Intervenção abrangente em crises nas emergências psicodélicas

Autor: Stanislav Grof

No livro: GROF, S. LSD psychotherapy. California: Hunter House, 1980.

Tradução: Fernando Beserra

 

Tendo discutido os fatores que contribuem para o desenvolvimento de emergências em sessões não supervisionadas de LSD e descrito as práticas danosas que caracterizam muitas intervenções legais e profissionais, eu gostaria de delinear o que considero a abordagem ideal a crises psicodélicas, baseado no entendimento de suas dinâmicas. O que constitui uma emergência em uma sessão de LSD é altamente relativo e depende de uma variedade de fatores. Isso reflete em uma interação entre os próprios sentimentos do sujeito sobre a experiência, as opiniões e tolerância das pessoas presentes e o julgamento dos profissionais chamados para oferecer ajuda. Este último fator é de importância decisiva; ele depende do grau de entendimento do terapeuta quanto ao processo envolvido, sua experiência clínica com estados incomuns de consciência e sua liberdade de ansiedade. Na intervenção em uma crise psicodélica, como na prática psiquiátrica em geral, medidas drásticas frequentemente refletem o sentimento de medo e insegurança do cuidador, mas também a relação com o seu próprio inconsciente. A experiência da terapia com LSD e as novas psicoterapias experienciais claramente indicam que a exposição aos materiais emocionais profundos de outra pessoa tendem a quebrar as defesas psicológicas e ativar as áreas correspondentes no inconsciente da pessoa que cuida e testemunha o processo, ao menos que eles tenham se confrontado e trabalhado através destes níveis neles mesmos. Desde que as psicoterapias tradicionais são limitadas ao trabalho em material biográfico, mesmo um profissional com treinamento completo em análise é inadequadamente preparado para lidar com as experiências poderosas de natureza perinatal e transpessoal. A tendência prevalente a colocar todas estas experiências na categoria de esquizofrenia e suprimi-las a todo custo reflete não apenas a falta de entendimento, mas também uma autodefesa conveniente contra o material do seu próprio inconsciente.

Na medida em que aumentou a sofisticação e experiência clínica de terapeutas que trabalham com LSD, se tornou mais evidente que episódios negativos nas sessões psicodélicas não deveriam ser vistos como acidentes imprevisíveis, mas aspectos intrínsecos e legítimos do trabalho terapêutico com o material traumático inconsciente. Deste ponto de vista o termo coloquial “bummer” ou “bad trip” (viagem ruim) não faz sentido. Para um terapeuta que trabalha com LSD uma sessão psicodélica mal sucedida não é uma na qual o sujeito experimenta a ansiedade do pânico, tendências autodestrutivas, culpa abismal, perda de controle ou sensações de dificuldade física. Se propriamente manejadas, uma sessão dolorosa ou difícil com LSD pode trazer uma importante revelação terapêutica. Ela pode facilitar a resolução de problemas que atormentaram o sujeito de formas sutis por muitos anos e contaminaram sua vida cotidiana. Uma sessão mal sucedida, entretanto, é uma na qual, quando os sentimentos de dificuldade começam a emergir, o sujeito não se rende completamente ao processo e a Gestalt permanece não solucionada. Deste ponto de vista, todas as experiências psicodélicas nas quais o processo é frustrado pela administração de tranquilizantes e distrações externas como a transferência para um hospital psiquiátrico não são falhas por consequência da natureza do processo psicológico envolvido, mas porque o manejo da crise interferiu com uma resolução positiva.

Embora o LSD possa induzir experiências psicodélicas difíceis mesmo sob as melhores circunstâncias, seria um erro atribuir todas as “bad trips” a própria substância. O estado psicodélico é determinado por uma variedade de fatores não relacionados a substância; a incidência de sérias complicações depende criticamente da personalidade do sujeito e de elementos do set e do setting. Isso pode ser ilustrado comparando a incidência de complicações durante as experimentações iniciais supervisionadas com LSD e a cena psicodélica dos anos 60. Em 1960, Sidney Cohen publicou um artigo intitulado: LSD: efeitos colaterais e complicações. J. Nerv. Ment. Dis. 130::30, 1960. Ele estava baseado nos relatos de 44 profissionais que tinham administrado LSD e mescalina a aproximadamente 5 mil pessoas cerca de 25 mil vezes; o número de sessões por pessoa alternava entre uma e oitenta. No grupo de voluntários normais, a incidência de tentativas de suicídio após a sessão foi menor que um a cada mil casos e reações prolongadas durante mais que 48 horas foi de 0,8 por milhar. Este número foi um pouco mais alto quando pacientes psiquiátricos foram utilizados como sujeitos; em cada mil pacientes havia 1,2 tentativas de suicídio, 0,4 suicídios completos e 1,8 reações prolongadas durante mais que 48 horas. Em comparação com outros métodos de terapia psiquiátrica, portanto, o LSD apareceu como invulgarmente seguro, particularmente quando contrastado com outros procedimentos utilizados rotineiramente no tratamento psiquiátrico neste momento, como eletrochoques, comas insulínicos e psicocirurgia. Estas estatísticas contrastam bruscamente com a incidência de reações adversas e complicações associadas com experimentação não supervisionada. Durante a minha visita a clinica de Haight-Ashbury em São Francisco no final dos anos 60, eu fui informado pelo seu diretor David Smith que eles estavam tratando uma média de quinze bad trips por dia. Embora isso não necessariamente signifique que todos os clientes tiveram um efeito adverso duradouro de suas experiências psicodélicas, isso ilustra o tema em questão.

