Thomas Kuhn e a Revolução Psicodélica

Por Peter Webster
Uma palestra apresentada à
Sociedade Italiana de Estudo dos Estados de Consciência
Perinaldo, Itália, agosto de 2006

Traduzido da Psychedelic Library

 

 

Introdução

A descoberta, ou melhor dizendo, a redescoberta de drogas psicodélicas no meio do século 20 foi essencialmente uma descoberta científica; no entanto, pouca atenção tem sido dada ao contexto dessa descoberta em relação à história e filosofia da própria ciência. Uma grande quantidade de atenção foi, ao contrário, concentrada nas conexões entre o conhecimento moderno sobre psicodélicos e as tradições xamânicas, a longa história do uso religioso de plantas e preparações psicoativas e as possíveis extensões modernas dessas antigas tradições psicodélicas para fins médicos. É claro, de se esperar que esse seja o caso – foi o curso natural que a pesquisa psicodélica seguiu.

Mas, para entender mais plenamente certas peculiaridades que se seguiram à redescoberta psicodélica, podemos nos beneficiar de uma verificação de como essa descoberta se encaixa na história da tradição científica em si. Acredito que é SOMENTE a partir de tal observação que podemos entender nossa situação atual, onde parece que apenas pequenos grupos de pessoas, muitas vezes profissionalmente isolados, levam a sério o legado e as implicações da redescoberta psicodélica, onde a esmagadora maioria dos cientistas atualmente ativos não tem qualquer conhecimento preciso sobre drogas psicodélicas e, de fato, se opõe e rejeita ativamente a ideia de que as drogas servem para algo.

Para muitos, aparentemente, essa rejeição e repressão é algo incomum na ciência, algo que os pioneiros psicodélicos não mereciam. Para muitos, aparentemente, parece que quando verdades são reveladas pela pesquisa – mesmo quando são revolucionárias e talvez chocantes para muitos – essas verdades devem, pela natureza da ciência, serem aceitas e desenvolvidas pelo mainstream.

No entanto, um exame da história do avanço científico revela algo bem o oposto, e um estudo de como a ciência realmente opera na prática pode nos dar um pouco mais de coragem para persistir no que tantos outros consideram uma mera tolice.

 

Thomas Kuhn e a Revolução Psicodélica

Thomas Kunh

Pelo que posso dizer, Thomas Kuhn não tinha nada a dizer sobre drogas psicodélicas ou os vários usos que podem ser dados a elas. O título da minha palestra de hoje pode, portanto, parecer um tanto inadequado, não fosse o fato de que Kuhn TEVE MUITO A DIZER sobre revoluções – revoluções científicas, ou seja, o tipo de agitação geral dos conceitos fundamentais que ocorre em várias disciplinas científicas de tempos em tempos. Thomas Kuhn, como você pode saber, construiu toda uma teoria das revoluções científicas: o que elas são, como e por que ocorrem, quem as provoca – e, ao fazê-lo, redefiniu o que é a ciência de muitas maneiras.

O que conecta Kuhn aos psicodélicos é que a redescoberta dos psicodélicos no meio do século 20 prometeu mudanças revolucionárias em vários campos de investigação científica e medicina e, como afirmarei mais adiante, uma revolução no conceito de estudo científico em si. Refiro-me à redescoberta dos psicodélicos, é claro, porque como todos sabemos, o uso dessas substâncias é muito antigo, global e provavelmente remonta ao início da existência humana. Os psicodélicos tiveram que ser REDESCOBERTOS porque a civilização industrial moderna vem sendo uma das muito poucas sociedades humanas quase que totalmente inconscientes das plantas psicodélicas e sem qualquer uso geral delas para cura¹, iniciação, práticas religiosas e heurísticas, e assim por diante. (Nota do tradutor ¹: da data do texto para cá, inúmeros estudos médicos vem sendo testados e aplicados por instituições como Berkeley, Johns Hopkins e MAPS)

As potenciais mudanças revolucionárias que essa redescoberta deveria ter trazido teriam sido bem descritas e sua gênese e crescimento bem previstos pela teoria de Kuhn se não fosse pelo fato de que praticamente todas essas promessas revolucionárias ainda permanecem não cumpridas, sufocadas por uma longa reação antipsicodélica. Essa reação foi provocada pela primeira vez no final da década de 1960 por forças sociais e governamentais nos EUA, perpetuando uma longa e sombria tendência puritana nos Estados Unidos que trouxe ao mundo a grande loucura das políticas proibitivas modernas. Mas logo depois, o próprio establishment científico pareceu ser infectado com essa situação semelhante a uma doença, de modo que hoje é raro o cientista que tem qualquer indício de que a redescoberta de drogas psicodélicas pode ser algo não apenas interessante, mas extremamente importante e potencialmente revolucionário. Apesar da verdade do assunto, tão óbvia para aqueles que sabem, dizer que a redescoberta psicodélica foi um dos desenvolvimentos sociais e científicos mais importantes do século XX seria algo ridicularizado pela grande maioria dos cientistas vivos hoje.

Essa resistência reacionária à revolução científica, embora seja uma grande decepção e, em geral, um descrédito aparente à legitimidade do chamado progresso científico, é, no entanto, o estado normal das coisas, como mostram as descobertas de Kuhn. Quando examinado de perto da perspectiva de Kuhn sobre a história da ciência, o empreendimento científico é visto como quase arrogantemente conservador — uma história repleta de repressão de ideias novas e revolucionárias. Todos nós estamos familiarizados com exemplos de repressão como a cruzada do Vaticano contra Galileu, mas Kuhn mostra como a própria comunidade científica tem sido frequentemente tão repressiva da inovação científica quanto qualquer grupo religioso ou social.

Não há melhor professor do que Thomas Kuhn, portanto, para nos instruir sobre como e por que a revolução psicodélica foi paralisada por tanto tempo, aparentemente um fracasso e sem influência significativa em mais de quatro décadas de avanço científico e intelectual. A teoria geral da revolução científica de Kuhn pode até nos ajudar a entender como finalmente trazer uma pesquisa psicodélica significativa para o mainstream científico, onde ela certamente merece estar. Refiro-me aqui à pesquisa científica “significativa” porque também é óbvio para aqueles que conhecem, que limitar a pesquisa ao uso de psicodélicos como medicamentos para o tratamento de condições de doença e anormalidade rejeita a maior parte de seu potencial. Claro, a entrada da pesquisa psicodélica no “mainstream científico” alteraria necessariamente a própria natureza da ciência, talvez levando a um abandono dos piores aspectos de seu reducionismo convencido por uma maneira mais pragmática de estudar e entender os fenômenos mais complexos do universo, entre os quais, o próprio cientista. E todos nós somos, até certo ponto, cientistas. Quem foi Thomas Kuhn, então? Ele foi professor emérito de filosofia e linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts até sua morte em 1996, e foi talvez o maior historiador da ciência dos últimos tempos. Sua obra seminal, The Structure of Scientific Revolutions, mesmo em virtude das longas e acaloradas críticas que recebeu desde sua primeira publicação em 1962, deve ser classificada como talvez o livro mais importante sobre o assunto já publicado.

“The Structure of Scientific Revolutions” é importante não apenas para historiadores ou filósofos, mas para todas as pessoas que se acreditam capazes de investigação científica ou pensamento analítico, mesmo em nível amador. Muito foi escrito e ensinado até mesmo em nossas escolas secundárias e universitárias sobre o método científico, sobre como os cientistas conduzem pesquisas e praticam seu ofício. Mas Thomas Kuhn, com um tratado magnífico, revolucionou o próprio conceito do que é uma ciência e como ela procede. Kuhn até questiona a noção amplamente difundida de que o conhecimento científico faz algum tipo de progresso cumulativo em direção à compreensão final.

A Estrutura das Revoluções Científicas não é longa nem difícil por si só, mas contém ideias tão novas e radicalmente brilhantes que leva algum tempo e várias leituras para ser absorvida completamente. Muitos escritores, incluindo o próprio Kuhn, tentaram compor um resumo conciso da teoria que o livro apresenta, mas em vista do debate animado e às vezes acalorado a favor e contra suas ideias, deve ser óbvio que nenhum tratamento superficial pode fazer justiça a ele. Esta cautela deve incluir minha própria apresentação hoje, e os aspectos de sua teoria que discutirei não são de forma alguma tudo o que há na teoria de Kuhn. Eu apenas escolhi algumas características-chave da teoria com as quais podemos entender melhor o tópico em questão, a redescoberta científica de drogas psicodélicas.

Talvez o mais procurado ao tentar resumir Kuhn seja uma definição precisa daquela famosa palavra que ele introduziu na filosofia da ciência, aquela palavra que se tornou tão frequentemente ouvida em referência a conceitos ou ideias fundamentais, o paradigma. O próprio Kuhn define um paradigma como “uma ou mais conquistas científicas passadas que alguma comunidade científica particular reconhece por um tempo como fornecendo a base para sua prática futura”. Mas como uma aproximação próxima que podemos entender mais facilmente no contexto, podemos pensar em um paradigma como um conjunto inter-relacionado de conceitos, valores, crenças e técnicas fundamentais que definem uma maneira obrigatória de abordar problemas científicos em um determinado momento e em uma determinada disciplina. O paradigma é o palco no qual o jogo da investigação científica acontece – uma plataforma que define o cenário, o contexto, as limitações e os limites para a agenda de pesquisa. Embora o paradigma possa ser pensado como uma descrição precisa de um aspecto da realidade, na verdade o paradigma é mais como um mapa ou modelo, uma aproximação ou estrutura para organizar dados atualmente disponíveis e definir pesquisas permitidas.

Pode parecer estranho falar sobre “pesquisa permitida” na ciência, pois a imagem que podemos ter da ciência e dos cientistas é de liberdade de investigação — a ideia de que pelo menos alguns cientistas exploram a realidade sem barreiras, onde quer que sua busca pela verdade os leve. Mas Kuhn mostra que isso é um mito. Operando dentro da estrutura de um determinado paradigma científico, a situação real é bem diferente do mito. Kuhn escreve:

“Um paradigma suprime a inovação, pode até isolar a comunidade daqueles problemas socialmente importantes que não são redutíveis à forma de quebra-cabeça típica da ciência normal, porque não podem ser declarados em termos das ferramentas conceituais e instrumentais que o paradigma fornece.”

Nesta citação, Kuhn se refere à “ciência normal”, e agora devemos considerar este e outros dois conceitos-chave.

Ciência normal é o que praticamente todos os cientistas fazem o tempo todo quando nenhuma revolução científica é iminente, e na descrição pode soar um tanto banal para os não iniciados: consiste essencialmente em uma operação de “limpeza” onde os detalhes de um determinado paradigma e suas aplicações permitidas são elaborados com mais e mais. Parece, como diz Kuhn,

“… uma tentativa de forçar a natureza na caixa pré-formada e relativamente inflexível que o paradigma fornece. Nenhuma parte do objetivo da ciência normal é evocar novos tipos de fenômenos; na verdade, aqueles que não se encaixam na caixa geralmente não são vistos. Nem os cientistas normalmente visam inventar novas teorias, e eles geralmente são intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal é direcionada à articulação desses fenômenos e teorias que o paradigma já fornece.”

Pelo que acabamos de aprender sobre ciência e seus paradigmas, já podemos ver claramente a ameaça à ciência normal que a redescoberta de psicodélicos e estados alterados de consciência forneceu. Foi uma ameaça direta a várias disciplinas científicas e médicas, uma inovação destruidora de paradigmas que estava destinada a ser reprimida por um longo tempo.

