. A coisa interessante com essas dunas é que elas guardam uma semelhança com a força que as criou, o vento. É como se cada grão de areia fosse um bit na memória de um computador natural. O vento é o sinal de entrada que arranja os grãos de areia de modo que se tornem um reflexo em dimensão inferior do fenômeno que ocorre na dimensão mais elevada, neste caso, o vento. Não há nada de mágico com isso, e não nos parece misterioso: o vento, uma pressão que é variável com o tempo, cria uma duna ondeada que é uma estrutura variando regularmente no espaço. Em meu modo de pensar, os organismos são grãos de areia arranjados pelo fluxo e refluxo dos ventos do tempo. Nesse caso os organismos têm naturalmente a marca das variáveis inerentes ao meio temporal em que surgem. O DNA é o meio virgem em que as variáveis temporais têm sua seqüência e suas diferenças relativas gravadas. Qualquer técnica que penetre os relacionamentos energéticos dentro de um organismo vivo, como a yoga ou o uso de plantas psicodélicas, também dará uma percepção profunda sobre a natureza variável do tempo. A seqüência King Wen do I Ching é o produto desse tipo de percepção.

A cultura humana é uma curva de potencialidade em expansão. Em nosso século atormentado ela alcançou uma verticalidade. Os seres humanos ameaçam todas as espécies do planeta. Empilhamos materiais radiativos em todo canto, e todas as espécies da Terra podem ver isso. O planeta, como entidade inteligente, pode reagir a esse tipo de pressão. Ele tem três bilhões de anos, e tem muitas opções.

A conversa dualística sobre a humanidade não fazer parte da ordem natural é bobagem. Nós não poderíamos ter surgido a não ser que servíssemos a um propósito que se ajustasse à ecologia planetária. Não está claro qual é esse propósito, mas parece ter a ver com nossa enorme capacidade de investigação. E com nossas crises! Acumulando armas atômicas afirmamos a capacidade de destruir a Terra como uma banana de dinamite enfiada numa maçã podre. Por quê? Não sabemos. Certamente não pelos motivos políticos e sociais que são apresentados. Somos simplesmente uma espécie construtora de ferramentas; ela mesma uma ferramenta da ecologia planetária que é uma inteligência superior. Essa inteligência sabe quais são os perigos e limitações na escala cósmica e organiza furiosamente a vida para se preservar e se transformar.

Minha história é peculiar. É difícil saber o que achar dela. A noção de algum tipo de revelação visionária fantasticamente complicada que nos põe no centro da ação é um sintoma de doença mental. Essa teoria faz isso; assim com a experiência direta, e também as ontologias do judaísmo, do islamismo e do cristianismo. Minha teoria pode ser clinicamente patológica, mas, diferentemente desses sistemas religiosos, tenho humor suficiente pra perceber isso. É importante apreciar a comédia intrínseca ao conhecimento privilegiado. Também é importante ter acesso ao método científico, sempre que for apropriado. A maioria das teorias científicas pode ser refutada nos calmos limites do laboratório, a evolução não.

Para sentir empatia com as visões de La Chorrera, precisamos imaginar o que podemos imaginar. Imagine se os desejos fossem cavalos, como os mendigos cavalgariam! As idéias desenvolvidas em La Chorrera eram tão envolventes porque prometiam novas dimensões à liberdade humana. Os rumores ouvidos na Amazônia sobre fluidos mágicos relacionados com o tempo, autogerados a partir dos próprios corpos pelos mestres xamãs, são nada menos do que sugestões da metamorfose do corpo/alma humano para um estado dimensional mais elevado. Caso essa transformação da matéria fosse possível poderíamos fazer qualquer coisa com ela. Poderíamos espalhá-la, subir em cima e leva-la a qualquer altitude, adicionando oxigênio à vontade. É a imagem assombrosa do disco voador voltando outra vez. Podemos entrar na substância; usando-a como um traje de mergulho mental. O disco voador é uma imagem da mente humana aperfeiçoada; ele espera zumbindo quente no fim da história humana neste planeta. Quando ela estiver perfeita, haverá uma mutação ontológica da forma humana, nada menos do que o corpo ressurreto que o Cristianismo prevê.

É função do gênio da tecnologia humana dominar e servir às energias da vida e da morte, do tempo e do espaço. O OVNI guarda a possibilidade da mente tornar-se objeto, uma nave que pode cruzar o universo no tempo necessário para se pensar a respeito. Porque ela é como o universo: um pensamento. Quando a mente tornada objeto móvel for aperfeiçoada, a humanidade – noviça no domínio do pensamento – irá começar a partir.

Claro que podemos descobrir que não vamos embora; o futuro pode revelar, ao invés disso, que há algo lá fora chamando-nos para casa. Então será nossa tecnologia e o chamamento do Outro que irão mover-se na direção de um encontro. O disco é uma excelente metáfora para isso. Quando Jung sugeriu que o disco era a alma humana, ele estava mais correto do que pode ter suposto. E isso não está muito distante de acontecer. Essa é a outra coisa; a última virada de épocas nos deu a teoria da relatividade e a mecânica quântica. Outra mudança de época se aproxima, mas é difícil saber se será a época final. Nosso papéis como partes do processo introduzem um princípio de incerteza que impede a previsão.

Todos esses temas foram tecidos ao redor do DMT, possivelmente porque a DMT cria um microcosmo dessa mudança de épocas na experiência de um único indivíduo. Parece difícil elevar a mente perceptível acima dos confins do espaço comum e ter um vislumbre da maior estrutura possível do Ser. Quando Platão disse que “O tempo é a imagem móvel da Eternidade”, fez uma afirmação que é reforçada a cada viagem para o espaço da DMT. Como a mudança de época chamada Apocalipse, antecipada por histéricos religiosos, a DMT parece iluminar a região após a morte. E qual é a dimensão além da vida, que a DMT ilumina? Se pudermos confiar em nossas percepções, é um lugar no qual existe uma ecologia de almas cujo estado de ser é mais sintático do que material. Parece ser um reino próximo, habitado por intelectos élficos eternos, feitos inteiramente de informação e de alegre auto-expressão. O depois da vida é mais um país de fadas céltico do que uma não-entidade existencial, pelo menos isto é evidenciado na experiência com DMT.

Nós, seres humanos, devemos admitir que nossa situação é peculiar: tendo nascido, somos sistemas químicos abertos e autônomos que se mantêm num ponto distante do equilíbrio metabólico. E somos criaturas pensantes. O que é isso? O que são as três dimensões? O que é a energia? Encontramo-nos na estranha posição de estarmos vivos. Tendo nascido, sabemos que vamos morrer. Um monte de pensadores diz que isso não é tão estranho, que acontece no universo – as coisas vivas surgem. E no entanto a nossa física, que pode acender o fogo das estrelas em nossas desertos, não pode explicar a estranheza do fenômeno de estarmos vivos.

No ponto em que a ciência está hoje em dia os organismos se encontram completamente fora do âmbito da explicação física. Então de que ela serve? Spencer e Shakespeare, a teoria quântica e as pinturas de cavernas em Altamira. Quem somos nós? O que é a história? E para onde ela vai? Agora libertamos processos potencialmente fatais ao planeta. Disparamos a crise final para toda a vida. Fizemos isso, mas não temos controle. Nenhum de nós. Nenhum líder e nenhum Estado pode mandar parar o fato de estarmos presos à história. Estamos nos movendo em direção ao inimaginável enquanto se empilham as informações sobre a natureza real da situação que enfrentamos. Para parafrasear J.B.S. Haldane: nossa situação pode não ser apenas mais estranha do que supomos; pode ser mais estranha do que podemos supor.

Timewave Zero – Alguns vídeos no Youtube (em inglês):

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[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=LLbS-kQhd9o]

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A odisséia psiconáutica: A História de um século e meio de pesquisas sobre plantas e substâncias psicoativas

*Artigo extraído do livro “O Uso Ritual das Plantas de Poder” (Beatriz Caiuby Labate e Sandra Lucia Goulart [ORGS] )

 Henrique Carneiro (1)

  1.  Doutor em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), professor adjunto do Departamento de História da USP, autor de Amores e sonhos da flora. Alucinógenos e afrodisíacos na botânica e na farmácia (2002) e de Filtros, mezinhas e triacas. As drogas no mundo moderno (1994).

Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. (Marcel Proust, No Caminho de Swann)

O uso de plantas e substâncias psicoativas passou, no último século e meio, a ser objeto de um estudo científico. Ludwig Lewin, o pioneiro farmacologista alemão, dizia sobre as drogas que, “com a única excessão dos alimentos, não existe na Terra substâncias que estejam tão intimamente associadas com a vida dos povos em todos os países e em todos os tempos” (apud Brau 1974, p. 7). Essa ubiquidade da droga em todas as épocas e culturas permite supor que o consumo de substâncias alteradoras da consciênciafaz parte da condição humana, que buscou sempre meios para interferir quimicamente no psiquismo. Essa é a conclusão do médico Andrew Weil (apud Furst 1980, p. 25), ao afirmar que “o desejo de alterar periodicamente a consciência é um impulso inato, normal, análogo à fome ou ao impulso sexual”. As regras sociais que disciplinam esse impulso, ou seja, o uso do álcool e de outras substâncias psicoativas, são investigadas pela história da normatização das drogas.

Dentre as drogas existe, entretanto, uma categoria especial, que se distingue dos inebriantes (como o álcool), dos excitantes (como o café e a cocaína), ou dos sedativos (como o ópio), que é um conjunto de plantas e de substâncias sintéticas que produzem efeitos psicoativos muito peculiares e característicos. Esses efeitos foram chamados de “fantásticos”, por Ludwig Lewin, e se tornaram conhecidos mais vulgarmente como “alucinógenos” ou “psicodélicos”. Essas drogas são basicamente as seguintes: o LSD, a mescalina, a psilocibina, a DMT e também as anfetaminas psicodélicas como o MDMA, das quais existem ao menos algumas centenas de análogas. Suas características fisio-químicas são a muito baixa toxicidade e a também baixíssima dose mínima necessária. Quase não produzem efeito fisiológico, exceto certa midríase (aumento da pupila) e taquicardia. A natureza fundamental do seu efeito é psíquica, esfera que sofre uma ação impactante dessas drogas.

O poderoso efeito psíquico foi o que tornou plantas como o cogumelo teonanacatl, o cacto peiote, o cipó ayahuasca, a trepadeira ololiuqui etc., substâncias sagradas de diversas religiões americanas. O fascínio do olhar antropológico sobre esses cultos e as utilizações dessas drogas em diversas culturas desencadeou uma crescente e sistemática investigação etnobotânica. O uso seletivo das plantas de poder foi identificado por diversos pesquisadores (Huxley, Escohotado, Szasz, Wasson, Allegro, McKenna, Narby, Ott, entre outros) como característico do fenômeno religioso. Diferentes estudos históricos e antropológicos têm destacado o uso específico de diferentes plantas em culturas distintas, desvendando significações particulares em cada rito e em cada substância, cuja diversidade engloba desde o tabaco em seu uso tradicional americano (Wilbert, 1987), até um conjunto de plantas muito singulares cuja denominação é objeto de controvérsia, sendo chamadas de “alucinógenas”, “enteógenas” ou “psicodélicas”.

No último século e meio, os estudos sobre as substâncias alucinógenas abrangeram tanto os usos sagrados tradicionais em diferentes culturas, como o uso contemporâneo internacional, onde diferentes consumos de tais drogas produziram diversos fenômenos dentro de uma ampla cultura da droga, que inclui o surgimento de novas religiões e de círculos científicos de pesquisa e experimentaçã, além de uma influência estética disseminada e de um uso recreacional popular, que supera a cultura exclusiva do álcool como lubrificante social. (2)

  1. Esse uso recreacional intensificou-se com a cultura rave, dos anos 1990, onde se despreza o álcool e se consomem psicodélicos. Ver Saunders (1995)

No início do século XX, desde que a mescalina foi isolada de amostras do cacto peyote, em 1897, por Arthur Heffter, e sintetizada em laboratório, em 1919, por Ernst Späth, difundiram-se diversas experiências de cientistas, psicólogos, escritores e artistas com esta droga. Mais tarde, Aldous Huxley, que identificava nas viagens psicodélicas veículos para o transporte dos antípodas mentais, tornou-se a partir dos anos 1950 um expoente marcante de uma aventura cultural de desbravamento pioneiro de um novo campo epistemológico, quando se difundiu o LSD, descoberto por Albert Hoffman em 1943.

O que caracterizou o final da segunda metade do século XX, entretanto, foi o quase desaparecimento da pesquisa científica oficial de algumas das substâncias mais fascinantes da farmácia contemporânea e de seus promissores e florescentes usos em terapia, arte e psicologia experimental. Ao invés disso, uma política de guerra contra as drogas igualou psicodélicos, opiáceos e cocaína numa lista oficial de substâncias proibidas pela ONU e consideradas como não-possuidoras de qualquer uso médico, provocando o sufocamento da investigação sobre o LSD e outras substâncias análogas.

A política da guerra contra as drogas tem sido criticada como uma “Inquisição” que busca suprimir a dissidência psicofarmacológica e proibir o exercício da liberdade de consciência para produzir uma hipertrofia de lucros e de violência com laboratórios clandestinos, policiamento mental, lavagem de bilhões de dólares, milhões de prisioneiros, fiscalização através de testes compulsórios de urina, devastação aérea de plantações, guerras, cercos e invasões militares. Tal é o sentido do conceito de “inquisição farmacrática”, empregado por Thomas Szasz e Jonathan Ott, entre outros, para definir o fenômeno da campanha do proibicionismo das drogas, iniciada com a Lei Seca contra o álcool nos Estados Unidos, no início do século XX, e intensificada desde os anos 1960, por Nixon, através de uma “guerra” de conteúdo militar, comercial, industrial, financeiro, político e ideológico.

Vivemos simultaneamente, entretanto, a ampliação de um novo camp0o epistemológico em meio a uma guerra que utiliza os instrumentos desse potencial científico e tecnológico como armas. Por um lado, a ciência química amplia os conhecimentos e os domínios sobre as sínteses refinadas de novos arranjos moleculares, e, por outro, produz uma intersecção com os domínios das ciências da subjetividade humana. A analogia molecular entre o LSD e a serotonina (cristalizada e nomeada em 1948 por Rapport) foi o que levou a identificação da segunda como neurotransmissor (Chast 1995, p. 128). A farmácia e a psicologia se unem na psicofarmacologia. A constituição desse campo, definido sistematicamente por François Dagognet, seu primeiro epistemólogo, no texto La raison et les rémèdes (1964), une a filosofia do sujeito com a história das formas de controle e normatização da subjetividade. O estudo desse campo de atividade do pensamento estimulado na fonte neurotransmissora dos impulsos e suas consequências na determinação das formas da consciência e dos modelos de subjetividade culturalmente determinados, constitui-se como um foco de inquietação que busca instrumentos nas mais divrsas ciências – farmácia, psicologia, medicina, história, antropologia – para investigar e experimentar os psicofármacos. Em 1972, Charles Tart propôs num artigo na revista Science, a criação de ciências específicas para os estados alterados de consciência, desenvolvendo uma abordagem que se insere no campo mais amplo das “ciências da consciência” (Tart 1998)

Os estudos sobre as drogas possuem uma extensa e multidisciplinar bibliografia. Este texto não pretende realizar nenhuma descrição panorâmica, mas apenas apontar algumas obras essenciais dos estudos históricos e antropológicos sobre o papel dos alucinógenos na cultura e historiar brevemente alguns usos dessas substâncias no decorrer do século XX.

Albert Hoffman

O estabelecimento e a classificação de uma bibliografia sobre plantas alucinógenas, usos enteogênicos e o psicodelismo é uma tarefa que ainda não foi feita. Diversas gerações se perfilam: desde os primeiros psicofarmacólogos como Arthur Heffter e Ludwig Lewin, no início do século XX; passando pelos trabalhos mais antropológicos sobre o peiote, de Alexandre Rouhier e Weston La Barre, nos anos 1930 (mesma época dos escritos literários de Michaux, Sartre e Artaud), chegando à descoberta (por serendipidade) do LSD por Albert Hoffman, em 1943; até a fermentação dos anos 1950, quando se destacam as obras de Aldous Huxley, Gordon Wasson e de Richard Evans-Schultes; e a explosão dos anos 1960, com o psicodelismo, Timothy Leary e Richard Alpert. Nos anos 1970 e 1980, formularam-se as visões críticas mais maduras em autores como Alexander Shulguin e Jonathan Ott. Autores como Thomas Szasz, emCerimonial chemistry (1974), e Antonio Escohotado em História de las drogas (1989), apresentam uma visão crítica do papel social, econômico e cultural das drogas e de sua regulamentação na história universal.

O enfoque sistemático de Escohotado sobre os mecanismos de controle e regulamentação do uso das plantas e dos fármacos é uma das análises mais agudas sobre a questão. A interpretação da guerra contemporânea contra as drogas como uma “inquisição farmacrática” e o próprio conceito de “farmacracia”, que Escohotado comparte com o psiquiatra Thomas Szasz, fazem parte da vertente que mais buscou, no terreno das ciências humanas, uma interpretação teórica e histórica dos regimes de consumo e regulamentação de drogas. Outros trabalhos pioneiros buscaram exposições gerais sobre a história das drogas, como é o caso de Jean Louis Brau, mas sem entrarmos nas vertentes psiquiátrica e farmacológica, podemos nos referir à etnobotânica, com Gordon Wasson e Richard Evans Schultes, e à antropologia, especialmente com os estudos do peiote e do xamanismo amazônico(3), como as disciplinas que mais contribuíram para a formação de um campo do conhecimento histórico e antropológico das drogas em geral e, especialmente, dos alucinógenos.

  1. Entre os quais estão Aguire Beltrán, Jean-Pierre Chaumeil, Jeremy Narby, Michael Harner, Michael Taussig, Terence McKenna, Weston La Barre e, especialmente no contexto amazônico, Esther Jean Langdon, Haydée Seijas, Homer Pinkler, Luis Eduardo Luna, Melvin Bristol, M. Winkelman, Néstor Uscategui, Plutarco Naranjo e Scot Robinson, muitos dos quais alunos de Evans Schultes.

O tema do xamanismo e das plantas de poder penetrou a cultura de massas do Ocidente, a partir dos anos 1970, com o amplo sucesso dos livros de Carlos Castaneda, cuja consistência antropológica foi, entretanto, questionada, mas que inegavelmente divulgou as plantas sagradas e seus mestres xamãs. Pesquisas antropológicas e trabalhos de campo se realizaram desde então em todos os continentes, mas especialmente nas Américas, onde o número de substâncias vegetais psicoativas conhecidas pelas culturas tradicionais é superior a todo o resto do mundo.

Alguns historiadores da América abordaram as consequências do impacto da regulamentação do consumo das drogas sobre as sociedades coloniais americanas, entre os quais Aguirre Beltrán e Serge Gruzinski. Igualmente importantes também foram os autores que trabalharam sobre a questão da história das práticas de consumo alcoólico, em particular no caso do encontro intercultural entre a Europa e a América, como é o caso de Sonia Corcuera de Mancera e de William Taylor. Entre outros trabalhos que estudaram as práticas de consumo alcoólico e de alucinógenos na América podemos citar Borrachera y Memoria(Saignes 1993) e os estudos levados a cabo no Peru desde os anos 1960 (especialmente os de Marlene Dobkin de Rios), que tratam do curandeirismo psicodélico da sierra e da selva, com grande tradição de uso de San Pedro e ayahuasca. O conceito de psiquiatria folclórica, desenvolvido por Carlos Alberto Seguín, que fundou o Instituto de Psiquiatria Social, na Universidade de San Marcos, em Lima, em 1967, também constitúi uma contribuição pioneira e fundamental para a discussão do uso tradicional de alucinógenos na América do Sul. No Brasil, após algumas passagens pioneiras de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo sobre a maconha e a Jurema(4), tem havido desde os anos 1980 um crescente interesse pelo fenômeno da religião do Santo Daime, com o surgimento de diversos livros, artigos e teses acadêmicas.(5)

  1. A Jurema (Mimosa hostilis e Mimosa nigra), elevada por José de Alencar, em Iracema, à condição de “licor de Tupã”, e onipresente no context do catimbó, teve o seu principal alcalóide, a DMT, isolado em 1946 por Gonçalves Lima que o chamou de nigerina. Ele foi o primeiro químico no mundo a isolar a DMT, anteriormente sintetizado em laboratório em 1931, de um produto natural.
  2. No Brasil, encontramos os trabalhos de Alberto Groisman, Anthony Henman, Ari Sell, Beatriz Labate, Edward MacRae, Sandra Goulart, Wladimyr Araújo, entre outros.

O renascimento psicodélico dos anos 1990 não se restringiu à revalorização da cultura juvenil das raves,da busca dos estados alterados de consciência, mas também se expressou numa intensa atividade editorial e na articulação através da Internet(6) de círculos de investigação e debate sobre tais substâncias. Algumas obras de investigação histórica e jornalística desvendaram a complexa e misteriosa história recente dos psicodélicos (Lee e Shlain, Stafford, Lyttle, Devereux) e centros como a MAPS (Multidisciplinary Association of Psychedelics Studies), a Società Italiana per lo Studio degli Stati di Conscienza, e a Albert Hoffman Foundation têm consituído bancos de dados e bibliografias e estimulando a pesquisa.

  1. Tão grande é a gama de publicações e instituições com sites na Internet que foi publicada em 1996 uma compilação por Jon Hanna, intitulada Psychedelic Resource List.

As diversas formas de uso dos psicodélicos têm se constituído como um campo original de conhecimento e de produção cultural, onde a psicologia, a farmácia, a medicina, a história, a literatura e a antropologia uniram-se para buscar compreender o papel das plantas e dos sintéticos produtores de estados de êxtase e que tiveram um papel histórico determinante como produtos de grande valor comercial, religioso e cultural.

Gordon Wasson

Poderíamos descrever as três visões mais importantes do uso dessas drogas a partir da própria opção pelo termo que deve denominá-las. Três são as opções fundamentais: alucinógenos, psicodélicos ou enteógenos. A primeira corresponde ao da pesquisa científica oficial dos anos 1930 a 1950 e, até hoje, é o termo considerado científico para descrever em termos farmacológicos os efeitos de uma gama de substâncias que vão da maconha ao LSD. A segunda é a denominação criada pelo psiquiatra canadense Humphry Osmond, em 1953, e que foi adotada pelo movimento político-cultural dos anos 1960. A terceira foi proposta em 1978 pelo investigador Gordon Wasson e outros (C.A.P Ruck, D. Staples, J.Bigwood e J. Ott) para referir-se às plantas que têm sido usadas como instrumentos sagrados de êxtase (Ott 1995).

Mais recentemente, as pesquisas levadas a cabo por Alexader Shulguin e sua equipe desenvolveram diversas novas substâncias de tipo semelçhante aos psicodélicos, mas com importantes distinções. As meta-anfetaminas, concebidas a partir do anel molecular da mescalina, possibilitaram diferentes tipos de efeitos, alguns dos mais característicos, no caso do MDMA, são os de intensificação das interações interpessoais, o que levou este pesquisador a propor a denominação de entactogen para esse tipo de substância (Shulguin 1991, p. 229), que também são chamadas de empatógenos.

Prefiro, para uma designação mais genérica desse campo específico dos psicoativos, o termopsicodélico, por achá-lo mais estético, mais preciso semanticamente, e imbuído de um conteúdo político e laico. O termo enteógeno, embora seja preciso para denominar usos de tipo religioso, como os identificados nas raízes culturais de inúmeros cultos, é inapropriado para definir o uso laico contemporâneo das mesmas substâncias. O termo alucinógeno, embora seja o mais corrente, é incorreto, refletindo um preconceito que atribui à ocorrência de supostas “alucinações” o principal ou único efeito de drogas que possuem uma natureza muito mais complexa. Como termo mais vasto que abrangeria diferentes vertentes das diversas formas de usos modernos e contemporâneos e os distintos enfoques culturais dos psicodélicos, utilizarei o conceito de psiconáutica que faz parte do movimento atual de renascimento psicodélico dos anos 1990 (segundo J. Ott, o termo psiconauta foi cunhado por Ernst Jünger, em 1970).

As vertentes da psiconáutica

O uso de drogas alteradoras da consciência foi uma das fontes do estudo científico da mente humana, dando origem a diversas vertentes fundadoras do campo da psicologia no século XIX. Desde muito antes dessa época, entretanto, que as especulações sobre a consciência humana estão entrecruzadas com experiências de estados alterados de consciência por uso de substâncias psicoativas. O pharmakón grego se tornou psicofármaco, ou “remédio da alma”, quando Reinhard Lorichius publicou, em 1548, um livro chamado Psychopharmakon, hoc est: medicina animae. Um dos primeiros estudos sistemáticos sobre as drogas foi a tese doutoral de um aluno de Lineu, Olavus Reinh Alander, que escreveu em 1762,Inebriantia, que pode ser considerado o primeiro tratado sobre psicoativos. Claude Bernard (1813 – 1878) é o pioneiro da medicina e da farmacologia experimentais, tendo publicado, em 1857, Lições sobre os efeitos das substâncias tóxicas e medicamentosas e, em 1865, Introdução à medicina experimental, realizando experimentos com o “curare” (substância paralisante) dos indígenas sul-americanos. Em 1817, a morfina foi isolada como o principal alcalóide do ópio e, alguns anos depois, Thomas De Quincey publicou The Confessions of an English Opium Eater (1821) que foi o primeiro best-seller da, desde então, prolífica literatura de experiência com drogas.

O primeiro laboratório de farmacologia experimental teria se estabelecido em 1860 na cidade de Dorpat (atual Tartu), na Estônia (Ribeiro do Valle 1978). O estudo científico das drogas psicoativas tem entre seus principais iniciadores alguns cientistas como Ernst Freiherr von Briba (1806 – 1878), que, em 1855 publicou, na Alemanha, Die narkotichen Genussmittel und der Mensch, onde estudou 17 plantas; e J. J. Moreau de Tour, que, em 1845, publicou na França o primeiro estudo sistemático realizado com o haxixe,Du hachich et de l’alienation mentale, onde compara o estado produzido pela droga com a loucura, Em 1860, Mordecai Cooke (1825 – 1913) publicou The Seven Sisters of Sleep, onde divulgava de forma popular diversas informações sobre plantas narcóticas e, no mesmo ano, também era publicado, na França, Les Paradis artificiels, de Charles Baudelaire, obras que traziam para o público descrições literárias e, quase sempre, exageradas dos efeitos de certas drogas. E. Kraepelin publicou, em 1883, um artigo intitulado “Sobre a ação de algumas substâncias medicamentosas na duração de certos fenômenos psíquicos elementares” e, em 1892, um livro que abordava os efeitos comparados do chá, do álcool, da morfina, do éter et., intitulado Sobre a influência de alguns medicamentos em determinados fenômenos psíquicos elementares, onde teria utilizado pela primeira vez a palavra farmacopsicologia.

Sigmund Freud contribuiu com o campo de estudo das drogas ao teorizá-las como um dos mecanismos culturais destinados a evitar o sofrimento e buscar o prazer – o mais eficaz, enfatizou Freud -, em O Mal-Estar na Civilização, tendo experimentado entretanto apenas a cocaína e o tabaco, dos quais se tornou adepto. Nos Estados Unidos, William james experimentou o óxido nitroso e escreveu, em 1902, The Varieties of Religious Experience, comparando o êxtase religioso com o efeito provocado por drogas.