A experiência e sofisticação de psiquiatras e psicólogos em relação aos psicodélicos certamente não foi grande durante os anos iniciais e os settings estavam longe do ideal. Entretanto, as sessões reportadas no artigo do Dr. Cohen eram conduzidas em ambientes protegidos, em razoável supervisão e por indivíduos responsáveis. Em adição, estes que tinham experiências difíceis estavam em um lugar que era equipado para prover ajuda em caso de necessidade e eles não tinham que ser submetidos a ordem absurda de transferência a uma instalação psiquiátrica.

A crise psicodélica é causada por uma complicada interação de fatores internos e externos. O terapeuta tem que distinguir qual dos dois sets de influência é mais importante e proceder de acordo. O primeiro e mais importante passo no tratamento de uma crise psicodélica é criar um ambiente simples, seguro e de suporte físico e interpessoal para o sujeito. Em caso nos quais os fatores externos parecem produzir o papel principal, é importante remover o individuo de situações traumáticas ou mudar isso por uma intervenção ativa. Se a crise ocorrer em um local público, ele ou ela deve ser levado a um lugar quieto e isolado. Se o incidente ocorrer durante uma festa em uma residência privada, é importante simplificar a situação movendo o usuário a uma sala separada ou pedir aos convidados para ir embora. Poucos amigos próximos que parecerem sensíveis e maduros podem ser convidados a dar assistência no processo. Eles podem providenciar um suporte de grupo ou ajudar o sujeito a ativamente trabalhar através de problemas subjacentes durante o período de finalização da sessão. As técnicas de grupo envolvidas em sessões psicodélicas foram discutidas mais cedo neste livro.

Depois de criar um espaço seguro o próxima tarefa importante é estabelecer um bom contato com o sujeito. O relacionamento de confiança é provavelmente o pré-requisito mais significativo para o resultado positivo de uma sessão psicodélica em geral e para um manejo bem sucedido da crise em particular. Uma pessoa solicitada a intervir em uma crise desencadeada por LSD está em grande desvantagem se comparada a um terapeuta que trabalha com LSD, lidando com uma situação similar, no curso de um tratamento psicodélico, porque a sessão terapêutica é precedida de períodos de preparação sem o uso de substâncias no qual há tempo suficiente para estabelecer um bom contato e um relacionamento de confiança. Se uma situação difícil surge no curso de uma série com LSD, o cliente pode desenhar em sua memória de sessões prévias onde as experiências dolorosas foram trabalhadas com sucesso e integradas com a ajuda do terapeuta.

Em contraste, o profissional lidando com a crise fora do contexto terapêutico, caminha para dentro da situação de emergência como um estranho, usualmente sem nenhum contato prévio com o sujeito e outras pessoas envolvidas. Confiança e cooperação tem que ser estabelecidas em um tempo muito curto e muitas vezes em circunstâncias dramáticas. Estar livre de ansiedade, uma habilidade de permanecer centrado, empatia profunda e intimo conhecimento das dinâmicas dos estados psicodélicos são as únicas formas de gerar a confiança no âmbito destas circunstâncias.

É essencial transmitir um senso de proteção e segurança, enfatizando a natureza autolimitada da experiência com LSD. Não importa quão critica as condições pareçam ser, em muitos casos ela será resolvida espontaneamente de cinco a oito horas depois da ingestão da substância. Este limite de tempo deve ser claramente comunicado ao sujeito e outras pessoas presentes; até este tempo não há absolutamente razão para pânico ou preocupação, entretanto, manifestações emocionais e psicossomáticas podem ocorrer. Também é uma grande vantagem manter o sujeito em uma posição reclinada, mas isso deve ser atingido sem utilizar nenhuma força física e restrição aberta. Com pouca experiência, alguém pode desenvolver uma técnica na qual é possível efetivamente restringir o indivíduo usando um contexto de suporte e cooperação, mais do que de conflito.

Quando o contato adequado foi estabelecido, uma estrutura positiva deve ser oferecida para a experiência psicodélica difícil. É essencial apresentar ela como uma oportunidade de encarar e trabalhar através de certos aspectos traumáticos de inconsciente, mais do que um acidente trágico e infortunado. Uma pessoa dando assistência uma crise psicodélica deve fazer tentativas consistentes de internalizar a experiência do sujeito que usou LSD e encorajar ele ou ela a olhar os temas críticos envolvidos. O usuário de LSD deve ser encorajado a manter os seus olhos fechados e confrontar a experiência, independente qual ela seja. O terapeuta deve repetidamente comunicar ao sujeito que a forma mais rápida de sair do estado difícil é se rendendo a dor física e emocional, experiência ela completamente e procurando canais apropriados para expressá-la. O processo de se render pode ser facilitado grandemente pela música. Se um aparelho de som de boa qualidade estiver avaliável, e o sujeito aberto a isso, música deve ser introduzida na situação tão logo seja possível.

Quando um bom rapport for estabelecido, é possível oferecer assistência ativa usando contato físico reconfortante, elementos de grande esforço lúdico (playful struggle) e pressão ou massagem nas partes do corpo onde a energia parece estar bloqueada. Isso não deve ser feito se o laço de confiança é precário ou ausente; isso é absolutamente contraindicado se o sujeito estiver paranoico e inclui as pessoas presentes entre o seu ou a sua perseguidor(a). Em alguns casos simplesmente estar com o cliente e jogar com o tempo pode ser a única solução. Em tais circunstâncias, é essencial usar qualquer meio possível e recursos existentes para impedir que a pessoa que usou LSD machuque a si mesma ou a outros e cause sérios danos materiais. Enquanto seguir a regra básica, tentativas ocasionais devem ser feitas para estabelecer o rapport e ganhar a cooperação do individuo.