Dois outros conceitos importantes da teoria de Kuhn são a mudança de paradigma e a revolução científica. Resumidamente, todos os paradigmas científicos eventualmente enfrentam problemas, quando descobertas experimentais anômalas se acumulam a ponto de esse paradigma começar a mostrar suas falhas. Se os problemas persistirem e não puderem ser resolvidos sob os ditames do paradigma existente, uma mudança de paradigma deve então eventualmente ocorrer, onde um novo paradigma, definindo de uma nova maneira os conceitos fundamentais e a agenda de pesquisa a serem seguidos, então substitui o antigo paradigma. Como esse processo tem precedência sobre a continuação da ciência normal, diz-se que uma revolução científica está ocorrendo.

Para entender na prática o que Kuhn quer dizer com paradigma e o que é uma mudança de paradigma, nos ajuda observar o que os termos significam em relação a uma revolução científica específica. O exemplo mais usado de uma revolução científica e sua mudança de paradigma associada foi a revolução copernicana na astronomia.

Nicolau Copérnico

Copérnico, como você certamente sabe, foi o primeiro a promover a ideia herética de que o Sol, e não a Terra, era o centro do nosso sistema planetário. A astronomia centrada na Terra de Ptolomeu, que existia desde a época de Cristo, funcionou admiravelmente bem por um longo tempo, sendo capaz de prever as posições de estrelas e planetas com uma precisão que foi suficiente até o século XVI. Mas com a invenção e o aprimoramento do telescópio e a melhoria das habilidades científicas dos astrônomos, anomalias experimentais começaram a aparecer, especialmente para entender e prever o movimento dos planetas.

Dois pontos importantes a serem observados neste exemplo são:

  1. Os conceitos de paradigma e mudança de paradigma são claramente ilustrados. A revolução copernicana teve como raiz a mudança de paradigma do conceito de um sistema planetário geocêntrico para um heliocêntrico. Mas, ao examinarmos mais exemplos de revoluções científicas, descobriremos que um paradigma científico pode ser um pouco mais complexo, envolvendo um grupo ou conjunto de conceitos fundamentais intimamente relacionados ou realizações científicas passadas.
  2. O segundo ponto-chave no exemplo copernicano é o surgimento de resultados experimentais cada vez mais importantes em conflito com a teoria e a expectativa aceitas – este é o sinal de uma crise iminente, mudança de paradigma e revolução científica.

Outra observação que podemos fazer com base neste exemplo é que, enquanto uma ciência parece estar funcionando, fazendo previsões satisfatoriamente precisas e fornecendo perguntas suficientes para os cientistas trabalharem durante um período de ciência normal, pouco importa se o paradigma pode ser baseado em uma ideia completamente falsa, derivada não da ciência, mas neste caso de ditames religiosos, a saber, que a Terra era o centro do universo. Podemos sentir que hoje a ciência é muito mais imune a esse erro, mas o exemplo da repressão científica dos resultados da pesquisa psicodélica argumenta o contrário.

Vou apenas mencionar brevemente mais alguns exemplos de revoluções científicas e suas mudanças de paradigma associadas para que você tenha uma ideia melhor do que está envolvido, e então continuaremos a considerar como a redescoberta dos psicodélicos deve se qualificar como o iniciador de várias revoluções científicas ainda a se concretizarem.

Na geologia, temos uma das revoluções científicas mais recentes a ter ocorrido. Este exemplo também envolve uma mudança de paradigma fácil de entender, consistindo na transformação de um único conceito. Antes de meados do século XX, os continentes da Terra eram considerados estacionários, em um sentido travados em suas posições para a crosta da Terra. Esta era a crença fundamental ou paradigmática ensinada a todos os estudantes de geologia. Na realidade, o conceito nem precisava ser ensinado, pois parecia ser completamente autoevidente. A acumulação de anomalias experimentais na evolução, geografia, paleoantropologia e outros campos, no entanto, rapidamente levou à teoria da tectônica de placas, na qual os continentes eram entendidos como flutuando em um interior global líquido e, portanto, livres para derivar, colidir uns com os outros e assim por diante. Este novo paradigma expandiu a agenda de pesquisa e, portanto, permitiu a explicação de muitos fenômenos geológicos, evolutivos e geográficos observados que permaneceram misteriosos e inexplicáveis, e em grande parte ignorados, durante o reinado do paradigma do continente estacionário.

Na física, é claro, temos uma das mais importantes revoluções científicas que já ocorreram, da física lógica de bola de bilhar de Newton à paradoxal, complicada de entender e quase impossível de visualizar a física relativística e quântica de Einstein, Heisenberg, Bohr e seus contemporâneos. Neste exemplo, é claro, a mudança de paradigma envolveu um conjunto complexo de princípios e conceitos fundamentais inter-relacionados, incluindo a natureza da luz e da radiação, do espaço-tempo, da própria matéria.

Na química, a teoria sobre o processo de combustão, a queima que os homens observavam tão de perto desde a domesticação do fogo em tempos pré-históricos, passou por uma mudança de paradigma com a descoberta do oxigênio por Lavoisier. Até então, e provavelmente devido à longa observação do que o fogo parecia ser, a queima era considerada um processo pelo qual algo era liberado do objeto em questão. Afinal, as chamas que emanavam de um objeto em chamas devem ter levado, desde tempos imemoriais, a uma ideia fixa de que algo estava saindo da substância. Até meados do século XVIII, uma teoria cada vez mais complexa da queima foi elaborada, uma teoria que postulava uma substância chamada flogisto como o transportador de calor e, portanto, a substância que era liberada de um objeto em chamas. À medida que os balanços químicos se tornavam mais precisos, no entanto, anomalias experimentais começaram a aumentar: descobriu-se que pelo menos algumas substâncias sob combustão pareciam ficar mais pesadas, em vez de mais leves, se o flogisto realmente emanasse delas. Em um último esforço para salvar a teoria do flogisto, alguns cientistas eminentes até propuseram que o flogisto deve ter massa negativa! Com a descoberta do oxigênio por Lavoisier, no entanto, a teoria da oxidação da combustão logo colocou o flogisto em seu túmulo, fosse de massa negativa ou não!

Acho que a partir desses poucos exemplos você pode agora entender a natureza básica de uma revolução científica e sua mudança de paradigma subjacente. Você também pode ter notado que em cada um desses casos a mudança de paradigma envolveu uma mudança de visão geral do que poderia ser pensado como uma ideia arcaica para uma esotérica, onde uma percepção geral e antiga baseada em observação simples teve que ser substituída por conceitos que simplesmente não eram óbvios para o homem primitivo nem para o observador ingênuo. A ideia de que a Terra era o centro do universo, que as massas de terra eram fixas no lugar no globo, que os objetos físicos eram duros e sólidos, que as chamas indicavam que algo estava emanando de um objeto em chamas — tudo isso poderia ser derivado do que podemos pensar como simples observação primitiva ou ingênua. Essas ideias, os paradigmas de seu tempo, tiveram que ser substituídos por ideias anti-intuitivas e aparentemente paradoxais, e vemos isso em abundância quando se trata da redescoberta psicodélica. Não menos importante entre as crenças ingênuas que a redescoberta psicodélica desacreditou está a ideia de que o homem cientista poderia sempre e confiavelmente ser um observador independente e objetivo dos fenômenos, e é um delicioso paradoxo que suas próprias investigações científicas supostamente objetivas com psicodélicos tenham exigido essa conclusão. Também é interessante que as ideias ingênuas que precisavam ser substituídas não eram antigas e primitivas como nos outros casos que acabei de mencionar, mas sim a base da era da investigação científica.

 

Agora, vejamos alguns exemplos específicos de como a redescoberta psicodélica pode ter revolucionado alguns campos da ciência e da medicina.

Para começar, é apropriado considerar o campo da psiquiatria e da psicoterapia, pois foi aqui que a pesquisa com psicodélicos começou, em Saskatchewan, Canadá, sob a direção de Humphrey Osmond, Abram Hoffer e seus associados, e quase simultaneamente com Stanislav Grof e seus associados na República Tcheca

Stan Grof relata em seu livro “Beyond the Brain” o quão difícil foi para ele aceitar os dados de pesquisa que estavam inundando o trabalho de seu grupo com LSD. Grof tinha sido um psicanalista freudiano bastante rigoroso, como se poderia esperar de alguém treinado em medicina e psiquiatria no início dos anos 1950 — talvez o auge do movimento psicanalítico. No entanto, Grof descobriu que, um por um, os principais princípios da visão freudiana — poderíamos chamá-lo de paradigma freudiano — tiveram que ser abandonados como resultado de sua pesquisa sobre LSD. Nesse longo e árduo processo, um novo paradigma para pesquisa e compreensão no campo da saúde e doença mental humana, e na própria consciência humana começou a tomar forma. Em seu livro “Beyond the Brain”, Grof apresenta uma estrutura para esse novo paradigma e até dedica um capítulo introdutório à consideração da teoria da revolução científica de Kuhn como uma forma de mostrar ao leitor a natureza do processo de mudança que estava começando. Hoffer e Osmond no Canadá estavam ao mesmo tempo chegando a uma visão radicalmente nova do que a psicoterapia poderia ser — não uma cura médica análoga ao tratamento de uma infecção com um antibiótico, mas algo mais parecido com uma viagem de autodescoberta pessoal onde o uso de drogas psicodélicas agia como um complemento ou catalisador para a produção de uma mudança radical e rápida de personalidade. A mudança de personalidade tinha sido em tempos antigos muito mais associada à experiência religiosa e conversão do que à ciência ou medicina. Tal ideia era, naturalmente, outro teste severo para a teoria psicanalítica freudiana e para o próprio conceito médico de tratamento medicamentoso.

Um importante princípio organizador na pesquisa psicoterapêutica de Hoffer e Osmond foi derivado de sua observação do uso de peiote pelos nativos americanos em suas observâncias religiosas e do fato observado de alcoolismo muito reduzido em membros da Igreja Nativa Americana. Eles observaram repetidamente a iniciação de novos membros que antes eram severamente alcoólatras e que posteriormente foram curados de seus problemas com bebida com uma confiabilidade que superava em muito qualquer tratamento de alcoolismo que a medicina ocidental pudesse oferecer. Assim nasceu um projeto ambicioso e bem-sucedido de usar tanto mescalina quanto LSD, não como uma clássica “cura medicamentosa” para o alcoolismo, mas como uma forma de catalisar a mudança de personalidade em seus pacientes ou clientes, o que levou essas pessoas a “se curarem”, por assim dizer — a aceitarem suas vidas de maneiras que não poderiam ter alcançado antes. Claro, os métodos desenvolvidos por Hoffer e Osmond foram, em alguns aspectos, um retrocesso ao paradigma xamânico de cura, onde o médico não é um cientista independente e objetivo usando medicamentos específicos para doenças que funcionam apenas com base em suas propriedades farmacêuticas. O xamã faz uma jornada de autodescoberta psicológica e espiritual junto com seu cliente para que ambos possam experimentar a fonte dos problemas e, assim, efetuar uma cura.

Foi observado, que na medicina ocidental é o paciente que toma os medicamentos, enquanto na tradição xamânica é o médico que toma a medicina. O trabalho de Hoffer e Osmond tratando alcoólatras dependia necessariamente de dar medicamentos psicodélicos aos próprios pacientes, mas é interessante notar que esses psiquiatras outrora tradicionais rapidamente chegaram à conclusão de que, para dar psicodélicos efetivamente aos pacientes, era indispensável que os médicos, e até mesmo os enfermeiros presentes, estivessem o mais familiarizados possível com os estados alterados de consciência produzidos pelos medicamentos. E havia apenas uma maneira eficaz de fazer isso: como na tradição xamânica, os médicos tomavam os medicamentos, muitas vezes.