O isolamento da mecalina, como princípio ativo do peyote, cacto alucinógeno do México, por Arthur Heffter, em 1897, trouxe ao panorama da farmácia o primeiro alucinógeno quimicamente puro. Nessa época, Havelock Ellis empregou mecalina para estudos sobre a criatividade, tendo ministrado essa droga para poetas como Yeats e para pintores. Em 1911, Karl Hartwich escreveu Die menschlichen Genussmittel, onde superou a obra anterior de von Briba, enfocando sob um ângulo interdisciplinar cerca de 30 plantas. Em 1924, surgiu Phantastica, de Ludwig Lewin, a obra mais influente na classificação das substâncias psicoativas, apresentando um estudo detalhado de 28 plantas e de alguns compostos sintéticos (Evans – Schultes e Hoffman 1993, p. 185). Os cinco tipos de psicoativos eram, para Lewin, os fantásticos, os excitantes, os sedativos, os euforizantes e os inebriantes. Esta taxonomia evolui posteriormente para o odelo de três categorias: os psicolépticos, psicoanalépticos e os psicodislépticos, englobando respectivamente os depressores, os estimulantes e os alteradores da consciência(7).

  1. Tal classificação, proposta por J.Delay desde 1952, derivou do uso psiquiátrico da cloropromazina, classificada como um psicoléptico timoléptico ou neuroléptico, ou seja, um tranquilizante não-sonífero, assim como os anti-depressivos foram classificados como timoanalépticos, enquanto os soníferos seriam noolépticos e os excitantes, como a anfetamina, nooanalépticos. Tal nomeclatura tornou-se oficial desde o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em 1957. Ver Pöldinger (1968).

Nos anos 1930, o estudo dos alucinógenos (ou psicodislépticos) começou a desenvolver-se no período de arrancada da farmacoquímica na Alemanha. A história da consciência alcançou na era dos psicofármacos psicodélicos de síntese inaugurada com as pesquisas sobre a mescalina, sobretudo as de Heinrich Klüver, uma abordagem experimental dos universos mentais, A experimentação permitia um domínio empírico sobre o quadro de alterações de consciência que nenhuma outra verificação científica poderia aferir. Além dos depoimentos, dos testemunhos, da observação clínica ou psicológica dos sujeitos experimentadores, cabia ao pesquisador o conhecimento direto e insubstituível da vivência pessoal da experiência. Também na década de 1930, setores da intelectualidade se interessaram pelos psicodélicos. Jean-Paul Sartre, após tomar mescalina, escreveu Náusea, onde expressou certos aspectos de suas vivências mescalínicas, e Henri Michaux escreveu O conhecimento pelos abismos, Infinito turbulento e O miserável milagre.

A tipologia dos “arquétipos” provocados pela mescalina, sobretudo os efeitos visuais, foram objeto de extensos estudos experimentais. A natureza do alucinógeno permitiria compreender a natureza da alucinação e da percepção da realidade. A definição precisa das “constantes alucinatórias” foi para Klüver uma das chaves para se tentar compreender a natureza dos efeitos da mescalina. A característica principal dos fenômenos alucinatórios tinha sido definida por Havelock Ellis como a sua “indescritibilidade” (indescribableness), mas Klüver irá buscar as formas constantes, tais como: “a) grade, treliça, trama, cordas, filigrana, favos de abelha, exadrezado; b) teia de aranha; c) túnel, funil, viela, cone, ou barco; d) espiral” (Klüver 1971, p. 66). As pioneiras e, em muitos aspectos, interessantes pesquisas desse período sofreram, no entanto, a limitação de buscarem enfoques parcelares e laboratoriais de uma experiência cuja natureza múltipla, polissêmica e subjetiva tornava-se inabordável pelos métodos e testes psicológicos tradicionais destinados a verificar “alucinações visuais”. O que mais se destacava na experiência dessas drogas era sua inefabilidade, sua singularidade e sua intensidade. Mais recentemente, diferentes autores identificaram nas percepções geométricas visuais um elemento recorrente em diversas culturas, desde as pinturas rupestres paleolíticas até os padrões psicodélicos contemporâneos, representando o que R. Rudgley denomina “fenômenos entópticos”, também chamados de fosfenos ou imagens eidéticas. Os efeitos dos alucinógenos produziriam dois tipos básicos de imagens: padrões geométricos entópticos, que derivariam da estrutura universal do sistema nervoso humano, e imagens icônicas alucinatórias, derivadas de elementos psicológicos e culturais (Rudgley 1995, p. 18).

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Aldous Huxley

Em 1953, Aldous Huxley tomou mescalina e escreveu As Portas da Percepção, que se tornou a mais famosa apologia intelectual da experiência psicodélica. O psiquiatra canadense que o iniciara na experiência era Humphry Osmond, que foi quem propôs a denominação de psicodélicos.Huxley prosseguiria desde então um estudo insaciável sobre os psicodélicos, correspondendo-se, entre outros, com o círculo de Albert Hoffman, o inventor do LSD, e o de Timothy Leary.

Nos anos 1960, despontaram movimentos culturais (ou “contraculturais”) que reinvidicavam a extensão dos direitos de livre-disposição do corpo e de autonomia sobre si próprio. Como parte desses movimentos, destacavam-se os que discutiam questôes de política sexual, de gênero (o movimento feminista) e de opção sexual (o movimento homossexual). O uso voluntário do corpo para fins de prazer sexual se coligava à reinvidicação da autonomia crítica da consciência, da recusa em se permitir ao Estado uma jurisdição química sobre a mente que busca controlar o que se ingere ou se introduz voluntariamente no interior do corpo. O movimento psicodélico representou uma defesa política oficial do proibicionismo estatal, caracterizado como Inquisição farmacrática contra o direito de escolha na estimulação química do espírito. A humanidade alcançou com os recursos de alteração química deliberada da consciência um novo patamar para o florescimento da auto-consciência do espírito. A consciência deixou de ser a mera auto-referência psicológica, sujeito filosófico do conhecimento ou identidade para tornar-se a matéria plástica, passível de programação química voluntária. Tal perspectiva trouxe a baila uma questão moral e política decisiva: quais os limites para a liberdade de autoprogramar-se quimicamente? A liberdade de consciência, os direitos do homem, a liberdade na busca dos meios de obtenção de prazer incluem o direito ao uso de drogas?

A autonomia crítica da consciência exigiu o acesso ao arsenal do saber herbário e da tecnologia psico-farmacoquímica como um dos direitos do espírito humano na busca do conhecimento de si próprio. A resposta política do Ocidente a essa demanda pelas chaves vegetais e químicas da consciência até hoje, contudo, foi negativa. O proibicionismo reinou sempre, inicialmente sob a égide da Igreja e, mais tarde, da Medicina. A Igreja Católica proibiu os frutos das árvores do conhecimento, como o ópio, os cogumelosamanita ou a cannabis, herança combatida do paganismo euroasiático e, durante a colonização moderna, desencadeou uma campanha para extirpar as “idolatrias” indígenas, e particularmente as suas plantas sagradas. A América proveu o mundo, entretanto, com algumas das mais fantásticas substâncias extraídas de plantas: a mescalina do cacto, a psilocibina do cogumelo, a harmalina do cipó, as triptaminas da leguminosa jurema, e o LSD análogo da trepadeira ipoméia.

O uso militar

O uso de técnicas de alteração de consciência por meios médicos ou químicos sempre foi objeto de pesquisa científica de uso militar. A psiquiatria do śeculo XX desenvolveu uma vasta gama de técnicas reunidas sobre a denominação de “sismoterapia”. O abalo de pacientes esquizofrênicos, antes produzido com água gelada e outros métodos rudimentares, se aperfeiçoou através de febres induzidas (paludoterapia), comas hipoglicêmicos (choque de insulina), epilepsias induzidas (choque de cardiazol) e eltro-choques. Estes últimos foram especialmente empregados quando na Primeira Guerra Mundial para os chamados “neuróticos de guerra”, soldados em trauma que se recusavam a lutar. Freud teve uma posição ambígua diante desse tipo de “tratamento”, inclusive depondo numa comissão de inquérito durante um processo movido por um oficial das forças armadas austríacas, mas a conclusão oficial continuou a legitimar o uso de eletro-choques para “arrancar o doente de suas fixações e permitir-lhe voltar ao fronte” (Rousseau 1998).

O exército alemão interessou-se pela mescalina e na época nazista floresceram os estudos médicos sobre prisioneiros em campos de concentração. No pós-guerra, os Estados Unidos recrutaram mais de seiscentos cientistas alemães de diferentes áreas, entre os quais o principal investigador responsável pelos estudos de mescalina, Dr. Hubertus Strughold, que, segundo os pesquisadores norte-americanos Martin A. Lee e Bruce Shlain, “depois de Werner von Braun, foi o segundo cientista nazista de primeiro plano a ser empregado pelo governo dos Estados Unidos, tendo sido, mais tarde, saudado pela NASA como “o pai da medicina do espaço” (Lee e Shlain 1994, p. 26). A medicina do espaço foi um dos campos onde se investigaram os estados de consciência alterada, especialmente em condições de confinamento, e se experimentaram novas drogas psicoativas potencialmente úteis para a manutenção da saúde psíquica em viagens espaciais.

O código deontológico da pesquisa científica estabelecido pelos juízes dos processos de Nuremberg, que estabelecia que nenhuma experiência poderia ser levada a cabo sem o consentimento total e voluntário, nunca foi seguido nos Estados Unidos. Após a guerra, a CIA dedicou-se a uma vasta pesquisa sobre drogas. Utilizando cientistas nazistas davam continuidade à utopia reacionária da manipulação cerebral total. Constituíram-se os projetos Blue bird e Artichoke, que se dedicavam a desenvolver técnicas de controle mental e de interrogatórios, com o uso de drogas, tortura e hipnose. Em 10 de abril de 1953, Allen Dulles, novo diretor da CIA, proferiu um discurso em Princeton, onde se referiu ao “sinsitro combate dos soviéticos para se apoderarem dos espíritos”, referindo-se a supostas técnicas de “lavagem cerebral”. Três dias depois foi lançado o projeto da CIA chamado MK Ultra, que consistiu no estudo experimental, com voluntários e não-voluntários, de diversas drogas, entre as quais o LSD, que por suas características peculiares de ínfima dosagem e magnitude dos efeitos, tornou-se uma das principais. O LSD é ativo na proporção de milésimos de miligramas, ou seja, em poucas dezenas de milionésimos de grama. Praticamente nenhuma outra substãncia age sobre o metabolismo humano nessa dosagem.

Alan Ginsberg

Ironicamente, alguns dos sujeitos recrutados por anúncios em jornais, que foram iniciados no LSD nesses testes de ácido, tornaram-se, depois, os maiores críticos à política oficial de drogas nos Estados Unidos, como o poeta Allen Ginsberg. A questão moral central do uso de drogas em geral, mas particularmente dessas intensas novas drogas mentais, dizia e continua dizendo respeito ao problema da liberdade de opção. Inicialmente se manteve um uso restrito às investigações militares e médicas, nas quais, na maior parte das vezes, os sujeitos que consumiam as drogas não o faziam voluntariamente. O que a CIA buscava era justamente uma droga que vencesse a vontade e as convicções, que tornasse voluntário o involuntário. Desenvolviam pesquisas para técnicas de interrogatório, armas de guerra a se usarem em bombardeios ou infiltração de sistemas de abastecimento de água (o que se verificou impossível, pois o cloro neutraliza o LSD). No uso médico e psicoterapêutico, embora tenha havido trabalhos sérios em profusão nos anos 1950 e 1960, até a proibição legal do LSD em 1966, também houve muito uso experimental psiquiátrico e todo tipo de aberrações numa época que consagrara a lobotomia com um prêmio Nobel (o português Esgas Moniz, em 1949), chegando até mesmo à prática da lobotomia num paciente a quem se havia dado LSD, para que o mesmo descrevesse verbal e conscientemente o que estava sentindo ao mesmo tempo em que lhe extirpavam pedaços do cérebro.

Ao mesmo tempo, o LSD se popularizava entre a elite norte-americana. Os agentes da CIA tomavam ácido como parte obrigatória de sua preparação. Atores famosos, milionários, generais e até mesmo presidentes norte-americanos como John Kennedy contavam entre os que experimentavam LSD. Nas universidades se desenvolviam programas de reabilitação de alcoólatras e de delinquëntes que obtinham grande êxito. O problema para as autoridades surgiu quando esse uso extravasou as comportas da CIA, da elite e das cúpulas universitárias e, a partir de Harvard, os professores de psicologia começaram a fazer proselitismo público. O resultado foi a proibição do LSD em 1966. O uso voluntário passa a ser considerado crime, o território interior da carne e mente torna-se jurisdição química do Estado que decide quais substâncias e em que momentos estamos autorizados a consumir. Ao mesmo tempo em que os serviços secretos do mundo desenvolviam ou subsidiavam pesquisas sobre drogas, especialmente os novos sintéticos, a polícia intensificava a repressão e um movimento cultural começava a desenvolver-se em torno do uso ilegal destas novas substâncias.

Usos psicoterapêuticos

Na psicoterapia, centenas de tratamentos alcançavam resultados surpreendentes; como inspirador de artistas e potencializador de criatividade, repetia-se exaustivamente, em todas as artes, as experiências do final do século XIX, quando Havelock Ellis deu mescalina para poetas e pintores. Retomava-se, com os sintéticos como o LSD, a traddição literária baseada no uso de drogas como via para a poesia.

Diversas vertentes utilizaram psicodélicos como coadjuvantes para tratamentos, com sucesso excepcional na recuperação de alcoólicos, em pacientes terminais, e em tratamentos os mais variados. Em Harvard, após experimentar cogumelos em 1960, o psicólogo Timothy Leary, aos 39 anos, converteu-se a um apostolado dos psicodélicos. Aproximou-se dos beats como Allen Ginsberg, que vinham de uma tradição de uso do peiote, e realizou algumas experiências autorizadas com recuperação de dependentes de álcool e de delinquentes. Quando o uso dos psicodélicos extravasou o controle acadêmico, Richard Alpert e Timothy Leary tornaram-se os primeiros casos de expulsão no quadro de professores de Harvard, em 1963.

Nos anos 1960, Alberto Fontana adotou, na Argentina, psicodélicos em terapia psicanalítica. Na Tcheco-Eslováquia, Stanislav Grof começou um trabalho de pesquisas, que foi desenvolvido posteriormente na Califórnia, como investigação dos estados perinatais, utilizando psicodélicos em experiências de regressão. No Brasil, houve uma utilização científica de LSD no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, inclusive com experiências sobre criatividade(8), vertente já explorada desde Havelock Ellis e, mais recentemente, por Stanley Krippner, nos Estados Unidos, mas que foram abortadas pela interdição legal de experimentação científica com psicodélicos.

  1. O livro de memórias de Fauzi Arap, Mare Nostrum, Sonhos, viagens e outros caminhos, relata a influência lisérgica sobre o panorama cultural brasileiro dos anos 1960 e sobre diversos artistas em particular como, além dele próprio, a escritora Clarice Linspector, que deveria a uma intensa experiência com LSD a inspiração para o seu livro A Paixão segundo G. H.

A bibliografia médica sobre usos de LSD e outros psicodélicos é de muitos milhares de títulos, que compreendem usos psiquiátricos e psicoterapêuticos os mais diversos, resultado sobretudo das experimentaçoes realizadas antes da proibição legal em 1966. Entre os pesquisadores que relatam essas experiências, podemos citar autores como Masters e Houston, Claudio Naranjo e Andrew Weil, que escreveram livros sobre as virtudes médicas e terapêuticas dos psicodélicos. Durante o começo dos anos 1980, o uso de MDMA generalizou-se em diversos tratamentos psicoterapêuticos e até sua proibição, em 1986, foi apresentado como um eficiente afrodisíaco ou droga pró-sexual.

O uso político dos alucinógenos e o movimento psicodélico

O uso aristocrático por Ernst Jünger, do círculo diretamente ligado a Hoffman, na Suiça, ou por militares norte-americanos, como o capitão Alfres M. Hubbard, são vertentes de uso restrito dos psicodélicos que sempre advogaram por um acesso muito seletivo. Contra tal controle insurgiam-se, nos anos 1960, diversos apostulados do ácido. Talvez, como advertiria André Breton no Segundo Manifesto do Surrealismo, eles quiseram “distribuir o pão maldito aos passarinhos” e pagaram o preço dessa ousadia.

A expulsão, em maio de 1963, de Richard Alpert e Timothy Leary do quadro de professores de Harvard simbolizou o mergulho na clandestinidade das pesquisas científicas com LSD. O livro Politics of Ecstasy, publicado em 1968, resumiu as posições de Leary em defesa da experimentação ampla dos psicodélicos.

Por um lado, os militares e a CIA prosseguiram com suas experiências secretas, enquanto que, por outro, um imenso movimento juvenil iria iniciar-se nos arcanos da farmácia clandestina. Em 23 de novembro de 1963, morre aldous Huxley, no mesmo dia em que Kennedy é assassinado. Huxley, ao morrer, pratica o ensinamento do Bardo Todol, o Livro Tibetano dos Mortos, que ele havia interpretado como um manual para o êxtase, e pede à sua mulher Laura que lhe injete uma dose de LSD.

Em 1965, a fabricação e venda do LSD tornaram-se ilegais. Em 1966, a Sandoz parou a fabricação. No debate que se abre no congresso norte-americano, o senador Robert Kennedy argumenta contra a proibição, alegando que sua esposa usava LSD com êxito num tratamento psicoterapêutico. Em 1968, não obstante, a posse de LSD tornou-se um crime nos Estados Unidos.

Timothy Leary

Muitos são os “apóstolos do ácido” que começam a fazer a sua distribuição como sagrada hóstia espiritual. Ken Kesey e o grupo de rock Merry Pranksters, saem num ônibus promovendo os Eletric-Cool-Aid-Acid-Test (tema do livro de Tom Wolfe, O teste do ácido do refresco elétrico). O próprio Leary funda a IFIF (International Federation for Internal Freedom) e instala-se em Cuernavaca, no México, onde faz sessões com LSD. Na esteira da radicalização do movimento estudantil, surgem as seitas psicodélicas, como os Diggers, os Yippies e a “Fraternidade do Amor Eterno”. No final de 1968, Nixon é eleito e lança a War on drugs. Em 1969, Leary declara que o LSD é perseguido por “ciúme metamórfico”, porque “as moscas invejam as borboletas”, e lança sua candidatura ao governo da Califórnia, contra Ronald Reagan, recebendo o apoio de John Lennon, que escreve a música Come Together, para a campanha.

Em 1965, Leary havia sido preso junto com a mulher e a filha por porte de pequena quantidade de maconha na fronteira com o México e condenado a trinta anos de prisão e, em 1970, após nova apreensão e recusa de recursos, é encarcerado. Após alguns meses, foge espetacularmente e exila-se na Argélia, onde se reúne com o líder pantera negra, também lá exilado, Eldridge Cleaver, renega o pacifismo e torna-se um revolucionário psicodélico. Em 1973, é preso no Afeganistão e levado para os Estados Unidos, onde colabora com a polícia, denunciando antigos companheiros. Devido ao fato de Leary aceitar capitular, no que se torna conhecido como o “Watergate hippie”, o movimento contracultural convoca uma conferência chamada de “PILL” (People Against Leary Lies). Em 1976, Leary é solto por “bom comportamento”. Nesse mesmo ano, tornam-se públicos os documentos relativos às experiências secretas da CIA com LSD, que resultaram na morte, por suicídio, de um de seus agentes, Frank Olson, em 1953. Após escrever sua autobiografia, Flashbacks, Timothy Leary dedica seus últimos anos à exaltação da Internet, constituindo-se num internauta anunciador da alteração de consciência através da realidade virtual, estado de todas as imponderabilidades.

De Woodstock à chacina de Charles Manson, a divulgação de bad trips e a proibição criaram o clima paranóico que tornou as experiências lisérgicas influenciadas por expectativas negativas, condição que apenas multiplicou o número de casos de más viagens ofuscando a época idílica do flower power.

O uso religioso

O tema do uso de drogas ligado às religiões já fora motivo de debate nos Estados Unidos com a organização da Igreja Nativa do Peyote, no início do século XX, estudada em profundidade pelo antropólogo Weston La Barre, nos anos 1930. Quando surgiu o movimento psicodélico dos anos 1960, capitaneado por Leary, argumentou-se novamente que o uso dos psicodélicos era um direito religioso. Mais ainda: Leary teorizou que um dos efeitos específicos produzido por essas drogas era a devoção. Pesquisas como as realizadas pelo psiquiatra Oscar Janinger e pelo psicólogo William McGlothlim com centenas de pacientes, mostravam que em 75% dos casos ocorriam intensas e transformadoras experiências religiosas, o que levou muitos a acreditarem que o LSD e outras substâncias eram um sacramento e a proporem, como Leary, que cada um formasse a sua própria religião fazendo a experiência da revelação lisérgica.

Richard Gordon Wasson, norte-americano, conheceu sua esposa Valentina, médica russa, em 1921. Em agosto de 1927, casados e residindo nos Estados Unidos, ao passarem a lua de mel nas montanhas Catskills, descobriram uma notável diferença cultural entre eles: ela adorava colher cogumelos e prepará-los em diversos pratos e ele simplesmente não podia conceber que se comessem coisas tão nojentas e perigosas. Essa diferença na valorização dos cogumelos, que eles denominaram de micofobia oumicofilia, levaria-os a uma verdadeira obsessão durante toda a vida: estudar os cogumelos em todo o mundo.

Em 1949, Valentina telefonou para Robert Graves, escritor britânico, autor de uma autobiografia ficcional do imperador Cláudio, para indagar-lhe sobre o último prato de cogumelos de Cláudio, que supostamente teriam sido envenenados por sua mulher, Agripina. De fato, há ao menos três tipos de Amanita bem distintos: Amanita muscaria é o alucinógeno; Amanita caesarea é um tipo comestível muito apreciado pelos imperadores; e, finalmente, o Amanita phalloides é um terrível e poderoso veneno de efeito retardado. O suco deste último teria sido posto num Amanita caesarea para Cláudio.

Três anos depois, Graves enviou aos Wasson uma notícia sobre a descoberta de um culto dos cogumelos no México pelo botânico Richard Evans Schultes, que teria estado já em duas ocasiões na região mazateca, em 1938 e 1939, e obtido amostras de cogumelo. Gordon e Valentina passaram a viajar para o México e, na sua terceira visita, em 1955, conheceram Maria Sabina, e foram os primeiros ocidentais a participarem da cerimônia secreta dos cogumelos. Valentina morreu em 1958, logo depois que publicaram seu primeiro livro: Mushrooms, Russia and History. Gordon Wasson aposentou-se da vicepresidência do banco Morgan e dedicou-se ao estudo dos cogumelos. Foi uma dezena de anos seguidos ao México, levou os cogumelos, por intermédio do micólogo Roger Heim, para Albert Hoffman, o qual, após isolar os princípios ativos, denominou-os psilocibina e psilocina (do grego psilo, “careca”, e cybe, “cabeça”). Em 1962, Hoffman acompanhou Gordon Wasson numa viagem ao México e levaram um frasco de pílulas de psilocibina para Maria Sabina, que as usou numa sessão noturna com a presença de ambos.

Se nos anos 1950 o centro da pesquisa de Wasson concentrou-se em torno do cogumelo psilocybe, nos anos 1960 ele se deslocou para a ìndia e a questão da identificação da planta sagrada dos Vedas, o Soma, que para Wasson teria sido o Amanita Muscaria.

As obras de Gordon Wasson não apenas chocaram os especialistas de diferentes áreas de erudição acadêmica como causaram um enorme impacto, pois, pela primeira vez, se apresentava uma tese global justificada com sérias investigações que afirmava a ligação indissolúvel entre droga e religião. Em 1938, Weston La Barre, ao estudar o culto do peiote, já havia argumentado em prol da idéia de uma “religião-UR”, mas a descoberta do culto dos cogumelos generalizava essa hipótese. A comprovação da permanência do uso dos cogumelos sagrados do México levou Wasson para uma investigação exaustiva de todos os usos de cogumelos e outros enteógenos através do mundo. Os Mistérios de Elêusis, o xamanismo siberiano, os magos persas e os invasores arianos da Índia foram alguns dos utilizadores das bebidas sagradas que foram investigados por Wasson, e uma equipe de pesquisadores que durante muitos anos buscou evidências do uso das plantas alucinógenas nos ritos destes cultos. A partir do uso boreal do cogumelo siberiano Amanita Muscaria, Wasson desenvolveu a tese de uma proto-religião baseada no uso dos cogumelos que teria se propagado com as invasões indo-arianas, nas formas do soma hindu e do haoma persa. O cristianismo, no entanto, elevou o vinho à condição de única droga sagrada e baniu todas as demais, proibindo o ópio, os ritos de Elêusis, os usos de plantas curativas pelos camponeses e as práticas vegetais de todos os paganismos. Tal restrição proscritiva a certas plantas se inscreve até mesmo na mitologia teogônica do Gênesis com as árvores dos frutos proibidos.

A liberdade de religião se tornou, no segundo pós-guerra, a bandeira democrática com a qual diversos movimentos buscaram legitimar o seu uso religioso de diferentes plantas. Um primeiro exemplo foi o da Igreja Nativa do Peiote nos Estados Unidos, mas foi particularmente o movimento psicodélico dos anos 1960, liderado por Timothy Leary, que transformou a defesa do direito de uso de drogas por razões religiosas numa causa popular, inicialmente nos Estados Unidos, mas com repercussões internacionais.

Terence Mckenna

A partir do final dos anos 1970, o interesse renovado pelos saberes vegetalistas indígenas, especialmente na Amazônia, culminou na ampliação do campo de estudos da etnobotânica, e levou muitos autores, como Terence McKenna, por exemplo, a retomarem a tese de Gordon Wasson de uma proto-religião xamânica enteógena como inspiração para um neo-xamanismo como retorno da cultura arcaica.

A expansão no Brasil de religiões usuárias da ayahuasca, como o Santo Daime e a União do Vegetal, também trouxe um renovado interesse no estudo, especialmente antropológico, desse fenômeno, cujos únicos paralelos são a Igreja Nativa do Peiote, nos Estados Unidos, e o culto Buiti, da iboga, no Gabão.

O renascimento neo-psicodélico desde os anos 1980

Nas últimas décadas do século XX, ocorreu uma retomada internacional dos temas do psicodelismo dos anos 1960. O xamanismo, a etnobotânica, as religiões enteógenas e a onda das raves trouxeram um renovado interesse pelas formas de alteração química da consciência.

Nos anos 1980, com o uso do MDMA, conhecido como ecstasy, refleresceram diversas experiências terapêuticas psicodélicas até a decretação da sua proibição legal, adotada a partir de 1986. O mais representativo dos pesquisadores científicos dessa época é o químico e farmacologista Alexander Shulgin. Seus livros PIHKAL (Phenethylamines I Have Know and Loved) A chemical love story (1991) e TIHKAL (Tryptamines I Have Know and Loved) The continuation (1997), escritos em parceria com sua esposa Ann, são uma verdadeira síntese das repercussões da pesquisa científica com drogas psicoquímicas, resumem o que há de mais avançado na pesquisa psicofarmacológica dos psicodélicos e produzem um relato auto-biográfico intimista entretecido com as fantásticas imbricações da guerra contra as drogas nas últimas décadas. Ambos os livros contêm, na sua metade final, uma parte destinada aos farmacoquímicos, onde se reproduzem as fórmulas, receitas e descrições dos efeitos de mais de quatrocentas novas drogas.

A síntese que realiza Alexander Shulgin é, antes de tudo, a do laboratório. Ele é um importante cientista no ramo da psicofarmacologia, tendo trabalhado anos para um grande laboratório, montou um laboratório particular onde se dedicou à pesquisa dos psicodélicos e inventou cerca de duzentas novas drogas por ele testadas junto a um grupo de amigos psiconautas. Constatou que essas drogas de dividem em dois grande grupos: o das fenetilaminas e o das triptaminas. Ao primeiro pertencem a mescalina e as novas moléculas derivadas da manipulação do seu anel molecular para se tornarem diferentes meta-anfetaminas psicodélicas, da qual a mais popular se tornou o chamado ecstasy (MDMA). Ao segundo pertencem o LSD, a DMT e a psilocibina. Cada um dos seus livros é dedicado a um dos grupos: PIHKAL, às fenetilaminas (daí o seu título: “Fenetilaminas que eu conheci e amei”), e TIHKAL, às triptaminas.

