Cientistas fazem carta pró-maconha

Segue abaixo a reprodução da notícia publicada dia 14/07 na Folha.com

cannabis sob penalidade

Um grupo de neurocientistas que estão entre os mais renomados do país escreveu uma carta pública para defender a liberalização da maconha não só para uso medicinal, mas para “consumo próprio”, informa Eduardo Geraque em reportagem publicada na edição desta quarta-feira da Folha (íntegra disponível para assinante do UOL e do jornal).

A motivação do documento foi a prisão do músico Pedro Caetano, baixista da banda de reggae Ponto de Equilíbrio, que ganhou repercussão na internet. Ele está preso desde o dia 1º sob acusação de tráfico por cultivar dez pés de maconha e oito mudas da planta em casa, em Niterói (RJ). Segundo o advogado do músico, ele planta a erva para consumo próprio.

Os cientistas falam em nome da SBNeC (Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento), que representa 1.500 pesquisadores. De acordo com os membros da sociedade, existe conhecimento científico suficiente para, pelo menos, a liberalização do uso medicinal da maconha no Brasil.

Veja a íntegra da carta:

“A planta Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, é utilizada de forma recreativa, religiosa e medicinal há séculos mas só há poucos anos a ciência começou a explicar seus mecanismos de ação.

Na década de 1990, pesquisadores identificaram receptores capazes de responder ao tetrahidrocanabinol (THC), princípio ativo da maconha, na superfície das células do cérebro. Essa descoberta revelou que substâncias muito semelhantes existem naturalmente em nosso organismo, permitiu avaliar em detalhes seus efeitos terapêuticos e abriu perspectivas para o tratamento da obesidade, esclerose múltipla, doença de Parkinson, ansiedade, depressão, dor crônica, alcoolismo, epilepsia, dependência de nicotina etc. A importância dos canabinóides para a sobrevivência de células-tronco foi descrita recentemente pela equipe de um dos signatários, sugerindo sua utilização também em terapia celular.

Em virtude dos avanços da ciência que descrevem os efeitos da maconha no corpo humano e o entendimento de que a política proibicionista é mais deletéria que o consumo da substância, vários países alteraram, ou estão revendo, suas legislações no sentido de liberar o uso medicinal e recreativo da maconha. Em época de desfecho da Copa do Mundo, é oportuno mencionar que os dois países finalistas, Espanha e Holanda, permitem em seus territórios o consumo e cultivo da maconha para uso próprio.

Ainda que sem realizar uma descriminalização franca do uso e do cultivo, como nestes países, o Brasil, através do artigo 28 da lei 11.343 de 2006, veta a prisão pelo cultivo de maconha para consumo pessoal, e impõe apenas sanções de caráter socializante e educativo.

Infelizmente interpretações variadas sobre esta lei ainda existem. Um exemplo disto está no equívoco da prisão do músico Pedro Caetano, integrante da banda carioca Ponto de Equilíbrio. Pedro está há uma semana numa cela comum acusado de tráfico de drogas. O enquadramento incorreto como traficante impede a obtenção de um habeas corpus para que o músico possa responder ao processo em liberdade. A discussão ampla do tema é necessária e urgente para evitar a prisão daqueles usuários que, ao cultivarem a maconha para uso próprio, optam por não mais alimentar o poderio dos traficantes de drogas.

A Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) irá contribuir na discussão deste tema ainda desconhecido da população brasileira. Em seu congresso, em setembro próximo, um painel de discussões a respeito da influência da maconha sobre a aprendizagem e memória e também sobre as políticas públicas para os usuários será realizado sob o ponto de vista da neurociência. É preciso rapidamente encontrar um novo ponto de equilíbrio.”

Cecília Hedin-Pereira (UFRJ, diretora da SBNeC)
João Menezes (UFRJ)
Stevens Rehen (UFRJ, diretor da SBNeC)
Sidarta Ribeiro (UFRN, diretor da SBNeC)

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Inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas.

Post retirado de:  http://www.psicotropicus.org/noticia/5879 >   http://jus2.uol.com.br/pecas/texto.asp?id=917

Elaborado em 09.2009.

Princípio da alteridade.

Sentença absolve acusado de porte de drogas para uso próprio, por afronta ao princípio da alteridade, pois pune conduta inofensiva a bem jurídico de terceiro.

Elaborado por Bruno Cortina Campopiano, Juiz de Direito..

Autos n.

Vistos.

A denúncia deve ser rejeitada, porquanto a lei incriminadora é inconstitucional no particular.

A criminalização do porte de drogas para uso próprio afronta o princípio da alteridade, na medida em que pune conduta inofensiva a bem jurídico de terceiro, lesando, outrossim, o direito fundamental à liberdade, já que subtrai do indivíduo a prerrogativa inalienável deste de gerenciar sua própria vida da maneira que lhe aprouver, independentemente da invasiva e moralista intervenção estatal.