Lenta, mas seguramente, um novo paradigma para a psiquiatria e a psicoterapia estava tomando forma, mas a resistência do establishment científico e médico era esperada, como Kuhn mostra ser o estado normal das coisas. Críticas à terapia com LSD — especialmente depois que o uso de psicodélicos por estudantes universitários se tornou um escândalo nos EUA (Tim Leary e Richard Alpert em Harvard)— se tornaram outro tipo de escândalo, um escândalo científico de grandes dimensões. Em uma análise particularmente convincente da situação em seu livro “The Hallucinogens”, Hoffer e Osmond demolem habilmente seus críticos no espaço de algumas páginas. No entanto, completamente de acordo com as previsões de Thomas Kuhn, aqueles que introduziriam um novo paradigma enfrentam não apenas uma batalha difícil, mas consequências muito mais sérias, não importa quão necessária a nova perspectiva possa ser baseada no fracasso revelado do antigo paradigma.

Hoffer e Osmond estavam cientes do trabalho de Thomas Kuhn e das previsões de grande hostilidade à sua pesquisa? Eles não deixam pista, mas citam o filósofo Michael Polanyi, que em seu artigo de 1956 na The Lancet, parece ter pressagiado alguns dos principais pontos de Thomas Kuhn. Polanyi escreve,

“Na medida em que a descoberta muda nossa estrutura interpretativa, é logicamente impossível chegar a ela pela aplicação contínua de nossa estrutura interpretativa anterior. Em outras palavras, a descoberta é criativa… no sentido de que não deve ser alcançada pela aplicação diligente de nenhum procedimento previamente conhecido e especificável…”

Vemos aqui que Polanyi está, em termos kuhnianos, falando sobre o tipo de descoberta que representa descobertas anômalas que levam o descobridor a propor um novo paradigma. Quando Polanyi diz que a descoberta revolucionária não pode ser alcançada por procedimentos previamente existentes, ele está dizendo a mesma coisa que Kuhn, que o processo da ciência normal não pode levar por si só à mudança de paradigma e à revolução científica. O próprio Kuhn afirmou com bastante firmeza que “Paradigmas não são corrigíveis pela ciência normal de forma alguma”.

Michael Polanyi continua,

“Agora podemos ver a grande dificuldade que pode surgir na tentativa de persuadir outros a aceitar uma nova ideia na ciência. Na medida em que representa uma nova maneira de raciocínio, não podemos convencer os outros por meio de argumentos formais, pois enquanto argumentarmos dentro de sua estrutura, nunca poderemos induzi-los a abandoná-la. A demonstração deve ser suplementada, portanto, por formas de persuasão que possam induzir uma conversão. A recusa em entrar na maneira de argumentar do oponente deve ser justificada fazendo-a parecer completamente irracional.

“Tal rejeição abrangente não pode deixar de desacreditar o oponente. Ele será feito parecer completamente iludido, o que no calor da batalha facilmente implicará que ele era um tolo, um excêntrico ou uma fraude… Em um choque de paixões intelectuais, cada lado deve inevitavelmente atacar a pessoa do oponente.”

E foi exatamente isso que aconteceu com muitos pesquisadores que trabalharam com drogas psicodélicas. Hoje, a comunidade científica convencional rotineiramente e ignorantemente classifica toda a fraternidade de pioneiros psicodélicos na mesma categoria de Tim Leary, ou pior.

Obviamente, nenhuma revolução científica ocorreu ainda na psiquiatria e psicoterapia tradicionais, mas os experimentos anômalos e os contornos de um novo paradigma permanecem na literatura científica e nas mentes de alguns cientistas e médicos.

Como teria sido uma revolução na psicoterapia? Isso é algo difícil de prever, como qualquer mudança revolucionária deve necessariamente ser. Mas certamente seria amplamente reconhecido agora que Hoffer e Osmond estavam certos em insistir que a experiência pessoal de estados de consciência alterados psicodélicos é indispensável e “absolutamente essencial” para a compreensão não apenas dos pacientes, mas para a compreensão da própria consciência. Treinado em estados alterados de consciência, um psiquiatra ou psicoterapeuta se torna um paralelo muito mais próximo dos curandeiros xamânicos do passado distante, algo desejável, pelo seguinte motivo: a ciência reducionista funciona bem com coisas inanimadas, plantas e até mesmo com animais primitivos, mas com humanos, que nunca podem ser considerados “apenas” como objetos, a ciência objetiva deve permanecer para sempre incompleta.

No campo da ciência da computação e tecnologia, uma revolução parece ter ocorrido, e a princípio podemos ser tentados a atribuir isso às alegações frequentemente ouvidas de que muitos dos inventores pioneiros do computador moderno não só estavam familiarizados com drogas psicodélicas, mas as usaram como um caminho para a criatividade que levou às suas invenções. Seja como for, teríamos que dizer com mais precisão que a revolução não estava, portanto, nos computadores em si, mas no uso de drogas psicodélicas como uma ferramenta psicológica, como uma forma de aumentar a criatividade. A chamada revolução dos computadores não se qualifica como uma revolução científica, primeiro porque estamos lidando mais com uma tecnologia do que com uma ciência, e segundo porque não passamos por uma mudança de paradigma. Os princípios fundamentais da computação digital permaneceram os mesmos por muito tempo.

No entanto, a ideia de que as drogas poderiam aumentar a criatividade era certamente revolucionária e ameaçadora de paradigma. É uma ideia que vai contra as convicções gerais, embora não científicas, de que as drogas são exclusivamente substâncias usadas na medicina para restaurar a normalidade; é uma ideia que desacredita a convicção de que a consciência normal é o summum bonum² (Nota do tradutor²: ‘sumo bem’ ou ‘bem maior, em latim) é uma expressão latina usada na filosofia — particularmente, em Aristóteles,[1] na filosofia medieval e na filosofia de Immanuel Kant — para descrever o bem maior que o ser humano deve buscar), o melhor, mais eficiente e desejável estado da consciência humana e que sua alteração não pode levar a nenhum bom fim; é uma ideia que mostra o absurdo da noção de que a consciência drogada DEVE ser um estado degradado e delirante, abaixo da dignidade de qualquer pessoa civilizada, que o uso aborígene de drogas para qualquer propósito meramente ilustra o atraso e a natureza primitiva de tais povos. Essas observações ingênuas, assim como as observações ingênuas do universo centrado na Terra, chegam até nós como “verdades” pouco questionadas de eras passadas. No caso das drogas, tais ideias representam um paradigma muito antigo da psicologia humana ocidental cuja origem remonta à Santa Inquisição, quando as potências europeias assumiram a responsabilidade de perseguir os habitantes das Américas, supostamente para salvar suas almas, mas, mais realisticamente, para confiscar todo o hemisfério. Os inquisidores tomaram o uso nativo de drogas que alteram a consciência como um sinal claro de que eles deveriam ser considerados subumanos e indignos da propriedade de suas terras. Esse legado chegou até nós pouco alterado, de modo que hoje parece uma opinião automática sobre os usuários de drogas que eles são de alguma forma degradados, não estão em seu perfeito juízo e precisam de correção e tratamento. Propor que as drogas podem ser capazes não apenas de alterar benignamente as capacidades humanas, mas de realmente melhorá-las é obviamente uma heresia, uma ameaça à atitude colonial e paternalista que tipifica a visão da ciência moderna sobre os povos antigos e seus costumes.

As sementes da revolução neste ramo da psicologia certamente já haviam sido plantadas em 1964, quando Frank Barron apresentou um artigo em um simpósio na Califórnia intitulado “O processo criativo e a experiência psicodélica“. A pesquisa de Willis Harman e James Fadiman logo começou a documentar as provas experimentais da conexão, e seu artigo “Agentes psicodélicos na resolução criativa de problemas: um estudo piloto” provavelmente teria sido um ponto de virada revolucionário no estudo psicológico da criatividade se sua pesquisa não tivesse sido interrompida no meio do caminho por decreto do governo. Se você simplesmente fizer uma pesquisa no Google por Harman e Fadiman, poderá encontrar facilmente seus artigos de pesquisa, que valem a pena ler. O título do artigo deles no livro de Aaronson e Osmond, Psychedelics, é ainda mais indicativo de uma mudança revolucionária de paradigma: “Aprimoramento seletivo de capacidades específicas por meio do treinamento psicodélico”. Desde o final da década de 1960, nenhuma pesquisa foi permitida nesse sentido, e mais uma potencial revolução científica foi suprimida.

 

Embora as mudanças notáveis ​​na tecnologia de computadores não se qualifiquem estritamente como uma revolução kuhniana, um resultado primário de avanços em computadores pode ainda ilustrar para nós outra potencial e genuína revolução científica que foi suprimida. Desde os primeiros experimentos neurológicos em que os nervos que levam aos músculos da perna de um sapo foram estimulados eletricamente, levando à contração muscular, o paradigma da computação digital no sistema nervoso se consolidou, lenta mas seguramente.

Devido à grande demanda por computadores cada vez mais avançados para empreendimentos de alta tecnologia, como aeronáutica, exploração espacial, modelagem de sistemas complexos — sem mencionar aplicações militares e hardware — tem havido dinheiro de pesquisa praticamente ilimitado disponível para aqueles que estudam computação digital e para aqueles que se esforçam para descrever as propriedades e operações de vários sistemas físicos e biológicos em termos de computação digital. A neurociência e a ciência cognitiva têm sido grandes beneficiárias desse dinheiro de pesquisa, e a corrente principal dessas ciências aceita quase sem questionamentos ou análises profundas que os processos digitais são responsáveis ​​pelo que o cérebro faz. Afinal, as bolsas de pesquisa dependem da adoção desse paradigma.

A maneira mais fácil de ver o “paradigma digital” da operação cerebral é talvez por meio da consideração da visão da operação dos neurônios que temos e o que essas atividades dos neurônios significam. Embora as propriedades e ações dos receptores químicos de um neurônio e do espaço sináptico entre os neurônios tenham se mostrado incrivelmente complexas, quando tudo é dito e feito, o que acontece no neurônio é um simples pulso elétrico liga-desliga que transmite o chamado “sinal” pelo eixo do neurônio, ou axônio, em direção à próxima sinapse e neurônio na linha. Um simples pulso liga-desliga, tudo ou nada, só pode ser interpretado em termos digitais, não importa quantas camadas de complexidade alguém tente carregar em cima deste mais simples dos processos.

Enquanto isso, é bem conhecido por que o cérebro não pode ser um computador digital. Primeiro, ele não é rápido o suficiente. Nem complexo o suficiente, apesar da grande multidão de neurônios que contém. Uma tarefa como reconhecimento facial, que uma pessoa equipada com um cérebro pode fazer quase instantaneamente e sem qualquer sensação de ter concluído uma tarefa difícil, não pode ser alcançada de forma tão confiável com os computadores mais poderosos operando em velocidades de processador de vários Gigahertz e com velocidades de transferência de dados se aproximando da velocidade da luz. O cérebro opera a alguns hertz e com “taxas de transferência de dados” muito letárgicas. Outros exemplos semelhantes são fáceis de encontrar. Claramente, o paradigma de “transferência digital de bits de dados” da operação cerebral, como eu o chamo, com o potencial de ação do neurônio representando a unidade fundamental de “informação”, deve ser um paradigma aguardando um funeral bem merecido, se ao menos um novo paradigma pudesse ser criado primeiro para ampliar a agenda de pesquisa. Como Kuhn deixa claro em seu livro, não importa quais problemas um paradigma possa enfrentar, ele nunca é abandonado até que um novo paradigma esteja pronto para tomar seu lugar. Mesmo assim, muitos defensores do antigo paradigma continuam como os cientistas eminentes que atribuíram uma massa negativa ao flogisto, defendendo o que muitas vezes é o trabalho de suas vidas até o amargo fim — suas próprias mortes.