Ao fornecer ao grande público as fórmulas das drogas proibidas, Shulgin adotou uma postura política que teve como consequências a perseguição e a cassação de seu laboratório pela DEA (Drug Enforcement Agency). Durante anos, Shulgin havia trabalhado no programa de pesquisas com drogas na NASA, enquanto o governo norte-americano proibia internacionalmente a liberdade de pesquisa acadêmica sobre as substâncias psicodélicas, com a exceção dos laboratórios da CIA e do exército norte-americano. Apesar das legislações que incluíram o LSD, assim como todos os demais psicodélicos, no terreno das drogas proibidas, até mesmo para experimentação acadêmica e científica, criando no final do século XX, uma guerra contra as drogas que assume dimensões inquisitoriais, houve uma continuidade no interesse e nas investigações sobre tais substâncias.

As pesquisas psicoterapêuticas, cognitivas, estéticas, entre outras, que existiam com grande atividade, foram limitadas a uma verdadeira semi-clandestinidade. Alexander Shulgin foi praticante de uma metodologia revolucionária. Ao contrário de outros cientistas estudiosos dos psicodélicos, como o ex-nazista Strughold, ele se filia à tradição libertária norte-americana, ao movimento anti-establishment dos anos 1960. Diferentemente do ativismo psicodélico, não se dedicou, no entanto,a nenhum proselitismo, mas se tornou um pesquisador de vanguarda numa área oficialmente proibida até mesmo para fim de estudos científicos. O livro PIHKAL é o resumo de trinta anos de trabalho de laboratório e apresenta a lista de 179 fenetilaminas, com os procedimentos para a síntese química, as dosagens, a duração, comentário qualitativo e extensão dos comentários. É uma verdadeira “história natural da química da mente”, uma taxonomia das fenetilaminas que correspondem cada uma a um estímulo específico de uma atividade psíquica, de um “caminho cerebral” (brain pathway), que são descritas em seus efeitos subjetivos específicos a partir de uma experimentação dirigida.

Alexander Shulgin

A obra de Shulgin contribui para os campos científicos da psicofarmacologia e da neurologia. Além da perspectiva farmacológica, de suas técnicas e receitas de sínteses, e da perspectiva neurobiológica que pode, a partir da localização dos mecanismos de ação destes compostos químicos, localizar e compreender também os processos naturais dos neurotransmissores, há uma contribuição metodológica de Shulgin que é revolucionária do ponto de vista científico e político ao estabelecer uma indagação sobre o direito do Estado em intervir no terreno da jurisdição química da mente acima da pesquisa científica. Seu desafio é epistemológico, exigindo, como Galileu, que todos os instrumentos da ciência sejam utilizados, em particular esses telescópios químicos interiores que quanto mais se aperfeiçoam, mais permanecem inacessíveis como “psicoscópios” indexados como substâncias proibidas, mas seu gesto também é corajosamente político num momento em que a demonização das drogas e o pânico moral construído em torno delas o torna alvo de uma perseguição governamental que invadiu sua casa e o multou em milhares de dólares após a publicação destes livros.

A metodologia de Shulgin, controle experimental voluntário dos efeitos subjetivos de novos fármacos, por ele mesmo sintetizados, produziu um dos mais vastos corpora de dados científicos relativos às fenetilaminas e às triptaminas. Durante um período nos anos 1980, o MDMA foi usado livremente por médicos e psicólogos, nos mais diversos tratamentos, com amplo sucesso, e até mesmo exaltado como “droga do amor”, por sua qualidade de intensificar a empatia humana, ou seja, muito mais do que um suposto “afrodisíaco”, ele intensificaria a dimensão afetiva das interações humanas.

Num mundo em que o sucesso comercial de “Viagras” e “Prozacs” esconde uma proibição injustificável de outras substâncias de uma utilidade e de um campo de aplicações vastíssimo, é preciso um esclarecimento das manipulações políticas e comerciais que impedem um uso mais adequado do imenso e maravilhoso arsenal que a farmacoquímica coloca ao alcance da humanidade. A dieta psicoquímica deveria ser encarada da mesma forma que a dieta alimentar. Tal distinção é puramente cultural, e a busca do bem-estar e de estados mentais atrativos constitui formas diferenciadas do consumo sensorial e de seus rituais. Tanto uma dieta alimentar como psicoquímica inadequada podem ser perniciosas e daninhas à saúde, aliás é exatamente o que ocorre na sociedade contemporânea em níveis alarmantes., As substâncias mais nocivas como o tabaco, o álcool ou os benzodiazepínicos são legais, enquanto que as antigas plantas de poder, veículos sagrados dos povos da terra e herança de um conhecimento botânico milenário, são proibidas. Seus princípios ativos, localizados pela análise química e depois sintetizados sem necessidade de matérias-primas vegetais pelo engenho da farmácia, sofrem proscrições e permanecem clandestinos até mesmo para os usos médicos. Após um século e meio de história da odisséia psiconáutica, o saber e o poder desses fármacos extraordinários ainda são perseguidos e ocultados.

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Entrevista Terence Mckenna – O Fim da Divindade Mecânica

Segue abaixo um capítulo do livro FIM DA DIVINDADE MECÂNICA, compilado por John David Ebert, editado no Brasil pela Editora Teosófica.
São entrevistas com grandes pensadores como Terence, Stanislav Grof, Ralph Abraham, etc.

Colocamos aqui o capítulo 05 – Etnobotânica, que é uma excelente entrevista com Terence McKenna.

Vale a pena dá uma lida neste livro, segue a descrição :

“Essa série de conversas com alguns dos principais pensadores do mundo atual descreve e revela a mudança radical que tem alterado a nossa maneira de olhar o mundo. Trata-se de uma transformação cultural revolucionária. No entanto, até agora ela tem ocorrido em grande parte inconscientemente, como se as suas partes não formassem um todo. Essa obra devolve ao leitor a capacidade de enxergar o todo. A visão científica e a visão religiosa, antes separadas, se reencontram. E como resultado disso nós percebemos de outra maneira, nova e abrangente, qual é o nosso lugar no universo. O Fim do Deus Previsível abre um diálogo para que pensadores das mais diferentes áreas expressem suas visões sobre a vida e o mundo, usando suas próprias palavras, e compartilhando o hábito de pensar de modo criativo, multidimensional, inovador e não-dogmático. Deepak Chopra: a ioga do desejo. Ruper Sheldrake: o envelhecimento das células e a física dos anjos. Stanislav Grof: o nascimento, a morte e o que está além. Lynn Margulis: a evolução de Gaia. Ralph Abraham: os alicerces do Caos. Brian Swimme: Deus e o vácuo quântico. Terence McKenna: a etnobotânica. William Irwin Thompson: a imaginação da cultura. São oito conversas profundas, descontraídas. Elas revelam aspectos centrais da civilização humana que surge no século 21″

Terence McKenna e o Jardim dasDelícias Psicodélicas

No que vem a ser um tipo de piada psicodélica interna, os auto­res William Gibson e Bruce Sterling ressuscitam T.H. Huxley, avô do famoso Aldous, para uma cena no romance que escreveram, The Diffe­rence Engine (A Máquina da Diferença). Um paleontólogo que havia acabado de retomar à América dá a Huxley alguns botões de peiote que recebera de um xamã nativo norte-americano. Huxley, recebendo o presente, diz, “Certas toxinas vegetais têm a propriedade de produzir visões.” Depois ele guarda os botões numa gaveta da escrivaninha e diz, “…cuidarei para que sejam devidamente catalogadas depois”. 1

A piada, claro, é que Huxley não fará absolutamente nada com relação aos botões de peiote, até que, com as experiências de seu neto Aldous com mescalina, em meados do século vinte, o valor do peiote seja descoberto. Pois foi em 1955 que Aldoux Huxley ingeriu quatro décimos de grama de mescalina – o princípio psicoativo do peiote – e descobriu que, nas palavras de James Joyce, “qualquer objeto, intensa­mente considerado, pode tomar-se um portal para o incorruptível eon dos deuses.” O livro de Aldous Huxley As Portas da Percepção, no qual ele relata esta experiência, mais tarde cairia nas mãos do menino de 14 anos Terence McKenna, para quem o livro iria prover o ímpeto de toda uma vida de exploração nas profundezas insondáveis da consciên­cia humana.

A atitude de T.H. Huxley, porém – como Gibson e Sterling ima­ginaram – tipifica a atitude do estudioso com relação a esses assuntos: conhecimento bom para as páginas amareladas de volumes desgastados nas estantes das bibliotecas, mas que não tem relação com o mundo da experiência vivida. É extremamente irônico o fato de que o método científico concebido por homens como Leonardo da Vinci e Francis Bacon enfatiza precisamente a validade da experiência individual. A civilização ocidental, aliás, foi moldada pela mitologia da experiência individual, em oposição à ultrapassada noção oriental da confiança na autoridade de outros, e deve seu êxito atual àqueles grandes pioneiros que tiveram a coragem de visitar terras que se pensava estarem apinha­das de estranhas criaturas boschianas que lhes guardavam os portões. É esta mitologia ocidental da experiência pessoal que, por exemplo, im­peliu Vesalius a rejeitar a autoridade de Galeno e a abrir corpos huma­nos, para verificar de uma vez por todas a estrutura da anatomia huma­na; ou a coragem prometeica de Galileu em desafiar aquela encarnação renascentista de Zeus – a própria Igreja Católica – e olhar através do telescópio para o que ninguém jamais ousara olhar antes com tanta in­tensidade; ou as migrações transatlânticas de Colombo (de “columba”, pomba) com o intuito de descobrir por si mesmo se as Índias podiam ser alcançadas navegando-se para além do-pôr-do-sol. Até os vôos espaci­ais da Apollo e nossa atual exploração de Marte, nos dias atuais, o mito permaneceu essencialmente sem mudanças.

Aquele “território transcendental da mente”, porém, que Aldous Huxley descreveu – os labirintos obscuros e desconhecidos da consci­ência humana – ainda permanece, na maior parte, inexplorado pelos ocidentais. A investigação da mente inconsciente só começou com Freud e seus predecessores românticos alemães do século dezenove.

Terence McKenna é um dos tais Magalhães da consciência, e a sua jornada começou com uma viagem à Ásia em 1967 para estudar a iconografia pré-budista dos thangkas tibetanos. Ele descobriu, em vez disso, que as raízes do Budismo tibetano estão no Xamanismo nativo de Bon-Po, no qual alguns praticantes usam haxixe e a figueira-do-inferno, alucinógena, para catalisar suas viagens xamânicas.

Em 1971, Terence e seu irmão Dennis fizeram uma viagem à bacia amazônica em busca de um experiência xamânica autêntica, e no processo encontraram uma espécie de cogumelo que continha psilocybin (Stropharia cubensis) que, diz McKenna, só fica atrás do DMT (dimetiltriptamina) em seu poder de induzir a uma viagem alu­cinógena ao reino dos Ancestrais. E normalmente é este reino que os xamãs contatam para obter conhecimento e informação valiosa capaz de curar as aflições de suas comunidades, ou as desordens de uma pessoa específica. Tais cosmonautas interiores podem, nas palavras de Aldous Huxley, “tornar-se condutores através dos quais alguma influência be­néfica possa fluir daquele outro campo para um mundo de eus obscure­cidos, cronicamente morrendo por falta dessa influência.” As experiên­cias dos irmãos McKenna com a telepatia, a sincronicidade e encontros com OVNIs são descritas com vívidos detalhes no livro de McKenna True Hallucinations (Alucinações Verdadeiras), de 1993.

A maior tarefa que tiveram ao retomarem do submundo xamâ­nico da Amazônia foi, nas palavras de Joseph Campbell, saber “como expressar numa linguagem compreensível para o mundo da luz os pro­nunciamentos do mundo da escuridão que desafiavam a própria capaci­dade de falar”. Desafio a que responderam com um livro intitulado The Invisible Landscape (A Paisagem Invisível), de 1975. Nesta obra estra­nha e poética os autores tentam compreender completamente, através de uma síntese de ciência, filosofia e história, as implicações de suas expe­riências na Amazônia. Na teoria geral da ressonância da natureza que eles expandiram como alguma hélice exótica do DNA cultural, o mi­crocosmo da viagem xamânica aos interiores das consciências humana e cósmica está mapeado no macrocosmo do tempo e espaço através de uma filosofia da história que McKenna chama “A Onda do Tempo.” Nesta teoria, os eventos da história são descritos como uma onda fraci­onada não-linear na qual as épocas distantes influenciam épocas sepa­radas pelo tempo e pelo espaço através de ressonâncias em sua similari­dade estrutural.

Em 1976, os autores deram prosseguimento a esse trabalho com Psilocybin: the Magic Mushroom Grower’s Guide (Psilocybin: Guia do Plantador do Cogumelo Mágico), e em 1991, McKenna juntou uma década e meia de ensaios e entrevistas em The Archaic Revival (O Re­nascimento Arcaico).

Em 1992, apareceu o livro de Terence McKenna Food of the Gods (O Alimento dos Deuses), no qual ele afirma que a sua história das origens da consciência humana foi precipitada pela ingestão de cogumelos psicoativos. Também o livro faz a crônica do longo declínio do uso do cogumelo e sua história insatisfatória de substitutos como o ópio, açúcar, café, e heroína ao longo da evolução humana.

Naquele mesmo ano, o longo intercâmbio de McKenna com o biólogo Rupert Sheldrake e com o teórico do caos Ralph Abraham culminou com o aparecimento do livro deles Trialogues at the Edge of the West (Triálogos nos Limites do Ocidente), ao qual se juntou uma se­qüência, The Evolutionary Mind: Trialogues at the Edge of the Un­thinkable (A Mente Evolucionária: Triálogos nos Limites do Impensá­vel), em 1998.

No momento dessa entrevista, McKenna estava escrevendo um livro em co-autoria com Philippe DeVosjoli, que iria chamar-se Casting Nets into the Sea of Mind (Lançando Redes no Mar da Mente). McKen­na promete uma futura explicitação completa de suas teorias da evolu­ção da consciência humana e sua relação com a linguagem e a tecnolo­gia.

JE: No seu primeiro livro, The Invisible Landscape (A Paisagem Invisível), você e seu irmão Dennis desenvolvem o que parece ser um tipo de teoria geral da ressonância da natureza que inclui a experiência visionária do xamanismo como também as épocas mais elásticas do tempo histórico. Gostaria de discutir como essa teoria surgiu de suas reflexões sobre a natureza do tempo após sua viagem à Amazônia em 1971.

TERENCE MCKENNA: Bem, penso que provavelmente a percepção central em tudo aquilo foi a idéia de que o tempo é realmente, quando você o ana­lisa, metabolismo, que é a única qualidade que se associa com a vida orgânica, por meio do qual a vida cria um sistema aberto longe do equi­líbrio e por aquele meio sustenta-se no tempo e através do tempo. As­sim a estrutura da vida orgânica, especificamente a estrutura do DNA, é, penso eu, uma resposta evolucionária única a este impulso termodi­nâmico em direção ao desequilíbrio que parece caracterizar a biologia. Estudando o metabolismo – o que, em termos práticos, significa olhar para o interior de nossas células – podemos realmente não apenas en­tender o que é o tempo, mas fazer generalizações sobre o tempo que podemos efetivamente estender a outros domínios do universo.

JE: É interessante o modo como você conecta o micro­cosmo com o macrocosmo em True Hallucinations (Alucinações Verdadeiras). Por exemplo, você fala de como construiu toda essa teoria da ressonância em torno do número 64. que você diz ser significativo tanto para o DNA – no qual há 64 seqüências possí­veis de codons – quanto para o I Ching, no qual há 64 hexagra­mas. 2 Você poderia falar um pouco sobre como chegou a essa conclusão meditando sobre esse número?

TERENCE MCKENNA: Sessenta e quatro é um número interessante. São dois para seis e surge a partir do quatro, o que, de acordo com Jung e outros, é uma divisão primária do espaço, do tempo e da realidade. Nós vivemos num universo em quatro dimensões. A minha noção sobre o I Ching era de que se o levássemos a sério – e certamente o levamos – (e por levar a sério quero dizer se o reconhecemos como tendo uma estranha habili­dade para funcionar como anunciado), então parece razoável perguntar, como ele faz isso? Eu creio que o modo como ele deve fazê-lo é sendo, como você mencionou, de algum modo um microcosmo do macrocos­mo maior. E a conclusão de que era diretamente análogo à estrutura do DNA, parecia ser a prova. O I Ching é uma visão primária na estrutura não apenas do universo em que vivemos, mas da Mente na qual estamos incluídos e que observa o universo.

JE: A sua teoria da ressonância do tempo sugere que eventos distantes na história possam ter um efeito ou uma influ­ência sobre eventos presentes através de um tipo de ressonância de suas similaridades estruturais. Por exemplo, você compara o fim do Império Romano com os eventos de hoje em dia. Você pode discutir como ocorre essa ressonância?

TERENCE MCKENNA: Claro. Antes de mais nada relembremos o que pressupõe a teoria histórica convencional: que o momento mais importante em ter­mos de moldar este momento é aquele que imediatamente o precedeu. Eu assumi um ponto de vista diferente, e senti que um determinado momento histórico no tempo é um tipo de onda permanente de padrões de interferência criado por outros momentos no tempo que podem ou não tê-lo precedido imediatamente. Assim, por exemplo, A Idade de Ouro Grega, embora esteja agora situada a 2500 anos de distância no passado, ainda assim continua a moldar nossas idéias a respeito da lei e da sociedade. E em qualquer situação dada há muitas destas influências agindo, algumas delas trivialmente, para dar-nos banheiras com pernas em formas de garras e coisas assim; e algumas muito profundamente, nos querendo passar a durabilidade da democracia ou coisa semelhante.

JE: Você acha que o fato de seu modelo terminar no mesmo ano que o calendário Maia – 2012 d.e – sugere algum tipo de ressonância entre a nossa cultura e a dos Maias? 3

TERENCE MCKENNA: Não tenho certeza do que isso significa. Eu creio que todas as culturas que olhem profundamente no tempo, se chegarem a conclu­sões corretas, terão modelos de algum modo congruentes. Mesmo se olharmos para a civilização ocidental e seus calendários, atravessamos o final de um milênio apenas doze anos antes do fim do calendário Maia. Numa escala de mil anos, esta é uma diferença de ponto doze por cento.
Assim, de modo bastante estranho, a vida inconsciente das cul­turas parece sincronizar-se com estes ritmos cósmicos muito extensos, quer a cultura reconheça estes ritmos ou não. É apenas a canção da pai­sagem temporal, se você quiser.

JE: No lado microcósmico, no seu livro The lnvisible Landscape, você e seu irmão desenvolvem uma teoria de que as experiências visionárias do xamanismo são ativadas quando o psilocybin se liga quimicamente com o DNA neural. Você gosta­ria de discutir esta teoria?

TERENCE MCKENNA: Bem, no metabolismo comum, o psilocybin é um antago­nista, significando um competidor, em relação à serotonina, que é um simples transmissor cerebral na sinapse. Porém, uma percentagem muito pequena de psilocybin chega até o núcleo da célula. Há afinida­des estruturais muito surpreendentes entre o DNA e muitas dessas mo­léculas psicodélicas que aparecem naturalmente. Como você sabe, o DNA pode ser visualizado como uma estrutura tipo escada, enquanto muitas dessas drogas moleculares são chamadas planares, o que signifi­ca apenas achatadas, e são do tamanho e geometria apropriados para permitirem-se encaixar dentro e fora dos espaços entre os nucIeotídeos do DNA. Este processo é chamado intercalação. É bem estudado, mas ninguém sabe qual pode ser o propósito ou as conseqüências deste ajuste perfeito entre as estruturas do DNA e estas drogas moleculares. 4

JE: Karl Pribram fala sobre o paradigma holográfico do armazenamento da memória, mas ele parece estar preocupado com isso do ponto de vista individual, enquanto que você e o seu irmão expandiram a visão sugerindo que algo como a alma do mundo ou o inconsciente coletivo está também de algum modo acessível na experiência psicodélica?

TERENCE MCKENNA: Sim, se aceitarmos o modelo junguiano de um inconsciente coletivo – um conjunto compartilhado de imagens arquetípicas que não são concedidas culturalmente – então nós temos a considerar, como você mencionou, não apenas o problema da memória individual, mas o problema maior dessas memórias raciais ou arquetípicas. Acho que tomamos as coisas difíceis demais para nós nesta área colocando tanta fobia e estresse ao fazermos a pesquisa psicodélica. O nosso medo pre­coniza que qualquer pessoa que escolha se concentrar nas áreas de far­macologia ou biologia molecular está escolhendo uma vida de pura marginalização. É muito difícil obter financiamento, e há muito pouco apoio institucional.

JE: Eu estou curioso acerca do que você pensa sobre o trabalho de Stanislav Grof com o LSD e a teoria dele de que rea­tiva o trauma do nascimento.

TERENCE MCKENNA: Bem, o Stan é meu amigo pessoal, e ele fez um trabalho muito corajoso com o LSD. Quando o LSD tornou-se ilegal, ele desen­volveu um modelo de técnicas respiratórias para levar as pessoas para a mesma área. Tendo dito isso, a minha própria exploração pessoal da psique não tendeu a apoiar a teoria dele sobre as várias matrizes peri­natais. Eu chamaria isso de uma teoria neo-freudiana. Tenho a mente aberta acerca disso, mas não creio que a maioria das pessoas que não ouviram falar da teoria de Grof fariam experiências que realmente pu­dessem ser mapeadas por aquele sistema.

JE: Você poderia discutir, então, o que são, em sua expe­riência, as diferenças nos conteúdos visionários do LSD versus a experiência com psilocybin?

TERENCE MCKENNA: Bem, sim, de certo modo. Cada uma destas coisas, sendo quimicamente única, é como uma lente feita de vidro com coloração ligeiramente diferente. O LSD vai diretamente à estrutura da personali­dade, às estruturas que surgiram através das experiências na vida do indivíduo, de modo que é muito bom para trabalhar através daquilo que eu penso ser assuntos psicoanalíticos normais. É, de modo relutante, um alucinógeno. Em outras palavras, transforma a qualidade dos pensa­mentos, mas não transforma o input no córtex visual tão dramatica­mente quanto o fazem algumas destas outras coisas.

Os compostos que são derivados de plantas, por outro lado ­psilocybin ou DMT – parecem estar cheios de sua própria informação a qual desejam passar adiante. De modo que muitas vezes não se sai com um profundo insight com relação aos próprios relacionamentos ou situ­ação de paternidade, mas em vez disso com um sentido muito mais profundo de conexão com a dinâmica da natureza ou, quase se pode dizer, com o mundo da energia do espírito ou energia mágica. Agora, por que esta diferença deve ser obtida entre o psilocybin e o LSD … A causa pode ser estrutural ou pode haver algo mais profundo.

Por exemplo, a causa pode envolver algo como a noção dos campos morfogenéticos de Sheldrake. O LSD, afinal de contas, foi in­ventado no século vinte, ao final dos anos trinta, e está inteiramente caracterizado pelos europeus e americanos do século vinte. Os com­postos como o psilocybin, por outro lado, usado por milênios pelos po­vos tribais das montanhas do México, teriam, certamente, um tipo de campo morfogenético completamente diferente.

JE: Você mencionou que o psilocybin facilita o contato com o que parece ser uma Mente estranha ou inteligência de al­gum tipo. Você tem uma teoria sobre OVNI’s que sugere que eles poderiam de algum modo ser sugestões desta inteligência fora da psique. Você poderia discutir isso?

TERENCE MCKENNA: A psique, ou consciência, é um conceito muito escorrega­dio. Um pesquisador, Julian Jaynes, sugeriu que a consciência humana mudou sua natureza mesmo nos tempos históricos. Jaynes fala que nos tempos homéricos, o ego como o conhecemos não existia, exceto sob extremo estresse. E então se apresentava quase como uma intrusão exte­rior na consciência, como a voz de um deus. 5 Eu acho que a maior dife­rença entre a consciência materialista moderna e a consciência xamâni­ca arcaica é que esta última interpreta muito de suas percepções como vindas de um Outro inteligente e organizado. E eu, após haver passado pela interpretação extraterrestre durante vários anos, cheguei à opinião de que este Outro que contatamos através destas coisas é nada mais nada menos que um tipo de inteligência integrada que permeia o planeta inteiro. Por falta de uma melhor descrição, vamos simplesmente chamá-la de Supermente de Gaia.

Eu acho que durante muito tempo ao longo da história, as pes­soas estavam totalmente conscientes, totalmente à vontade com a lin­guagem e o teatro e os rituais e a magia, mas estavam no berço, diga­mos assim, ou embutidos num diálogo quase contínuo com o resto da realidade, experienciada como uma consciência contínua a que chama­vam o Grande Espírito, ou os Ancestrais, ou simplesmente Deus. A herança cultural e lingüística do Ocidente tem sido em larga escala uma construção de defesas contra este Outro e uma substituição Dele pelo ego de massa da humanidade, politicamente expresso.

Assim, quando entramos na selva, ingerimos plantas psicodéli­cas e executamos antigos rituais paradigmáticos, se conseguirmos dis­solver o condicionamento e as expectativas de modernidade e materia­lismo. descobrimos que este mistério ainda está lá, ainda vivo, ainda capaz de dialogar conosco. E isso deixa as pessoas absolutamente con­fusas. Elas reagem a isso com o êxtase ou com o medo, ou com histórias de conversão religiosa ou abdução alienígena. Depende inteiramente de como a coisa reage sobre você. Neste caso, a revelação de um homem é o pesadelo de outro. Mas a coisa que jaz por trás de tudo isto é algum tipo de mente natural, viva e inteligente, que é simplesmente uma ex­tensão da biosfera, de Gaia.

JE: Em seu livro Food of the Gods (Alimento dos Deu­ses), você lida com algumas das dimensões históricas do uso dos alucinógenos. Você visualiza a história da cultura como um constante declínio no uso de alucinógenos derivados de plantas e a substituição gradual destes por substitutos insatisfatórios como o álcool, o ópio, o fumo, a cocaína, etc. É possível que se as pes­soas usassem alucinógenos de um modo mais rituailizado e con­trolado, tal como, digamos, duas vezes ao mês, que isso poderia reduzir significativamente o uso abusivo de algumas destas ou­tras drogas?

TERENCE MCKENNA: Deus meu, duas vezes ao mês! Isso seria uma revolução, não seria? Eu acredito que as pessoas sem essa mãozinha da inteligên­cia de Gaia sobre a qual estávamos falando estão simplesmente num mato sem cachorro. Elas têm o marxismo, e a moderna publicidade, e quaisquer que sejam os valores culturais nos quais nasceram para guiá­-los, mas inevitavelmente, como destacou Freud no livro O Mal-estar na Civilização, estas coisas levam à neurose.

