maconha sono sonhos

A maconha, o sono e os sonhos

O estudo científico da maconha vem contribuindo decisivamente para a compreensão da interação do nosso organismo com o ambiente.

 Texto por Renato Malcher e Sidarta Ribeiro


O sono do ser humano compreende quatro fases distintas, caracterizadas por diferentes padrões de atividade cerebral medidos por eletroencefalografia (EEG). As primeiras três fases formam um contínuo e se caracterizam pela reduzida atividade neuronal no córtex, que produz ondas neurais grandes e lentas. Durante essas fases de sono, coletivamente chamadas de sono de ondas lentas (SOL), quase nunca ocorrem sonhos. A última fase, ao contrário, apresenta alta atividade cortical, ondas neurais rápidas e pequenas, e muito freqüentemente a presença de sonhos. Durante essa fase observam-se movimentos oculares rápidos, dando origem em inglês ao nome rapid-eye-movement sleep, abreviado para sono REM por seus descobridores. O sono REM, quando estabilizado, sempre termina num despertar, mesmo que por minúsculos intervalos de tempo. Durante a noite, ciclamos cerca de quatro vezes por meio do sono de ondas lentas, do sono REM e da vigília.

A anandamida, o primeiro endocanabinóide a ser descoberto, é um poderoso indutor de sono de ondas lentas e de sono REM, causando redução do tempo de vigília.Entretanto, alguns estudos com altas dosagens de THC(mais que 70 mg/dia) verificaram uma diminuição significativa de sono REM. Aumento do estado de vigília e redução do sono REM também foi observado com CBD. Outros estudos reportam que doses mais baixas de THC causam aumento do sono de ondas lentas. O aumento da vigília causado por altas doses de THC contrasta com a aparência de sonolência decorrente da ingestão de maconha. Essa aparência deriva em parte das propriedades relaxantes e vasodilatadoras dos canabinóides, que causam queda das pálpebras e vermelhidão dos olhos. Quanto à sensação subjetiva de sonolência, parece depender crucialmente das dosagens dos diferentes componentes da maconha, da experiência pregressa do usuário, e da hora do dia em que a ingestão ocorre. Alguns usuários crônicos de maconha relatam que a ingestão pela manhã tende a provocar sonolência, enquanto a ingestão no turna provoca aumento da vigília. Em roedores, há evidências de que os níveis de endocanabinóides e de receptores CB1 variam de forma circadiana, se acumulando durante a vigília e decaindo durante o sono.

Os resultados sugerem que a ingestão de maconha durante o dia satura o sistema endocanabinóide de forma a produzir sonolência, mas tem o efeito inverso quando ingerida à noite, quando as doses somadas de endocanabinóides e exocanabinóides seriam menores. É importante ressaltar que entre os diversos canabinóides da maconha existem tanto agonistas do receptor CB1 (THC, por exemplo) quanto antagonistas (CBD,por exemplo). Isso faz da maconha um coquetel farmacológico extremamente complexo no que diz respeito aos efeitos sobre o sono. De modo geral, usuários crônicos de maconha relatam dificuldade de se lembrarem de seus sonhos. Esse efeito parece ser uma combinação da redução de sono REM com um possível aumento do esquecimento matinal, a seu turno ocasionado por efeitos residuais dos canabinóides ingeridos antes de dormir.
Ilustra cannábica O sono e sonho 2
Se por um lado a maconha diminui a ocorrência de sono REM e por extensão diminui efetivamente a oportunidade de sonhar, seus efeitos sobre a vigília são de certa forma oníricos, promovendo um afrouxamento perceptual e lógico que é descrito por muitos usuários como similar ao sonho. Vista por esse lado, a ação da maconha seria a redução do sonho no turno (night-dream) e o aumento da divagação da vigília (day-dream). Tendo em vista que os canabinóides promovem uma desorganização do processamento neuronal e conseqüente facilitação da restruturação dos traços de memória, é fácil compreender que seu uso facilita o processo criativo e a geração de insights. Além de ser um poderoso estimulador do apetite, a maconha é também utilizada como relaxante e mesmo como afrodisíaco. O aprofundamento geral da experiência sensorial enriquece a apreciação e produção das artes, fazendo da maconha uma droga especialmente utilizada pelos que vivem da sensibilidade artística. Não é por acaso que o cantor e compositor de reggae Peter Tosh, líder (assim como Bob Marley) do movimento Rastafari globalizado nos anos 1970, afirma em seu hino pela legalização da maconha (Legalize It) que a maconha é usada por muitos na sociedade, como juízes e médicos, mas começa sua lista pelos cantores e instrumentistas.