Se a Gestalt da experiência permanecer não concluída quando o efeito da droga está terminando, atividade psicológica ou física deve ser utilizada para facilitar a integração. Idealmente, o sujeito deve completar a sessão se sentindo confortável e relaxado, sem nenhum sintoma residual emocional ou psicossomático. As duas técnicas que se provaram uteis neste contexto – a abordagem abreativa e a hiperventilação de limpeza – foram discutidas mais cedo neste livro (p. 156-7, 159-60). Depois que o sujeito encontrar um estado psicológico e físico confortável, é importante criar uma atmosfera segura e nutridora pelo resto do dia e noite. Idealmente, uma pessoa que passou por uma crise psicodélica não deve ser deixada sozinha, por ao menos 24 horas depois da ingestão da droga. Depois deste tempo, o terapeuta deve ver o cliente novamente, reavaliar a situação e, dependendo da condição da pessoa, escolher uma estratégia futura. Em muitos casos nenhuma disposição adicional é necessária, se a crise foi tratada adequadamente. É útil discutir a experiência com LSD em detalhe e facilitar a sua integração na vida cotidiana do paciente. Se reclamações emocionais ou psicossomáticas significativas apareceram como resultado da experiência com LSD, devem ser tomadas providências para uma terapia de descoberta e trabalho corporal. Uma seleção individualizada de técnicas de meditação, práticas de Gestalt, abordagem neo-reichiana, imaginação guiada com música, respiração controlada, massagem de polaridade ou rolfing devem ser oferecidas ao cliente.

Onde a condição clínica permanecer precária apesar de todo o trabalho de desvelamento, este tratamento deve ser continuado em uma internação. Se todas as abordagens acima se provarem inefetivas, a integração pode ser facilitada por meios químicos. Idealmente, uma sessão de psicodélica supervisionada deve ser agendada depois da preparação adequada. Esta abordagem pode parecer paradoxal ao profissional de saúde mental médio, desde que ela envolve a administração da mesma droga ou categoria de drogas que aparentemente trouxe ao cliente o problema em primeiro lugar. No entanto, o uso judicioso de psicodélicos nestas circunstâncias é o tratamento preferencial. A experiência clínica mostrou que é extremamente difícil restaurar as defesas pelo uso de técnicas de cobertura como os tranquilizantes, uma vez que o inconsciente foi aberto por uma poderosa substância psicodélica. É muito mais fácil continuar a estratégia de desvelamento e facilitar a completar a Gestalt não finalizada.

Psilocibina, metilenodioxianfetamina (MDA), tetrahidrocanabinol (THC), e dipropiltriptamina (DPT) são alternativas viáveis ao LSD. Eles têm os mesmos efeitos gerais e são menos contaminados por má publicidade. MDA e o THC parecem ser particularmente úteis neste contexto, por causa de seus efeitos suaves e afinidade seletiva a sistemas positivamente governados no inconsciente. Trabalho psicológico efetivo com estas substâncias envolve menos dor emocional e psicossomática do que quando o LSD é utilizado.

Como os psicodélicos acima não estão prontamente avaliáveis, e obter permissão para usá-los envolve procedimentos administrativos tediosos, uma sessão com Ritalina (100-200mg) ou Ketalar (100-150mg) pode ser uma abordagem factível. Tranquilizantes não devem ser usados em nenhuma condição relacionada ao uso de psicodélicos até que todas as abordagens de desvelamento acima tenham sido tentadas e falharam.

Abordagens poderosas sem drogas também pode ser usadas no lugar de tranquilizantes em todos os casos nos quais a experiência com LSD pobremente resolvida resultou em condições psicóticas de longo prazo e hospitalizações psiquiátricas durando meses ou anos. Se estes não produzem melhora clínica suficiente, terapia psicodélica, usando as substâncias mencionadas acima, é a próxima escolha lógica. Ketalar, uma droga que é legalmente avaliável e foi usada no contexto médico para anestesia geral pode se provar promissora nestes casos desesperados.

Eu gostaria de concluir esta discussão da intervenção em crise psicodélica com a descrição da situação mais dramática deste tipo que eu encontrei na minha carreira profissional.

No meu terceiro ano em Big Sur, Califórnia, eu fui acordado às 4:30 em uma manhã por uma ligação telefônica. Era o guarda noturno do próximo Instituto Esalen pedindo ajuda. Um casal de jovens chamado Peter e Laura, que estavam viajando pela costa, estacionaram o seu trailer VW na rota costeira 1 nas proximidades do Instituto Esalen e decidiram tomar LSD juntos. Eles saíram da cama no trailer e, pouco depois da meia noite, ingeriram a droga. A experiência de Laura foi relativamente suave, mas Peter progressivamente desenvolveu um agudo estado psicótico. Ele se tornou paranoico e violento e depois de um período de agressão verbal ele começou a jogar coisas em volta e demolir o carro. Neste ponto, Laura entrou em pânico, trancou ele no trailer e buscou ajuda em Esalen. Ele apareceu na guarita completamente nua, segurando as chaves do carro em suas mãos. O guarda noturno conhecia sobre meu trabalho prévio com psicodélicos e decidiu me ligar; ele também acordou o Rick Tarnas, um psicólogo residente que fez a sua dissertação sobre drogas psicodélicas.

Enquanto o guarda estava cuidando da Laura, que se acalmou e teve uma experiência prazerosa e não complicada com LSD, Rick e eu andamos para o trailer. Na medida em que nos aproximamos do carro nós ouvimos os altos barulhos e gritos; quando chegamos mais perto, percebemos que várias das janelas estavam quebradas. Nós destrancamos o carro, abrimos a porta e começamos a conversar com Peter. Apresentamo-nos e falamos para ele que tínhamos considerável experiência com estados psicodélicos e viemos para ajuda-lo. Eu timidamente enfiei a minha cabeça dentro da porta e olhei para o campista; uma garrafa de meio litro não acertou a minha cabeça por 10 centímetros e caiu no painel. Eu repeti isso varias vezes e mais dois objetos vieram voando em minha direção. Quando sentimos que Peter não tinha mais nada para jogar, nos rapidamente nos movemos na direção do campista e deitamos na cama dobrável, em cada lado dele.