Penso que a chave para entender a experiência psicodélica, quer você a ame ou a deteste, é que ela dissolve as fronteiras. Dissolve a programação cultural e a substitui por um tipo de programação muito mais básica que está no animal humano. Todas as culturas nos desviam desta fonte original de autenticação pessoal. E nesse sentido, Freud es­tava certo; toda cultura é neurótica. Assim, no livro que você mencio­nou, e também num outro livro meu chamado The Archaic Revival (O Renascimento Arcaico), eu simplesmente assinalo que quando as civili­zações tornam-se massivamente neuróticas, parecem ter um reflexo instintivo de voltar no tempo em busca de um modelo. 6 Por isso a Re­nascença criou o Classicismo como resposta à falha da igreja medieval. É por isso que no século vinte presenciamos surtos de fenômenos que vão do cubismo e surrealismo ao rock and roll. Estes são impulsos em direção a um estado mental arcaico. No centro deste impulso em dire­ção ao estado mental arcaico está a dissolução da fronteira dos valores culturais que ocorre sob o efeito de psicodélicos. Certamente que se pudéssemos encontrar algum meio de trazer isso às pessoas – e eu acho que duas vezes ao mês soa muito mais freqüente do que o necessário ­na razão de uma vez ao ano e de um modo poderoso, seria suficiente para manter as pessoas operando à luz do conhecimento correto de que há valores estruturais maiores que o conhecimento que lhes está sendo passado através da mídia de massa e das convenções culturais.

As pessoas estão ficando absolutamente famintas por autentici­dade, e nesse meio tempo lhes é oferecida uma seleção interminável de carros alemães, produtos para os cabelos, novos sabores de sorvetes e divertimentos sem graça, e nada disso satisfaz, porque aquilo que as pessoas realmente necessitam é um sentido autêntico de seu próprio ser e de sua própria importância no esquema natural das coisas. A cultura não pode responder a isso a não ser que abra espaço para a transcendên­cia de si mesma.

JE: Em Food of the Gods você sugere que a consciência humana pode ter-se desenvolvido da consciência dos seus ances­trais hominídeos como resultado de os hominídeos haverem in­corporado cogumelos alucinógenos em sua dieta. Qual é a evi­dência primária que temos do uso de cogumelos na história hu­mana?

TERENCE MCKENNA: Eu acho que a mais antiga evidência que eu consideraria como tendo algum peso é um grupo de imagens escavadas na rocha no platô Tassili, ao sul da Argélia. Eles continuam dando idades cada vez mais antigas para essas coisas, mas creio que agora chegaram a cerca de 12.000 anos. Aí vemos xamãs com cogumelos brotando de seus corpos e as mãos cheias de cogumelos. 7 Este tipo de evidência, porém, jamais foi buscado, e nas áreas onde eu acho ser mais provável de se encontrar, nenhuma escavação jamais foi feita – especificamente, no sul da Argé­lia. Poder-se-ia fazer estudos polinológicos em busca de esporos de cogumelos. Poder-se-ia tentar encontrar rochas ainda mais remotas e representações de arte em rocha ainda mais antigas, destes xamãs, con­sumidores de cogumelos. o grande embaraço da teoria comum da evolução, você sabe, é a explosão muito dramática no tamanho do cérebro humano num período muito curto de tempo evolucionário. Um biólogo evolucionário, Lurnholz, o chama de a mais dramática transformação de um órgão importante de um animal superior em todo registro fóssil. Bem, é um grande embaraço para a evolução, porque se pode notar que o cérebro é o órgão que criou a teoria da evolução. Assim, se não podemos dar conta de sua origem subimos por uma escada que não tem degrau para descanso.

Algo extraordinário estava acontecendo com a situação hominí­dea, digamos entre 125.000 e 25.000 anos atrás. Todas as outras teorias falharam. Eu me concentrei no psilocybin mas realmente quando con­verso com os meus pares neste campo, o que estou dizendo é que aquilo para o que precisamos olhar é a dieta. A dieta é um dos principais fato­res que afetam as taxas de mutação em qualquer espécie. A razão por que a maioria das espécies animais têm dietas muito definidas e especi­alizadas é que a dieta é uma estratégia evolucionária conservadora para limitar a exposição a compostos mutagênicos, e daí à mutação. Quando uma espécie está sob pressão nutricional e começa a experimentar ali­mento anteriormente considerado marginal ou inaceitável, ora, isso na­turalmente quer dizer que o genoma vai ficar exposto a nova tensão química através da cadeia alimentar, e que se vai adquirir mais defor­midades no nascimento, cegueira, baixo QI, baixa taxa de natalidade. Mas também se vai adquirir a muito rara e positiva mutação, e a taxa dessas mutações positivas será também concomitantemente elevada um pouco.

Assim, penso que o lugar onde procurar a explicação da ruptura na evolução humana é o período em que deixamos de ser uma criatura que vivia ao relento, sob o céu. A mudança subseqüente na dieta e as comoções pela exposição a vários agentes químicos causaram muitas mudanças nos seres humanos. O psilocybin é simplesmente uma das mais dramáticas. Podemos construir um cenário com o psilocybin que considero muito atrativo para os biólogos evolucionários, porque mostra como o psilocybin, contribuindo crescentemente com pequenas vanta­gens, poderia ter provocado uma importante influência química na evolução da arquitetura do cérebro e da consciência.

JE: Em Food of the Gods você traça um arco de difusão histórica de uma sociedade inspirada por uma deusa, original­mente comedora de cogumelos – o povo Tassili no paleolítico no norte da África – e o segue através da Ásia Menor à medida que viaja para o interior do Catal Huyuk anatoliano, de onde migra para a Creta de Mino. Finalmente. os gregos adotam essa cultura da Deusa na forma muito reduzida dos mistérios eleusianos, nos quais a ferrugem alucinógena das gramíneas pode ter sido usada, do mesmo modo que os cretenses usavam o ópio. A minha per­gunta, então, é, você tem alguma idéia de exatamente onde foi, ao longo deste caminho, e por que motivo foi que o consumo do co­gumelo desapareceu?

TERENCE MCKENNA: Sim, eu o associo inteiramente a lentas mudanças no clima. Em outras palavras, provavelmente de 100.000 a 125.000 anos atrás ocorreu o período mais propício em termos de tamanho e extensão das chuvas, e a sobreposição mais propícia, também, de ecossistemas de cogumelos e de habitats humanos. Toda a África do Norte era um vasto pasto com animais ungulados evoluindo e muitas correntes de água descendo das terras altas. E aquelas pastagens tinham surgido de uma mudança climática. Antes disso, em um tempo ainda anterior, houvera florestas. Mas à medida que as pastagens deram lugar ao deserto ao longo dos milênios, os cogumelos – o seu alcance, a disponibilidade, e a potência – todos sofreram retração ou diminuição. À medida que o pro­cesso continuou, a população humana ou passou sem, ou começou a procurar substitutos. E nenhum substituto tem realmente o mesmo efeito que o original, e assim se tem os cultos da cerveja, a fermentação de sucos de frutas em vinho, experiências com cânhamo e ópio. Mas foi simplesmente uma série de desastres climatológicos, e o que liquidou a coisa toda – que também foi uma resposta a esta mudança climatológica – foi a invenção da agricultura. Eu acredito que Frazer em The Golden Bough (O Ramo Dourado) diz alguma coisa sobre o fato de que, quando os deuses se tornaram alimento, as grandes orgias e celebrações ficaram marginalizadas, porque os valores culturais que se tornaram importantes naquele tempo foram a habilidade de levantar-se de manhã bem cedo, pegar a enxada e ir trabalhar.

JE: Alguns estudiosos têm dito que o consumo de alu­cinógenos é um substituto pobre para a longa e difícil estrada da disciplina espiritual que é necessária, dizem eles, para se tomar verdadeiramente iluminado. Como você responde a este ponto de vista ? 8

TERENCE MCKENNA: Bem, eu não sei, acredito que eles estejam verdadeiramente iluminados. Esse é um assunto difícil de se tocar. Este é um ar­gumento corrente e interminável em todos os níveis da antropo­logia. O grande proponente deste ponto de vista de que eu tenho conhecimento é Mircea Eliade, que assumiu a posição de que o que ele chamava “xamanismo narcótico” era de algum modo de­cadente, e que o verdadeiro xamanismo era passar por provações e perder-se na selva e coisas desse tipo. Eu não acredito que os povos aborígines gostavam mais de desconforto e desprazeres do que nós. Frente a um sem-número de métodos para chegar ao mesmo fim, a maioria de nós escolheria o método mais eficaz e não-destrutivo. Eu realmente acredito que quando o acesso direto ao mistério ou ao espírito se torna problemático por qualquer ra­zão, é então que se tem a codificação do dogma, a nomeação de classes especiais de pessoas para interpretar para o restante de nós as vontades do mundo invisível. E então se tem listas morais do que se deve fazer e não fazer. E tudo se torna religião organi­zada. A fobia que a maioria destas religiões organizadas mostra em relação à experiência psicodélica é simplesmente que elas sentem aí um competidor muito poderoso para seus clientes.

JE: Você mencionou que viajou por um tempo pela Ásia experimentando estas várias técnicas de Ioga e que não fizeram efeito em você?

TERENCE MCKENNA: Bem, não é que não funcionem; elas não produzem a expe­riência psicodélica. Produzem experiências muito interessantes e úteis, e certamente ensinam autodisciplina e tudo o mais. Mas eu acho que com a religião organizada há uma tensão interna porque a religião está no momento e procura responder às aspirações do homem além deste mundo, e ainda inevitavelmente a religião volta-se para os seus esque­mas de investimento, seu próprio auto-engrandecimento, seu desejo de atrair mais pessoas e mais território para sua área de influência. Assim eu sempre senti que a autêntica viagem religiosa era algo que ia aconte­cer entre um simples ser humano e os Espíritos. Eu penso que é uma pena que a religião tenha tanto medo da experiência direta que acabe colocando inevitavelmente um tipo de elite entre o homem comum e o mistério.

JE: Você já tomou psilocybin em conjunção com um tan­que de isolamento?

TERENCE MCKENNA: Na realidade jamais fiz isso num tanque. Não creio que se tenha de ir tão longe, mas o melhor meio para estas coisas é o que eu chamo de confortável escuridão silenciosa. Algumas pessoas querem ouvir música e isso certamente causa arrebatamento. Mas nada pode­mos fazer com a notícia de que Bach é Deus; já sabemos disso. Eu acho que quando as pessoas têm que ter música ou livros de arte empilhados à sua volta, elas já estão se deixando influenciar. As riquezas interiores da silenciosa mente humana estão além de qualquer coisa que já tenha­mos criado em qualquer situação elegante ou em qualquer sociedade esplendorosa que já tenhamos tido neste planeta. E essa notícia em ter­mos existenciais é realmente bastante fortalecedora. Toda a sociedade de consumo de que fazemos parte é na realidade um sistema para causar maravilhas. Brinquedos, roupas, jogos e divertimentos: tudo isso é para deixá-lo atônito e para arrebatá-lo. Bem, se você estivesse cultivando cogumelos no esterco de vaca no seu quintal, você rapidamente desen­volveria um relacionamento completamente diferente com tais maravi­lhas. Você certamente chegaria à conclusão de que há uma infinitude de tais maravilhas, e que a maioria delas está dentro de você.

Assim, novamente eu vejo a cultura oferecendo substitutos ba­ratos da experiência autêntica. A cultura quer que você rejeite o passa­do, antecipe o futuro, e mal perceba a presença sentida da experiência imediata. Do meu ponto de vista, esse é o valor mais tóxico que tolera­mos; a desvalorização de nossos sentimentos à medida que eles ocorrem no ato de viver no momento, num lugar determinado no espaço e no tempo. Isso é o que nós somos, isso é tudo o que sempre seremos, e um mundo feito de esperança e arrependimento é um substituto muito páli­do para aquele sentimento de estar vitalmente conectado e presente no mundo vivo.

JE: As suas idéias sobre a ressonância através do tempo têm muito em comum com a ressonância mórfica de Rupert Shel­drake e com as pesquisas sobre vibrações de Ralph Abraham. Fora os Trialogues (Triálogos), você acha que vocês três seriam capazes de trabalhar juntos num livro?

TERENCE MCKENNA: Estamos muito próximos, e aliás fizemos todo um segundo conjunto de Trialogues. Tudo o que precisamos é de um editor sufici­entemente louco para publicá-los, embora eu não ache que o primeiro livro tenha ido bem em inglês, mas foi muito bem recebido na Alema­nha. Mas sim, me sinto muito próximo a esses caras. Eu acho que anologia à medida que nos movemos em direção a ambientes de comuni­cação assistidos por drogas quase-telepáticas e por máquinas.

JE: Você acredita que a tecnologia de realidade virtual terá influência preponderante em tudo isso, ou apenas vai se tor­nar uma novidade?

TERENCE MCKENNA: Acredito que tem um potencial tremendo porque é real­mente uma tecnologia que nos permitirá mostrar uns aos outros o interi­or de nossas cabeças. Isso é algo que jamais fomos capazes de fazer. Você e eu estamos tendo esta conversa e educadamente pressupondo que temos abertos diante de nós dicionários idênticos, e portanto você entende o que eu quero dizer. Mas nada é mais capaz de trazer a con­versa para uma situação estridente do que alguém dizer para outrem, “você poderia me explicar o que eu acabei de dizer?” E você sabe, em face a esse desafio, a suposição da comunicação é algo bastante rare­feito. 9

Se nós realmente pudéssemos mostrar uns aos outros o que que­remos dizer construindo meios esculturais da nossa intencionalidade em 3-D, seríamos capazes de eliminar a enlouquecedora ambigüidade que acompanha o ruidoso estilo de conversação bucal de baixa freqüência. É surpreendente para mim que tenhamos uma civilização global baseada em ruidosa comunicação bucal, visto que há 500 línguas e ninguém tem o mesmo dicionário, ninguém teve a mesma educação, e todos têm conjuntos diferentes de experiências. Assim, acredito que fizemos um trabalho incrível com o instrumento grosseiro que nos foi dado, mas o futuro da comunicação é o futuro da evolução da alma humana, e à me­dida que nos comunicarmos com maior facilidade, as fronteiras e a ilu­são da diferença simplesmente irão tornar-se indefinidas e desaparece­rão.

NOTAS:

1 Gibson e Sterling (1992), p.II?
2 Veja, por exemplo, The Mayan Factor. de José Arguelles (1987), p.86.
3 De acordo com o software de McKenna, Timewave Zero, a história é composta de uma série de ondas de novidades, na qual novas invenções surgem ao final de um ci­clo. Já que o I Ching é composto de 64 haxagramas, as datas na história podem ser divididas por esse número para produzir pontos de Novidades. Por exemplo, 1.3 bi­lhões de anos atrás marca a invenção da reprodução sexual pelos organismos eucari­óticos. Divida esse número por 64 para produzir um ciclo começando há 18 milhões de anos no período Mioceno no apogeu do período dos mamíferos ( e talvez não co­incidentemente, 15 milhões de anos atrás, uma grande catástrofe teve início pelo im­pacto de algum planetóide). Divida isso por 64 para produzir um número por volta de 200.000, uma data associada com o advento das populações Neanderthal. Nova­mente divida por 64 e chegue a um número por volta de 4.300, que é o começo das invasões Kurgan das civilizações da deusa da Europa antiga, o prólogo do nasci­mento de uma alta civilização após cerca de mil anos ou coisa assim. O último destes ciclos de Novidades começa em 5 de agosto de 1945 – um dia antes do bombardeio de Hiroshima – e termina em 21 de dezembro de 2012 d.e. Veja trabalho publicado, Temporal Resonance em McKenna (1991) pp.104-113. Veja também Arguelles, ibid., embora McKenna diga que ele apresentou a idéia de 2012 a Arguelles.
4 Para observar uma ilustração deste processo de intercalação veja figo 9, p.76 em McKenna, Terence e McKenna, Dennis (1993).
5 Jaynes (1976).
6 A propósito dessa questão, o Mahaa Koot Hoomi, um raja iogue dos Himalaias,
escreveu em 1880 em uma carta ao jornalista inglês Alfred Sinnett: “Temos a ten­dência a crer em ciclos que voltam sempre periodicamente e esperamos poder acele­rar a ressurreição do que já passou e já se foi. Nós não poderíamos impedi-Io ainda que quiséssemos. A ‘nova civilização’ será apenas filha da antiga, e nos basta deixar que a lei eterna siga o seu próprio curso para que os nossos mortos saiam dos seus sepulcros; mas estamos certamente ansiosos por acelerar o desejado acontecimento.” Veja Cartas dos MahaTerence McKennaas, Ed. Teosófica, Brasília, volume I, Carta li, pp. 81-82. No entanto, a filosofia esotérica e a literatura teosófica propõem a expansão da inte­ligência espiritual sem o uso de quaisquer drogas ou substância intoxicantes, que constituem atos de violência contra o corpo e a consciência do indivíduo. ( N. ed. bras. )
7 Veja ilustrações dessas figuras alucinógenas em McKenna ( 992). pp. 72-73. Veja também a ilustração em Campbell (1988a), p. 83, figo 146. Sobre a importância da arte do plateau Tassili, Campbell cita o trabalho do erudito Henri Lhote: “Parece”, diz Lhote ao discutir essas descobertas, “que estamos diante das primeiras obras de arte negra – de fato, somos tentados a dizer isso, em relação à sua origem”.
8 Por exemplo, William Irwin Thompson escreve: “Infelizmente, o modo de vida do hippie californiano ‘” deve-se tomar o consumidor típico americano e pensa que o caminho para a iluminação é através do consumo de cogumelos e curtição da ilumi­nação sem necessidade de todo o trabalho árduo da sadhalla iogue. Veja Thompson (1996), p.189. Sobre o comentário de Ken Wilber veja também nota de fim de página número 6, da entrevista de Grof (Em outro capítulo)
9 Contraste com Thompson: “Eu acho que o problema principal com a realidade virtualé que ela é uma tecnologia tóxica, é uma violação dos seus lobos frontais. Eu acho que vai causar efeitos sobre a saúde das pessoas como faz o mal de Alzheimer no seu início. Quando eu era menino, costumava entrar em sapatarias e colocar os pés nas máquinas de raios-X. O que parecia ser progressista e rotineiro estava na realidade causando câncer nas pessoas.” Veja Brown e McClen (1995), p.297 .

O Alimento dos Deuses – Terence McKenna (pt 3)

Seguem os principais trechos dos capítulos 2 e 3

 

Capítulo 2 – A magia nos alimentos

 

O modo como os seres humanos usam plantas, alimentos e drogas faz mudar os valores dos indivíduos e, em última instância, de sociedades inteiras. Comer alguns alimentos nos deixa felizes, comer outros nos deixa sonolentos e ainda outros nos deixam em alerta. Somos joviais, inquietos, excitados ou deprimidos, dependendo do que comemos. A sociedade encoraja tacitamente certos comportamentos que correspondem a sentimentos internos, encorajando assim o uso de substãncias que produzem comportamentos aceitáveis.

A supressão ou a expressão da sexualidade, a fertibilidade e a potência sexual, o grau de acuidade visual, a sensibilidade aos sons, a velocidade de resposta motora, a taxa de maturação e o tempo de vida são apenas algumas das características dos animais que podem ser influenciadas por plantas alimentícias com químicas exóticas. A formação simbólica do homem, sua facilidade lingüística e sensibilidade a valores comunitários também podem se alterar sob a influência de metabólitos psicoativos e fisioativos. Uma noite de observação num bar de solteiros basta como trabalho de campo para confirmar essa observação. De fato, a atividade de encontrar um parceiro sempre deu grande importância à capacidade lingüística, como atesta a atenção perene aos estilos dos bate-papos e das cantadas.

Ao pensar em drogas tendemos a nos concentrar em episódios de intoxicação, mas muitas drogas são usadas normalmente em doses de aperitivo ou de manutenção; o café e o tabaco são exemplos óbvios em nossa cultura. O resultado disso é uma espécie de “ambiência da intoxicação”. Como peixes dentro d’água, as pessoas dentro de uma cultura nadam no meio virtualmente invisível dos estados mentais culturalmente sancionados, ainda que artificiais.

As linguagens parecem invisíveis para quem as fala, e mesmo assim criam o tecido da realidade para seus usuários. O problema de confundir a linguagem com a realidade é bem conhecido no mundo cotidiano. O uso das plantas é um exemplo de uma linguagem complexa de interações químicas e sociais. Ainda assim, a maioria de nós não tem consciência dos efeitos das plantas sobre nós mesmos e sobre nossa realidade, em parte porque esquecemos que as plantas sempre mediaram o relacionamento cultural dos homens com o mundo.

Uma história de primatas

 

No Parque Nacional de Gombe Stream, na Tanzânia, primatologistas descobriram que folhas de uma determinada espécie apareciam sempre não digeridas nas fezes de chimpanzés. Eles descobriram que, a intevalos de alguns dias, os chimpanzés, em vez de comer frutas silvestres como sempre, caminhavam durante vinte minutos ou mais até um lugar onde crescia uma espécie de Aspilia. Os chimpanzés colocavam repetidamente os lábios numa folha de Aspilia e prendiam-na na boca. Pegavam uma folha, colocavam na boca, reviravam-na durante alguns instantes e em seguida engoliam-na inteira. Desse modo podiam ser comidas até trinta folhas pequenas.

O bioquímico Eloy Rodriguez, da Universidade da Califórnia em Irvine, isolou o princípio ativo da Aspilia – um óleo avermelhado agora chamado de thiarubrina-A. Neil Towers, da Universidade da Colúmbia Britânica, descobriu que esse composto pode matar bactérias comuns em concentrações de menos de uma parte por milhão. Registros de herbários estudados por Rodriguez e Towers mostraram que os povos africanos usavam folhas de Aspilia para tratar de feridas e dores de estômago. Das quatro espécies nativas da África, os povos nativos usavam apenas três, as mesmas três utilizadas pelos chimpanzés.

Rodriguez e Towers continuaram observando as interações entre chimpanzés e plantas e agora podem identificar cerca de doze plantas – uma verdadeira matéria médica – usadas entre as populações de chimpanzés.

Você é o que você come

 

A história que propomos para o surgimento do homem à luz da auto-reflexão é uma história de você-é-o-que-você-come. Grandes mudanças climáticas e uma dieta recém-ampliada, e portanto mutagênica, proporcionaram muitas oportunidades para que a seleção natural afetasse a evolução das principais características humanas. Cada contato com um novo alimento, uma nova droga, ou um condimento estava carregado de risco e consequências imprevisíveis. E isso é ainda mais verdadeiro hoje em dia, quando nossa comida contém centenas de preservativos e aditivos mal estudados.

Como exemplo de plantas com impacto potencial sobre uma população humana, considere a batata-doce do gênero Dioscorea. Em boa parte do mundo tropical as batatas-doces proporcionam uma fonte de alimento confiável e nutritiva. Não obstante, várias espécies muito próximas contêm compostos que interferem na ovulação. (Estas se tornaram a fonte de matéria-prima para as modernas pílulas anticoncepcionais.) Algo próximo do caos genético cairia sobre uma população de primatas que passasse a se alimentar dessas espécies de Dioscorea. Muitas situações assim, ainda que de magnitude menos espetacular, devem ter ocorrido enquanto os primeiros hominídeos experimentavam novos alimentos ao mesmo tempo em que expandiam seus hábitos de dieta onívora.

Comer uma planta ou um animal é um modo de invocar o seu poder, um modo de assimilar sua mágica. Na mente dos povos anteriores à escrita raramente são claras as linhas divisórias entre drogas, alimentos e condimentos. O xamã que se empanzina de pimenta para aumentar o calor interno dificilmente estará num estado menos alterado do que o entusiasta de óxido nitroso após uma longa inalação. Em nossa percepção do sabor e em nossa busca de variedade na sensação de comer, somos marcadamente diferentes até mesmo de nossos parentes primatas. Em algum ponto do caminho, nossos novos hábitos onívoros e nosso cérebro em evolução, com sua capacidade de processar dados sensórios, uniram-se na feliz idéia de que a comida pode ser uma experiência. Nasceu a gastronomia – para juntar-se à farmacologia, que certamente a precedeu, já que a manutenção da saúde através da dieta é vista entre muitos mamíferos.

A estratégia dos primeiros hominídeos era comer tudo que parecesse comestível e vomitar o que não era palatável. Plantas, insetos e pequenos animais vistos como comestíveis através desse método eram introduzidos na dieta. Uma dieta em mudança ou uma dieta onívora significa exposição a um equilíbrio químico sempre em alteração. Um organismo pode regular esse insumo químico através de processos internos, mas, em última instância, as influências mutagênicas crescerão e um número maior do que o usual de indivíduos será ofertado ao processo de seleção natural. O resultado dessa seleção natural são mudanças aceleradas na organização neural, nos estados de consciência e no comportamento. Nenhuma mudança é permanente, cada uma dá caminho a outra. Tudo flui.

Simbiose

 

À medida que influenciavam o desenvolvimento dos seres humanos e de outros animais, também as plantas eram afetadas. Essa co-evolução atrai a idéia de simbiose. “Simbiose” tem vários significados; uso o termo para falar de um relacionamento entre duas espécies conferindo benefícios mútuos a seus membros. O sucesso biológico e evolucionário de cada espécie está ligado ao – e é estimulado pelo – sucesso da outra. Esta situação é o oposto do parasitismo, ainda que feliz seja o parasita que evolui para se tornar um simbionte. Os relacionamentos simbióticos, onde cada membro precisa do outro, podem ter uma ligação genética muito forte ou podem ser mais abertos. Apesar das interações entre os homens e as plantas serem simbióticos em seu padrão de ganhos e vantagens mútuas, esses relacionamentos não são geneticamente programados. Em vez disso são vistos claramente como hábitos profundos, quando comparados com exemplos de verdadeira simbiose no mundo da natureza.

Um exemplo de um relacionamento ligado geneticamente, e portanto realmente simbiótico, envolve o pequeno peixe-palhaço, Amphiprion ocellaris, que passa a vida perto de certa espécie de anêmona -do-mar. Esse peixe é protegido dos grandes predadores pelas anêmonas, e o suprimento de comida das anêmonas é aumentado pelo peixe-palhaço, que atrai peixes maiores para a área onde as anêmonas estão se alimentando. Quando um arranjo mutuamente agradável como esse acontece por muito tempo, ele termina por eventualmente se “institucionalizar”, turvando cada vez mais a distinção genética entre os simbiontes. Em última instância, um organismo pode tornar-se parte do outro, como aconteceu com as mitocôndrias, as usinas de força das células animais, ao se juntarem com outras estruturas para formar a célula. As mitocôndrias têm um componente genético separado, cuja origem pode remontar às bactérias eucarióticas que, há centenas de milhões de anos, eram organismos independentes.

Outro exemplo instrutivo de simbiose, e que pode ter profundas implicações para nossa situação, é o relacionamento que se desenvolveu entre as formigas-cortadeiras e uma espécie de basilomiceto, um cogumelo. E. O. Wilson aborda esse relacionamento:

No fim da trilha as carregadoras descem apressadas pelo buraco do formigueiro, em meio a multidões de companheiras e ao longo de canais tortuosos que terminam perto do lençol freático cinco metros abaixo ou mais. As formigas largam pedaços de folhas no chão de uma câmara, para serem apanhados por trabalhadoras de um tamanho ligeiramente menor, que partem-nas em fragmentos de cerca de um milímetro. Dentro de minutos, formigas ainda menores assumem o trabalho, amassando e moldando os fragmentos em bolotas úmidas e cuidadosamente inserem-nas numa massa de material semelhante. Essa massa varia entre o tamanho de um punho fechado e uma cabeça humana, é cheia de canais e parece uma esponja cinza. É a horta das formigas: em sua superfície crescem fungos simbiontes que, junto com a seiva das folhas, formam o único alimento das formigas. O fungo se espalha como uma geada branca, penetrando suas hifas na pasta de folhas para digerir a celulose abundante e as proteínas que estão ali numa solução parcial.

O ciclo da horticultura prossegue. Formigas trabalhadoras ainda menores do que as descritas acima arrancam tiras soltas do fungo de lugares de crescimento denso e plantam-nas nas superfícies recém-construídas. Finalmente, as trabalhadoras menores de todas – e mais abundantes – patrulham as plantações de fungos sondando-os com suas antenas, lambendo as superfícies e arrancando os esporos e as hifas de espécies diferentes. Essas anãs da colônia conseguem andar através dos canais mais estreitos dentro das massas da horta. De tempos em tempos arrancam tufos de fungos e levam-nos para suas companheiras maiores.