Um novo paradigma para a neurociência está de fato esperando nos bastidores há algum tempo. Algumas das ideias básicas do paradigma foram propostas pela primeira vez em parte por Karl Lashley já em 1942. Dando continuidade ao trabalho de Lashley após uma associação de uma década com ele, Karl Pribram publicou vários artigos sobre sua nova visão da operação cerebral e, finalmente, uma obra-prima de um livro sobre o assunto intitulado “Brain and Perception: Holonomy and Structure in Figural Processing”. As visões de Pribram, popularizadas em um livro de 1982 intitulado “The Holographic Paradigm and Other Paradoxes”, editado por Ken Wilber, realmente representam um paradigma inteiramente novo e revolucionário para a neurociência e a neurociência cognitiva. A agenda de pesquisa ampliada que o paradigma justificaria pode muito bem ser capaz de esclarecer muitos dos mistérios atuais da mente, como a forma como a recuperação instantânea da memória associativa pode funcionar, ou como todos os processos modulares do cérebro, como os múltiplos aspectos da visão, audição, olfato, todos parecem se combinar em uma experiência unitária, o chamado “problema de ligação” que os pesquisadores da consciência têm arrancado os cabelos tentando explicar.

Não tenho tempo hoje para contar os detalhes dessa nova abordagem ao cérebro e à consciência, mas, novamente, você deve conseguir encontrar artigos e livros interessantes na internet seguindo os links para “Karl Pribram”.

É interessante notar, e é isso que conecta essa mudança de paradigma particular aos psicodélicos, que Karl Pribram era muito próximo de outros cientistas e pesquisadores interessados ​​em psicodélicos e se inspirou em muitas dessas pessoas. O trabalho de Pribram tem todas as características de ter surgido por meio, pelo menos, da potencialização indireta da criatividade excepcional derivada do treinamento psicodélico, conforme o trabalho de Harman e Fadiman. Essa pode muito bem ser uma das principais razões pelas quais seu trabalho é amplamente ignorado pela corrente principal da neurociência e criticado ignorantemente até mesmo por grandes figuras científicas como Francis Crick.

 

Alguém poderia facilmente propor que a redescoberta psicodélica teria efeitos revolucionários ainda maiores em outras disciplinas científicas, como antropologia e paleoantropologia, como propus em minha palestra aqui há dois anos, ou mesmo economia, … poucas ciências permaneceriam intocadas se a resistência indesejada não tivesse suprimido a própria revolução psicodélica.

Os psicodélicos e suas descobertas associadas possivelmente exigem revoluções científicas não apenas em vários campos científicos, mas no próprio conceito de exploração e descoberta científica. É por essa razão talvez que essas revoluções tenham sido tão longa e tão efetivamente reprimidas. Ter uma revolução científica em um determinado período da história já é um empreendimento difícil e às vezes há muito reprimido. Mas ter múltiplas revoluções em campos científicos até mesmo díspares exigiria uma grande convulsão científica E social, especialmente dada a maneira como a ciência é financiada hoje por grandes organizações corporativas e governamentais. E a revolução não pararia por aí: uma reorganização tão imensa na ciência levaria inevitavelmente a uma revolução nos costumes sociais, atitudes e, finalmente, na própria civilização e na política pela qual ela é dirigida. Se uma revolução tão multifacetada pode ser realizada é talvez o maior teste da humanidade desde o que ocorreu há tanto tempo, quando ele teve que decidir o que fazer com aquela primeira experiência do fruto proibido psicodélico no Jardim do Éden.

A Psiquiatria está pronta para o paradigma da cura psicodélica?

Como o uso de plantas de poder e psicodélicos podem ajudar a aliviar o sofrimento humano? Quais são as barreiras para as chamadas medicinas da floresta, como a Ayahuasca, se tornarem parte da Psiquiatria convencional? Como se projeta e conduz pesquisas sobre o uso terapêutico de tais plantas de uma maneira ética e significativa? Como irá aparentar o tratamento de transtornos mentais com estas plantas? Estas são algumas das perguntas básicas as quais eu vim lidando no decorrer dos últimos três anos, enquanto completava residência em Psiquiatria e tentava iniciar uma carreira na ciência psicodélica e sua forma de cura.

Neste breve texto, tentarei esboçar algumas respostas introdutórias para as perguntas acima, bem como discutir os desafios em integrar diferentes áreas do conhecimento com o modelo biológico atual da Psiquiatria. Eu acredito que a adoção de uma perspectiva multidimensional complexa do sofrimento humano e o aproveitamento delicado de maneiras diferentes de entender plantas psicodélicas são fatores-chave para o paradigma emergente de cura psicodélica.

 

 

Diferentes perspectivas sobre as Plantas Psicodélicas


Plantas psicoativas e fungos tem se relacionado com humanos por milhares de anos, tendo diferentes e vários papéis na sociedade, na cultura, religião e na medicina. Como resultado dessa complexa e histórica relação, existem inúmeras formas pelas quais podemos entender e falar sobre estas plantas.

A Ayahuasca como um exemplo, uma perspectiva indígena ou antropológica pode ver a bebida como não apenas sagrada, mas como uma “planta de espírito” ou “professora”, com a qual uma pessoa ou um xamã interage para produzir o efeito desejado. Essa compreensão contrasta totalmente com uma visão biomédica da Ayahuasca como uma coleção de alcaloides e outros compostos químicos, principalmente um agonista (quando uma substância química se liga em um receptor e o ativa) do receptor da serotonina 2A e um inibidor da MAO (monoamina oxidase), que alteram a conectividade da rede cerebral e a neuroplasticidade. Talvez entre essas visões existam as perspectivas psicológicas do chá como um “psicodélico”, capaz de provocar estados não-ordinários de consciência que podem trazer o insight psicológico e a mudança.

À medida em que o uso da Ayahuasca se torna mais difundido, existem várias outras maneiras de conceituá-la ou explicá-la. Perspectivas espirituais ou religiosas podem classificar o chá como “enteógeno” ou “sacramento”, capaz de catalisar profundas experiências espirituais ou místicas. Discursos mais recentes consideram a Ayahuasca como uma “ferramenta cognitiva”, ou “ferramenta evolutiva” que pode intensificar a criatividade e ajudar nossa espécie a evoluir ou viver mais harmoniosamente. Finalmente, a Ayahuasca e outras plantas psicodélicas são, muitas vezes, chamadas carinhosamente de medicinas da floresta por usuários da contemporaneidade que desejam destacar seus efeitos de cura profunda.

 

A Planta Medicinal na Era da Psiquiatria Biológica

Enquanto meu treinamento na psiquiatria enfatizou uma abordagem “biopsicossocial” para diagnóstico e tratamento, parece claro que o campo da psiquiatria como um todo tem, nas últimas décadas, priorizado a compreensão biológica do sofrimento mental. De acordo com este paradigma, doenças mentais como depressão e esquizofrenia, bem como dependências, são consideradas doenças cerebrais resultantes de circuitos neurais aberrantes e desequilíbrios químicos. Essa perspectiva visava servir a múltiplos propósitos: 1) ajudar a psiquiatria a tomar o seu lugar no meio de outras especialidades da medicina fundamentadas nas ciências biológicas; 2) desestigmatizar a doença mental e as dependências, retratando-os como doenças crônicas tratáveis, como diabetes ou algum tipo de doença cardíaca, e não como falhas morais ou resultantes de um caráter fraco; e 3) como o público crítico argumentaria, para ajudar a promover os produtos farmacêuticos como o principal meio de abordar a doença mental e aliviar o sofrimento cotidiano.

Embora não negue que este paradigma levou a avanços no nosso entendimento sobre certas doenças mentais e que pode ser utilizado como uma lente explicativa poderosa para certos pacientes, gostaria de salientar que uma compreensão estritamente biológica da doença mental é inconsistente com a minha compreensão sobre como plantas psicodélicas funcionam para trazer cura.
O paradigma biológico coloca a pessoa em situação de sofrimento como uma vítima relativamente impotente de um cérebro doente, obscurecendo as causas sociais, psicológicas e espirituais mais profundas do sofrimento e prescreve a adesão passiva à medicação como o modo primário de cura.

Em contraste, acredito que a experiência com plantas psicodélicas nos confronta poderosamente com a realidade que existimos como seres multidimensionais complexos, com mentes cerebrais, corpos, corações e espíritos, todos conectados uns aos outros e com nossos seres naturais e sociais. A partir dessa perspectiva, a fonte do sofrimento não é apenas do cérebro; o sofrimento pode surgir da doença em qualquer uma dessas camadas de existência e ser propagado através delas de formas complexas. Isso explicaria, por exemplo, como o stress social é internalizado como sintoma psicológico ou físicos.

O Desafio de Integrar o Conhecimento


A principal implicação de cunho terapêutico em ver o sofrimento mental nesta maneira multidimensional é que os tratamentos adequados devem agora ser capazes de intervir nas múltiplas camadas da existência. O principal argumento que eu gostaria de enfatizar é que esse tipo de cura multidimensional a) requer um engajamento ativo da pessoa em situação de sofrimento (bem como em psicoterapia), e b) pode ser alcançado através do uso de plantas psicodélicas medicinais utilizando as diferentes visões conceituais descritas acima. Assim, como pesquisador clínico e acadêmico, vejo o principal desafio do campo emergente da ciência psicodélica como sendo a integração de modos de conhecimento e abordagens para a cura que, anteriormente, se encontravam desconectados e conflitantes.

Dada a predominância dos quadros biológicos dentro da Psiquiatria acadêmica, desafios significativos relacionados a essa integração manifestam-se tanto ao transmitir tais ideias a colegas e agências financiadoras, quanto ao tentar traduzir essas ideias em ensaios clínicos e protocolos de tratamento. Como estudamos e utilizamos um medicamento com múltiplos ingredientes ativos que funciona de modo complexo, multidimensional e idiossincrática quando a ciência moderna é inerentemente reducionista, ao procurar moléculas únicas que têm mecanismos biológicos de ação específicos para explicar seus efeitos terapêuticos sobre os processos patológicos que podem ser vistos, reconhecidos e medidos? Como a ciência pode explicar a interação entre as propriedades físicas de uma medicina como a Ayahuasca e seus componentes metafísicos de cura que são complementares ao seu uso, como música, dieta, oração e outros aspectos do Xamanismo? Acredito que superar esses desafios de integração representa uma grande oportunidade para o campo da ciência psicodélica e, caso bem-sucedida, pode revolucionar a maneira como pensamos e tratamos a doença mental.

 

 

Integração de conhecimento: passado e presente


Felizmente, o processo de integrar diferentes tipos de conhecimento sobre as plantas psicodélicas já foi iniciado. Populações indígenas ao redor do mundo possuem séculos de conhecimento relacionados ao uso de plantas psicoativas para fins espirituais, religiosos e de cura. Relatos antropológicos e interdisciplinares e o engajamento direto entre cientistas, usuários ou praticantes dos rituais e povos indígenas (por exemplo, a Conferência Mundial de Ayahuasca) trazem as partes interessadas com diferentes perspectivas e tipos de conhecimento ao diálogo uns com os outros. No Ocidente, existem modelos “psicodélicos” e “psicolíticos” de uso de substâncias psicodélicas ao lado da psicoterapia para tratar transtornos de humor e dependência de substâncias que remontam aos anos 1950. Esses modelos serviram de base para ensaios clínicos recentes e podem ser modificados e atualizados à medida que se ganha mais conhecimento e que este vá sendo integrado.