Além de favorecer a veiculação de emoções através das artes e estimular a comunicação verbal, a maconha também favorece estados de baixa ansiedade, como a contemplação lúdica, a introspecção, a empatia e o transe místico. Por esses motivos, a maconha é freqüentemente utilizada para reduzir tensões sociais nos mais variados contextos, das prisões às festas dançantes. O conjunto das manifestações comportamentais e sociais associadas ao uso da maconha reflete a ação anti-estressante atribuída ao sistema endocanabinóide por vários cientistas, entre eles o italiano Vincenzo Di Marzo, um dos líderes mundiais nesta área de pesquisa. A relevância das interações sociais para a evolução é irrefutável, adquirindo contornos únicos na espécie humana. A coesão do grupo em animais sociais é fundamental para aumentar as chances de integridade física de cada indivíduo diante da ameaça de um predador, por exemplo. Da mesma forma, em situações de escassez de alimentos, a cooperação aumenta muito as chances de sobrevivência dos indivíduos. Uma das principais funções do sistema endocanabinóide é a de reger o reequilíbrio mental e físiológico do organismo após eventos estressantes. Em animais sociais, podemos incluir também o reequilíbrio social. Os hormônios glicocorticóides iniciam e coordenam os diversos estágios da resposta de adaptação do organismo ao estresse: geram primeiro ajustes de curto e longo prazo nos diversos sistemas do organismo e, à medida que seus níveis vão se elevando também no cérebro, estimulam ali a síntese de endocanabinóides. Estes por sua vez assumem o papel de orquestrar a transição de volta à normalidade fisiológica e comportamental. Para tanto, os receptores CB1 são ativados em diversos circuitos, promovendo o alívio da dor, a dissipação da tensão psicológica e o relaxamento da musculatura. O apetite aumenta para a recuperação da energia gasta e para a estocagem preventiva de energia metabólica extra. As emoções que favorecem os laços afetivos e a interação interpessoal são intensificadas, estimulando o reagrupamento da comunidade. A ação reestruturadora das memórias possibilita o aprendizado de novas estratégias comportamentais para evitar as causas do estresse. No hipotálamo, os endocanabinóides promovem a supressão do eixo neuroendocrinológico que controla os hormônios glicocorticóides, dando um fim à resposta ao estresse.
Ilustra cannábica O sono e o sonho 3
O sistema endocanabinóide funciona, portanto, como um agente tonificante para as funções fisiológicas e mentais, incentivando o reaprendizado e facilitando o reagrupamento social. Há mais de dois mil anos, completamente alheios a estes conceitos, os Citas do norte do Mar Negro exploravam a possibilidade de ativar esse sistema com o uso da maconha, encontrando nos seus vapores um meio para sublimar a dor causada pela morte de um membro de sua comunidade. Mais ao sul, os mesmos vapores que faziam os Citas uivarem como lobos durante o luto motivavam nos aldeões que viviam às margens do Rio Aras a celebração lúdica da vida, por meio do canto e da dança. No planalto tibetano e na Índia, a mesma planta que promovia a consagração dos prazeres sensoriais e afetivos através das relações sexuais, andava de mãos dadas com o poder agregador e contemplativo da fé religiosa. Certamente, não há outra planta medicinal ou droga recreativa que se compare à maconha, tanto em termos de seu alcance étnico-cultural quanto em termos da abrangência de sua ação biológica. O que chama especial atenção nos desdobramentos antropológicos do uso da maconha é exatamente o paralelo com as funções fisiológicas e ecológicas exerci das pelo sistema endocanabinóide nos animais. O estudo científico da maconha vem contribuindo decisivamente para a compreensão da interação do nosso organismo com o ambiente. Ao mesmo tempo, aumenta as esperanças de desvendar o processo evolutivo responsável pelo surgimento dessa planta que parece saber tanto sobre a complexidade humana.