Nenhum outro animal desenvolveu a capacidade de produzir cogumelos a partir de vegetação fresca. Esse evento evolucionário aconteceu apenas uma vez, há milhões de anos, em algum lugar da América do Sul. Isso deu enorme vantagem às formigas: agora elas podiam mandar trabalhadoras especializadas colher a vegetação, ao mesmo tempo em que mantinham o grosso da população em segurança nos abrigos subterrâneos. Em resultado disso, os diferentes tipos de formigas-cortadeiras juntos, o que compreende quatorze espécies do gênero Atta e vinte e três do Acromyrmex, dominam grande parte dos trópicos americanos. Elas consomem mais vegetação do que qualquer outro grupo de anim,ais, inclusive as formas mais abundantes de lagartas, gafanhotos, pássaros e mamíferos.

 

Podemos perdoar E. O. Wilson, o maior expoente na sociobiologia, por achar que apenas uma vez na história da terra um animal e um cogumelo formaram um relacionamento mutuamente benéfico. Sua descrição das formigas-cortadeiras e de seu relacionamento com a agricultura dos fungos antecipa e introduz considerações fundamentais em meu esforço de revisão do nosso complexo relacionamento com as plantas. Já que, como veremos, um subproduto do estilo de vida dos pastores nômades foi a disponibilidade cada vez maior e o uso dos fungos psicoativos. Como a atividade agrícola das formigas, os padrões de comportamento das sociedades humanas nômades serviu como um modo eficaz para a expansão do alcance de alguns cogumelos.

Uma nova visão da evolução humana

 

Os primeiros contatos entre os hominídeos e os cogumelos contendo psilocibina podem ter precedido em um milhão de anos ou mais a domesticação do gado na África. E durante esse período de um milhão de anos os cogumelos não foram somente colhidos e comidos, mas provavelmente também alcançaram o status de um culto. Mas a domesticação do gado selvagem, um grande passo na evolução cultural humana, ao trazer os homens para mais perto do gado, também permitiu um contato maior com os cogumelos, porque esses cogumelos crescem apenas nas fezes do gado. Em resultado disso, a interdependência entre os homens e o cogumelo foi aumentada e aprofundada. Foi nessa época que os rituais religiosos, a criação dos calendários e a magia natural começaram a existir.

Pouco depois dos homens encontrarem os fungos visionários das pradarias africanas, e como as formigas-cortadeiras, nós também nos tornamos a espécie dominante em nossa área, e também aprendemos como “manter o grosso de nossa população segura em refúgios subterrâneos”. Em nosso caso esses refúgios foram as cidades muradas.

Ao ponderar sobre o curso da evolução humana alguns observadores sérios questionaram o cenário apresentado pelos antropólogos físicos. A evolução dos animais superiores demora um tempo maior para acontecer, operando em períodos de tempo raramente menores do que um milhão de anos e mais comumente em dezenas de milhões de anos. Mas o surgimento dos humanos modernos a partir dos primatas superiores – com as enormes mudanças em tamanho de cérebro e comportamento – aconteceu em menos de três milhões de anos. Fisicamente, nos últimos cem mil anos mudamos aparentemente muito pouco. Mas a espantosa proliferação de culturas, instituições sociais e sistemas linguísticos aconteceu tão depressa que os modernos biólogos evolucionários praticamente não a podem explicar. A maioria nem mesmo tenta.

De fato, a ausência de um modelo teórico não é surpreendente; há muita coisa que não sabemos sobre a situação complexa dos hominídeos no período imediatamente anterior ao surgimento do homem e durante o tempo em que os modernos seres humanos começavam a entrar em cena. As evidências fósseis e biológicas indicam claramente que o homem descende de ancestrais que não são radicalmente diferentes de espécies primatas que ainda existem. E mesmo assim, o Homo sapiens pertence obviamente a uma classe separada dos outros membros da ordem.

Pensar sobre a evolução humana significa em última instância pensar sobre a evolução da consciência humana. Nesse caso, quais são as origens da mente humana ? Em suas explicações, alguns investigadores adotaram uma ênfase principalmente cultural. Eles apontam para nossas capacidades linguísticas e simbólicas especiais, nosso uso de ferramentas e nossa capacidade de guardar informações epigeneticamente – como em canções, artes plásticas, livros, computadores -, e com isso criando não somente cultura mas também história. Outros, assumindo uma abordagem um pouco mais biológica, enfatizaram nossas peculiaridades fisiológicas e neurológicas, inclusive o tamanho excepcional e a complexidade do neocórtex, grande parte do qual é dedicada a processos linguísticos complexos, ao armazenamento e à recuperação de informações, além de estar associada aos sistemas motores que controlam atividades como a fala e a escrita. Mais recentemente reconheceu-se que as interações de feedback entre influência cultural e ontogenia biológica estão envolvidas em certas estranhezas desenvolvimentais, como infância e adolescência prolongadas, o atraso da maturidade sexual e a persistência de muitas características essencialmente neonatais através da vida adulta. Infelizmente a união desses pontos de vista ainda não levou ao reconhecimento do poder dos constituintes psicoativos e fisioativos da dieta na modelação de genomas.

Há três milhões de anos, e através de uma combinação dos processos discutidos acima, existiam pelo menos três espécies claramente reconhecidas de proto-hominídeos no leste da África. Eram o Homo africanus, o Homo boisei e o Homo robustus. E também nessa época o onívoro Homo habilis, o primeiro hominídeo verdadeiro, surgira claramente a partir da uma divisão da espécie que também deu surgmento a dois homens-macacos vegetarianos.

As pradarias se expandiam devagar; os primeiros hominídeos moviam-se através de um mosaico de pradarias e florestas. Essas criaturas, com cérebros proporcionalmente apenas um pouco maiores do que os dos chimpanzés, já andavam eretas e provavelmente carregavam comida e ferramentas entre trechos de florestas que elas continuavam a procurar em busca de tubérculos e insetos. Seus braços eram proporcionalmente maiores que os nossos e possuíam mão mais forte para agarrar. A evolução para a postura ereta e a expansão inicial para um ambiente de pradarias ocorreram antes, entre nove e cinco milhões de anos atrás. Infelizmente não temos evidências fósseis dessa transição anterior.

Os hominídeos provavelmente expandiram sua dieta original de frutas e pequenos animais incluindo raízes, tubérculos e bulbos. Uma simples vara para cavar daria acesso a essa fonte de alimentos anteriormente indisponível. Os modernos babuínos das savanas subsistem principalmente de bulbos de capim durante certas estações. Os chimpanzés acrescentam quantidades substanciais de feijões à sua dieta quando se aventuram na savana. Tanto os babuínos quanto os chimpanzés caçam cooperativamente e atacam pequenos animais. Mas geralmente não usam ferramentas na caçada, e não há evidência de que os primeiros hominídeos tampouco as usassem. Entre os chimpanzés, os babuínos e os hominídeos a caçada parece ser uma atividade masculina. Os primeiros hominídeos caçavam tanto cooperativamente quanto sozinhos.

Com o Homo sapiens começou uma expansão súbita e misteriosa do tamanho do cérebro. O cérebro do Homo habilis pesava em média 770 gramas, comparada às 530 gramas dos outros hominídeos. O período seguinte de 2.250.000 anos trouxe uma evolução surpreendentemente rápida no tamanho e na complexidade do cérebro. Entre 750.000 e 1.100.000 anos atrás, um novo tipo de hominídeo, o Homo erectus, estava amplamente disseminado. O cérebro desse novo hominídeo pesava entre 900 e 1.100 gramas. Há boas evidências de que o Homo erectus usava ferramentas e possuía algum tipo de cultura rudimentar. Na Caverna de Choukoutien, na África do Sul, há evidências do uso de fogo junto a ossos queimados, sugerindo o cozimento de carne. Esses eram atributos do Homo erectus, que foi o primeiro hominídeo a deixar a África há cerca de um milhão de anos.

Teorias mais antigas sugerem que os homens modernos evoluíram do Homo erectus em diversos lugares. Porém, cada vez mais, os primatologistas evolucionários da atualidade aceitam a noção de que o moderno Homo sapiens também surgiu na África, há cerca de 100.000 anos, e fez uma segunda grande migração para povoar todo o planeta. Na Caverna Border e na Caverna da foz do Rio Klasies, na África do Sul, há evidências dos primeiros Homo sapiens modernos vivendo num ambiente misto de floresta e pradarias. Numa das muitas tentativas para compreender essa transição importantíssima, Charles J. Lumsden e Edward O. Wilson escreveram:

Os ecologistas comportamentais desenvolveram gradualmente uma teoria para explicar por que foi feito o avanço para uma postura ereta, uma teoria que responde por muitas das características biológicas específicas do homem moderno. Os primeiros homens-macacos saíram das florestas tropicais para habitats mais abertos, sazonais, onde passaram a uma existência exclusivamente terrestre. Construíram acampamentos-base e tornaram-se dependentes da divisão de trabalho, através da qual alguns indivíduos, provavelmente as fêmeas, andavam menos e dedicavam mais tempo ao cuidado dos jovens; outros, principalmente ou exclusivamente os machos, se dispersavam amplamente em busca de caça. O bipedalismo conferia grande vantagem na locomoção em espaços abertos. Também deixava livre os braços, permitindo que os homens-macacos ancestrais usassem ferramentas e carregassem animais mortos e outros alimentos de volta ao acampamento. A divisão da comida e formas relacionadas de reciprocidade seguiram-se automaticamente como processos centrais da vida social dos homens-macacos. O mesmo aconteceu com a ligação sexual íntima e de longo prazo e o aumento da sexualidade, que foram postos a serviço da criação dos jovens. Muitas das formas mais distintas de comportamento social humano são produto desse complexo adaptativo profundamente entrelaçado.

 

A um tipo avançado de hominídeo seguiu-se outro, no laboratório evolucionário da África. E, começando com o Homo erectus, representantes de cada tipo se irradiaram através da massa eurasiana nos períodos interglaciais. Durante cada glaciação, a migração para fora da África era bloqueada; novos hominídeos eram “preparados” no ambiente africano de forças intensificadas de mutação através de dietas exóticas e seleção natural climaticamente induzida.

No final desses notáveis três milhões de anos na evolução da espécie humana, o cérebro humano havia triplicado! Lumsden e Wilson chamam isso de “talvez o avanço mais rápido registrado para qualquer órgão complexo em toda a história da vida”. Uma taxa tão notável de mudança evolucionária no principal órgão de uma espécie implica a presença de pressões seletivas extraordinárias.

Como os cientistas não puderam explicar essa triplicação do tamanho do cérebro humano em período evolucionário tão pequeno, alguns dos primeiros paleontólogos estudiosos de primatas e teóricos evolucionários previram e buscaram evidências de esqueletos de transição. Hoje em dia a idéia de um “elo perdido” foi praticamente abandonada. O bipedalismo, a visão binocular, o polegar em oposição e o braço capaz de fazer lançamentos – tudo isso já foi colocado como ingrediente-chave na mistura que fez com que os humanos auto-reflexivos se cristalizassem fora do caldeirão de tipos e estratégias dos hominídeos em competição. No entanto, tudo que realmente sabemos é que a mudança no tamanho do cérebro foi acompanhada por mudanças notáveis na organização social dos hominídeos. Eles se tornaram usuários de ferramentas, de fogo e da linguagem. Iniciaram o processo como animais superiores e saíram dele, há cerca de 100.00 anos, como indivíduos conscientes e com percepção de si próprios.

O verdadeiro elo perdido

 

Meu ponto de vista é que os componentes químicos mutagênicos e psicoativos existentes na dieta dos primeiros humanos influenciou diretamente a rápida reorganização das capacidades de o cérebro processar informações. Os alcalóides contidos nas plantas, especificamente os compostos alucinógenos como a psilocibina, a dimetiltriptamina (DMT) e a harmalina podem ter sido os fatores químicos da dieta que catalisaram o surgimento da auto-reflexão humana. A ação dos alucinógenos presentes em muitas plantas comuns aumentou nossa atividade de processamento de informações e nossa sensibilidade ambiental, com isso contribuíndo para a súbita expansão do tamanho do cérebro. Como aconteceu num estágio posterior desse mesmo processo, os alucinógenos atuaram como catalisadores no desenvolvimento da imaginação, alimentando a criação de estratagemas internos e esperanças que podem ter sinergizado o surgimento da linguagem e da religião.

Em pesquisas realizadas no final dos anos 60. Roland Fisher deu pequenas quantidades de psilocibina a estudantes de pós-graduação e em seguida mediu sua capacidade de detectar o momento em que linhas anteriormente paralelas se desviavam. Ele descobriu que a capacidade de desempenhar essa tarefa específica era aumentada depois de pequenas doses de psilocibina.

Quando discuti essas descobertas com Fisher, ele sorriu, depois de explicar suas conclusões, e em seguida resumiu: “Você vê, o que se provou conclusivamente aqui é que, sob certas circunstâncias, somos mais bem-informados sobre o mundo real se tomamos uma droga do que se não tomamos.” Sua resposta jacosa ficou em minha mente, primeiro como uma anedota acadêmica, depois como um esforço de sua parte para comunicar uma coisa profunda. Quais seriam as consequências, para a teoria da evolução, de admitir que alguns hábitos químicos conferem vantagem adaptativa e, portanto, tornam-se profundamente gravados no comportamento e até mesmo no genoma de alguns indivíduos?

Três grandes passos para a raça humana

 

Ao tentar responder essa pergunta construí um cenário – algumas pessoas podem chamá-lo de fantasia; é o mundo observado de um ponto de vista para o qual os milênios são apenas estações, uma visão para a qual fui levado por anos pensando nesses temas. Imaginemos, por um instante, que estamos fora da agitação genética que é a história biológica, e que podemos ver as consequências entrelaçadas de mudanças na dieta e no clima, que certamente devem ter sido muito lentas para serem percebidas por nossos ancestrais. O cenário que se desdobra envolve os efeitos interconectados e mutuamente reforçados da psilocibina tomada em três níveis. Por ser especial em suas propriedades, creio que a psilocibina é a única substância que poderia produzir esse cenário.

No primeiro nível de uso, o mais baixo, há o efeito que Fisher observou: pequenas quantidades de psilocibina, consumida sem consciência de sua psicoatividade, e talvez mais tarde consumida conscientemente, provocam um aumento notável na acuidade visual, especialmente na detecção periférica. Como a acuidade visual é valorizada entre os caçadores-coletores, a descoberta de um equivalente de “binóculos químicos” não poderia deixar de ter um impacto sobre o sucesso da caçada e da coleta por parte dos indivíduos que dispunham dessa vantagem, Devido ao aumento de comida disponível, os descendentes desses grupos terão uma probabilidade maior de chegar à idade reprodutiva. Numa situação assim, a não-proliferação (ou o declínio) dos grupos não-usuários de psilocibina seria uma consequência natural.

Como a psilocibina é um estimulante do sistema nervoso central, quando tomado em doses ligeiramente maiores ela tende a provocar a inquietação e a excitação sexual. Assim, nesse segundo nível de uso, ao aumentar a ocorrência da copulação os cogumelos favorecem diretamente a reprodução humana. A tendência de regular e programar a atividade sexual dentro do grupo, ligando-a a um ciclo lunar de disponibilidade dos cogumelos, pode ter sido importante como um primeiro passo em direção ao ritual e à religião. Sem dúvida, no terceiro e mais alto nível de uso, as preocupações religiosas estariam no primeiro plano da consciência da tribo, simplesmente por causa do poder e da estranheza da experiência em si.

Esse terceiro nível, então, é o nível do êxtase xamânico totalmente desabrochado. A intoxicação por psilocibina é um êxtase cujo sopro e profundidade são o desespero da prosa. É totalmente Outro, e não menos misterioso para nós do que era para nosso ancestrais que mastigavam cogumelos. A capacidade de dissolução de fronteiras do êxtase xamânico predispõe os grupos tribais usuários de alucinógenos aos laços comunitários e a atividades sexuais grupais, o que promove a mistura de genes, taxas maiores de nascimento e um senso comunitário de responsabilidade pela prole do grupo.

Em qualquer dose que o cogumelo fosse usado, ele possuía a propriedade mágica de conferir vantagens adaptativas sobre os usuários arcaicos e seus grupos. O aumento da acuidade visual, a excitação sexual e o acesso ao Outro transcendente levaram ao sucesso na obtenção de comida, à capacidade e ao vigor sexual, à prole abundante e ao acesso a esferas de poder sobrenatural. Todas essas vantagens podem ser facilmente auto-reguladas através da manipulação das doses e da frequência de ingestão. O capítulo 4 detalhará a notável propriedade da psilocibina, estimulando a capacidade do cérebro de formar linguagem. Seu poder é tão extraordinário que a psilocibina pode ser considerada a catalisadora do desenvolvimento da linguagem entre os homens.

Afastando-se de Lamarck

 

Uma objeção a essas idéias surge inevitavelmente e deve ser enfrentada. Esse cenário de surgimento do homem pode ter cheiro de lamarckismo, que teoriza que as características adquiridas por um indivíduo durante seu tempo de vida podem ser passadas à sua prole. O exemplo clássico é a afirmação de que a girafa tem pescoço comprido porque o estica para alcançar ramos mais altos. Essa idéia fácil de compreender e que faz bastante sentido é um completo anátema entre os neo-darwinistas, que atualmente estão na vanguarda da teoria evolucionária. A posição deles é que as mutações são totalmente aleatórias, e que somente depois das mutações serem expressas como características dos organismos a seleção natural cumpre inconsciente e desapaixonadamente sua função de preservar os indivíduos que receberam vantagem adaptativa.

A objeção deles pode ser colocada da seguinte forma: ainda que os cogumelos possam ter-nos dado melhor visão, sexo e linguagem quando comidos, como esses desenvolvimentos entraram no genoma humano e se tornaram inatamente humanos? Os desenvolvimentos não-genéticos do funcionamento de um organismo feitos através de agentes externos retardam os reservatórios genéticos correspondentes a essas facilidades, tornando-os supérfluos. Em outras palavras, se um metabólito necessário é comum na comida disponível, não haverá pressão para desenvolver uma característica para a expressão endógena desse metabólito. Assim, o uso dos cogumelos criariam individuos com menos acuidade visual, menos facilidade de linguagem e menos consciência. A natureza não proporcionaria esses desenvolvimentos através da evolução orgânica porque o investimento metabólico necessário à sua sustentação não valeria a pena, comparado ao minúsculo investimento metabólico necessário para comer cogumelos. E mesmo assim todos temos hoje em dia esses desenvolvimentos, sem ingerir cogumelos. Então, como as modificações proporcianadas pelos cogumelos entraram no genoma?

A resposta curta a essa pergunta, uma resopsta que não exige defender as idéias de Lamarck, é que a presença da psilocibina na dieta dos hominídeos mudou os parãmetros do processo de seleção natural ao mudar os padrões comportamentais sobre os quais essa seleção vinha operando. A experimentação com muitos tipos de alimentos estava causando um aumento geral no número de mutações aleatórias oferecidas ao processo de seleção natural, ao passo que o aumento da acuidade visual, do uso de linguagem e da atividade ritual através do uso de psilocibina representavam novos comportamentos. Um desses novos comportamentos, o uso da linguagem – que era anteriormente uma característica de importância apenas marginal – subitamente tornou-se muito útil no contexto dos novos estilos de vida caçadora e coletora. Nesse caso a inclusão de psilocibina na dieta mudou os parâmetros do comportamento humano em favor dos padrões que promoviam o maior uso da linguagem; a aquisição da linguagem levou a um maior vocabulário e à expansão da capacidade de memória. Os indivíduos usuários de psilocibina desenvolveram regras epigenéticas ou formas culturais que lhes permitiram sobreviver e se reproduzir melhor do que outros indivíduos. Finalmente, os estilos epigenéticos de comportamento mais bem-sucedidos se espalharam entre as populações junto com os genes que os reforçam. Desse modo, a população evoluiria genética e culturalmente.

E quanto à acuidade visual, talvez a ampla necessidade de lentes corretivas entre os homens modernos seja um legado do longo período de aumento “artificial” da visão através do uso de psilocibina. Afinal de contas, a atrofia das capacidades olfativas dos seres humanos é vista por uma escola como o resultado da necessidade de os famintos onívoros tolerarem cheiros e gostos fortes, talvez até de carniça. Permutas desse tipo são comuns na evolução. A supressão da agudeza no olfato e no paladar permitiria a inclusão, na dieta, de alimentos que seriam deixados de lado como “fortes demais”. Ou isso pode indicar alguma coisa mais profunda em nosso relacionamento evolucionário com a dieta. Meu irmão Dennis escreveu:

A aparente atrofia do sistema olfativo humano pode representar uma mudança funcional num conjunto de receptores químicos primitivos externamente dirigidos, levando-os a uma função reguladora interna. Essa função pode estar relacionada com o controle do sistema feromonal humano que, em grande parte, está sob controle da glândula pineal, e que media, num nível subliminar, uma quantidade de interações psicossociais e psicosexuais entre os indivíduos. A pineal tende, entre outras funções, a suprimir o desenvolvimento gronadal e o surgimento da puberdade, e esse mecanismo pode representar um papel na persistência das características neonatais na espécie humana. O atraso na maturação e a infãncia e adolescência prolongadas representam um papel crítico no desenvolvimento neurológico e psicológico do indivíduo, já que proporcionam as circunstãncias que permitem o desenvolvimento pós-natal do cérebro nos primeiros anos de infância, os anos formativos. Os estímulos simbólicos, cognitivos e linguísticos que o cérebro experimenta durante esse período são essenciais para seu desenvolvimento, e são os fatores que nos tornam os seres únicos, conscientes, manipuladores de símbolos e usuários da linguagem que somos, As aminas neuroativas e os alcalóides presentes na dieta dos antigos primatas podem ter representado um papel na ativação bioquímica da glândula pineal e nas adaptações resultantes disso.

 

Gostos adquiridos

 

Os seres humanos sentem-se ao mesmo tempo atraídos e repelidos por substâncias cujo sabor esteja no limite da aceitabilidade. Comidas muito temperadas, amargas ou aromáticas provocam fortes reações em nós. Dizemos que é preciso “adquirir o gosto” por esses tipos de comida. Isso é verdade para alimentos como queijos macios ou ovos em conserva, mas também acontece, e é mais verdadeiro, com relação às drogas. Lembrar o primeiro cigarro ou a primeira dose de conhaque é lembrar-se de um organismo rejeitando violentamente a aquisição de um gosto em particular. A repetição do contato parece ser a chave para se adquirir um gosto, o que sugere que o processo é complexo e envolve adaptações comportamentais e bioquímicas.

Isso que estamos falando começa a se parecer estranhamente com o processo do vício em drogas. Uma coisa estranha ao corpo é repetidamente introduzida nele através da decisão consciente. O corpo se ajusta ao novo regime químico como sendo correto e adequado e dá sinais de alarme quando esse regime é ameaçado. Esses sinais podem ser psicológicos e fisiológicos e serão sentidos sempre que o novo ambiente químico dentro do corpo correr algum tipo de perigo, inclusive a decisão consciente de interromper o uso da substância química em questão. Dentre o vasto número de substâncias químicas que constituem o armazém molecular da natureza, temos discutido um número relativamente pequeno de componentes que interagem com os sentidos e o processo neurológico de processar dados. Esses compostos incluem todas as aminas psicoativas, os alcalóides, os fermônios e os alucinógenos – na verdade, são todos componentes que podem interagir com quaisquer dos sentidos, do paladar e do olfato até a visão e audição e combinação de todos eles. A aquisição de um gosto por esses compostos, a aquisição de um hábito reforçado comportamental e fisiologicamente, é o que defende a síndrome básica do vício químico.

Esses compostos têm a capacidade notavel de, ao mesmo tempo, lembrar-nos de nossa fragilidade e de nossa capacidade para as coisas magníficas. As drogas, como a realidade, parecem destinadas a confundir quem procura fronteiras nítidas e uma divisão fácil do mundo em termos de preto e branco. O modo como iremos enfrentar o desafio de definir nossos relacionamentos futuros com esses componentes, e com as dimensões de risco e oportunidade que eles oferecem, pode dar a palavra final sobre nosso potencial para a sobrevivência e para a evolução como espécie consciente.

Capítulo 3 – A Busca da Árvore Primal do Conhecimento

 

Os aluconógenos como o verdadeiro elo perdido

 

A noção que estamos explorando neste livro é que uma família particular de compostos químicos ativos, os alucinógenos indóis, representaram um papel decisivo no surgimento de nossa humanidade essencial, da característica humana de auto-reflexão. Por isso é importante saber exatamente o que são esses compostos e que papel eles desempenham na natureza. As características definidoras desses alucinógenos são estruturais: todos têm um grupo pentexil, de cinco lados, em associação com o anel benzeno, mais conhecido (ver Figura 28). Esses anéis moleculares tornam os indóis altamente reativos quimicamente e, portanto, moléculas ideais para a atividade metabólica no mundo de alta energia da vida orgânica.

Os alucinógenos podem ser psicoativos e/ou fisiologicamente ativos e podem ter como alvo muitos sistemas dentro do corpo. Alguns indóis são endógenos ao corpo humano – um bom exemplo é a serotonina. Muitos outros são exógenos, encontrados na natureza e nas plantas que podemos comer. Alguns se comportam como hormônios e regulam o crescimento ou a taxa de maturação sexual. Outros influenciam o humor e o estado de alerta. São quatro as famílias dos compostos indóis que são fortes alucinógenos visionários e que também ocorrem em plantas:

1. Os compostos do tipo LSD. Encontrados em três gêneros relacionados de ipoméias e fungos de cereais, os LSDs são raros na natureza. O fato de serem os alucinógenos mais conhecidos deve-se indubitavelmente a milhares de doses de LSD terem sido fabricadas e vendidas durante os anos 60. O LSD é um psicodélico, mas são necessárias doses relativamente grandes para provocar o paradis artificiel de alucinações vívidas e absolutamente transmundanas que é produzido pela DMT e pela psilocibina em doses bastante tradicionais. Não obstante, muitos pesquisadores enfatizaram a importância dos efeitos não-alucinógenos do LSD e de outros psicodélicos. Dentre esses efeitos pode-se citar um sentimento de expansão mental e aumento na velocidade do pensamento; a capacidade de compreender e de se relacionar com questões complexas de pensamento, com a estruturação da vida e com redes complexas e decisórias de ligação conectiva.

O LSD continua a ser fabricado e vendido em quantidades maiores do que qualquer outro alucinógeno. Foi visto como auxiliar na psicoterapia e no tratamento do alcoolismo crônico: “Sempre que foi experimentado, em todo o mundo, mostrou-se um interessante tratamento para uma doença muito antiga. Nenhuma outra droga até hoje pôde igualar-se a ele em salvar as vidas atormentadas dos alcoólatras inverterados – diretamente, como tratamento, ou indiretamente, como meio de produzir informações valiosas.” Mas, em consequência da histeria da mídia, pode ser que seu potencial jamais venha a ser conhecido.

2. Os alucinógenos triptamínicos, especialmente a DMT, a psilocina e a psilocibina. Os alucinógenos triptamínicos são encontrados em todas as famílias de plantas superiores – por exemplo, nos legumes – e a psilocina e a psilocibina ocorrem nos cogumelos. A DMT também ocorre endogenamente no cérebro humano. Por esse motivo, talvez não se deva pensar na DMT como uma droga, mas a intoxicação por DMT é o mais profundo e visualmente espetacular dos alucinógenos, notável por sua breviedade, intensidade e atoxidade.