A onda atual de pesquisa psicodélica tem sido caracterizada por trazer avançadas ferramentas científicas e métodos para suportar o estudo de substâncias psicodélicas, incluindo a neuroimagem e farmacologia molecular, bem como uma metodologia robusta de ensaio clínico utilizando o controle do placebo duplo-cego. Ao crédito destes investigadores, essa pesquisa não só trouxe novos entendimentos sobre como os psicodélicos afetam o cérebro, mas também começaram a elucidar como tais mudanças biológicas podem ser correlacionadas com a experiência psicológica e espiritual. Por exemplo, Robin Carhart-Harris demonstrou como as mudanças psicodélicas induzidas na conectividade cerebral se correlacionam com experiências específicas de tipo místico e subjetivo. Submetendo-se a tais experiências do tipo místico, tem se mostrado correlacionado com o benefício terapêutico em estudos recentes com psilocibina, o ingrediente ativo dos “cogumelos mágicos”.
O estudo de medicamentos complementares e alternativos seguiu uma trajetória similar. Nos últimos anos, estudos cada vez mais sofisticados começaram a esclarecer como práticas e modalidades que costumavam ser entendidas como espirituais ou energéticas, como meditação e acupuntura, têm efeitos biológicos e psicológicos que contribuem para seu potencial terapêutico.

Rumo à “Integração de Paradigmas Críticos”

Embora esses desenvolvimentos recentes sejam um bom sinal para o futuro da pesquisa e do tratamento com psicodélicos, eu gostaria de concluir argumentando para defender o foco sustentado entre pesquisadores e profissionais neste campo sobre integração do conhecimento, colaboração multidisciplinar e abordagens de tratamento multimodal – o que eu chamo de “integração de paradigmas críticos”.

Os atuais determinantes políticos, econômicos e filosóficos continuarão a puxar a pesquisa e o tratamento com psicodélicos em uma direção biológica. Portanto, é crítico neste tempo ressurgente para a ciência psicodélica que os pesquisadores visam integrar diferentes tipos de conhecimento e planejem protocolos de tratamento que refletem entendimentos multidimensionais complexos de como as plantas psicoativas produzem cura. Este último é crucial pois as diretrizes de tratamento são geralmente baseadas em evidências produzidas por ensaios clínicos. Assim, os modelos que nós construímos e estudamos agora estão aperfeiçoando como as plantas medicinais serão usadas na Medicina nas próximas décadas.

Vamos tratar plantas psicodélicas medicinais como qualquer outra classe de psicofármacos, tomados de modo passivo por pacientes enquanto o medicamento re-conecta com seus cérebros? Procuraremos criar formulações que minimizem seus “efeitos colaterais” psicoativos e somáticos ou purgativos, bem como foi feito com o uso psiquiátrico da ketamina? Ou esses tratamentos, de uma natureza radicalmente diferente, interagindo com nossos corpos-mente-cérebro-espírito de uma forma complexa que requer um engajamento ativo, não só durante o tempo de administração da droga, mas o antes e depois? Acredito que o entusiasmo popular por trás da cura psicodélica e os benefícios terapêuticos profundos e duradouros relatados até agora em ensaios clínicos argumentam para este último. Se a psiquiatria tradicional e as instituições sociais relacionadas irão abraçar este novo paradigma, isto ainda está para ser descoberto.

 

O autor gostaria de reconhecer as contribuições intelectuais de Jeffrey Guss M.D., Ryan Wallace M.D., e Alexander Belser M.Phil., No desenvolvimento das idéias apresentadas aqui.

FONTE


Agradecemos imensamente a tradução feita pela colaboradora Mirella Mochiutti.
Seja você também um colaborador, entre em contato:

equipemundocogumelo@gmail.com


BIBLIOGRAFIA

 

El-Seedi, H. R., Smet, P. A. G. M. D., Beck, O., Possnert, G., & Bruhn, J. G. (2005). Prehistoric peyote use: Alkaloid analysis and radiocarbon dating of archaeological specimens of Lophophora from Texas. Journal of Ethnopharmacology, 101(1-3), 238–242 ↩

Tupper, K. W., & Labate, B. C. (2014). Ayahuasca, psychedelic studies and health sciences: the politics of knowledge and inquiry into an Amazonian plant brew. Current Drug Abuse Reviews, 7, 71–80. ↩

Luna, L. E. (1984). The concept of plants as teachers among four mestizo shamans of Iquitos, northeastern Peru. Journal of Ethnopharmacology, 11(2):135–56. ↩
Domínguez-Clavé, E., Soler, J., Elices, M., Pascual, J. C., Álvarez, E., la Fuente Revenga, de, M., … Riba, J. (2016). Ayahuasca: Pharmacology, neuroscience and therapeutic potential. Brain Research Bulletin, 126(Part 1), 89–101. ↩

Richards, W. A. (2015). Sacred Knowledge. New York City, NY: Columbia University Press.

Tupper, K. W., & Labate, B. C. (2014). Ayahuasca, psychedelic studies and health sciences: the politics of knowledge and inquiry into an Amazonian plant brew. Current Drug Abuse Reviews, 7, 71–80. ↩

Engel, G. L. (1980). The clinical application of the biopsychosocial model. Am J Psychiatry, 137(5), 535–544. ↩

Carlat, D. (2010). Unhinged. New York, NY: Simon and Schuster. ↩

Labate, B. C., & Cavnar, C. (Ed.s) (2014). Ayahuasca shamanism in the Amazon and beyond. New York City, NY: Oxford University Press. (+) Luna, L. E., & White, S. F. (2016). Ayahuasca Reader. Santa Fe, NM: Synergetic Press. ↩

Bogenschutz, M. P., & Johnson, M. W. (2016). Classic hallucinogens in the treatment of addictions. Progress in Neuro-Psychopharmacology and Biological Psychiatry, 64, 250–258 ↩

Carhart-Harris, R. L., Muthukumaraswamy, S., Roseman, L., Kaelen, M., Droog, W., Murphy, K.,. Nutt, D. J. (2016). Neural correlates of the LSD experience revealed by multimodal neuroimaging. Proceedings of the National Academy of Sciences, 201518377–6 (+) Mucke, H. A. M. (2016). From psychiatry to flower power and back again: The amazing story of lysergic acid diethylamide. ASSAY and Drug Development Technologies, 14(5), 276–281(+) Preller, K. H., & Vollenweider, F. X. (2016). Phenomenology, structure, and dynamic of psychedelic states (pp. 1–35). Heidelberg: Springer. ↩

Griffiths, R. R., Johnson, M. W., Carducci, M. A., Umbricht, A., Richards, W. A., Richards, B. D…. Klinedinst, M. A. (2016). Psilocybin produces substantial and sustained decreases in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: A randomized double-blind trial. Journal of Psychopharmacology, 30(12), 1181–1197. (+) Palhano-Fontes, F., Barreto, D., Onias, H., & Andrade, K. C. (2017). Rapid antidepressant effects of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant depression: A randomised placebo-controlled trial. bioRxiv, 103531. (+) Ross, S., Bossis, A., Guss, J., Agin-Liebes, G., Malone, T., Cohen, B. … Schmidt, B. L. (2016). Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: A randomized controlled trial. Journal of Psychopharmacology, 30(12), 1165–1180 ↩

Carhart-Harris, R. L., Erritzoe, D., Williams, T., Stone, J. M., Reed, L. J., Colasanti, A., … Nutt, D. J.. (2012). Neural correlates of the psychedelic state as determined by fMRI studies with psilocybin. Proceedings of the National Academy of Sciences, 109(6), 2138–2143 ↩

Bogenschutz, M. P., Forcehimes, A. A., Pommy, J. A., Wilcox, C. E., Barbosa, P., & Strassman, R. J. (2015). Psilocybin-assisted treatment for alcohol dependence: A proof-of-concept study. Journal of Psychopharmacology, 29(3), 289–299(+) Garcia-Romeu, A., Griffiths, R. R., & Johnson, M. W. (2014). Psilocybin-occasioned mystical experiences in the treatment of tobacco addiction. Current Drug Abuse Reviews, 7(3), 157–164. (+) Griffiths, R. R., Johnson, M. W., Carducci, M. A., Umbricht, A., Richards, W. A., Richards, B. D…. Klinedinst, M. A. (2016). Psilocybin produces substantial and sustained decreases in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: A randomized double-blind trial. Journal of Psychopharmacology, 30(12), 1181–1197 ↩

Brewer, J. A., & Garrison, K. A. (2013). The posterior cingulate cortex as a plausible mechanistic target of meditation: Findings from neuroimaging. Annals of the New York Academy of Sciences, 1307(1), 19–27 (+) Garrison, K. A., Scheinost, D., Constable, R. T., & Brewer, J. A. (2014). BOLD signal and functional connectivity associated with loving kindness meditation. Brain and Behavior, 4(3), 337–347(+) Loizzo, J. (2013). Meditation research, past, present, and future: Perspectives from the Nalanda contemplative science tradition. Annals of the New York Academy of Sciences, 1307(1), 43–54. ↩

 

Cogumelos mágicos na minha psicoterapia: um mergulho no sagrado

Por: Fernando Beserra

É um grande prazer fazer a minha estreia como colunista aqui no Mundo Cogumelo. Me lembro que o site já era uma referência para mim quando comecei a escrever em um antigo blog: o Enteogenico, em 2009. Segui escrevendo a coluna Portas da Percepção, no Hempadão, a partir de 2010, durante quase 10 anos. E de lá para cá, o movimento psicodélico brasileiro amadureceu e os conhecimentos se tornarem mais amplos e acessíveis. Para que me conheçam um pouco: sou psicólogo, um dos membros fundadores da Associação Psicodélica do Brasil (APB) e atualmente faço meu doutorado em psicologia clínica (PUC-SP) sobre o suporte psicológico às crises induzidas por psicodélicos.

Neste primeiro texto, aqui no mundo cogumelo, vou escrever um pouco sobre uma experiência que tive com cogumelos mágicos em contexto terapêutico, no qual fiquei, durante um pouco mais de seis horas, acompanhado por uma psicóloga e um psicólogo. Estudo o tema da psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos há muitos anos, já tendo realizado grupos de estudo e dado cursos sobre o tema. Parte deste processo, no que tange seu viés coletivo, em especial sobre a integração da experiência psicodélica, foi consolidado em um projeto coletivo no TRIP (Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica), um projeto da Associação Psicodélica do Brasil (https://associacaopsicodelica.org/trip/), que teve o Sandro Rodrigues como idealizador/organizador. Mas como não há regulamentação, não é possível realizar a terapia psicodélica de forma oficial. Por esta razão, no melhor dos casos, posso informar profissionais de saúde que utilizarei meus cogumelos, por meu próprio desejo, e eles podem utilizar um manejo, por meio da uma compreensão de redução de danos e da ética profissional, isto é, não negarem o atendimento. Além, é claro, de depois de qualquer experiência pessoal com psicodélicos, também poderem contribuir com a integração da experiência, caso sejam profissionais capacitados e não sejam preconceituosos.