Ora encarado como princípio autônomo, ora visto como decorrência do princípio da ofensividade, a alteridade é assim resumida por Luiz Flávio Gomes, em obra coletiva na qual é também um dos coordenadores:

Só é relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Se o agente ofende (tão-somente) bens jurídicos pessoais, não há crime (não há fato típico). Exemplos: tentativa de suicídio, autolesão, danos a bens patrimoniais próprios etc”. (Legislação Criminal Especial. Coleção Ciências Criminais, Volume 6. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.009, p. 174).

Na hipótese em comento, a opção do Estado em etiquetar como criminosa conduta cujos resultados deletérios não transcendem a esfera de direitos da pessoa supostamente lesada por sua própria conduta é altamente reprovável, pois faz tábula rasa de ensinamentos jurídicos seminais em matéria penal, guardando estreita similaridade com práticas incriminadoras encontradiças em períodos sombrios da história da humanidade, como durante o regime nazista, no qual o sujeito era punido pelo que era, não pelo que fazia (o chamado direito penal do autor).

É como sabiamente adverte o citado Luiz Flávio Gomes:

“Se em direito penal só deve ser relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros, não há como se admitir (no plano constitucional) a incriminação penal da posse de drogas para uso próprio, quando o fato não ultrapassa o âmbito privado do agente. O assunto passa a ser uma questão de saúde pública (e particular), como é hoje (de um modo geral) na Europa (onde se a política de redução de danos). Não se trata de um tema de competência da Justiça penal. A polícia não tem muito o que fazer em relação ao usuário de drogas (que deve ser encaminhado para tratamento, quando o caso)”. (ob. citada, p. 174).

Na mesma toada Luciana Boiteux, para quem, “Do ponto de vista teórico, de forma coerente, a descriminalização funda-se ainda na defesa do direito à privacidade e à vida privada, e na liberdade de as pessoas disporem de seu próprio corpo, em especial na ausência de lesividade do uso privado de uma droga, posição essa defendida por vários autores, e que foi reconhecida pela famosa decisão da Corte Constitucional da Colômbia” (Aumenta o consumo. O proibicionismo falhou. Le Monde Diplomatique Brasil. Setembro de 2009. p10).

Aliás, não é de hoje que doutrinadores de tomo levantam-se contra a incriminação do uso de drogas. Ainda sob a égide da Lei de 6.368/76, Nilo Batista afirmava que o art. 16 do referido diploma “incrimina o uso de drogas, em franca oposição ao princípio da lesividade e às mais atuais recomendações político-criminais“. (Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1.996, p. 92/93).

Ao contrário do que os mais inocentes possam imaginar, a proibição do uso de drogas não se fia, historicamente, na proteção de uma amorfa, pouco delimitada e imprecisa saúde pública, como açodadamente se supõe e como gostam de contra-argumentar os defensores do proibicionismo.

Em relevante artigo publicado na edição brasileira de setembro de 2.009 do periódico francês Le Monde Diplomatique, Thiago Rodrigues traçou importante histórico, a partir do qual se vê, com clareza, as raízes podres do movimento proibicionista de origem norte-americana:

“Na passagem do século XIX para o século XX, drogas como a maconha, a cocaína e a heroína não eram proibidas. Ao contrário, elas eram produzidas e vendidas livremente, com muito pouco controle. No entanto, passaram a ser alvo de uma cruzada puritana, levada adiante por agremiações religiosas e cívicas, dedicadas a fazer lobby pela proibição. Nos Estados Unidos, as campanhas contra certas drogas psicoativas foram, desde o início, mescladas a preconceitos, racismo e xenofobia. Drogas passaram a ser associadas a grupos sociais e minorias, considerados perigosos pela população branca e protestante majoritária no país: mexicanos eram relacionados à maconha; o ópio vinculado aos chineses; a cocaína aos negros; e o álcool aos irlandeses”. (artigo intitulado Tráfico, guerras e despenalização. p. 6.)

Para Jonh Gray, professor de Pensamento Europeu da London School of Economics (segundo muitos, o maior filósofo vivo da atualidade), o proibicionismo conecta-se à quimérica e artificial busca pela felicidade patrocinada pela sociedade ocidental, e sua conseqüente denegação de qualquer prática que, diretamente ou não, implique a negação de obtenção de tal objetivo por vias ordinárias:

Proibir as drogas torna seu comércio fabulosamente lucrativo. Gera crimes e aumenta consideravelmente a população nas prisões. A despeito disso, existe uma pandemia de drogas de alcance mundial. A proibição às drogas falhou. Por que então nenhum governo contemporâneo as legalizará? Alguns dizem que o crime organizado e a lei estão unidos numa simbiose que bloqueia reformas radicais. Pode haver alguma verdade nisso, mas a explicação real é outra. Os mais implacáveis guerreiros contra as drogas têm sido sempre os progressistas militantes. Na China, o ataque mais selvagem ao uso de drogas ocorreu quando o país foi convulsionado por uma doutrina ocidental moderna de emancipação universal – o maoísmo. Não é acidental que a cruzada contra as drogas seja liderada hoje por um país comprometido com a busca da felicidade – os Estados Unidos. Pois o corolário dessa improvável busca é uma guerra puritana ao prazer. O uso de drogas é uma admissão tácita de uma verdade proibida. Para a maior parte das pessoas, a felicidade encontra-se fora do alcance. A satisfação é encontrada não na vida diária, mas em fugir dela. Como a felicidade não está disponível, a maioria da humanidade busca o prazer. Culturas religiosas podiam admitir que a vida terrena era difícil, pois prometiam outra na qual todas lágrimas seria secadas. Seus sucessores humanistas afirmam algo ainda mais inacreditável – que no futuro, mesmo no futuro próximo, todo mundo poderá ser feliz. Sociedades baseadas em uma fé no progresso não podem admitir a infelicidade normal da vida humana. Como resultado estão destinadas a abrir guerra contra aqueles que buscam uma felicidade artificial nas drogas“. (Cachorros de palha. Reflexões sobre humanos e outros animais. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. 6ª edição. Editora Record. 2009, pp. 156/157).

A realidade é que, desde tempos imemoriais, os seres humanos buscam artifícios que os conduzam a diferentes sensações, à transcendência da mesmice cotidiana, ao encontro de um alter ego de alguma forma mais agradável, não revelado senão a partir de influxos externos.

Por tal razão, inata à existência humana, é uma quimera imaginar um mundo sem drogas. Focault já se pronunciou sobre o tema: “…as drogas são parte de nossa cultura. Da mesma forma que não podemos dizer que somos ‘contra’ a música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas”. (Michel Focault, uma entrevista: sexo, poder e política. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Em Verve, São Paulo, Nu-Sol, v. 5, 2004, pp. 264-65).

Não compete ao direito penal fazer juízo de valor sobre ditos artifícios, anatemizando alguns e comprazendo com outros (como as bebidas alcoólicas, por exemplo). Pouco importa, para fins de manejo da justiça criminal, indagar sobre os possíveis efeitos nocivos que tais estratagemas possam causar em seus adeptos. Com imensa sabedoria, Alice Bianchini já asseverou que “sempre que o direito criminal invade as esferas da moralidade ou do bem–estar social, ultrapassa os seus próprios limites em detrimento das suas tarefas primordiais (…). Pelo menos do ponto de vista do direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem diretamente [ao alheio]”. (Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 33).

A possibilidade de fazer escolhas, por mais esdrúxulas ou inexplicáveis que possam parecer aos terceiros expectadores e a despeito da enorme carga de condicionantes advinda do “mundo exterior”, deve ser encarada como uma prerrogativa inexorável do homem, umbilicalmente ligada à autonomia da vontade.

Em passagem de uma de suas mais memoráveis obras, Dostoievski, diretamente do subterrâneo da alma humana, faz verdadeira ode à liberdade:

“E isso pela mais insignificante razão, que, dir-se-ia, nem vale a pena mencionar: tudo porque o homem, por toda parte e em todos os tempos, seja qual for, sempre gostou de agir segundo sua vontade e não segundo lhe determinam a razão e o interesse: pode e, às vezes mesmo positivamente, deve (é minha idéia) escolher o que é contrário ao próprio interesse. Nossa livre vontade, nosso arbítrio, nosso capricho, por louco que seja, nossa fantasia excitada até a demência, eis precisamente aquele ‘interesse interessante’ que deixamos de lado, que não se enquadra em nenhuma classificação e manda para o inferno todos os sistemas, todas as teorias. Onde esses sábios descobriram que o homem necessita de não sei que vontade normal e virtuosa? O que os levou a imaginar que o homem aspira a uma vontade racionalmente vantajosa? O homem só aspira a uma vontade independente, qualquer que seja o preço a pagar por ela, e leve aonde levar. E que vontade é essa, só o diabo sabe…” (Notas do subterrâneo. Tradução de Moacir Werneck de Castro. 6ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 35).

Por fim, saliento que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio da 6ª Câmara de Direito Criminal, em acórdão relatado pelo Desembargador José Henrique Rodrigues Torres, recentemente esposou posição no mesmo sentido da ora defendida:

“1.- A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o acusado seria um traficante. 2.- O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do principio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil”. (Apelação Criminal n. 993.07.126537-3; Data do julgamento: 31/03/2008; Data de registro: 23/07/2008).

Ante o exposto, por ofensa ao princípio da alteridade, declaro, incidentalmente, a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, e, conseqüentemente, rejeito a denúncia, por atipicidade manifesta do fato.

P.R.I.

Cafelândia,………………..de 2.009.

BRUNO CORTINA CAMPOPIANO

Juiz de Direito

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