3. As betacarbolinas. As betacarbolinas, como a harmina e a harmalina, podem ser alucinógenos perto do nível tóxico. São importantes para o xamanismo visionário porque podem inibir sistemas enzimáticos do corpo que, caso isso não acontecesse, despotencializariam os alucinógenos do tipo DMT. Portanto as betacarbolinas podem ser usadas em conjunção com a DMT para prolongar e intensificar as alucinações visuais. Essa combinação é a base da infusão alucinógena ayahuasca ou yagé, usada na Amazônia. As betacarbolinas são drogas legais, e até muito recentemente eram virtualmente desconhecidas do público geral.

4. A família de substâncias ibogana. Essas substâncias ocorrem em dois gêneros aparentados de árvores africanas e sul-americanas, a Tabernanthe e a Tabernamntana. A Tabernathe iboga é um pequeno arbusto de flores amarelas aparentado com o café e tem uma história de utilização como alucinógeno na África ocidental tropical. Seus componentes ativos têm uma relação estrutural com as betacarbolinas. A ibogana é mais conhecida como poderoso afrodisíaco do que como alucinógeno. Não obstante, em doses suficientes ela é capaz de induzir uma podrosa experiência visionária e emocional.

Esses poucos parágrafos numerados podem conter as informações mais importantes e excitantes, relativas ao mundo vegetal, que os seres humanos coletaram desde o esquecido nascimento da ciência. Mais precioso do que as notícias sobre o antineutrino, mais cheio de esperança para a humanidade do que a detecção de novos quasares é o conhecimento de que certas plantas, certos compostos, destrancam portas esquecidas levando a mundos de experiência imediata que confundem nossa ciência e, de fato, nos confundem. Adequadamente entendida e aplicada, essa informação pode se tornar uma bússola que nos guie de volta ao jardim perdido de nossas origens.

Em busca da árvore do conhecimento

 

Na tentativa de compreender quais alucinógenos indóis e quais plantas podem ter tido implicação causal no surgimento da consciência, vários pontos importantes devem ser observados:

A planta que estamos procurando deve ser africana, já que há enormes evidências de que o gênero humano surgiu na África. Mais especificamente, a planta africana deveria ser nativa das pradarias, já que foi aí que os nosso ancestrais recém-onívoros aprenderam a se adaptar, a coordenar seu bipedalismo e a refinar os métodos de sinalização existentes.

A planta não deve exigir qualquer preparação; deve ser ativa em seu estado natural. Supor algo diferente é forçar a credulidade – misturas, drogas compostas, extratos e concentrações pertencem a estágios posteriores de cultura, quando a consciência humana e o uso da linguagem já estavam bem estabelecidos.

A planta deve estar continuamente disponível para uma população nômade, facilmente perceptível e em grande quantidade.

A planta deve conferir benefícios imediatos e tangíveis para os indivíduos que a estão comendo . Somente assim ela se estabeleceria e se manteria como parte da dieta dos hominídeos.

Essas exigências reduzem dramaticamente o número de concorrentes. A África tem poucas plantas alucinógenas. Essa escassez e a contrastante superabundância desse tipo de planta nos trópicos do Novo Mundo nunca foram satisfatoriamente explicadas. Será mera coincidência que, quanto maior o tempo pelo qual um ambiente foi exposto aos seres humanos, menor o número de alucinógenos nativos e menor o número de espécies de plantas em que eles ocorrem naturalmente? A África atual praticamente não tem plantas nativas que sejam bons candidatos para a catálise da consciência entre os hominídeos em evolução.

As pradarias têm muito menos espécies vegetais do que as florestas. Devido a essa escacez, é muito provável que um hominídeo testasse qualquer planta que encontrasse nas pradarias em busca de seu potencial alimentício. O eminente geógrafo Carl Saur achava que não existem pradarias naturais. Ele sugeriu que todas as pradarias eram artefatos humanos, resultantes do impacto cumulativo das queimadas sazonais. Baseou esse argumento no fato de que todas as espécies das pradarias podem ser encontradas na base das florestas que as margeiam, ao passo que uma grande percentagem das espécies encontradas nas florestas estão ausentes nas pradarias. Saur concluiu que as pradarias são tão recentes que podem ser vistas como concomitantes às populações humanas usuárias de fogo.

Eliminando os candidatos

 

Hoje em dia, apenas a religião do Bwiti, dos fang do Gabão e do Zaire, pode ser chamada de um verdadeiro culto africano baseado numa planta alucinógena. É concebível que a planta utilizada, a Tabernanthe iboga, possa ter tido alguma influência sobre os povos pré-históricos do século XIX. Em nenhuma época, por exemplo, ela foi mencionada pelos portugueses, que tiveram uma longa história de comércio e exploração na África Ocidental. Essa falta de evidências é difícil de se explicar, caso se acredite que o uso da planta seja muito antigo.

Analisando sociologicamente, o Bwiti é uma força não somente de coesão grupal como de manutenção de casamentos. Historicamente, o divórcio é uma fonte crônica de ansiedade grupal entre os fang. Isso deve-se ao fato de que o divórcio é facilmente obtido, mas logo depois ele deve ser acompanhado de negociações complicadas, longas e potencialmente caras com a famíla do cônjuge, relativas à devolução de parte do dote. Talvez a iboga, além de ser um alucinógeno, ative um feromônio que promova a união do casal. Sua reputação como afrodisíaco poderia estar parcialmente relacionada a essa promoção do laço entre o casal.

A planta em si é um arbusto de tamanho médio, não é nativa das pradarias, e sim das florestas tropicais. Raramente é encontrada fora da área de cultivo.

Como resultado dos contatos dos europeus com a África tropical, a iboga tornou-se o primeiro indol a entrar em voga na Europa. Tônicos baseados no extrato da planta tornaram-se extremamente populares na França e na Bélgica depois da iboga ser apresentada ao público na Exposição de 1867 em Paris. Esse extrato simples era vendido na Europa com o nome de Lambarene, como cura para tudo, da neurastenia à sífilis e, acima de tudo, um afrodisíaco.

Somente em 1901 o alcalóide foi isolado. A onda inicial de pesquisas que se seguiu parecia promissora. Antecipou-se ansiosamente a cura para a impotência masculina. No entanto, a ibogaína, depois de caracterizada quimicamente, foi logo esquecida. Ainda que não surgisse qualquer evidência de que fosse perigoso ou viciante, o composto foi colocado, nos Estados Unidos, na Lista I, a categoria mais restritiva e controlada, tornando extremamente improváveis outras pesquisas. Até hoje a ibogaína continua praticamente sem ser estudada nos seres humanos.

O que sabemos sobre o culto da iboga aprendemos com o trabalho de campo dos antropólogos. Raspas das raízes da planta são tomadas em quantidades prodigosas. Os fang acreditam que esse hábito foi adquirido durante uma migração que durou séculos, na qual eles estiveram algum tempo próximos ao povo pigmeu, que lhes ensinou o poder espiritual contido no Bwiti. A casca da raiz da Thabernathe iboga contém a parte psicoativa da planta. De acordo com os fang, devem ser comidos muitos gramas desse material da raiz para “abrir a cabeça”. A partir daí, quantidades menores tornam-se eficazes pelo resto da vida da pessoa.

Apesar do culto da iboga ser muito interessante, não creio que essa planta tenha sido o catalisador da consciência nos humanos em evolução. Como já foi mencionado antes, não foi demonstrada uma longa história de sua utilização, e ela não é uma planta de pradarias. Além disso, em pequenas doses ela diminui a visão comum ao facilitar a persistência de imagens, halos e “listras” visuais.

Não é conhecido o uso de qualquer planta contendo LSD na África. Tampouco existe qualquer exemplo marcante de plantas ricas nesses compostos.

A Peganum Harmala, a gigantesca arruda da Síria, é rica na harmina betacarbolina e atualmente ocorre em estado selvagem em todas as partes áridas da África do Norte junto ao Mediterrâneo. Mas não há qualquer registro de seu uso na África como alucinógeno, e , de qualquer modo, ela deve ser concentrada e/ou combinada com DMT para ativar seu potencial visionário.

A planta de UR

 

Então ficamos, por um processo de eliminação, com os alucinógenos do tipo triptamina – a psilocibina, a psilocina e a DMT. Num ambiente de pradarias pode-se esperar que esses compostos ocorram num cogumelo coprófilo (que nasce sobre esterco) contendo psilocibina ou numa erva contendo DMT. Mas, a não ser que a DMT fosse extraída e concentrada, algo além do alcance técnico dos primeiros seres humanos, essas ervas jamais poderiam suprir quantidades suficientes de DMT para proporcionar um alucinógeno eficaz. Por um processo de eliminação, somos levados a suspeitar de um cogumelo que pudesse estar envolvido no processo.

Quando nossos ancestrais remotos afastaram-se das árvores e passaram a ocupar as pradarias, cada vez mais encontraram gado selvagem que comia vegetação. Esses animais tornaram-se uma grande fonte de sustento potencial. Nossos ancestrais também encontraram o esterco desse gado selvagem e os cogumelos que cresciam sobre ele.

Vários desses cogumelos das pradarias contêm psilocibina: os da espécie Panaeolus e o Stropharia cubensis, também chamado de Psilocybe cubensis (ver a Figura 1). Este último é o conhecido “cogumelo mágico”, atualmente cultivado por entusiastas em todo o mundo.

Dessas espécies de cogumelo, apenas o Stropharia cubensis contém psilocibina em quantidades concentradas e está livre de compostos que produzam náusea. Só ele é pandêmico – ocorre em todas as regiões tropicais, pelo menos em todos os lugares onde exista gado do tipo zebu (Bos indicus). Isso levanta várias questões. Será que o Stropharia cubensis ocorre exclusivamente no esterco de zebu ou pode ocorrer também o esterco de outro tipo de gado? Há quanto tempo ele chegou aos seus vários habitats? O primeiro espécime de Psilocybe cubensis foi coletado pelo botânico americano Earle em Cuba, em 1906, mas o atual pensamento botânico coloca o ponto de origem da espécie no sudeste da Ásia. Numa escavação arqueológica na Tailândia, num local chamado Non Nak Thadatado em quinze mil anos – , foram encontrados ossos de gado zebu junto com túmulos humanos. Atualmente o Stropharia cubensis é comum na área de Non Nak Tha. O sítio de Non Nak Tha sugere que o uso dos cogumelos foi uma característica que surgiu sempre que populações de homens e gado evoluíram juntos.

Amplas evidências apóiam a noção de que o Stropharia cubensis é a superplanta ou o umbigo da mente feminina do planeta, que, quando seu culto estava intacto – o culto paleolítico da Grande Deusa de Chifres – , transmitia o conhecimento de que somos capazes de viver num equilíbrio dinâmico com a natureza, com os outros e com nós mesmos. O uso de cogumelos alucinógenos evoluiu como uma espécie de hábito natural com consequências comportamentais e evolucionárias. Esse relacionamento entre seres humanos e cogumelos teria de incluir também o gado, os criadores da única fonte dos cogumelos.

Esse relacionamento provavelmente não tem mais de um milhão de anos, já que data dessa época a era dos caçadores nômades. Os últimos cem mil anos são provavelmente uma quantidade de tempo mais do que generosa para permitir a evolução do pastoralismo a partr de seu primeiro vislumbre. Como todo o relacionamento não passa de um milhão de anos, não estamos discutindo uma simbiose biológica que pode levar muitos milhões de anos para se desenvolver. Em vez disso falamos de um costume profundamente arraigado, um hábito cultural extremamente poderoso.

Independentemente de como a chamamos, a interação dos homens com o cogumelo Stropharia cubensis não foi um relacionamento estático,e sim dinâmico, através do qual fomos levados, por méritos próprios, a níveis culturais cada vez mais altos e a níveis de autoconsciência individual. Acredito que o uso dos cogumelos alucinógenos nas pradarias da África nos deu o modelo para o surgimento de todas as religiões. E quando, após longos séculos de lento esquecimento, de migrações e mudanças climáticas, o conhecimento do mistério finalmente se perdeu, em nossa angústia trocamos a parceria pelo domínio, a harmonia com a natureza pelo estupro da natureza, a poesia pelo sofisma da ciência. Resumindo, trocamos nosso direito inato de parceiros no drama da mente viva do planeta pelos cacos da história, pela guerra, pela neurose e – se não acordarmos rapidamente para a nossa situação difícil – pela catástrofe planetária.

O que são os alucinógenos vegetais?

 

À luz da sua importância, conforme sugeri, para a evolução humana, é natural investigar o que os mutagenes e outros subprodutos secundários estão fazendo pelas plantas em que eles ocorrem. Esse é um mistério botânico que permanece controvertido entre os biólogos evolucionários da atualidade. Foi sugerido que os compostos tóxicos e bioativos são produzidos nas plantas para torná-las não-palatáveis e portanto indesejáveis como alimento. Também sugeriu-se, por outro lado, que esses compostos foram desenvolvidos para atrair insetos ou pássaros que polinizam ou distribuem sementes.

Uma explicação mais provável para a presença de compostos secundários baseia-se no reconhecimento de que, na verdade, eles não são secundários ou periféricos. A evidência disso é que os alcalóides, geralmente vistos como secundários, são formados na maior quantidade em tecidos que são mais ativos no metabolismo geral. Os alcalóides, inclusive todos os alucinógenos mencionados aqui, não são produtos inertes nas plantas onde ocorrem, mas estão num estado dinâmico, flutuando em concentração e na taxa de declínio metabólico. O papel desses alcalóides na química do metabolismo deixa claro que eles são essenciais à vida e à estratégia de sobrevivência do organismo, mas agem de maneiras que ainda não compreendemos.

Uma possibilidade é que alguns desses compostos possam ser exoferomônios. Os exoferomônios são mensageiros químicos que não atuam entre os membros de uma única espécie, mas sim entre as espécies, de modo que um indivíduo influencia membros de uma espécie diferente. Alguns exoferomônios agem de modo a permitir que um pequeno grupo de indivíduos afete uma comunidade ou todo um nicho biológico.

A noção de natureza como um todo organísmico e planetario que medeia e controla seu próprio desenvolvimento através da liberação de mensagens químicas pode ser um tanto radical. Nossa herança do século XIX é que a natureza não passa de “dentes e garras”, onde uma ordem natural impiedosa e irracional promove a sobrevivência dos que são capazes de garantir sua própria existência continuada à custa dos concorrentes. Concorrentes, nessa teoria, significa todo o resto da natureza. Entretanto, a maioria dos biólogos evolucionários há muito considera incompleta essa visão darwinista clássica da natureza. Hoje em dia há uma compreensão geral de que a natureza, longe de ser uma guerra infinita entre as espécies, é uma infinita dança de diplomacia. E a diplomacia é em grande parte questão de linguagem.

A natureza parece maximizar a cooperação mútua e a coordenação mútua de objetivos. Ser indispensável aos organismos com os quais compartilhamos um ambiente é a estratégia que garante a reprodução bem-sucedida e a sobrevivência contínua. É uma estratégia onde a comunicação e a sensibilidade ao processamento de sinais são de importância vital. Essas são habilidades de linguagem.

Só agora começa a ser estudada com atenção a idéia de que a natureza pode ser um organismo cujos componentes interconectados agem uns sobre os outros e se comunicam mutuamente através da liberação de sinais químicos no ambiente. Mas a natureza tende a agir com uma certa economia; uma vez desenvolvida, uma determinada resposta evolucionária a um problema será aplicada repetidamente em situações onde seja adequada.

O Outro Transcendente

 

Se os alucinógenos funcionam como mensageiros químicos entre espécies, então a dinâmica da relação íntima entre primata e planta alucinógena é uma dinâmica de transferência de informações entre uma espécie e outra. Onde não existem alucinógenos vegetais, essas transferncias de informação acontecem muito mais devagar, mas na presença dos alucinógenos uma cultura é rapidamente apresentada a informações cada vez mais novas, a dados sensórios e a comportamentos, e assim é elevada a estágios cada vez mais altos de auto-reflexão. Chamo isso de contato com o Outro Transcendente, mas este é apenas um rótulo, e não uma explicação.

De certo ponto de vista, o Outro Transcendente é a natureza percebida como coisa viva e inteligente. De outro, ele é a união espantosamente estranha de todos os sentidos com a memória do passado e a antecipação do futuro. O Outro Trascendente é o que encontramos nos alucinógenos poderosos. É o ponto crucial do Mistério de existirmos, tanto como espécie quanto como indivíduos. O Outro Transcendente é a Natureza sem sua máscara alegremente confortadora de espaço comum, tempo comum e causalidade comum.

Claro que não é fácil imaginar esses elevados estágios de auto-reflexão. Porque quando procuramos fazer isso estamos agindo como se esperássemos que a linguagem, de algum modo, abarcasse algo que, no presente, está além da linguagem, algo translinguístico. A psilocibina, o alucinógenos que só ocorre nos cogumelos, é um instrumento eficaz nessa situação. O principal efeito sinergístico da psilocibina parece estar, em última instância, no âmbito da linguagem. Ela exercita a verbalização; dá força à articulação; transmuta a linguagem em algo visível. Ela poderia ter provocado um impacto sobre o aparecimento súbito da consciência e da linguagem usada pelos primeiros homens. Nós podemos, literalmente, ter comido o caminho para a consciência mais elevada. Nesse contexto é importante observar que os mais poderoso mutagenes que existem no ambiente natural ocorrem nos bolores e nos fungos. Os cogumelos e os grãos de cereal infectados por bolores podem ter tido grande influência sobre as espécies animais, inclusive os primatas, evoluindo nas pastagens

O Alimento dos Deuses – Terence Mckenna (pt 2)

Trechos do primeiro capítulo: Xamanismo: Arrumando o Palco

Um mundo feito de linguagem

As evidências reunidas em milênios de experiência xamânica dizem que, de certo modo, o mundo é na verdade feito de linguagem. Ainda que contrariando as expectativas da ciência moderna, essa proposição radical concorda com boa parte do atual pensamento linguístico. “A revolução linguística do século XX”, segundo a antropóloga Misia Landau, da Boston University, “é o reconhecimento de que a linguagem não é apenas um instrumento para a comunicação de idéias sobre o novo mundo, mas, em primeiro lugar, uma ferramenta para dar vida ao mundo. A realidade não é simplesmente “experimentada” ou “refletida” na linguagem; em vez disso é, de fato, produzida pela linguagem.”

Segundo o ponto de vista do xamã psicodélico, o mundo parece existir mais na natureza de uma expressão vocal ou de uma narrativa do que relacionado de qualquer modo aos léptons e bárions ou carga e spin dos quais falam nossos sumos sacerdotes, os físicos. Para o xamã, o cosmo é uma narrativa que se torna real enquanto é contada e enquanto conta a si própria. Essa perspectiva implica que a imaginação humana pode controlar o leme de estar no mundo. A libertdade, a responsabilidade pessoal e uma consciência humilde do verdadeiro tamanho e da inteligência do mundo combinam-se neste ponto de vista para torná-lo uma base adequada a uma verdadeira vida neo-arcaica. Uma reverência pelos poderes da linguagem e da comunicação e uma imersão neles são as bases do caminho xamânico.

É por isso que o xamã é o ancestral remoto do poeta e do artista. Nossa necessidade de fazer parte do mundo parece exigir que nos expressemos através da atividade criativa. As fontes definitivas dessa criatividade estão ocultas no mistério da linguagem. O êxtase xamânico é um ato de rendição que autentica o Eu individual e aquilo a que ele se rende, o mistério do ser. Como nossos mapas da realidade são determinados pelas circunstâncias atuais, tendemos a perder a consciência dos padrões mais amplos de tempo e espaço. Somente através do acesso ao Outro Transcendente podem ser vislumbrados esses padrões de tempo e espaço e nosso papel dentro deles. O xamanismo procura esse ponto de vista mais alto, que é alcançado através de um feito de perícia linguística. Um xamã é alguém que conseguiu uma visão dos princípios e dos fins de todas as coisas, e que consegue comunicar essa visão. Para o pensador racional isso é inconcebível, mas as técnicas do xamanismo são dirigidas para esse objetivo, e essa é a fonte do seu poder. Dentre as técnicas do xamã, a mais importante é o uso de alucinógenos vegetais, repositórios da gnose vegetal vive que se encontra – agora praticamente esquecida – em nosso passado.

Uma realidade dimensional mais elevada

Ao entrar no domínio da inteligência vegetal o xamã ganha, de certo modo, acesso privilegiado a uma perspectiva dimensional mais elevada sobre a experiência. O bom senso presume que, apesar da linguagem estar sempre evoluindo, a matéria-prima daquilo que a linguagem expressa é relativamente constante e comum a todos os seres humanos. Além disso, também sabemos que a língua hopi não tem tempos ou conceitos de passado ou futuro. Como, então, o mundo hopi pode ser igual ao nosso? E os inuítes não tem o pronome pessoal da primeira pessoa. Como, então, o mundo deles pode ser igual ao nosso?

As gramáticas das línguas – suas regras internas – têm sido cuidadosamente estudadas. Ainda assim, muito pouca atenção foi dedicada a examinar o modo como a linguagem cria e define os limites da realidade. Talvez a linguagem seja mais adequadamente compreendida quando pensadas em termos de magia, já que a postura básica da magia é de que o mundo é feito de linguagem.

Se a linguagem é aceita como primeiro elemento do conhecimento, então nós, do ocidente, fomos tristemente enganados. Somente as abordagens xamânicas poderão nos dar as respostas que achamos mais interessantes: quem somos, de onde viemos e para que destino estamos nos dirigindo? Essas perguntas nunca foram mais importantes do que hoje em dia, quando as evidências do fracasso da ciência em nutrir a alma da humanidade estão ao nosso redor. O nosso tédio não é somente um tédio temporal do espírito; se não tivermos cuidado, nossa condição será uma condição temporal do corpo e do espírito coletivos.

O preconceito racional, mecanicista e antiespiritual de nossa cultura tornou impossível apreciarmos a estrutura mental do xamã. Somos cultural e linguisticamente cegos ao mundo das forças e interconexões que permanecem claramente visíveis aos que mantiveram o relacionamento arcaico com a natureza.

É claro que quando cheguei à Amazônia, vinte anos atrás, não sabia de nada disso. Como a maioria dos ocidentais, acreditava que a magia era um fenômeno dos ingênuos e primitivos, que a ciência poderia dar uma explicação para o funcionamento do mundo. Nessa posição de ingenuidade intelectual, encontrei pela primeira vez cogumelos contendo psilocibina em San Augustine, no alto Magdalena, ao sul da Colômbia. Mais tarde, e não muito distante dali, em Florencia, também encontrei e usei infusões visionárias feitas com cipós banisteriopsis, o yagé ou ayahuasca das lendas underground dos anos 60.

As experiências que tive durante essas viagens foram pessoalmente transformadoras e, mais importante, me apresentaram a uma classe de experiências vitais para a restauração do equilíbrio entre nossos mundos social e ambiental.

Compartilhei da mente grupal gerada nas sessões de visões dos ayahuasqueros. Vi os dardos mágicos de luz vermelha que um xamã pode mandar contra outro. Porém, mais reveladores do que os feitos paranormais dos magos e dos curandeiros espirituais foram as riquezas interiores que descobri em minha mente no auge dessas experiências. Ofereço meu relato como uma espécie de testemunho, um Homem Comum; se essas experiências aconteceram comigo, elas podem fazer parte da experiência geral dos homens e das mulheres em todo o mundo.

Um memento xamânico

Minha educação xamânica não foi especial. Milhares de pessoas de um modo ou de outro, concluíram que as plantas psicodélicas e as instituições xamânicas implicadas por seu uso são instrumentos profundos para a exploração das profundezas internas da psique humana. Agora os xamãs psicodélicos constituem uma subcultura mundial e crescente de exploradores hiperdimensionais, muitos dos quais são cientificamente sofisticados. Uma paisagem começa a entrar em foco, uma região ainda pouco vislumbrada, mas que vem surgindo, chamando a atenção do discurso racional – e possivelmente ameaçando confundi-lo. Anida podemos nos lembrar de como devemos nos comportar, de como assumir o lugar correto no padrão de conexão, na teia contínua de todas as coisas.

A compreensão de como alcançar esse equilíbrio depende das culturas esquecidas e maltratadas que vivem nas florestas úmidas e nos desertos do Terceiro Mundo e nas reservas para onde as culturas dominadoras forçam os povos aborígenes. A gnose xamânica pode estar morrendo; certamente está mudando. Mas os alucinógenos vegetais que são sua origem, origem da mais antiga religião humana, continuam como uma fonte que jorra, refrescante como sempre. O xamanismo é vital e real devido ao encontro do indivíduo com o desafio e o espanto, o êxtase e a exaltação induzidos pelas plantas alucinógenas.

Meus contatos com o xamanismo e os alucinógenos na Amazônia me convenceram de sua importância salvadora. Depois de me convencer, decidi filtrar as várias formas de ruído linguístico, cultural, farmacológico e pessoal que obscureciam o Mistério. Tive a esperança de destilar a essência do xamanismo, de descobrir o esconderijo da Epifania. Quis ver além dos véus de sua dança sinuosa. Como um voyeur cósmico, sonhei confrontar a beleza nua.

Um cínico do tipo dominador poderia se contentar em rejeitar isso como ilusão da juventude romântica. Ironicamente, já fui este cínico. Sentia a loucura da busca. Sabia das dificuldades. “O Outro? A beleza platônica nua? Você deve estar brincando!”

E devo admitir que houve muitas desventuras loucas pelo caminho. “Devemos nos tornar os loucos de Deus”, falou uma vez um entusiasmado amigo zen, querendo dizer: “Vai fundo.” Buscar e encontrar era um método que funcionara para mim no passado. Eu sabia que na Amazônia ainda sobreviviam práticas xamânicas baseadas no uso de plantas alucinógenas e estava determinado a confirmar minha intuição de que por trás desse fato havia um grande segredo não descoberto.

A realidade superou a apreensão. O rosto manchado da velha leprosa ficou ainda mais horroroso quando as chamas da fogueira saltaram subitamente no momento em que ela colocou mais lenha. Na semi-escuridão por trás da mulher pude ver o guia que me trouxera a esse lugar sem nome no rio Cumala. Antes, no bar da cidade junto ao rio, este encontro casual com o barqueiro disposto a me levar para ver a milagrosa feiticeira do ayahuasca, lendária do local, pareceu uma grande ocasião para uma história. Agora, após três dias de viagem pelo rio e de meio dia lutando por trilhas tão enlameadas a ponto de ameaçar arrancar as botas a cada passo, eu não tinha tanta certeza.

Neste ponto, o objetivo original de minha busca – o autêntico ayahuasca da floresta, que diziam ser muito diferente da lavagem oferecida pelos charlatães do mercado – praticamente não tinha mais interesse para mim.

– Tomé, caballero! – cacarejou a velha enquanto me passava um copo cheio do líquido negro e espesso. Sua superfície tinha o brilho de óleo de motor.

Ela deve ter crescido representando esse papel, pensei enquanto bebia. O líquido era quente e salgado, áspero e agridoce. Tinha o gosto do sangue de uma coisa velha, muito velha. Tentei não pensar no quanto estava à mercê daquelas pessoas estranhas. Mas na verdade minha coragem estava fraquejando. Os olhos zombeteiros de Doña Catalina e do guia tinham ficado frios e parecidos com olhos de louva-deus. Uma onda de sons de insetos passando rio acima pareceu respingar a escuridão com cacos de luz amolada. Senti os lábios ficando dormentes.

Tentando não parecer tão pesado quanto estava, fui até minha rede e deitei de costas. Por trás de meus olhos fechados havia um rio de luz magenta. Ocorreu-me, numa espécie de pirueta mental, que devia haver um helicóptero pousando sobre a cabana, e esta foi a minha impressão.