A experiência narrada foi realizada em 2020. Há algum tempo estava usando apenas microdosagem e/ou minidosagem, tendo feito, inclusive, o protocolo do James Fadiman no primeiro caso. Tal uso cuidadoso se deveu a uma mudança no padrão de uso, desde que tive um quadro de ansiedade no final de 2018, quando me encontrava absolutamente absorvido por uma quantidade de trabalhos e responsabilidades sobre-humanas. Desde então, retornei a psicoterapia e utilizei durante alguns meses um antidepressivo inibidor seletivo de recaptação de serotonina (ISRS), além de manter um uso de ansiolítico em SOS, que logo abandonei. Quando abandonei o antidepressivo, após alguns meses de uso, conforme preconizado e prescrito, iniciei o protocolo de microdosagem de LSD, testados com o reagente de Ehrlich, o que acredito que tenha ajudado a realizar um desmame mais tranquilo do antidepressivo, em especial devido aos efeitos serotoninérgicos (e, quem sabe, à neurogênese) relacionados aos efeitos dos psicodélicos indois.

O uso dos cogumelos não me era desconhecido, embora nunca tenha feito uso regular deles. Desta forma, optei por uma dose de 3g de Psilocybe cubensis desidratados, de uma fonte que sabia que conseguiria cogumelos com um efeito bastante potente. Além disso, sempre estive bastante ciente, pelos usos que já realizei de substâncias psicodélicas, que o fator set-setting-matrix por vezes é mais potente do que um olhar reducionista e quimicocêntrico da dose. Não compactuo da visão, para mim uma bobagem, de achar que a dose forte ou heroica é 5, 7 ou 10g, sem considerar o sujeito e o ambiente de uso. Entre o padrão/genérico e o concreto, podem ocorrer grandes abismos, por razões que não pretendo aprofundar aqui.

Além disso, a escolha pelos cogumelos com psilocibina/psilocina parecia ser uma escolha adequada, já que estudos (GROB et al., 2011; GRIFFITHS et al, 2016; ROSS et al, 2016) demonstram a sua importância para redução de ansiedade, mesmo que em um contexto diferente do meu (nestes estudos a ansiedade teve melhoras, mas os estudos focaram na ansiedade em pacientes com doenças terminais). Na verdade, os cogumelos com psilocibina parecem ter usos terapêuticos em diferentes campos da saúde mental, como discuto neste texto (https://www.cartacapital.com.br/blogs/hempadao/cogumelos-e-saude-mental/).

Durante todo o último período de psicoterapia fui aprendendo diversas formas de manejo da minha ansiedade, assim como mergulhando em minha sombra, nas questões que surgiram do meu si-mesmo e de outros arquétipos e complexos constelados. Tomando consciência, aos poucos, dos meus demônios e potenciais latentes. Mas a questão da ansiedade permanecia lá. Mesmo com ou sem o antidepressivo. Mesmo após tanto tempo de análise e mesmo sem crises que me deixassem atordoado e com a sensação de morte, lá estava ela. E por vezes me incomodava muito. Na verdade, ainda incomoda. E, bem, me parecia que em algum momento seria bom buscar não apenas mecanismos para lidar e fazer ela diminuir, mas olhar ela de frente. Encontrar a sua raiz ou a sua finalidade. Para que ela precisava se postar ali? E por que, afinal, eu não tinha encontrado uma forma de integrar aquilo que fazia o sintoma surgir… Como ir além da razão, do racional e olhar a ansiedade de frente? Sonhos e imaginação ativa certamente eram formas que eu já utilizara. Mas, ainda assim, sentia que não tinha entrado realmente neste espaço e que era necessário ir além. Além da busca de superar a ansiedade e de cura, havia ainda uma busca, paradoxal, de viver o que tivesse que ser vivido durante a experiência psicodélica, de forma a não me fechar em uma expectativa que pudesse dificultar o mergulho no inconsciente. É importante escrever, sobre este tópico, que como psicólogo junguiano, tenho a compreensão de que a relação entre consciente e inconsciente seja marcada pela compensação.

Na psicologia analítica entende-se que, ao longo do processo de vida de uma pessoa, seu crescimento e desenvolvimento, o uso contínuo de determinadas funções psicológicas (pensamento-sentimento-sensação-intuição) levam a unilateralidade da consciência, a padrões de conduta que excluem uma parcela dos conteúdos e pulsões humanas ao inconsciente, seja por uma via de repressão ou pela pouca atenção disponibilizada para estes. A unilateralidade, aponta Jung (1958/2006, par 138): “é uma característica inevitável, porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade. A unilateralidade é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente”. Dito de outro modo, se eu ficar focado demais em uma leitura racional/conceitual do mundo, provavelmente vou deixar de observar, continuamente e cada vez mais, certas dimensões afetivas ou avaliativas sobre o mesmo mundo/fenômeno que eu me relacionava/observava. O direcionamento da consciência é compensado ou complementado pelo inconsciente, tencionando a produção de símbolos. A posição da pessoa diante do inconsciente e da emergência de imagens carregadas de afetos, até então negados ou não reconhecidos, é fundamental para o desenvolvimento deste processo. O apoio do terapeuta adequadamente treinado também seria determinante para ajudar o paciente a efetivar a reunião de consciente e inconsciente e para chegar a uma nova atitude (JUNG, 1958/2006).

Após escrever um pouco sobre o set, isto é, sobre as minhas expectativas, mas que também envolvem a minha psique como um todo, é preciso escrever sobre o setting.

O uso dos cogumelos foi equivocadamente feito antes de chegar no espaço que seria realizado o uso, em um consultório. Quando entrei no carro para seguir com o um dos terapeutas para o consultório, resolvi tomar as 10 capsulas de 300mg de cogumelos mágicos. Por sorte não tivemos trânsito e chegamos no consultório cerca de 15 minutos depois. O efeito demorou menos de 20 minutos para começar e já começou bastante forte. Quando chegamos no consultório não houve muito tempo para preparar o som e o que fosse necessário para a viagem. Deu tempo, mas foi tudo por pouco. Pensei em outras viagens que o tempo para fazer efeito demorou bem mais, cerca de 30 a 40 minutos.

M.A.P.S.

Um dos pontos centrais era a escolha do setting musical. Para tal manifestação da mente, foram escolhidas as músicas que a Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) utiliza em psicoterapia aliada ao uso de MDMA. As músicas foram muito boas e importantes durante a viagem, mas em alguns momentos é como se estivessem “fora de tempo”, em especial no final da sessão, pensando nos momentos da terapia psicodélica desde o período da latência, passando pelo platô até a descida do efeito. Ex: músicas muito tensas ou aceleradas, que podem ser propícias para o momento do platô, podem ser pouco adequadas no momento que se espera uma saída da viagem, mais tranquila, que seria o fechamento daquela experiência.

Cabe destacar que eu me mantive com uma espécie de venda nos olhos (na verdade um tecido) durante a experiência e fiquei, boa parte dela, deitado em um sofá, enquanto escutava a música.

Genericamente, a experiência se desenvolveu em cenas. A cada música eu entrava em um território, em uma narrativa. Afetivamente foi tudo muito impactante. Eu coloquei as músicas em uma caixa bluetooth e acabei preferindo ficar sem fones de ouvido. Algumas destas narrativas, que vinham com a música, eram mais assustadoras, outras mais agradáveis. Em tempo, quando abria o olho (imagino que tenha ficado cerca de 2 horas sem abri-los), tudo se movia a todo tempo. Via as energias seguindo meus movimentos e o chão se conectando [cada fragmento] e movendo. Também pareciam padrões (o chão).

Um primeiro impacto foi pensar o quão autorizado eu estaria para falar o que eu vivia, para expressar as imagens do mistério/sagrado para os terapeutas. E o quão autorizados estávamos para realizar aquela terapia/cerimônia. Então eu percebi que eu não estava em uma sala de consultório, mas que eu estava, paradoxalmente, em um templo sagrado. O consultório deveria ser um templo para poder receber as experiências psicodélicas. Se não fosse assim, não havia autorização para conduzir a experiência. Essa mensagem foi sentida como um aprendizado, tanto na experiência, quanto após a mesma.

A psilocibina já é conhecida – no contexto da ciência – em catalisar experiências religiosas desde a pesquisa de doutorado do psiquiatra Walter Pahnke, orientada pelo psicólogo Timothy Leary em 1962, quando Pahnke forneceu psilocibina a um grupo experimental no Good Friday Experiment. No retorno das pesquisas com psicodélicos, uma nova experiência de campo foi realizada, desta vez por Roland Griffiths, Johnson e Maclean, que observaram que a experiência com psilocibina produz uma mudança de personalidade nos usuários. Os pesquisadores já sabiam que, de acordo com as pesquisas de Metzner em 1963 e McGlothlin e Arnold, de 1971, que administrada em condições de suporte, 50 a 80% dos participantes reivindicavam mudanças benéficas na personalidade, valores, atitudes e comportamentos.

Para Griffiths e outros (2011) a experiência positiva da psilocibina, para um impacto de longo termo, depende da profundidade dos insights e de experiências “tipo-místicas”, como as descritas por Pahnke em sua experiência do Good Friday Experiment. Os temas centrais da experiência mística, como definida por Stace e Hood são: sentimentos de unidade e interconexão com todas as pessoas e coisas, um senso de sagrado, sentimentos de paz e alegria, sensação de transcender o tempo e o espaço normais, inefabilidade, e uma crença intuitiva de que a experiência é a fonte de verdade objetiva sobre a natureza da realidade.

Então toda aquela psicoterapia precisava dialogar com o sagrado. Parece que precisaria ocorrer uma conexão entre a ciência e os saberes tradicionais. Não é que eu ou os psicólogos precisassem ser xamãs, mas é como se tivéssemos que estar conectados com aquele saber ancestral.

Até duas horas após o início do efeito (10:30 às 13h aprox. – primeira vez que vi a hora) certamente foram as viagens mais fortes. Foi curioso (e falei muitas vezes essa palavra, sem saber me expressar melhor), que no início da experiência é como se eu já tivesse recebido todas as informações que eu buscava. Vinham insights como mensagens de autoridade [que eu tentava expressar] e eu falava, mas muito baixo, e para os terapeutas parecia mesmo que eu estava falando comigo mesmo, o que era verdade, mas ao mesmo tempo eu tentava narrar – sem sucesso – o que estava acontecendo. E meus braços dançavam no ar, em uma busca de manter aquela conexão viva e alinhada.

Uma mensagem em particular que foi muito forte e que eu recebi foi que o segredo era me aceitar, inclusive com a minha ansiedade. Isso foi muito impactante e impressionante, quer dizer, a ansiedade compreendida como algo que me constituía e que eu deveria aceitar, olhar com carinho. Não é nada simples, mas posso dizer que esse posicionamento fez com que eu lidasse melhor com ela e evitasse o uso de medicações.

Uma imagem muito forte foi a de uma cobra. Me recordo de mais de uma vez ver os olhos da cobra, uma cobra ameríndia. Quando eu a via, eu percebia que estava entrando novamente na experiência, entrando no mundo dela. No mundo ameríndio e tradicional. A serpente era uma espécie de guardiã do espaço sagrado. Embora seus olhos fossem amedrontadores, era uma guardiã do mundo transcendental, que permitia ver além dos olhos. Depois cheguei a me lembrar, no tocante a serpente/cobra, das pinturas de Alexandre Segrégio (https://alexandreluiz.art.br/galeria/#visionario). Ao lado, um desenho que iniciei depois, buscando me aproximar da imagem.