Nós continuamos a conversar com o Peter, assegurando a ele que tudo estaria bem em uma hora ou duas; sabendo que ele e sua namorada tinham tomado LSD depois da meia noite, nós podemos dar ele um prazo de tempo definido. Tornou-se óbvio que ele estava em um estado paranoico e nos viu como agentes hostis do FBI que vieram para busca-lo. Nós seguramos os seus braços de uma forma confortável e tranquilizadora, mudando isso em um aperto firme quando ele buscava escapar, mas evitando um real antagonismo físico e luta. O tempo todo, nos mantemos conversando sobre como nós tivemos experiências difíceis e como elas foram, retrospectivamente, úteis. Esta condição oscilou por cerca de uma hora entre desconfiança com impulsos agressivos carregados de ansiedade e episódios de alívio quando era possível se conectar com ele.

Na medida em que o tempo passava e o efeito do LSD se tornava menos intenso, Peter vagarosamente começou a desenvolver confiança. Ele estava cada vez mais disposto a manter seus olhos fechados e encarar a experiência e nos estávamos mesmo aptos a começar a trabalhar, cuidadosamente, nas partes bloqueadas do seu corpo, encorajando a plena expressão emocional. Às sete horas todos os elementos negativos tinham desaparecido por completo da experiência com LSD do Peter. Ele se sentia purificado e renascido e estava verdadeiramente aproveitando o novo dia. Sua hostilidade prévia se tornou em uma gratidão profunda e ele se manteve repetindo o quando ele apreciou a intervenção.

Aproximadamente às sete e meia Laura apareceu no trailer e se juntou a nos; ela estava em uma ótima condição, mas estava naturalmente preocupada sobre Peter. Rick e eu ajudamos a dissipar as consequências negativas dos eventos dramáticos da noite e facilitamos a reunião deles. Nós os aconselhamos fortemente contra dirigir naquele dia. Eles gastaram o dia de lazer no oceano Pacífico e no próximo dia continuaram a sua jornada ao sul. Eles estavam em um bom animo, embora estivessem um pouco preocupados sobre a conta de reparo de seu trailer danificado.

Cogumelos mágicos na minha psicoterapia: um mergulho no sagrado

Por: Fernando Beserra

É um grande prazer fazer a minha estreia como colunista aqui no Mundo Cogumelo. Me lembro que o site já era uma referência para mim quando comecei a escrever em um antigo blog: o Enteogenico, em 2009. Segui escrevendo a coluna Portas da Percepção, no Hempadão, a partir de 2010, durante quase 10 anos. E de lá para cá, o movimento psicodélico brasileiro amadureceu e os conhecimentos se tornarem mais amplos e acessíveis. Para que me conheçam um pouco: sou psicólogo, um dos membros fundadores da Associação Psicodélica do Brasil (APB) e atualmente faço meu doutorado em psicologia clínica (PUC-SP) sobre o suporte psicológico às crises induzidas por psicodélicos.

Neste primeiro texto, aqui no mundo cogumelo, vou escrever um pouco sobre uma experiência que tive com cogumelos mágicos em contexto terapêutico, no qual fiquei, durante um pouco mais de seis horas, acompanhado por uma psicóloga e um psicólogo. Estudo o tema da psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos há muitos anos, já tendo realizado grupos de estudo e dado cursos sobre o tema. Parte deste processo, no que tange seu viés coletivo, em especial sobre a integração da experiência psicodélica, foi consolidado em um projeto coletivo no TRIP (Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica), um projeto da Associação Psicodélica do Brasil (https://associacaopsicodelica.org/trip/), que teve o Sandro Rodrigues como idealizador/organizador. Mas como não há regulamentação, não é possível realizar a terapia psicodélica de forma oficial. Por esta razão, no melhor dos casos, posso informar profissionais de saúde que utilizarei meus cogumelos, por meu próprio desejo, e eles podem utilizar um manejo, por meio da uma compreensão de redução de danos e da ética profissional, isto é, não negarem o atendimento. Além, é claro, de depois de qualquer experiência pessoal com psicodélicos, também poderem contribuir com a integração da experiência, caso sejam profissionais capacitados e não sejam preconceituosos.

A experiência narrada foi realizada em 2020. Há algum tempo estava usando apenas microdosagem e/ou minidosagem, tendo feito, inclusive, o protocolo do James Fadiman no primeiro caso. Tal uso cuidadoso se deveu a uma mudança no padrão de uso, desde que tive um quadro de ansiedade no final de 2018, quando me encontrava absolutamente absorvido por uma quantidade de trabalhos e responsabilidades sobre-humanas. Desde então, retornei a psicoterapia e utilizei durante alguns meses um antidepressivo inibidor seletivo de recaptação de serotonina (ISRS), além de manter um uso de ansiolítico em SOS, que logo abandonei. Quando abandonei o antidepressivo, após alguns meses de uso, conforme preconizado e prescrito, iniciei o protocolo de microdosagem de LSD, testados com o reagente de Ehrlich, o que acredito que tenha ajudado a realizar um desmame mais tranquilo do antidepressivo, em especial devido aos efeitos serotoninérgicos (e, quem sabe, à neurogênese) relacionados aos efeitos dos psicodélicos indois.

O uso dos cogumelos não me era desconhecido, embora nunca tenha feito uso regular deles. Desta forma, optei por uma dose de 3g de Psilocybe cubensis desidratados, de uma fonte que sabia que conseguiria cogumelos com um efeito bastante potente. Além disso, sempre estive bastante ciente, pelos usos que já realizei de substâncias psicodélicas, que o fator set-setting-matrix por vezes é mais potente do que um olhar reducionista e quimicocêntrico da dose. Não compactuo da visão, para mim uma bobagem, de achar que a dose forte ou heroica é 5, 7 ou 10g, sem considerar o sujeito e o ambiente de uso. Entre o padrão/genérico e o concreto, podem ocorrer grandes abismos, por razões que não pretendo aprofundar aqui.