Quando recuperei a consciência, parecia estar surfando no tubo de uma onda de informações transparentes e iluminadas, com dezenas de metros de altura. A empolgação deu lugar ao terror quando percebi que minha onda acelerava em direção a um litoral rochoso. Tudo desapareceu no caos trovejante de onda informacional indo de encontro à terra virtual. Mais tempo perdido e em seguida a impressão de ser um marinheiro naufragado, lançado a uma praia tropical. Sentia que estava apertando o rosto contra a areia quente. Tenho sorte de estar vivo! Ou será que estou vivo para ter sorte? Comecei a rir.

Nesse ponto a velha começou a cantar. Não uma canção comum, e sim um icaro, uma canção mágica de cura, que em nosso estado intoxicado e extático mais parece um peixe de recife tropical ou uma encharpe de seda com muitas cores do que um desempenho vocal. A canção é uma manifestação visível de poder, envolvendo-nos e deixando-nos seguros.

O xamanismo e mundo arcaico perdido

O xamanismo foi maravilhosamente definido por Mircea Eliade como “as técnicas arcaicas do êxtase”. O uso que Eliade faz do termo “arcaico” é importante aqui porque nos alerta para o papel que o xamanismo deve representar em qualquer renascimento autêntico das formas arcaicas vitais de ser, viver e compreender. O xamã consegue entrar num mundo que está oculto para quem vive na realidade comum. Nesta outra dimensão se escondem tanto poderes úteis como malévolos. Suas regras não são as regras de nosso mundo; parecem mais as regras que atuam nos mitos e nos sonhos.

Os curandeiros xamânicos insistem na existência de um Outro inteligente em alguma dimensão próxima. A existência de uma ecologia de almas ou uma inteligência não encarnada não é uma coisa com a qual a ciência possa se atracar e em seguida imergir com suas premissas intactas. Particularmente se esse Outro tem feito parte da cultura terrestre há muito tempo, presente porém invisível, compartilhando um segredo global.

Os textos de Carlos Castaneda e de seus imitadores resultaram numa coqueluche de “consciência xamânica” que, mesmo confusa, transformou o xamã de uma figura periférica na literatura da antropologia cultural, no modelo colocado pela mídia para a entrada na sociedade neo-arcaica. A despeito da atração que o xamanismo provoca sobre a imaginação popular, os fenômenos paranormais que ele presume serem reais e verdadeiros nunca foram levados a sério pela ciência moderna, ainda que os cientistas, num caso raro de deferência, tenham chamado psicólogos e entropólogos para analisar o xamanismo. Essa cegueira em relação ao mundo paranormal criou um ponto cego intelectual em nossa visão normal de mundo. Somos completamente inconscientes do mundo mágico do xamã. Ele é simplesmente mais estranho do que podemos supor.

Considere um xamã que use plantas para conversar com um mundo invisível habitado por inteligências não-humanas. Pareceria perfeito para manchete de um tablóide sensacionalista. Entretanto, os antropólogos registram essas coisas o tempo todo e ninguém ergue uma sobrancelha. Isso porque tendemos a presumir que o xamã interpreta sua experiência da intoxicação como comunicação com espíritos ou ancestrais. A implicação é que você ou eu interpretaríamos essa mesma experiência de modo diferente, e que portanto não é de se espantar que um campesino pobre e desinformado ache que estava falando com um anjo.

Por mais xenofóbica que seja essa atitude, ela sugere um bom procedimento operacional, já que o que se diz é: “Mostre as técnicas de seu êxtase e julgarei por mim mesmo a sua eficácia.” Eu fiz isso. Essa é a minha credencial para as teorias e opiniões que ofereço. A princípio fiquei aterrorizado pelo que descobri: o mundo do xamanismo, dos aliados, dos alteradores de forma e do ataque mágico é muito mais real do que as construções da ciência jamais poderão ser, porque esses espíritos ancestrais e seu mundo podem ser vistos e sentidos, podem ser conhecidos, na realidade não-habitual.

Uma coisa profunda, inesperada, quase inimaginável nos espera se levarmos nossas atenções investigativas para o fenômeno dos alucinógenos vegetais xamânicos. Os povos que estão fora da história ocidental, que continuam na época do sonho da pré-escrita, mantiveram acesa a chama de um mistério tremendo. Seria humildade admitir isso e aprender com eles, mas tudo isso faz parte do renascimento arcaico.

Daí não se deve deduzir que devemos ficar de queixo caído diante das realizações dos “primitivos” numa outra versão da Dança do Selvagem Nobre. Todo mundo que já fez trabalho de campo sabe dos choques frequentes entre nossas explicações sobre como o “verdadeiro povo das florestas úmidas” deve se comportar e as realidades da vida tribal cotidiana. Ninguém compreende ainda a misteriosa inteligência que há nas plantas ou as implicações da idéia de que a natureza se comunica numa linguagem química básica, inconsciente porém profunda. Ainda não compreendemos como os alucinógenos transformam a mensagem inconsciente em revelações contempladas pela mente consciente. Enquanto afiavam suas intuições e seus sentidos, usando as plantas que estivessem à mão para aumentar sua vantagem adaptativa, os povos arcaicos tinham pouco tempo para a filosofia. Até hoje ainda não se manifestaram totalmente as implicações da existência dessa mente descoberta pelos povos xamânicos dentro da natureza.

Enquanto isso, silenciosamente e fora da história, o xamanismo prosseguia seu diálogo com o mundo invisível. O legado do xamanismo pode atuar como uma força estabilizadora destinada a redirecionar nossa consciência para o destino coletivo da biosfera. A fé xamânica é de que a humanidade tem aliados. Existem forças favoráveis à nossa luta para nascermos como espécie inteligente. Mas são forças silenciosas e tímidas; devem ser procuradas não na chegada de frotas alienígenas no céu da terra, e sim aqui perto, na solidão dos locais ermos, junto às cachoeiras; e, sim, nas pastagens agora tão raras sob nossos pés.

O Alimento dos Deuses – Terence Mckenna (pt 1)

Pretendo estar postando uma seqüência de alguns trechos que estou digitalizando do livro “O Alimento dos Deuses” do Terence McKenna, lançado em 1992. Considero um livro extremamente importante para qualquer um que se interesse pelos assuntos ligados a enteógenos, drogas e evolução humana. É uma verdadeira obra de arte. Vou começar pela própria Introdução do livro.

 

Introdução: Manifesto para um novo pensamento sobre drogas

Há um espectro assombrando a cultura planetária: o espectro das drogas. A definição de dignidade humana, criada pela Renascença e elaborada nos valores democráticos da moderna civilização ocidental, parece a ponto de se dissolver. A grande mídia nos informa a todo volume que a capacidade humana para o comportamento obsessivo e o vício realizou um casamento satânico com a farmacologia moderna, com o marketing, com o transporte a grandes velocidades. Formas anteriormente obscuras de utilização de substâncias químicas agora competem livremente num mercado global bastante desregulamentado. Governos e nações do terceiro Mundo são mantidos escravos de entidades legais e ilegais que promovem o comportamento obsessivo.

Esta situação não é nova, mas está ficando cada vez pior. Até recentemente os cartéis internacionais das drogas eram criações obedientes de governos e serviços secretos que buscavam fontes de dinheiro “invisível” com o qual financiar seu próprio tipo de comportamento obsessivo institucionalizado. Atualmente esses cartéis das drogas evoluíram, através do crescimento sem precedentes da demanda por cocaína, transformando-se em elefantes desgarrados diante de cujos poderes até mesmo seus criadores se sentem inquietos.

Somos assediados pelo triste espetáculo das “guerras das drogas” promovidas por instituições governamentais que geralmente são paralisadas pela letargia e ineficiência ou estão em evidente conluio com os cartéis internacionais das drogas – que essas instituições prometem publicamente destruir.

Nenhuma luz poderá ser lançada sobre essa situação de uso e abuso pandêmico das drogas se não fizermos uma dura reavaliação de nossa situação atual e um exame de alguns padrões antigos, praticamente esquecidos, de experiência e comportamento relacionados às drogas. A importância dessa tarefa não pode ser subestimada. Sem a menor dúvida a auto-administração de substâncias psicoativas, tanto legais quanto ilegais, cada vez mais fará parte do desdobramento futuro de uma cultura global.

Uma reavaliação dolorosa

Qualquer reavaliação do uso que fazemos das substâncias deve começar com a noção do hábito, “uma tendência ou prática estabelecida”. Familiares, repetitivos e geralmente não examinados, os hábitos são simplesmente as coisas que fazemos. Segundo um velho ditado, “as pessoas são criaturas de hábito”. A cultura é em grande parte questão de hábito, aprendido com os pais e as pessoas ao nosso redor, e depois lentamente modificados pelas mudanças nas condições e por inovações inspiradas.

Mas, por mais lentas que sejam essas modificações culturais, a cultura apresenta um espetáculo de novidade violenta e contínua quando comparada com a modificação lentíssima das espécies e dos ecossistemas. Se a natureza representa um princípio de economia, a cultura certamente deve exemplificar o princípio de inovação através do excesso.

Quando os hábitos nos consomem, quando nossa devoção a eles excede as normas culturalmente definidas, nós os chamamos de obsessões. Nesses casos sentimos que a dimensão unicamente humana do livre-arbítrio foi violada de algum modo. Podemos ficar obcecados com quase tudo: com um padrão de comportamento como o de ler jornal matutino ou com objetivos materiais (o colecionador), com terras e propriedades (o construtor de impérios) ou com o poder sobre outras pessoas (o político).

Enquanto muitos de nós podem ser colecionadores, poucos têm a oportunidade de se entregar às obsessões a ponto de se tornarem construtores de impérios ou políticos. A obsessões das pessoas comuns tendem a se concentrar no aqui e agora, no âmbito da gratificação imediata através do sexo, da comida e das drogas. Uma obsessão com os constituintes dos alimentos e das drogas (também chamados de metabólitos) é rotulada de vício.

Os vícios e as obsessões são exclusivos dos seres humanos. Sim, existem amplas evidências relatadas sobre as preferências por estados intoxicados entre elefantes, chimpanzés e algumas borboletas. Mas, assim como acontece quando comparamos as capacidades lingüísticas de chimpanzés e golfinhos com a fala humana, vemos que os comportamentos desses animais são enormemente diferentes dos comportamentos humanos.

Hábito. Obsessão. Vício. Essas palavras são marcos de sinalização em um caminho de livre arbítrio decrescente. A negação do poder do livre-arbítrio está implícita na noção de vício, e em nossa cultura os vícios são levados à sério – especialmente os vícios exóticos ou não-familiares. No século XIX o vício do ópio era o “demônio de ópio”, uma descrição que trazia de volta a idéia de uma possessão demoníaca levada a cabo por uma força externa. No século XX a idéia do viciado como uma pessoa possuída foi trocada pela noção do vício como doença. E com a noção do vício como doença o papel do livre-arbítrio finalmente é reduzido até desaparecer. Afinal de contas, não somos responsáveis pelas doenças que podemos herdar ou desenvolver.

Mas hoje em da a dependência humana às substâncias químicas representa um papel mais consciente na formação e manutenção dos valores culturais do que em qualquer época anterior.

Desde meados do século XIX, e com velocidade e eficiência cada vez maiores, a química orgânica vem colocando nas mãos de pesquisadores, médicos e – em última instância – qualquer pessoa uma cornucópia infinita de drogas sintéticas. Essas drogas são mais poderosas, mais eficazes, de maior duração e, em alguns casos, muitas vezes mais viciantes do que seus parentes naturais. (Uma exceção é a cocaína, que, apesar de natural, quando refinada, concentrada e injetada torna-se particularmente destrutiva)

O surgimento de uma cultura global levou à ubiqüidade de informações sobre as plantas recreacionais, afrodisíacas, estimulantes, sedativas e psicodélicas que foram descobertas por seres humanos inquisitivos vivendo em partes remotas e anteriormente desconhecidas do planeta. Ao mesmo tempo em que esta torrente de informações botânicas e etnográficas chegava à sociedade ocidental, enxertando hábitos de outras culturas dentro da nossa e proporcionando-nos mais escolhas do que nunca, foram dados grandes passos na síntese de moléculas orgânicas complexas e na compreensão da mecânica molecular dos genes e da hereditariedade. Essas novas idéias e tecnologias estão contribuindo para um conhecimento muito diferente sobre a engenharia psicofarmacológica. Drogas projetadas em laboratório como o MDMA, o u Ecstasy, e os esteróides anabólicos usados por atletas e adolescentes para estimular o desenvolvimento dos músculos são arautos de uma era de intervenção farmacológica cada vez mais freqüente e eficaz sobre a nossa aparência, nosso desempenho e nosso sentimentos.

A idéia de regulamentar num nível planetário primeiro centenas, e depois milhares de substâncias sintéticas facilmente produzidas, intensamente procuradas, porém ilegais, é estarrecedora para qualquer pessoa que tenha esperança de um futuro mais aberto e menos regimentado.

Um renascimento arcaico

Este livro irá explorar a possibilidade de um renascimento do arcaico – ou da atitude pré-industrial e pré-alfabetizada com relação à comunidade, ao uso de substâncias e à natureza; uma atitude que serviu bem e por muito tempo aos nossos ancestrais nômades pré-históricos, antes do surgimento do estilo de cultura que chamamos de “ocidental”. O termo arcaico refere-se ao paleolítico superior, um período entre sete e dez mil anos atrás, precedendo à intervenção e à disseminação da agricultura. O arcaico foi um tempo de pastoreio nômade e de igualitarismo, de uma cultura baseada na criação de gado, no xamanismo e no culto à Deusa.

Organizei a discussão numa ordem mais ou menos cronológica, com as últimas seções, mais orientadas para o futuro, retomando e revendo os temas arcaicos dos primeiros capítulos. A argumentação segue de acordo com as linhas de progresso de uma peregrinação farmacológica. Assim chamei as quatro sessões do livro de “Paraíso”, “Paraíso Perdido”, “Inferno” e, espero que sem ser exageradamente otimista, “Paraíso Reconquistado”. Um glossário de termos especiais é dado no final do livro.

Obviamente, não podemos continuar pensando como antigamente sobre o uso de drogas. Sendo uma sociedade global, devemos encontrar uma nova imagem orientadora para nossa cultura, uma imagem que unifique as aspirações da humanidade com as necessidades do planeta e do indivíduo. Uma análise da imperfeição existencial que nos leva a formar relacionamentos de dependência e vício com plantas e drogas mostrará que, no início da história, perdemos alguma coisa preciosa, cuja ausência nos tornou doentes de narcisismo. Somente uma recuperação do relacionamento que des

envolvemos com a natureza através do uso de plantas psicoativas antes da queda na história pode nos oferecer a esperança de um futuro humano e aberto.

Antes de nos comprometermos irrevogavelmente com a quimera de uma cultura livre de drogas, comparada ao preço de um abandono completo dos ideais de uma sociedade planetária livre e democrática, devemos nos fazer perguntas duras: por que, como espécie, somos tão fascinados por estados alterados de consciência? Qual tem sido o impacto deles sobre nossas aspirações estéticas e espirituais? O que perdemos ao negar a legitimidade do impulso de cada indivíduo para o uso de substâncias visando experimentar pessoalmente o transcedental e o sagrado? Minha esperança é de que a resposta a essas perguntas vai nos forçar a enfrentar as conseqüências de negar a dimensão espiritual da natureza, de ver a natureza como nada mais que um “recurso” a ser dominado e esgotado. A discussão bem-informada sobre esses temas não dará conforto a quem é obcecado pelo controle, não dará conforto ao fundamentalismo religioso ignorante, a qualquer forma de fascismo.

A pergunta de como, enquanto sociedade e indivíduos, nos relacionamos com as plantas psicoativas no final do século XX, levanta uma questão mais ampla: como, com o passar do tempo, fomos moldados pelas alianças mutáveis que formamos e rompemos com vários membros do mundo vegetal enquanto caminhávamos pelo labirinto da história? Esta é uma questão que irá nos ocupar detalhadamente nos próximos capítulos.

O grande mito de nossa cultura se inicia no Jardim do Éden, quando foi comido o fruto da Árvore do Conhecimento. Se não aprendermos com o passado, essa história pode terminar com um planeta intoxicado, suas florestas sendo apenas uma lembrança, sua coesão biológica despedaçada, nosso legado um deserto de ervas daninhas. Se deixamos de perceber alguma coisa em nossas tentativas anteriores de compreender nossas origens e nosso lugar na natureza, será que agora estamos em condições de olhar para trás e compreender não somente o passado, mas também o futuro, de um modo inteiramente novo? Se pudermos recuperar o sentimento perdido da natureza como um mistério vivo poderemos ter confiança em novas perspectivas na aventura cultural que certamente nos espera adiante. Temos a oportunidade de nos afastar do triste niilismo histórico que caracteriza o reino de nossa cultura profundamente patriarcal e dominadora. Estamos em posição de recuperar a avaliação arcaica de nossa relação praticamente simbiótica com as plantas psicoativas como uma fonte de idéias e coordenação fluindo do mundo vegetal para o mundo humano.

O mistério de nossa consciência e de nosso poderes de auto-reflexão está de algum modo ligado a este canal de comunicação com a mente invisível que os xamãs afirmam ser o mundo vivo da natureza. Para os xamãs e as culturas xamânicas a exploração desse mistério sempre foi uma alternativa crível à vida numa cultura materialista confinadora. Nós, que pertencemos às democracias industriais, podemos escolher explorar agora essas dimensões estranhas ou podemos esperar até que a destruição cada vez maior do planeta vivo torne irrelevante qualquer outra exploração.

Um novo manifesto

Portanto chegou o tempo, no grande discurso natural que é a história das idéias, de repensar totalmente nosso fascínio pelo uso habitual das plantas psicoativas e fisioativas. Temos de aprender com os excessos do passado, especialmente da década de 1960, mas não podemos simplesmente advogar o “Diga não”, do mesmo modo que não podemos advogar o “Experimente, você vai gostar”. Nem podemos apoiar uma visão que deseje dividir a sociedade entre usuários e não-usuários. Precisamos de uma abordagem ampla a essas questões, uma abordagem que envolva as implicações evolucionárias e históricas mais profundas.

A influência da dieta em induzir mutações nos primeiros humanos e o efeito de metabólitos exóticos na evolução de sua neuroquímica e sua cultura ainda é um território não estudado. A adoção de uma dieta onívora por parte dos primeiros hominídeos e a descoberta do poder de certas plantas foram fatores decisivos para afastá-los da corrente da evolução animal, levando-os para a maré acelerada da linguagem e da cultura. Nossos ancestrais remotos descobriram que certas plantas, quando auto-administradas, suprimem o apetite, diminuem a dor, proporcionam jorros de energia súbita, conferem imunidade contra patogenes e sinergizam atividades cognitivas. Essas descobertas levaram-nos à longa jornada para a auto-reflexão. Assim que nos tornamos onívoros usuários de ferramentas, a própria evolução de um processo de modificação vagarosa para uma rápida definição de formas culturais através da elaboração de rituais, linguagens, escrita, capacidades mnemônicas e tecnologia.

Essas mudanças imensas ocorreram em grande parte como resultado das sinergias entre os seres humanos e as várias plantas com as quais eles interagiram e co-evoluíram. Uma avaliação honesta do impacto das plantas sobre as bases das instituições humanas descobriria que elas são absolutamente fundamentais. No futuro, a aplicação de soluções estáveis botanicamente inspiradas, como o crescimento zero de população, a extração do hidrogênio da água do mar e os programas maciços de reciclagem podem ajudar a reorganizar nossas sociedades e nosso planeta em termos mais holísticos, conscientes do meio ambiente, neo-arcaicos.

A supressão do natural fascínio humano com relação aos estados alterados de consciência e a atual situação de perigo por que passa toda a vida na terra estão íntima e causalmente conectadas. Quando suprimos o acesso ao êxtase xamânico represamos as águas refrescantes da emoção que flui de um relacionamento profundamente ligado, quase simbiótico, com a terra. Em conseqüência disso se desenvolvem e se mantêm os estilos sociais mal-adaptados que encorajam a superpopulação, o mau uso dos recursos e a intoxicação ambiental. Nenhuma cultura na terra é tão profundamente narcotizada, em termos de se acostumar às conseqüências do comportamento mal-adaptado, quanto o ocidente industrializado. Buscamos uma atitude tranqüila numa atmosfera surreal de crise cada vez maior e contradições irreconciliáveis.

Como espécie, precisamos reconhecer a profundidade de nosso dilema histórico. Continuaremos a jogar com um baralho pela metade enquanto continuarmos a tolerar os cardeais do governo e da ciência que pretendem ditar onde a curiosidade humana pode se concentrar e onde não pode. Essas restrições à imaginação humana são aviltantes e absurdas. O governo não somente restringe a pesquisa sobre substâncias psicodélicas que poderiam talvez produzir valiosas idéias psicológicas e médicas; ele pretende impedir também seu uso religioso e espiritual. O uso religioso das plantas psicodélicas é uma questão de direitos civis; sua restrição é a repressão de uma legítima sensibilidade religiosa. De fato, não é uma sensibilidade religiosa que está sendo reprimida, mas a sensibilidade religiosa, uma experiência da religio baseada no relacionamento entre plantas e seres humanos que existe desde muito antes do advento da história.

Não mais podemos adiar uma reavaliação honesta dos verdadeiros custos e benefícios do uso habitual das plantas e das drogas versus os verdadeiros custos e benefícios da supressão de seu uso. Nossa cultura global corre o risco de sucumbir a um esforço orwelliano de acabar com o problema através do terrorismo militar e policial contra os consumidores de drogas em nossa população e os produtores de drogas no Terceiro Mundo. Essa resposta repressiva é alimentada em grande parte por um medo não examinado que é produto de desinformação e ignorância histórica.

Preconceitos culturais profundamente arraigados explicam porque a mente ocidental torna-se subitamente ansiosa e repressiva com relação às drogas. As mudanças de consciência induzidas por substâncias revelam dramaticamente que nossa vida mental tem fundamentos físicos. Assim, as drogas psicoativas desafiam a suposição cristã da da inviolabilidade e do status ontológico especial da alma. De modo semelhante, elas desafiam a idéia moderna do ego, de sua inviolabilidade e de suas estruturas de controle. Resumindo, os contatos com as plantas psicodélicas questionam toda a visão de mundo da cultura dominadora.

Abordaremos frequentemente esse tema do ego e da cultura dominadora nesse reexame da história. De fato, o terror que o ego sente ao contemplar a dissolução de fronteiras entre o Eu e o mundo não está somente por trás da supressão dos estados alterados da consciência, mas, de modo mais geral, explica a supressão do feminino, do estrangeiro e exótico e das experiências transcedentais. Nos tempos pré-históricos, porém pós-arcaicos, de cerca de 5000 a 3000 a.C., a supressão da sociedade igualitária pelos invasores patriarcais arrumaram o cenário para a supressão da investigação experimental e aberta da natureza, feita pelos xamãs. Em sociedades altamente organizadas essa tradição arcaica foi substituída por uma tradição do dogma, da politicagem clerical, das guerras e, finalmente, dos valores “racionais e científicos” ou dominadores.

Até aqui usei sem explicação os termos “igualitários” e “dominadores” para falar de estilos de cultura. Devo essas expressões úteis a Riane Eisler e sua importante revisão da história no livro The Chalice and the Blade. Eisler desenvolveu a noção de que os modelos de sociedade “igualitária” precederam e mais tarde competiram e foram oprimidos pelas formas de organização social “dominadora”. As culturas dominadoras são hierárquicas,, paternalistas, materialistas e de domínio masculino. Eisler acredita que a tensão entre as organizações igualitárias e dominadoras e a superexpressão do modelo dominador são responsáveis pelo nosso afastamento da natureza, de nós mesmos e ins dos outros.

Eisler escreveu uma brilhante síntese do surgimento da cultura no antigo Oriente Próximo e do desdobramento do debate político relativo à feminização da cultura e à necessidade de superar padrões de domínio masculino para a criação para a criação de um futuro viável. Sua análise política dos sexos eleva o nível do debate para além dos que saudaram estridentemente um ou outro “matriarcado” ou “patriarcado” antigo. The Chalice and the Blade introduz a noção de “sociedades igualitárias” e “sociedades dominadoras” e usa os registros arqueológicos para argumentar que, sobre vastas áreas e durante muitos séculos, as sociedades igualitárias do Oriente Médio antigo não tinham guerras nem levantes. A guerra e o patriarcado chegaram com o aparecimento de valores dominadores.

A herança dominadora

Nossa cultura, auto-intoxicada pelos subprodutos venenosos da tecnologia e pela ideologia egocêntrica, é a infeliz herdeira da atitude dominadora que diz que a alteração da consciência através do uso de plantas ou de substâncias é errada, onanística e perversamente anti-social. Irei argumentar que a supressão da gnose xamânica, com sua confiança e insistência na dissolução extática do ego, roubou-nos o significado da vida e tornou-nos inimigos do planeta, de nós mesmos e de nossos netos. Estamos matando o planeta para manter intactas as suposições equivocadas do estilo cultural dominador do ego.

É tempo de mudança.

Sociedade Psicodélica – Terence Mckenna

por Terence McKenna

Baseado em uma fala dada em um encontro da ARUPA
no Instituto Esalen em junho de 1984.

mckenna1Eu quero falar esta noite a respeito da noção de uma sociedade psicodélica. Quando eu falei em Santa Bárbara em uma conferência sobre psicodélicos em maio de 1983 minhas lentes de contato falharam em um ponto crítico na minha leitura e eu simplesmente tive que improvisar. Mais tarde quando eu ouvi a fita da gravação eu ouvi a frase “sociedade psicodélica.” Eu nunca usei este termo conscientemente em uma conversa. Mas porque eu havia dito, e porque havia acontecido uma ressonância através das pessoas que estavam lá, eu comecei a pensar sobre isso e esta noite irei especular sobre o que isto pode significar para nós.

Quando eu penso em sociedade psicodélica, esta noção implica em criar uma sociedade que vive à luz do Mistério da Existência. Em outras palavras, problemas e soluções deveríam ser retiradas de seu papel central nas organizações sociais, e Mistérios – Mistérios irredutíveis – deveriam estar em seu lugar. Nos anos 20 o entomologista britânico J.B.S. Haldane disse em um ensaio, “O universo pode não ser apenas mais estranho como supomos; ele pode ser mais estranho do que nós podemos supor.”

Eu sugiro que assim como nós olhamos para trás em cada ápice da civilização na história humana – seja ela Maia, ou Greco-Romana, ou a Dinastia Sung – temos acreditado que isso aconteceu graças à posse de uma descrição apurada do cosmos e da relação do homem com ele. Isto parece ir junto com o completo florescimento de uma civilização. Mas, a partir deste ponto de vista da nossa presente civilização, nós consideramos todas estas concepções como se fossem piores, de segunda mão. Nós nos orgulhamos que nossa civilização tem a última e real descrição sobre o que está acontecendo.

Eu considero isto um erro, e que atualmente nos cega, ou torna nosso progresso histórico muito difícil, é nossa falta de atenção que nossas crenças se tornaram obsoletas e deveríam ser colocadas de lado. Uma sociedade psicodélica abandonaria os sistemas de crenças pela experiência direta. É o que eu penso a respeito a do problema do dilema moderno: a experiência direta foi descontada, e no seu lugar todos os tipos de sistemas de crença foram criados.

Eu preferiria um tipo de anarquia intelectual onde não importa o quê fosse pragmaticamente aplicável e fosse trazido de qualquer situação; onde crença fosse entendida como uma função auto-limitante. Porque, veja, se você acredita em alguma coisa você é automaticamente impedido a acreditar em seu oposto; que significa que um grau da liberdade humana foi coisificada no ato de se submeter à esta crença.