A entrada era uma imersão no inconsciente coletivo e na autonomia de suas imagens arquetípicas e míticas, que me traziam fortes afetos. Era como se, ao mesmo tempo, tudo estivesse conectado a minha vida pessoal, mas aquelas imagens e cenas expressassem algo muito além de mim.

Em um momento senti como se estivesse passando por uma experiência de nascimento de um terapeuta, como se não contasse, de alguma forma, os anos anteriores como psicoterapeuta e eu estivesse ali passando por uma espécie de ritual de nascimento. Não senti propriamente uma morte. Tampouco me vi nascendo, mas senti essa energia e pensamentos (como se não fossem meus, mas da experiência, desta voz) que eu estava ali nascendo como terapeuta. Eu estava no alto, em um vácuo, para renascer, mas as imagens passavam rápido. Parte me parecia vago, como se eu tentasse/precisasse entender, e parte parecia claro que se tratava deste processo.

É importante recordar aqui do set que mencionei no início do texto. As expectativas que modulam a experiência psicodélica, as imagens arquetípicas que são nela constelados, dependem não apenas das expectativas conscientes, mas igualmente das inconscientes. Era óbvio que, como aquela era a minha segunda experiência psicodélica em contexto terapêutico, eu tivesse uma grande pré-ocupação com a minha formação enquanto profissional e terapeuta. E, aparentemente, este tema periférico se tornou central durante este mergulho psíquico. O processo de morte e renascimento, ou mesmo de nascimento simbólico, são temas arquetípicos, tratados nas mais diversas culturas, mitologias e religiões. Entre os Fang no Congo e no Gabão, por exemplo, ao utilizarem a Tabernantha iboga, psicodélico que contém ibogaina, falam da ocorrência de uma “pequena morte”, por meio da qual a pessoa se reúne aos seus ancestrais que são acompanhados ao reino dos vivos, trazendo generosidade (DE RIOS, 2005).

Em processos de transformação há a importância de um espaço de suporte e fechamento, denominado na alquimia de vas herméticum. Esse vaso alquímico, hermeticamente fechado, facilita a imersão nas chamas dos afetos e do inconsciente. A imersão, por vezes, é sentida como provocando um aniquilamento do eu, para um novo renascimento. No meu caso, não senti esta morte do eu. Mas senti este nascimento como algo muito importante para o meu desenvolvimento enquanto ser humano e enquanto psicoterapeuta. O vaso alquímico, no contexto psicoterapêutico, pode ser comparado ao espaço seguro – no qual o sigilo é resguardado – no qual ocorre a transformação.

Chegando no momento da saída do platô da experiência psicodélica, posso dizer que eu me sentia mais cansado e com medo. Havia um medo sub-reptício do quanto eu suportaria daquela intensidade. E o medo de não voltar já começava a aparecer à consciência… Então eu lembro de ver muito impactado um portão (com duas portas) vermelho, no meio do mar, que dava acesso ao Self e eu não tive coragem de seguir, porque é como se, caso eu abrisse aquela porta, a experiência se tornaria muito mais louca e impactante e também poderia ter muito menos a presença do Eu. Me assustei com isso, com o medo da loucura, e não abri a porta. Senti depois que isso pode ter impactado negativamente a minha experiência (não abrir). Por outro lado, que eu poderia não estar pronto para aquele encontro em particular, pois, por vezes, uma epifania pode cegar ou até matar (amplificação).

Qualquer processo de transformação pode aumentar a ansiedade e o medo, pois é da própria mudança da identidade que está em jogo. Stanislav Grof (1980) expõe que é importante encorajar a pessoa a uma completa rendição experiencial sem controlar ou bloquear o processo em decorrência de reservas ou incertezas cognitivas (GROF, 1987). Neste momento, entretanto, parecia muito difícil, mesmo que me sentisse cuidado, ir além. Parte da experiência posterior com as imagens, foi já de um cansaço mental. Eu via fluxos e não conseguia lembrar depois deles ou acompanhá-los plenamente. Mantive a consciência, mas sinto que neste momento já havia algum rebaixamento de consciência. Só conseguia seguir os fluxos, que também já eram mais brandos (por outro lado).

Várias conversas foram travadas com os terapeutas na medida em que eu ia voltando, e as vezes sentia a necessidade de parar um pouco de conversar, porque era muito cansativo. E eu voltava a deitar e fechar os olhos. Mas se não entrava na experiência, também era cansativo. Na compreensão de Grof (1980), em LSD Psychotherapy, o melhor procedimento teria sido estimular o meu retorno a experiência, mesmo que por meio da hiperventilação. Mesmo que a terapia não tenha sido conduzida desta forma, é importante recordarmos que o suporte a experiências psicodélicas ainda é um campo experimental e muito importante ser desenvolvido. Grande parte das pesquisas contemporâneas enfatiza muito mais os resultados quantitativos e dá pouca atenção a parte qualitativa e dos manejos das sessões com psicodélicos em psicoterapia.

Retorno. Neste final, no momento de descida da experiência, eu ia a um pátio algumas vezes e foi bom, porque pude ver o céu e me sentir bem. Mas posso dizer que meu sentimento ficou muito instável. Me sentia bem, me sentia mal, me sentia com medo, me sentia como um guerreiro, seguro, me sentia desconectado, me sentia de muitas formas. Certamente este foi o momento mais difícil de toda a sessão. Em alguns momentos eu dancei (pouco tempo), com os efeitos mais fortes (foi agradável) e depois tive momentos que tive vontade de dançar, cheguei a querer dançar com os terapeutas, que eles dançassem também, mas me senti afastado. Senti que era uma necessidade minha e não deles. Mas isso fez com que eu sentisse estranho (na segunda vez, que a experiência era menos intensa) e senti que o eu estava inibindo aquele processo. A consciência racional que retornava acabava bloqueando parte daquela experiencia de entrega necessária. Senti como se fosse estranho eu estar dançando no meio do consultório sozinho. Cheguei a desenhar, mas tudo que eu fazia não alterava a sensação de estranhamento e alguma solidão. Eu me sentia muito frágil e pouco seguro de sair dali, enquanto pensava na importância da minha família na minha vida e o quanto eu gostaria de estar bem para estar com ela. Enquanto isso, em uma experiência um pouco mais agradável, o tapete do consultório se tornou um enorme muro de metal, com alguns seres andando. Era um resíduo da trip que retornava, por vezes mais forte. Fiquei bastante tempo olhando aquele tapete alquímico, sem buscar qualquer interpretação.

Após cerca de 4 horas eu fiquei extremamente cansado. O efeito já era periférico, mas o fato de insistir em conversar não era claro se era o melhor a fazer. Por um lado, eu não conseguia retornar completamente a experiência, e permanecia com um humor desagradável e com uma sensação de desamparo bastante profunda, mas sem objeto. Ir embora ou até ir à rua parecia algo muito difícil… Em algum momento percebi que ia ter que lidar com o estado emocional desagradável que eu estava, pois não poderia continuar ali para sempre e não era bom. A despedida foi um pouco triste, do espaço e da terapeuta. Eu não tinha animo para dar uma despedida melhor. Para sair animado de lá, apesar de ter a clareza que tinha sido a uma das experiências psicodélicas mais profundas que eu tinha experimentado.

Matrix. A matrix, de acordo com Betty Eisner (1997), envolve o pré e o pós-experiência psicodélica. Ou seja, as relações ambientais mais amplas que o setting, incluindo amigos e familiares. O modo de suporte dos amigos e familiares pode, de acordo com esta perspectiva de Eisner, alterar o próprio resultado da terapia psicodélica.

Fui me sentar em uma padaria para tomar um suco com o outro terapeuta e comer um pão com ovo. A possibilidade de sair de mim e poder perguntar como ele estava e outras coisas, reduziu levemente os sentimentos difíceis que estava vivendo. Depois disso, fui muito bem acolhido em casa. Embora a minha companheira não use substâncias psicodélicas, ela estava preparada já, ciente da experiência, e havia ligado para ela e falado como estava me sentindo, mais ou menos às 16:30h, um pouco antes de sair da psicoterapia. Tinha pensado em ver algo bem light na televisão (série), preferencialmente alguma série que a minha filha pré adolescente gosta, algo infantil-adolescente. Acabou que elas não foram ver série e vi um episódio de Witcher com a minha companheira, foi bom ela estar comigo e me senti melhor.

Pós-experiência. Fiquei com dor de cabeça a noite até a manhã seguinte. Houve um aumento da ansiedade, que foi melhorando aos poucos. Embora eu estivesse muito cansado, tive dificuldades para dormir e acordei, na verdade me levantei da cama, sincronicidade! às 4:20h da manhã. Fiquei no CPU e depois consegui dormir mais umas duas horas. Foi bom no dia seguinte não ter compromissos mais duros, pois me senti bastante cansado ainda e com instabilidade no humor (embora cada vez menor).

Os sentimentos negativos foram melhorando e três a quatro dias depois eu já estava me sentindo realmente bem. A experiência trouxe muito o que trabalhar posteriormente na psicoterapia regular e não psicodélica e de forma muito mais profunda do que o habitual. Hoje consigo olhar de forma muito positiva para trás, mesmo que tenha sido muito difícil e duro, inclusive pela piora inicial que passei nos dois dias pós-sessão. Por outro lado, tratou-se de um mergulho que eu considero que não seria viável na psicoterapia regular e que promoveu uma ampliação de consciência significativa.

Integração. Eu costumo a dizer que a sessão psicodélica, durante uma prática psicoterapêutica, é onde as coisas começam e não onde as coisas terminam. O impacto terapêutico dos psicodélicos, ao que parece, está relacionado tanto ao efeito subjetivo e fisiológico da substâncias, quanto as posteriores compreensões e integrações da experiência. Isso envolve o quanto nos transformamos na nossa vida diária e em nosso modo de ser e estar no mundo, mesmo que isso nem sempre seja trivial ou óbvio.

Na psicologia analítica, entende-se por integração uma operação psíquica de superação da dualidade e tensão entre consciente e inconsciente, por meio da elaboração de símbolo(s) que permitam incorporar porções cindidas da personalidade. Ocorre, neste caso, um maior equilíbrio psíquico e com a ampliação da consciência, a continuidade de um processo direcionado à totalidade. Em alguns autores do campo da psicoterapia com psicodélicos, a integração já se refere a um aspecto mais simples e prático, isto é, o quanto você transformou ou alterou a sua atividade de vida diária, graças as experiências psicodélicas que viveu. Daí que este processo pode ser ajudado tanto em psicoterapia individual, quanto em grupo, por outros psiconautas. Na verdade, ambas as concepções estão muito relacionadas.

Era isso o que tinha para contar! Espero que tenham gostado e que, em um futuro não muito distante, já tenhamos a psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos regulamentada no Brasil!

 

Referências:

 

BESERRA, F. R. Experienciando a Arte Visionária: uma compreensão junguiana da interação de estudantes com a obra de Alex Grey. 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2014.

 

DE RIOS, M. D. Rejoinder: the bad trip revisited. Anthropology of Consciousness. v. 16, n. 1, 2005, p. 45-48.

 

EISNER, B. Set, setting and matrix. Journal of Psychoactive Drugs, v. 29, n. 2, 1997, p. 213-216.

 

GRIFFITHS, R, R. et al. Psilocybin produces substantial and sustained decrease in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: a randomized double-blind trial. J. Psychopharmacol, v. 30, 2016, p. 1181–1197.

 

GRIFFITHS, R. R. Psilocybin occasioned mystical-type experiences: Immediate and persisting dose-related effects. Psychopharmacology. Berl. 2011; v. 218, n. 4, p. 649–665.