Além disso, a escolha pelos cogumelos com psilocibina/psilocina parecia ser uma escolha adequada, já que estudos (GROB et al., 2011; GRIFFITHS et al, 2016; ROSS et al, 2016) demonstram a sua importância para redução de ansiedade, mesmo que em um contexto diferente do meu (nestes estudos a ansiedade teve melhoras, mas os estudos focaram na ansiedade em pacientes com doenças terminais). Na verdade, os cogumelos com psilocibina parecem ter usos terapêuticos em diferentes campos da saúde mental, como discuto neste texto (https://www.cartacapital.com.br/blogs/hempadao/cogumelos-e-saude-mental/).

Durante todo o último período de psicoterapia fui aprendendo diversas formas de manejo da minha ansiedade, assim como mergulhando em minha sombra, nas questões que surgiram do meu si-mesmo e de outros arquétipos e complexos constelados. Tomando consciência, aos poucos, dos meus demônios e potenciais latentes. Mas a questão da ansiedade permanecia lá. Mesmo com ou sem o antidepressivo. Mesmo após tanto tempo de análise e mesmo sem crises que me deixassem atordoado e com a sensação de morte, lá estava ela. E por vezes me incomodava muito. Na verdade, ainda incomoda. E, bem, me parecia que em algum momento seria bom buscar não apenas mecanismos para lidar e fazer ela diminuir, mas olhar ela de frente. Encontrar a sua raiz ou a sua finalidade. Para que ela precisava se postar ali? E por que, afinal, eu não tinha encontrado uma forma de integrar aquilo que fazia o sintoma surgir… Como ir além da razão, do racional e olhar a ansiedade de frente? Sonhos e imaginação ativa certamente eram formas que eu já utilizara. Mas, ainda assim, sentia que não tinha entrado realmente neste espaço e que era necessário ir além. Além da busca de superar a ansiedade e de cura, havia ainda uma busca, paradoxal, de viver o que tivesse que ser vivido durante a experiência psicodélica, de forma a não me fechar em uma expectativa que pudesse dificultar o mergulho no inconsciente. É importante escrever, sobre este tópico, que como psicólogo junguiano, tenho a compreensão de que a relação entre consciente e inconsciente seja marcada pela compensação.

Na psicologia analítica entende-se que, ao longo do processo de vida de uma pessoa, seu crescimento e desenvolvimento, o uso contínuo de determinadas funções psicológicas (pensamento-sentimento-sensação-intuição) levam a unilateralidade da consciência, a padrões de conduta que excluem uma parcela dos conteúdos e pulsões humanas ao inconsciente, seja por uma via de repressão ou pela pouca atenção disponibilizada para estes. A unilateralidade, aponta Jung (1958/2006, par 138): “é uma característica inevitável, porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade. A unilateralidade é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente”. Dito de outro modo, se eu ficar focado demais em uma leitura racional/conceitual do mundo, provavelmente vou deixar de observar, continuamente e cada vez mais, certas dimensões afetivas ou avaliativas sobre o mesmo mundo/fenômeno que eu me relacionava/observava. O direcionamento da consciência é compensado ou complementado pelo inconsciente, tencionando a produção de símbolos. A posição da pessoa diante do inconsciente e da emergência de imagens carregadas de afetos, até então negados ou não reconhecidos, é fundamental para o desenvolvimento deste processo. O apoio do terapeuta adequadamente treinado também seria determinante para ajudar o paciente a efetivar a reunião de consciente e inconsciente e para chegar a uma nova atitude (JUNG, 1958/2006).

Após escrever um pouco sobre o set, isto é, sobre as minhas expectativas, mas que também envolvem a minha psique como um todo, é preciso escrever sobre o setting.

O uso dos cogumelos foi equivocadamente feito antes de chegar no espaço que seria realizado o uso, em um consultório. Quando entrei no carro para seguir com o um dos terapeutas para o consultório, resolvi tomar as 10 capsulas de 300mg de cogumelos mágicos. Por sorte não tivemos trânsito e chegamos no consultório cerca de 15 minutos depois. O efeito demorou menos de 20 minutos para começar e já começou bastante forte. Quando chegamos no consultório não houve muito tempo para preparar o som e o que fosse necessário para a viagem. Deu tempo, mas foi tudo por pouco. Pensei em outras viagens que o tempo para fazer efeito demorou bem mais, cerca de 30 a 40 minutos.

M.A.P.S.

Um dos pontos centrais era a escolha do setting musical. Para tal manifestação da mente, foram escolhidas as músicas que a Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) utiliza em psicoterapia aliada ao uso de MDMA. As músicas foram muito boas e importantes durante a viagem, mas em alguns momentos é como se estivessem “fora de tempo”, em especial no final da sessão, pensando nos momentos da terapia psicodélica desde o período da latência, passando pelo platô até a descida do efeito. Ex: músicas muito tensas ou aceleradas, que podem ser propícias para o momento do platô, podem ser pouco adequadas no momento que se espera uma saída da viagem, mais tranquila, que seria o fechamento daquela experiência.

Cabe destacar que eu me mantive com uma espécie de venda nos olhos (na verdade um tecido) durante a experiência e fiquei, boa parte dela, deitado em um sofá, enquanto escutava a música.