Eu insisto que é supérfluo ter crenças, porque o universo é realmente mais estranho do que nós supomos, precisamos retornar para o que no século XVI era chamado de método Baconiano; que não significa a elaboração fantástica de construções de pensamentos que explicam a natureza, mas somente uma catalogação dos fenômenos que nós experimentamos. Redes de computadores e drogas psicodélicas e a crescente disponibilidade de informação no mundo têm tornado possível a evolução de novos estados de informação que nunca existiram anteriormente. Estamos processando estas novas oportunidades em uma razão muito devagar porque estamos sendo impedidos pela ideologia.

Os modelos Freudianos e Junguianos enxergam a experiência psicodélica como um desmantelamento da resistência em revelar emoções, motivos e sistemas de crenças escondidas e complexas. Esta noção, há cinco ou dez anos, foi substituída pelo modelo de experiência alucinógena xamânica. Este modelo sustenta que pessoas arcaicas têm delegado membros especiais de uma sociedade para provar informações de domínio secreto usando drogas psicodélicas. A informação extraída destes domínios são então usadas para guiar e direcionar a sociedade.

Eu estou interessado neste segundo modelo. Tenho gastado algum tempo na Amazônia e estou familiarizado com os mecanismos operacionais do xamanismo e personalidades xamânicas. Acredito que a experiência psicodélica vai além da instituição do xamanismo. Estamos diante de uma oportunidade única de arremessar de lado a crise da cultura mundial.

Nossa habilidade de destruir a nós mesmos é a imagem espelhada da capacidade de nos salvarmos. O que está faltando é uma visão clara do quê deveria ser feito. O que deveria ser feito certamente não é a acumulação cada vez maior de arsenal termonuclear ou a promoção de todo o tipo espetáculos de primatas – que Tim Leary tem muito bem denunciado. O que precisa ser feito é que nossas concepções ontológicas fundamentais de realidade precisam ser refeitas. Precisamos de uma nova linguagem, de modo que para ter uma nova linguagem precisamos de uma nova realidade. É um tipo de equação urobórica, ou uma situação de desvencilhamento. Uma nova realidade gerará uma nova linguagem. Uma nova linguagem fará uma nova realidade se legitimar e ser uma parte desta realidade.

As substâncias psicodélicas podem ser imaginadas como pontos de uma grade de informações. Elas provêm novas perspectivas na realidade, e quando você reconecta todos os pontos de vista que você coletou considerando realidade, então um modelo aplicável de realidade e que faça sentido começa a surgir.

Eu penso que esta realidade aplicável e que faça sentido – o que Wittgenstein nomeou algo como “suficientemente verdadeiro” – é o que estamos procurando. O “suficientemente verdadeiro” mapeando por cima da teoria é o que estanos procurando, mas a experiência deve ser feita primeiro. A linguagem do Eu deve ser feita primeiro.

O que eu estou defendendo é que cada um de nós tome responsabilidade pela transformação cultural, que não é algo que seria disseminado de cima para baixo. É algo que cada um de nós podemos contribuir nos esforçando a viver tão para dentro do futuro quanto possível. Devemos nos livrar das concepções de anos 40, 50, 60, 70, 80, 90. Devemos transcender o momento histórico e tornarmos exemplares de humanidade no Fim do Tempo.

Alguns de vocês que acompanham minha leitura esta tarde se preocupam em saber que eu acredito que liberação – ou vamos dizer “decência” – como uma qualidade humana e antecipação deste estado perfeito da humanidade futura. Podemos ter vontade de aperfeiçoar o futuro nos tornando um microcosmo do futuro perfeito, não mais distribuir culpa para instituições ou hierarquias de responsabilidade ou controle, mas dar-nos conta que a oportunidade está aqui, a responsabilidade está aqui, e os dois nunca se tornem congruentes denovo. A salvação para o nosso espírito imortal depende do quê você faz com as oportunidades que a vida lhe dá.

Então, o que faremos com a oportunidade? O quê significa dizer, em termos operacionais, “Viva tão longe ao futuro quanto puder?” Significa tomar uma posição vís à vis da emergente realidade hiper-dimensional. Isto não significa necessariamente tornar-se um usuário de drogas psicodélicas; mas significa admitir esta possibilidade. Se você sente um potencial heróico dentro de você para ser um dos experimentadores – um dos pioneiros – então você sabe o que fazer. Se por outro lado você se sente perdido no abismo – se você se sente como William Blake chamou de “caindo para a eterna morte,” caindo do espiral da existência que conecta uma encarnação à outra – então oriente-se para a experiência psicodélica como uma fonte de informação.

Uma imagem espelhada da experiência psicodélica emergiu com o hardware e software integrados às redes de computadores. A internet e a www são, paradoxalmente suficientes, uma profunda influência feminilizante na sociedade. Isto está no desenvolvimento de hardware/software que inconscientemente está se tornando consciente. Esse é um pensamento que tomamos do bon mot platônico – “Se Deus não existisse, o homem deveria inventá-lo” – e disse, “se a inconsciência não existe, a humanidade a inventará na forma de vastas redes que serão capazes de transferir e transformar informação.”

Isto é, de fato, onde estamos presos: a transformação de informação. Nós não mudamos fisicamente nos últimos quarenta mil anos. O tipo humano está bem estabilizado antes do fim da última glaciação. Mudanças que foram feitas antigamente no âmbito biológico está acontecendo agora no âmbito cultural. Estamos abrigando presunções culturais e nos preocupando com nossa visão do mistério unitário em uma razão cada vez mais rápida, enquanto tentamos nos acomodar ao desdobrameno daquele mistério que se deita diante de nós no tempo. Este é o processo que está fundindo a vasta sombra de destruição por cima de toda a experiência da história humana.

Anterior à nossa própria era, a única palavra que poderia ser aplicada para esta força que faz as pessoas se unirem, causando nascimento e morte, levantando e derrubando civilizações, era Deus; e isso era imaginado como uma forma auto-consciente que estava aprendendo a respeito do mundo como um gato aprende a respeito do aquário e fazendo as coisas acontecerem. Agora temos uma noção diferente – a noção de um sistema vetor que força uma grande área que está sendo empurrada para um espaço muito pequeno, e este pequeno micro-setor de tempo/espaço é a história. É um ímpeto que os budistas chamam de “o reino densamente empacotado,” um reino onde os opostos estão unificados.

A história é este reino onde o corpo é finalmente interiorizado e a mente exteriorizada. Penso a mente como um órgão da quarta dimensão no nosso corpo. Você não pode vê-lo porque ele está na quarta dimensão, mas você experimenta uma baixa dimensão seccionando-a no fenômeno da consciência. Mas isto é somente uma secção parcial. assim como uma elipse é um desenho parcial de um cone.

O crescimento dos sistemas de informação é somente um reflexo do hardware masculino do que já existe na natureza como um fato. Agora nos resta afiar nossas intuições e nos tornarmos atentos a este sistema preexistente e ligá-lo para que possamos estar um passo a frente dos dualismos que nos separam dos outros e do mundo. Precisamos nos dar conta que há um enxame de genes – e não um grupo de espécies – no planeta; que metade do tempo você está pensando no que está escutando; que idéias são criaturas notavelmente escorregadias que são difíceis de traçar sua origem; e que estamos realmente no mano-a-mano e todos juntos em uma dimensão que não é tão acessível e sólida como você desejaria que fosse (como Joyce comenta em Finnegan’s Wake).

Os psicodélicos são o red-hot, a edição social/ética porque eles são agente descondicionadores. Eles levantarão dúvidas se você é um rabino ortodoxo, um antropólogo marxista, ou um homem de altar porque o seu negócio é dissolver sistemas de crenças. Eles fazem isso muito bem, e depois eles deixam você com uma ferida na experiência, o que William James chamou – tomando uma experiência infantil – “uma confusão florida, barulhenta.”

Fora isso você reconstrói o mundo e precisa entender que esta reconstrução é um diálogo onde suas decisões – a projeção de sua gramática no espaço intelectual em sua frente – irá formar um gel sobre o ser. Nós todos criamos nosso próprio universo porque estamos todos operando com a nossa própria linguagem privada que são somente traduzíveis através da linguagem de outra pessoa. Há ainda um análogo físico a isto que irá promover um reforço desta noção de separação e nossa singularidade.

A imagem do mundo que se forma em seus olhos é feita de fótons. Fótons são minúsculos pacotes de luz tão próximas que podem ser pensadas como partículas. Isto significa que cada fóton que toca o fundo dos seus olhos é diferente dos fótons que tocam o fundo dos olhos de qualquer outra pessoa. Isto significa que eu me baseio em uma seção do mundo 100% diferente da imagem que qualquer um de vocês estão se baseando. E ainda estamos sentados aqui com uma suposição ingênua de que nossas imagens do mundo diferem somente pela nossa perspectiva dentro do espaço desta sala.

Temos inúmeras suposições ingênuas como esta construção do nosso pensamento. Nosso mecanismo explanatório mais venerado – tal como “ciência” – surge também como nosso mecanismo explanatório mais velho. Portanto, eles têm se construídos como a mais ingênua e não-examinada suposição. “Ciência”, por exemplo, podemos demolir em trinta segundos. A “ciência” diz a você um grupo de condições que criará um efeito dado, e a cada momento que o grupo de condições estiver em seu lugar o efeito será obtido. O único lugar que isto acontece é dentro de um laboratório. Nossa experiência não é assim. O contato com uma pessoa é sempre diferente. A experiência de fazer sexo, comer uma refeição, tomar um ônibus – isto penetra no ser – e torna suportável de todo jeito. A “ciência” ainda deseja dizer a você que somente o valor das coisas descritas em um fenômeno podem ser disparadamente repeditas. Isto se dá porque estes são somente os fenômenos que a ciência pode descrever, e é o nome do jogo com o qual ela se preocupa.

Mas nós temos que reivindicar nossa liberdade – tomar vantagem do abismo minúsculo entre o imenso abismo do desconhecimento; seja talvez a morte, ou reencarnação, ou transições para outras formas de vida. Estas coisas nós não sabemos ou entendemos, mas no momento que somos humanos temos a rara oportunidade de descobri-las. E eu tenho fé de que isto é possível – em algum lugar ou em algum momento. Talvez nenhum progresso seria feito até a nona hora em que a realidade pudesse ser literalmente fragmentada em pedaços, para além do ponto de reconstrução.

Existe, definitivamente, uma tendência anti humanista em todos os sistemas, Ludwig von Bertalanfe, que foi o inventor da teoria dos sistemas gerais, disse, “pessoas não são máquinas, mas em toda situação que elas tiverem a oportunidade, elas irão agir como uma.” Estamos todos caindo em padrões. Nós seguramos estes padrôes cada vez mais forte. Eles não podem ser violados; e isto acontece no nível das idéias.

Estamos agora no crista da onda da história, em tipo de aperto que nos devolve ao passado. Espero que tenhamos chegado ao fim desta fase. Queira você comprar minha visão apocaliptica transformadora envolvendo 2012, ou queira você dizer que somente por olhar ao seu redor você tem certeza que, logo, logo, a merda vai ser atirada ao ventilador, eu acho que nós concordamos que estamos diante de um impasse. O que está para acontecer será ou um grande deslocamento da biosfera, causando uma invalidação da inteligência como uma adptação biológica e nossa extinção; ou iremos nos tornar – como James Joyce sonhou – “o homem auto governável;” em outras palavras, a exteriorização do espírito e a interiorização do corpo.

Neste processo, tudo terá de ser desafiado. Toda a noção de humanidade será desafiada. Estamos à beira da manipulação do DNA, ou de tomar controle da forma humana, de sermos capazes de extender a noção de arte para dentro do corpo humano. Somos clássicos? Deveríamos ser Adonis e Perséfone? Ou o que somos nós? Somos surrealistas? Deveria eu ser uma batata ou uma girafa em chamas? Estas são questões que terão de ser enfrentadas. Eu sorrio enquanto falo isto, mas estas questões são importantes.

E a noção de ganho vertical que vemos nas metáforas feitas em relação à experiência psicodélica: expansão da consciência, ficar chapado (getting high – a tradução seria “elevar-se”), viagem psicodélica, vôo xamânico. É como se os alucinógenos fossem o feminino, o software, o formador, o cabo condutor do que está ocorrendo. Seguindo por trás vem o hardware, a mentalidade construtora masculina.

Isto irá continuar até que o cabo condutor das longas distâncias da engenharia contrutora se rompa. Esta é a crença xamânica: que nós podemos encontrar uma maneira de usar químicos em nossos corpos, usar nossas vozes, nossos pensamentos e nossas mãos por sobre nós e sobre os outros; para transformar nós mesmos sem nenhuma tecnologia; para nos movermos no reino da imaginação com uma tecnologia psicofarmacológica interiorizada que nos liberte dentro da nossa imaginação.

Ao mesmo tempo isto está acontecendo com a mentalidade construtora masculina, que irá colocar sociedades humanas na órbita da terra/lua e em planetas próximos. Mas há um porém para a mentalidade construtora, que é um vácuo que envolve os planetas e exemplifica este abismo e o elemento feminino. É o mistério da Mama matrix de Finnegan’s Wake. A misteriosa Mama matrix é o universo, e não há como escapar deste fato. Mas eu penso que a mentalidade construtora, que irá tentar transformar o homem em suas máquinas será desestabilizado pelos psicodélicos, pelo pensamento voltado ao planeta, pelo lado voltado à imaginação de nossa consciência, que irá criar as bases para o casamento espiritual que será a incubação química de um novo formato da humanidade; e isto não está longe.

Não pode estar longe. Esta é uma responsabilidade inerente a todos nós que nos faz criá-la. Há uma obrigação definida para examinar as possibilidades de ação, e para pensar claramente sobre si e sobre o outro, sobre a linguagem e o mundo, sobre o passado e o presente. Por muito tempo nós vivemos em um mundo definido pela geografia. Se você nasceu na Índia, você achará que o cosmos é de uma maneira. Se você nasceu no Brooklyn, você achará de outra. Precisamos transcender estas grades do destino biológico, que nos torna aquilo que nós não queremos ser. Nós podemos clamar por este nível mais alto de liberdade através do simples ato de prestar atenção à existência.

Precisamos começar a exprimir nossas visões ideológicas antes que sejamos consumidores das próprias. Precisamos desligar a nossa TV interna que nos puxa para as suposições culturais ditadas pelo Pentágono, Madison Avenue, e pelo estado corporativo. Precisamos, ao invés disso, ligar nossos modems e começar a interagir como pessoas dotadas de mentalidade pelo mundo afora e estabelecer esta nova ordem intelectual que será a salvação da biosfera, eu acredito firmemente nisto. A internet finalmente concretiza nossa coletividade permitindo que pessoas sintam a interrelação de seus destinos; sentem a interrelação como uma coisa que transcende divisões nacionais, divisões ideológicas. A net permite que cada um de nós recupere a experiência de ser parte de uma família humana.

Nenhuma reconstrução de sociedade pode ser feita sem psicodélicos porquê nós perambulamos durante muito tempo sem eles. Certamente somos produtos de uma sociedade que foi longe demais sem psicodélicos como nenhuma outra cultura no mundo. Isto foi há dois mil anos desde que o Mistério foi real em Eleusis e nestes dois mil anos perambulamos longe na disfunção e na confusão. Mas nós somos filhos pródigos. Podemos reparar a idéia de xamanismo a partir do estase social pré-tecnológico e projetá-lo, aperfeiçoá-lo e viajar com ela para além das estrelas.

E se não fizermos, tudo estará perdido. Há somente riscos e comprometimentos nestas aspirações milenares e nestas metas culturais, metas que têm o potencial de restaurar o significado e a direção para nossa civilização. Se isto não for feito iremos fragmentar nossa oportunidade e deixar o horror e a destruição do típico cenário futuro.

 


Anarquicamente copiado de:
FORTE, Robert. Entheogens And The Future Of Religion. San Francisco, CSP, 1997.

Humildemente traduzido por:
Waver

http://www.cogumelosmagicos.org
http://www.plantasenteogenas.org
Versão copyleft – idéias não têm dono. Espalhe a palavra.

Entrevista Terence Mckenna – OMNI

x240-uuHTo postando um trecho traduzido de uma entrevista que achei muito interessante. Pra quem não conhece, Terence McKenna foi um pesquisador de plantas psicodélicas de projeção internacional. Nasceu no Colorado (Estados Unidos) em 1946, graduou-se pela Universidade de Berkley e obteve mestrado em Xamanismo e Conservação de Espécies Botânicas. Em 1992 publicou o livro “Food of the Gods” (“Alimento dos Deuses”), onde descreveu a evolução humana a partir do consumo de substâncias como o DMT e a psilocibina, encontrada em cogumelos alucinógenos. McKenna morreu em 2000 e é considerado por muitos como um “cientista da Nova Era”. Esta entrevista foi concedida a revista OMNI em 1993.

A entrevista pode ser encontrada integralmente (sem tradução) aqui: http://deoxy.org/t_omni.htm Inclusive, se alguém tiver disposição e conhecimento pra traduzir tudo, sinta-se à vontade, pois seria um grande prazer postá-la por completo =)

OMNI: Para que servem suas pesquisas com substâncias psicodélicas?

MCKENNA: É uma tragédia pensar que alguém pode ir para o caixão ignorante das possibilidades da vida. E faço analogia com o sexo. Poucas pessoas podem evitar, em suas vidas, uma experiência de natureza sexual, já que sexo é uma das informações de que a condição humana dispõe. Sexo é um grande prazer, sexo liberta. Detesto pensar que alguém pode morrer sem experimentar sexo! O mesmo acontece com a experiência psicodélica. Ela é parte legítima da condição humana. Ela disponibiliza uma infinidade de informações fundamentais que perdemos quando o homem passou a se distanciar da natureza.

OMNI: “Food of the Gods” liga DMT à psilocibina. Qual a relação?

MCKENNA: A psilocibina e o DMT são quimicamente da mesma família. Meu livro é sobre a história das drogas; mostra o impacto cultural e o poder de desenhar a personalidade que elas possuem. As pessoas têm tentado, sem sucesso, responder como nossas mentes e consciências podem derivar do macaco. Já formularam todo o tipo de teoria sobre isso, mas para mim a chave que destranca este grande mistério é a presença de plantas psicoativas na dieta do homem primitivo.

OMNI: O que o levou a concluir isto?

MCKENNA: A teoria ortodoxa da evolução nos diz que pequenas mudanças adaptativas de uma espécie acabam sendo geneticamente impressas em seu DNA. Os descendentes da espécie vão acumulando novas mudanças adaptativas, até que o conjunto de mudanças gere outra espécie. Pesquisas de laboratório mostram que a psilocibina, mesmo ingerida em quantidades muito pequenas, é capaz de imprimir mudanças em nós. Nos anos 60 Roland Fisher, do National Institute of Mental Health, deu psilocibina a voluntários, e então realizou testes oftalmológicos. Os resultados indicaram que a visão periférica aumenta quando havia psilocibina no organismo do voluntário.
Bem, o aumento da visão periférica seria de grande ajuda adaptativa para o hominídeo, pois caçavam com mais sucesso e se defendiam melhor, também!

Então aqui temos o fator químico: quando adicionado à dieta, psilocibina resultou num excelente “artefato” de sobrevivência.Quando os macacos desceram das árvores encontraram cogumelos no solo. Em pequenas quantidades aumentou sua capacidade visual periférica; em maiores quantidades, aumentou as atividades de seus sistemas nervosos centrais, que resulta em maior atividade sexual e, conseqüentemente, descendentes que carregam genes modificados pela psilocibina.

OMNI: Como as informações disponíveis sobre a psilocibina sustentam sua teoria?

MCKENNA: Bem, este é o problema: a psilocibina foi descoberta em 1953, e não foi totalmente caracterizada até ser proibida, em 66. A janela de oportunidade que se abriu para estudá-la foi de apenas nove anos. Quem pesquisava a psilocibina nem sonhava que os estudos seriam proibidos pelo governo americano! Quando o LSD foi apresentado à comunidade psicoterapêutica, e uma grande esperança de estudos dos processos mentais e psicológicos se abriu, o governo suprimiu as pesquisas com drogas psicodélicas. A conseqüência disto é que a comunidade científica está capenga, pois não pôde cumprir sua missão de conhecer profundamente os mistérios da mente humana. A ignorância e o medo do governo atrapalharam o trabalho dos cientistas.

OMNI: Você está dando uma enorme quantidade de poder a uma droga. O que você pode dizer sobre a psilocibina?

MCKENNA: Ainda não sabemos tudo o que a psilocibina e o DMT podem oferecer. É como quando Colombo avistou terra, e alguém disse, “Então você viu terra. Isso é importante?”, e Colombo disse, “Você não entende: este é o Novo Continente”. Então uns marinheiros, como eu, retornaram da viagem dizendo, “Não há bordas no planeta, ele é redondo. E mais: não há monstros marinhos, e sim vales, rios, cidades de ouro”. É duro de engolir, mas caso possam voltar a estudar a psilocibina, os cientistas poderão revolucionar a forma com que lidamos com o ser humano e com o universo. Nos últimos 500 anos a cultura ocidental suprimiu a idéia de inteligências desencarnadas, da presença real de espíritos. Mas trinta segundos de viagem com DMT acabam com a dúvida. Esta droga nos mostra que a cultura é um artefato, que você pode ser um psiquiatra em Nova York ou um xamã em Ioruba, mas que essas realidades são apenas convenções locais que organizam as pessoas em sociedade. A experiência com DMT é universal, pois mostra do mesmo modo, para qualquer pessoa de qualquer cultura, a legitimidade do universo espiritual.

OMNI: Bem, mas a cultura nos dá alguma coisa para fazer, Terence.

MCKENNA: Sim, mas a maior parte das pessoas acha que cultura é o que é real. A psilocibina mostra que tudo o que você sabe está errado. O mundo não está sozinho, não é tridimensional, o tempo não é linear, não existem coincidências. Existe, sim, um nexo interdimensional.

OMNI: Se tudo o que sei está errado, então o que está certo?

MCKENNA: Você precisa reconstruir. É, no mínimo, uma tremenda permissão para sua imaginação. Você não tem que seguir Sartre, Jesus, ninguém. Tudo se esvai, e só o que você pensa é, “Sou apenas eu, minha mente e a Mãe Natureza”. Esta droga mostra que o que existe do outro lado é uma impressionantemente real forma de vida auto-consistente, um mundo que permanece o mesmo toda vez que você o visita.

OMNI: E o que está lá nos esperando? Quem?

MCKENNA: Você cai num espaço. De alguma forma, você pode dizer que é subterrâneo. Existe uma sensação de enclausuramento, mas ao mesmo tempo o espaço é amplo, aberto, caloroso, confortável de uma forma muito sensual, material. Há entidades totalmente formadas, não há dúvidas de que essas entidades estão lá. Enquanto isso você diz, “Batimentos cardíacos? Normais. Pulso? Normal.” Mas sua mente está dizendo, “Não, eu devo ter morrido, é muito radical, muito, muito radical. Não é a droga, drogas não fazem coisas assim”, e você continua vendo o que está vendo. A droga nos tenta revelar qual a verdadeira natureza do jogo. Que a dita realidade é uma ilusão teatral. Então você quer encontrar seu caminho até o diretor que produz a realidade, e discutir com ele o que acontecerá na próxima cena.

OMNI: Você dedicou boa parte de sua vida no mapeamento do DMT e da psilocibina. Como você os interpretaria?

MCKENNA: Estas substâncias podem dissolver numa única viagem toda a sua programação mental até então. Elas te levam de volta à verdade do organismo – a que diz que idioma, condicionamento e comportamento são totalmente desenhados para mascarar. Uma vez dopado, você renasce para fora do envelope da cultura. Você chega literalmente nu neste novo lugar.

OMNI: Você acha que realmente existe algo como uma “bad trip”?

MCKENNA: Uma viagem que acaba te fazendo aprender mais rápido do que você quer é o que as pessoas chamam de bad trip. A maior parte das pessoas tenta dosar o aprendizado inerente às drogas, mas às vezes a droga libera mais informação do que você é capaz de aprender. Para piorar, a mensagem pode ser, “Você trata mal as pessoas!”, e ninguém quer escutar isso.

OMNI: Como você pode defender as drogas com tanto entusiasmo quando elas estão associadas a tanto sofrimento e caos?

MCKENNA: Nós deveríamos falar da palavra êxtase. Em nosso mundo, comandado pela Madison Avenue, êxtase é aquilo que você sente quando compra uma Mercedes e pode bancá-la. Mas este não é o significado certo. Êxtase é uma emoção complexa que contém elementos de medo, triunfo, empatia e pavor. O que substituiu nosso pré-histórico conceito do êxtase é a palavra “conforto”, uma idéia tremendamente asséptica, letárgica. Drogas não são confortáveis, e qualquer um que pense que elas são uma forma de conforto ou escapismo não deveria tomá-las até que tenham coragem de lidar com as coisas como elas realmente são.

OMNI: Que tipo de pessoas não deveria tomar drogas?

MCKENNA: Pessoas mentalmente instáveis, sob enorme pressão, ou operando equipamentos dos quais dependem as vidas de outros seres humanos. Ou pessoas frágeis, ingênuas, superprotegidas. Algumas pessoas foram tão estragadas pela vida que a dissolução de amarras não é boa para elas. Essas pessoas deveriam ser cuidadas com carinho, e não encorajadas a arrebatar limites. Se por fatores genéticos, culturais ou psicológicos as drogas não são para você, então não são para você. Não estou pedindo para que todas as pessoas tomem drogas, mas acredito que assim como uma mulher deve estar livre para controlar sua fertilidade, uma pessoa deveria estar livre para controlar sua própria mente.

Todos deveriam ser livres para tomar o que quisessem, e estar bem informados sobre o que cada opção envolve. Exatamente como acontece com educação sexual. Hoje a forma com que lidamos com informações sobre drogas é a mesma como fazíamos nos anos trinta com sexo. Você aprendia através de rumores! Então as pessoas acabam tendo idéias absurdas sobre as coisas.

OMNI: Onde está sua esperança?

MCKENNA: Está na psicologia e nos jovens. Eles têm o que nunca tivemos: pessoas mais velhas que já tiveram experiências psicodélicas. O LSD tomou, e ainda toma, de assalto nossa sociedade. Dois estudantes de bioquímica podem fazer um pequeno laboratório móvel e produzir, num final de semana, de 5 a 10 milhões de doses de ácido para distribuir em papel pelo mundo. Esta facilidade e discrição criou uma pirâmide de atividade criminal de tanta potência que o governo reage como se um revólver estivesse apontado para sua cabeça. O que, no fundo, é verdade! A estratégia certa é subversão, atenção e discreto não-conformismo contra o tédio e a opressão do mundo.

OMNI: Terence, meu amigo, existe alguma coisa que o deixa com medo?

MCKENNA: Loucura. As pessoas me perguntam, “Posso morrer tomando esta ou aquela droga?”. É a pergunta errada. Claro que sempre existe algum risco em qualquer coisa, mas o que é realmente perigoso é a sua sanidade, porque como a desconstrução da realidade é infinita, você pode se mudar para algum
outro lugar. Tenho medo de não ser capaz de contextualizar essa desconstrução, me perder e não retornar à comunidade humana. Estamos tentando construir pontes, não navegar infinitamente.

OMNI: Como você vê o futuro?

MCKENNA: Se a história seguir futuro adentro, será um futuro de escassez, preservação do privilégio, controle da população através do uso cada vez mais sofisticado de ideologia para acorrentar e iludir as pessoas. Estamos no limite exato. O que também potencialmente nos aguarda é uma dimensão de tanta liberdade e transcendência que, uma vez lá, viveremos de imaginação. Seremos rapidamente irreconhecíveis se comparados ao que somos hoje porque hoje somos definidos por nossas limitações: a lei da gravidade, a necessidade de comer, de ficarmos ricos. Temos o poder de nos expandir indefinidamente para o prazer, atenção, carinho e conexão. Só precisamos nos libertar e nos permitir.