Sidarta Ribeiro é professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Renato Malcher-Lopes é professor adjunto do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (UnB).

* Artigo adaptado do livro Maconha, Cérebro e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Vieira & Lent Casa Editorial, 2007.

Arte: J.R. Bazilista

Reproduzido de Cannabica

Estudo relaciona uso de maconha a longo prazo e saúde do pulmão

Recente estudo, publicado na edição de janeiro/12 do Journal of the American Medical Association aponta que a exposição à fumaça de maconha não é prejudicial ao pulmão como se imaginava.

O estudo testou e analisou as funções pulmonares de 5,000 jovens e adultos entre 18 e 30 anos. Após 20 anos de testes, os pesquisadores encontraram resultados polêmicos: usuários regulares de maconha (definido em 1 baseado por dia ao longo de 7 anos)  não tinham nenhum défict perceptível na atividade pulmonar em comparação aos não fumantes.

De fato, os cientistas ficaram surpresos ao perceber que no teste de performance pulmonar os usuários de cannabis tiveram  resultados melhores que os não fumantes e os fumantes de tabaco. Por quê? Aparentemente a explicação é que o ato de inalar a maconha – prendendo cada baforada o máximo de tempo possível – é uma atividade muito parecida com o teste pulmonar efetuado.  dando uma vantagem aos usuários de maconha sobre seus colegas testados.

A maior parte da cultura humana sempre considerou a cannabis como um medicamento. Rainha Victoria usava para aliviar suas cólicas menstruais. Os extratos eram prescritos pelos médicos e estava disponível em todas as farmácias dos EUA. De acordo com o livro “Fast Food Nation” do autor Eric Schlosser, as atitudes em relação à cannabis só mudaram quando os americanos começaram a opor-se a sua utilização pelos imigrantes, por volta da virada do século 20.  Schlosser disse numa  Entrevista na PBS:

“o que é interessantes se você olhar para as origens da proibição da maconha nos Estados Unidos, verá que coincide com o crescimento do sentimento anti-imigração. . . na verdade desde os tempos primódios desse século, a guerra contra a maconha tem sido muito mais uma guerra contra o tipo de pessoas que fumam maconha, contra os mexicanos, os negros, os músicos de jazz, os beatniks, os hippies, os artistas de hip-hop. é uma guerra contra os não-conformistas e as leis contra a maconha vem sendo usadas como uma forma de reafirmar o que são vistos como tradicionais valores americanos.”

As atitudes estão mudando, no entanto. 17 estados agora oferecem agora de forma legal maconha medicinal para seus pacientes médicos, e o número está crescendo. Comunidades simpáticas à cannabis como Oaksterdam, impensáveis uma década atrás, estão surgindo e fazendo campanha para ter a maconha regulamentada e tributada, como as bebidas alcoólicas.

Em tempos que maconha está na boca do povo, estudos como esse publicado no JAMA  dissipam as falsas afirmações sobre perigos deletérios à saúde e promovem os benefícios medicinais desta planta. De acordo com o Dr. Donald P. Tashkin, um pesquisador da maconha no UCLA medical school, o THC é conhecido por ter propriedades anti-inflamatórias, o que pode impedir a irritação pulmonar que gera o desenvolvimento da doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), que freqüentemente devasta os pulmões de fumantes de tabaco. Uma vez que inalar a fumaça não filtrada de uma planta de maconha queimada não é exatamente a melhor forma de consumo, ele sugere que quem quiser desbloquear o seu potencial químico pode encontrar maneiras de menor impacto para fazê-lo.

Fontes:

– Takepart.com

– JAMA – No Decline in Pulmonary Function with Marijuana Use JWatch General. 2012;2012(126):2.