Genericamente, a experiência se desenvolveu em cenas. A cada música eu entrava em um território, em uma narrativa. Afetivamente foi tudo muito impactante. Eu coloquei as músicas em uma caixa bluetooth e acabei preferindo ficar sem fones de ouvido. Algumas destas narrativas, que vinham com a música, eram mais assustadoras, outras mais agradáveis. Em tempo, quando abria o olho (imagino que tenha ficado cerca de 2 horas sem abri-los), tudo se movia a todo tempo. Via as energias seguindo meus movimentos e o chão se conectando [cada fragmento] e movendo. Também pareciam padrões (o chão).

Um primeiro impacto foi pensar o quão autorizado eu estaria para falar o que eu vivia, para expressar as imagens do mistério/sagrado para os terapeutas. E o quão autorizados estávamos para realizar aquela terapia/cerimônia. Então eu percebi que eu não estava em uma sala de consultório, mas que eu estava, paradoxalmente, em um templo sagrado. O consultório deveria ser um templo para poder receber as experiências psicodélicas. Se não fosse assim, não havia autorização para conduzir a experiência. Essa mensagem foi sentida como um aprendizado, tanto na experiência, quanto após a mesma.

A psilocibina já é conhecida – no contexto da ciência – em catalisar experiências religiosas desde a pesquisa de doutorado do psiquiatra Walter Pahnke, orientada pelo psicólogo Timothy Leary em 1962, quando Pahnke forneceu psilocibina a um grupo experimental no Good Friday Experiment. No retorno das pesquisas com psicodélicos, uma nova experiência de campo foi realizada, desta vez por Roland Griffiths, Johnson e Maclean, que observaram que a experiência com psilocibina produz uma mudança de personalidade nos usuários. Os pesquisadores já sabiam que, de acordo com as pesquisas de Metzner em 1963 e McGlothlin e Arnold, de 1971, que administrada em condições de suporte, 50 a 80% dos participantes reivindicavam mudanças benéficas na personalidade, valores, atitudes e comportamentos.

Para Griffiths e outros (2011) a experiência positiva da psilocibina, para um impacto de longo termo, depende da profundidade dos insights e de experiências “tipo-místicas”, como as descritas por Pahnke em sua experiência do Good Friday Experiment. Os temas centrais da experiência mística, como definida por Stace e Hood são: sentimentos de unidade e interconexão com todas as pessoas e coisas, um senso de sagrado, sentimentos de paz e alegria, sensação de transcender o tempo e o espaço normais, inefabilidade, e uma crença intuitiva de que a experiência é a fonte de verdade objetiva sobre a natureza da realidade.

Então toda aquela psicoterapia precisava dialogar com o sagrado. Parece que precisaria ocorrer uma conexão entre a ciência e os saberes tradicionais. Não é que eu ou os psicólogos precisassem ser xamãs, mas é como se tivéssemos que estar conectados com aquele saber ancestral.

Até duas horas após o início do efeito (10:30 às 13h aprox. – primeira vez que vi a hora) certamente foram as viagens mais fortes. Foi curioso (e falei muitas vezes essa palavra, sem saber me expressar melhor), que no início da experiência é como se eu já tivesse recebido todas as informações que eu buscava. Vinham insights como mensagens de autoridade [que eu tentava expressar] e eu falava, mas muito baixo, e para os terapeutas parecia mesmo que eu estava falando comigo mesmo, o que era verdade, mas ao mesmo tempo eu tentava narrar – sem sucesso – o que estava acontecendo. E meus braços dançavam no ar, em uma busca de manter aquela conexão viva e alinhada.

Uma mensagem em particular que foi muito forte e que eu recebi foi que o segredo era me aceitar, inclusive com a minha ansiedade. Isso foi muito impactante e impressionante, quer dizer, a ansiedade compreendida como algo que me constituía e que eu deveria aceitar, olhar com carinho. Não é nada simples, mas posso dizer que esse posicionamento fez com que eu lidasse melhor com ela e evitasse o uso de medicações.

Uma imagem muito forte foi a de uma cobra. Me recordo de mais de uma vez ver os olhos da cobra, uma cobra ameríndia. Quando eu a via, eu percebia que estava entrando novamente na experiência, entrando no mundo dela. No mundo ameríndio e tradicional. A serpente era uma espécie de guardiã do espaço sagrado. Embora seus olhos fossem amedrontadores, era uma guardiã do mundo transcendental, que permitia ver além dos olhos. Depois cheguei a me lembrar, no tocante a serpente/cobra, das pinturas de Alexandre Segrégio (https://alexandreluiz.art.br/galeria/#visionario). Ao lado, um desenho que iniciei depois, buscando me aproximar da imagem.

A entrada era uma imersão no inconsciente coletivo e na autonomia de suas imagens arquetípicas e míticas, que me traziam fortes afetos. Era como se, ao mesmo tempo, tudo estivesse conectado a minha vida pessoal, mas aquelas imagens e cenas expressassem algo muito além de mim.

Em um momento senti como se estivesse passando por uma experiência de nascimento de um terapeuta, como se não contasse, de alguma forma, os anos anteriores como psicoterapeuta e eu estivesse ali passando por uma espécie de ritual de nascimento. Não senti propriamente uma morte. Tampouco me vi nascendo, mas senti essa energia e pensamentos (como se não fossem meus, mas da experiência, desta voz) que eu estava ali nascendo como terapeuta. Eu estava no alto, em um vácuo, para renascer, mas as imagens passavam rápido. Parte me parecia vago, como se eu tentasse/precisasse entender, e parte parecia claro que se tratava deste processo.

É importante recordar aqui do set que mencionei no início do texto. As expectativas que modulam a experiência psicodélica, as imagens arquetípicas que são nela constelados, dependem não apenas das expectativas conscientes, mas igualmente das inconscientes. Era óbvio que, como aquela era a minha segunda experiência psicodélica em contexto terapêutico, eu tivesse uma grande pré-ocupação com a minha formação enquanto profissional e terapeuta. E, aparentemente, este tema periférico se tornou central durante este mergulho psíquico. O processo de morte e renascimento, ou mesmo de nascimento simbólico, são temas arquetípicos, tratados nas mais diversas culturas, mitologias e religiões. Entre os Fang no Congo e no Gabão, por exemplo, ao utilizarem a Tabernantha iboga, psicodélico que contém ibogaina, falam da ocorrência de uma “pequena morte”, por meio da qual a pessoa se reúne aos seus ancestrais que são acompanhados ao reino dos vivos, trazendo generosidade (DE RIOS, 2005).

Em processos de transformação há a importância de um espaço de suporte e fechamento, denominado na alquimia de vas herméticum. Esse vaso alquímico, hermeticamente fechado, facilita a imersão nas chamas dos afetos e do inconsciente. A imersão, por vezes, é sentida como provocando um aniquilamento do eu, para um novo renascimento. No meu caso, não senti esta morte do eu. Mas senti este nascimento como algo muito importante para o meu desenvolvimento enquanto ser humano e enquanto psicoterapeuta. O vaso alquímico, no contexto psicoterapêutico, pode ser comparado ao espaço seguro – no qual o sigilo é resguardado – no qual ocorre a transformação.

Chegando no momento da saída do platô da experiência psicodélica, posso dizer que eu me sentia mais cansado e com medo. Havia um medo sub-reptício do quanto eu suportaria daquela intensidade. E o medo de não voltar já começava a aparecer à consciência… Então eu lembro de ver muito impactado um portão (com duas portas) vermelho, no meio do mar, que dava acesso ao Self e eu não tive coragem de seguir, porque é como se, caso eu abrisse aquela porta, a experiência se tornaria muito mais louca e impactante e também poderia ter muito menos a presença do Eu. Me assustei com isso, com o medo da loucura, e não abri a porta. Senti depois que isso pode ter impactado negativamente a minha experiência (não abrir). Por outro lado, que eu poderia não estar pronto para aquele encontro em particular, pois, por vezes, uma epifania pode cegar ou até matar (amplificação).

Qualquer processo de transformação pode aumentar a ansiedade e o medo, pois é da própria mudança da identidade que está em jogo. Stanislav Grof (1980) expõe que é importante encorajar a pessoa a uma completa rendição experiencial sem controlar ou bloquear o processo em decorrência de reservas ou incertezas cognitivas (GROF, 1987). Neste momento, entretanto, parecia muito difícil, mesmo que me sentisse cuidado, ir além. Parte da experiência posterior com as imagens, foi já de um cansaço mental. Eu via fluxos e não conseguia lembrar depois deles ou acompanhá-los plenamente. Mantive a consciência, mas sinto que neste momento já havia algum rebaixamento de consciência. Só conseguia seguir os fluxos, que também já eram mais brandos (por outro lado).

Várias conversas foram travadas com os terapeutas na medida em que eu ia voltando, e as vezes sentia a necessidade de parar um pouco de conversar, porque era muito cansativo. E eu voltava a deitar e fechar os olhos. Mas se não entrava na experiência, também era cansativo. Na compreensão de Grof (1980), em LSD Psychotherapy, o melhor procedimento teria sido estimular o meu retorno a experiência, mesmo que por meio da hiperventilação. Mesmo que a terapia não tenha sido conduzida desta forma, é importante recordarmos que o suporte a experiências psicodélicas ainda é um campo experimental e muito importante ser desenvolvido. Grande parte das pesquisas contemporâneas enfatiza muito mais os resultados quantitativos e dá pouca atenção a parte qualitativa e dos manejos das sessões com psicodélicos em psicoterapia.

Retorno. Neste final, no momento de descida da experiência, eu ia a um pátio algumas vezes e foi bom, porque pude ver o céu e me sentir bem. Mas posso dizer que meu sentimento ficou muito instável. Me sentia bem, me sentia mal, me sentia com medo, me sentia como um guerreiro, seguro, me sentia desconectado, me sentia de muitas formas. Certamente este foi o momento mais difícil de toda a sessão. Em alguns momentos eu dancei (pouco tempo), com os efeitos mais fortes (foi agradável) e depois tive momentos que tive vontade de dançar, cheguei a querer dançar com os terapeutas, que eles dançassem também, mas me senti afastado. Senti que era uma necessidade minha e não deles. Mas isso fez com que eu sentisse estranho (na segunda vez, que a experiência era menos intensa) e senti que o eu estava inibindo aquele processo. A consciência racional que retornava acabava bloqueando parte daquela experiencia de entrega necessária. Senti como se fosse estranho eu estar dançando no meio do consultório sozinho. Cheguei a desenhar, mas tudo que eu fazia não alterava a sensação de estranhamento e alguma solidão. Eu me sentia muito frágil e pouco seguro de sair dali, enquanto pensava na importância da minha família na minha vida e o quanto eu gostaria de estar bem para estar com ela. Enquanto isso, em uma experiência um pouco mais agradável, o tapete do consultório se tornou um enorme muro de metal, com alguns seres andando. Era um resíduo da trip que retornava, por vezes mais forte. Fiquei bastante tempo olhando aquele tapete alquímico, sem buscar qualquer interpretação.

Após cerca de 4 horas eu fiquei extremamente cansado. O efeito já era periférico, mas o fato de insistir em conversar não era claro se era o melhor a fazer. Por um lado, eu não conseguia retornar completamente a experiência, e permanecia com um humor desagradável e com uma sensação de desamparo bastante profunda, mas sem objeto. Ir embora ou até ir à rua parecia algo muito difícil… Em algum momento percebi que ia ter que lidar com o estado emocional desagradável que eu estava, pois não poderia continuar ali para sempre e não era bom. A despedida foi um pouco triste, do espaço e da terapeuta. Eu não tinha animo para dar uma despedida melhor. Para sair animado de lá, apesar de ter a clareza que tinha sido a uma das experiências psicodélicas mais profundas que eu tinha experimentado.

Matrix. A matrix, de acordo com Betty Eisner (1997), envolve o pré e o pós-experiência psicodélica. Ou seja, as relações ambientais mais amplas que o setting, incluindo amigos e familiares. O modo de suporte dos amigos e familiares pode, de acordo com esta perspectiva de Eisner, alterar o próprio resultado da terapia psicodélica.

Fui me sentar em uma padaria para tomar um suco com o outro terapeuta e comer um pão com ovo. A possibilidade de sair de mim e poder perguntar como ele estava e outras coisas, reduziu levemente os sentimentos difíceis que estava vivendo. Depois disso, fui muito bem acolhido em casa. Embora a minha companheira não use substâncias psicodélicas, ela estava preparada já, ciente da experiência, e havia ligado para ela e falado como estava me sentindo, mais ou menos às 16:30h, um pouco antes de sair da psicoterapia. Tinha pensado em ver algo bem light na televisão (série), preferencialmente alguma série que a minha filha pré adolescente gosta, algo infantil-adolescente. Acabou que elas não foram ver série e vi um episódio de Witcher com a minha companheira, foi bom ela estar comigo e me senti melhor.

Pós-experiência. Fiquei com dor de cabeça a noite até a manhã seguinte. Houve um aumento da ansiedade, que foi melhorando aos poucos. Embora eu estivesse muito cansado, tive dificuldades para dormir e acordei, na verdade me levantei da cama, sincronicidade! às 4:20h da manhã. Fiquei no CPU e depois consegui dormir mais umas duas horas. Foi bom no dia seguinte não ter compromissos mais duros, pois me senti bastante cansado ainda e com instabilidade no humor (embora cada vez menor).

Os sentimentos negativos foram melhorando e três a quatro dias depois eu já estava me sentindo realmente bem. A experiência trouxe muito o que trabalhar posteriormente na psicoterapia regular e não psicodélica e de forma muito mais profunda do que o habitual. Hoje consigo olhar de forma muito positiva para trás, mesmo que tenha sido muito difícil e duro, inclusive pela piora inicial que passei nos dois dias pós-sessão. Por outro lado, tratou-se de um mergulho que eu considero que não seria viável na psicoterapia regular e que promoveu uma ampliação de consciência significativa.

Integração. Eu costumo a dizer que a sessão psicodélica, durante uma prática psicoterapêutica, é onde as coisas começam e não onde as coisas terminam. O impacto terapêutico dos psicodélicos, ao que parece, está relacionado tanto ao efeito subjetivo e fisiológico da substâncias, quanto as posteriores compreensões e integrações da experiência. Isso envolve o quanto nos transformamos na nossa vida diária e em nosso modo de ser e estar no mundo, mesmo que isso nem sempre seja trivial ou óbvio.

Na psicologia analítica, entende-se por integração uma operação psíquica de superação da dualidade e tensão entre consciente e inconsciente, por meio da elaboração de símbolo(s) que permitam incorporar porções cindidas da personalidade. Ocorre, neste caso, um maior equilíbrio psíquico e com a ampliação da consciência, a continuidade de um processo direcionado à totalidade. Em alguns autores do campo da psicoterapia com psicodélicos, a integração já se refere a um aspecto mais simples e prático, isto é, o quanto você transformou ou alterou a sua atividade de vida diária, graças as experiências psicodélicas que viveu. Daí que este processo pode ser ajudado tanto em psicoterapia individual, quanto em grupo, por outros psiconautas. Na verdade, ambas as concepções estão muito relacionadas.

Era isso o que tinha para contar! Espero que tenham gostado e que, em um futuro não muito distante, já tenhamos a psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos regulamentada no Brasil!

 

Referências:

 

BESERRA, F. R. Experienciando a Arte Visionária: uma compreensão junguiana da interação de estudantes com a obra de Alex Grey. 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2014.

 

DE RIOS, M. D. Rejoinder: the bad trip revisited. Anthropology of Consciousness. v. 16, n. 1, 2005, p. 45-48.

 

EISNER, B. Set, setting and matrix. Journal of Psychoactive Drugs, v. 29, n. 2, 1997, p. 213-216.

 

GRIFFITHS, R, R. et al. Psilocybin produces substantial and sustained decrease in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: a randomized double-blind trial. J. Psychopharmacol, v. 30, 2016, p. 1181–1197.

 

GRIFFITHS, R. R. Psilocybin occasioned mystical-type experiences: Immediate and persisting dose-related effects. Psychopharmacology. Berl. 2011; v. 218, n. 4, p. 649–665.

 

GROB, C. S. et al. Pilot study of psilocybin treatment for anxiety in patients with advanced-stage câncer. Archives of general psychiatry, 2011. v. 68, n. 1, p. 71-8.

 

GROF, S. Além do cérebro: nascimento, morte e transcendência em psicoterapia. São Paulo: McGraw-Hill, 1987.

 

GROF, S. LSD psychotherapy. California: Hunter House, 1980.

 

JUNG, Carl Gustav. A função transcendente In: A natureza da psique. Obras Completas, v. VIII/2 – 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 1958/2006b. p. IX-24.

 

MACLEAN, K. A.; JOHNSON, M. W.; GRIFFITHS, R. R. Mystical Experiences Occasioned by the Hallucinogen Psilocybin Lead to Increases in the Personality Domain of Openness. J Psychopharmacol. nov. 2011; v. 25, n. 11, p. 1453–1461.

 

ROSS, S. et al. Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: A randomized controlled trial. J Psychopharmacol, 2016, v. 30, p. 1165–1180.