 

GROB, C. S. et al. Pilot study of psilocybin treatment for anxiety in patients with advanced-stage câncer. Archives of general psychiatry, 2011. v. 68, n. 1, p. 71-8.

 

GROF, S. Além do cérebro: nascimento, morte e transcendência em psicoterapia. São Paulo: McGraw-Hill, 1987.

 

GROF, S. LSD psychotherapy. California: Hunter House, 1980.

 

JUNG, Carl Gustav. A função transcendente In: A natureza da psique. Obras Completas, v. VIII/2 – 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 1958/2006b. p. IX-24.

 

MACLEAN, K. A.; JOHNSON, M. W.; GRIFFITHS, R. R. Mystical Experiences Occasioned by the Hallucinogen Psilocybin Lead to Increases in the Personality Domain of Openness. J Psychopharmacol. nov. 2011; v. 25, n. 11, p. 1453–1461.

 

ROSS, S. et al. Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: A randomized controlled trial. J Psychopharmacol, 2016, v. 30, p. 1165–1180.

“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips – Walter Clark

 

MundoCogumelo de volta ao ar, e para marcar nosso retorno, escolhemos um artigo de 1976 de Walter Houston Clark que ilustra uma questão que vem sendo pouco debatida com a profundidade necessária. A Bad Trip, e se ela deveria ser evitada, contornada ou apreciada com a atenção que doamos a todo professor que algo possa nos ensinar.

Tendo em vista algumas abordagens perigosas de reducionismo químico, em sites e páginas de ufanismo farmacológico, que contrariam a psicologia, a redução de danos e negam a própria experiência humana enquadrando como meros desequilíbrios químicos as profundas questões psicológicas que envolvem as experiencias mais difíceis, conhecidas popularmente como “bad trips”, este artigo nos leva a debater essas experiências como momentos-chave de uma reestruturação pessoal, psicológica e social das mais impactantes que podemos alcançar. Apesar de antigo, o texto não é obsoleto e remonta, com todas as ressalvas que o tempo trouxe de atualizações, uma questão profunda e muitas vezes negligenciada.


 

“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips
Walter Houston Clark
Revista FATE, Abril de 1976

Uma mistura única de análise freudiana e xamanismo mexicano
pode representar um avanço para a psicoterapia.

 

Quase um século se passou desde que Sigmund Freud revolucionou nossa compreensão das doenças mentais e seu tratamento. Muitos pensadores importantes – como Carl Jung – foram consideravelmente além de Freud ao canalizar as profundezas da psique humana. Mas nenhuma das inúmeras técnicas psicoterapêuticas desenvolvidas durante essas décadas de pesquisa conseguiu cumprir completamente sua promessa teórica em termos de resultados práticos. A psicoterapia para a maioria das pessoas continua sendo um empreendimento duvidoso, arriscado e caro.

Um médico mexicano pouco conhecido desenvolveu uma técnica que chega tão perto de cumprir sua promessa quanto qualquer outra com a qual eu esteja familiarizado. Combina várias formas de psicoterapia ocidental com a sabedoria dos xamãs indígenas mexicanos. Essas abordagens foram combinadas com a genialidade do Dr. Salvador Roquet, um eminente médico mexicano de saúde pública cujas realizações incluem banir a febre amarela do México. As responsabilidades do Dr. Roquet o colocaram em contato com os índios mexicanos e, consequentemente, com suas abordagens incomuns em relação à saúde, incluindo o uso de plantas alucinógenas para pesquisar a alma, a fim de curar a mente.

Quando o Dr. Roquet soube do meu interesse no uso de drogas psicodélicas para a reabilitação de prisioneiros, ele me convidou para a Cidade do México para investigar sua técnica. No início de 1974, visitei o “Instituto de Psicosintesis Robert S. Hartman”, nome de sua clínica na Cidade do México. O Instituto é um dos três ramos da Associação Albert Schweitzer; os outros são uma missão médica para indígenas e uma escola baseada nos desdobramentos psicológicos descobertos pelo Dr. Roquet em seu trabalho psiquiátrico. O Dr. Roquet me convenceu de que a melhor maneira de observar sua técnica era participar pessoalmente das sessões. Dessa forma, acredito que a melhor introdução à sua psicoterapia altamente original é relacionar minhas próprias experiências com ela.

Me dirigi ao Instituto às 22h em uma noite de fevereiro, junto com vários outros pacientes. Recebemos um teste psicológico chamado “Questionário de Valores Hartman”. Depois disso, mais pacientes chegaram e nos reunimos em uma sala adjacente para nos familiarizarmos entre si. Como não sei falar espanhol, me senti um pouco isolado até que um dos participantes me pediu em inglês para dizer algo sobre mim. Enquanto ele traduzia minhas observações para os outros, senti-me mais à vontade e mais um membro do grupo. Eventualmente, havia cerca de 25 de nós.

Entre meia-noite e uma hora da manhã, fomos levados a uma sala com menos de 30 por 40 pés. Cerca de 1.000 pés quadrados foram reservados como área de tratamento para os pacientes. Durante as próximas 20 horas, nenhum paciente teve permissão para deixar a área de tratamento, exceto para ir ao banheiro adjacente. Um espaço de 10 por 30 pés alocado para o corpo médico e equipamentos eletrônicos foi dividido da área de tratamento por uma mesa na qual o Dr. Roquet, sua equipe e alguns observadores estavam sentados. Seus casacos brancos os distinguiam dos pacientes. As paredes estavam cobertas com quadros bizarros pintados por ex-pacientes e imagens de Freud, Gandhi e o ex-presidente chileno Salvador Allende, além de um crucifixo pendurado em uma parede.

Após um breve período de exercícios semelhantes à ioga, cada um de nós foi autorizado a selecionar uma esteira como uma espécie de base para o período do tratamento. Os pacientes se deitaram e uma música repousante foi ligada. Logo depois, as luzes foram apagadas e uma série de filmes sonoros foi exibida. Eram cenas de violência, morte e pornografia grosseira, aparentemente projetadas para chocar e perturbar a sensibilidade do paciente comum. Em contrapartida, na sequencia exibiram outras cenas que refletiam beleza natural, amor, ternura e afins, de modo que toda a paixão e experiência humanas fossem representadas. Em outras partes da sala, imagens paradas com temas semelhantes foram projetadas contra as paredes. Coforme esse show de variedades continuava, a música aumentou gradualmente em volume e cacofonia. Os pacientes podiam assistir as cenas ou não como quisessem, mas era difícil ignorar o ataque aos nossos ouvidos. No entanto, a equipe nos impediu de adormecer.

Durante esse período, um paciente após o outro foi chamado à mesa, pesado e examinado por um médico. O médico que me examinou observou que meu coração estava forte o suficiente para o tratamento, mas que eu não deveria abusar. A altitude da Cidade do México me trouxe de volta uma irregularidade cardíaca que estava sob controle antes de eu deixar os Estados Unidos. Esta notícia, acentuada por algumas das cenas do vídeo, ajudou a transformar meus pensamentos em morte e problemas associados. Os outros pacientes pareciam igualmente perturbados.

Por volta das quatro ou cinco horas, a equipe começou a administrar as substâncias psicodélicas, a droga e a dosagem foram personalizadas para cada paciente. (Meu relógio havia sido retirado de mim, para que meu senso de tempo fosse desorientado.) Minha própria vez chegou no que julguei que eram cerca de seis horas e recebi 250 microgramas de LSD-25. Logo após todas as dosagens terem sido administradas, a sobrecarga sensorial atingiu seu pico. A música cacofônica e uma alternância de luzes brilhantes e escuridão total pontuada por estranhos efeitos neon criaram uma atmosfera extremamente estranha.

A essa altura, a sala começou a se assemelhar a um poço de cobras do século XIX ou mesmo a uma confusão do século XVIII. Muitos de nós chorávamos, outros rolavam no chão e gritavam angustiados, outros vomitavam, alguns olhavam para o espaço e outros ainda faziam movimentos hostis em direção ao equipamento eletrônico. Às vezes, eu tinha medo de que alguns pacientes pudessem atacar o Dr. Roquet, sentado impassivelmente, dirigindo os efeitos da experimentação responsável por essa violência e perturbação.

Eu próprio fiquei possuído por uma noção confusa de que as pessoas de jaleco branco eram atormentadores deliberados nomeados pela Inquisição para me tirar da razão. Todos pareciam tão imperturbáveis com a confusão que estavam criando que eu andei até a mesa e os denunciei violentamente por sua presunção, um ato dificilmente característico no meu estado mental normal. Com minha rápida alternância entre preocupações com a aproximação da morte, a ansiedade que me assustava sobre a experimentação com psicodélicos e a angústia por muitas coisas que pretendia, mas deixei de fazer, toda a experiência pode ser descrita como uma descida ao inferno. Eu mal conseguia distinguir o que era externo do que era interno.

No final desta fase do tratamento, a música e outros estímulos sensoriais foram diminuídos ou desligados e as luzes acesas. Referindo-se a registros individuais quando necessário, o Dr. Roquet convocou vários pacientes à mesa em sucessão e os questionou sobre seus problemas e experiências enquanto o resto de nós ouvia. Os tradutores interpretaram as várias línguas para os outros pacientes. Alguns pacientes foram convidados a ler passagens curtas apropriadas para seus problemas, talvez algo pessoal ou talvez escolhido pelos médicos, geralmente com expressões de angústia pungente. Uma jovem leu uma passagem do romance de Flaubert, Madame Bovary, que lhe externou uma identificação dolorosa com a personalidade de Emma, descrita no romance.

Durante esta fase do tratamento, certos indivíduos receberam uma injeção de cloridrato de ketamina, uma nova e poderosa droga usada pelo Dr. Roquet. Seus efeitos variavam com pessoas diferentes, mas geralmente produzia uma ab-reação¹ violenta. Um jovem que recebeu a injeção estava dando seu relato quando, de repente, caiu no chão em uma demonstração violenta de angústia e terror, vomitando e se contorcendo em tormento.

¹ ab-reação

PSICOLOGIA

descarga emocional pela qual um indivíduo se liberta do afeto que acompanha a recordação de um acontecimento traumático [Pode ser provocada, por exemplo, por hipnose, ou ocorrer de forma espontânea no decorrer do processo psicoterápico.].

Nesse momento, dois funcionários com sacolas e toalhas vieram em seu auxílio, demonstrando infinita gentileza e compaixão. Essa cena me impressionou com tanta força quanto minha convicção anterior de que os funcionários eram perseguidores. Percebi que toda a provação havia sido fabricada para o benefício dos pacientes e que o que parecia um inferno tinha se convertido em um paraíso. Essa percepção chamou minha atenção para os aspectos positivos do tratamento e me ajudou a voltar à normalidade.

Depois de mais ou menos uma hora, esta fase do tratamento terminou, as luzes foram apagadas novamente, música suave voltou a ser tocada e fomos convidados a descansar por várias horas. No final deste período, as janelas foram abertas, deixando entrar a luz do sol. Não tínhamos permissão para sair da sala, mas fomos convidados a nos exercitar e nos expressar dançando, se quiséssemos. A essa altura, senti-me intensamente sensível aos meus colegas e grato aos funcionários. Como não conseguia me comunicar na língua deles, me vi expressando meus sentimentos na dança improvisada.

Após o período de descanso, os poucos pacientes não processados receberam atenção. A equipe distribuiu a cada paciente fotos significativas de seus próprios arquivos – geralmente fotografias de família, fotos do próprio paciente em várias idades ou fotos de amigos e amantes. Por vezes, isso desencadeou mais cenas emocionais. Mas no final da tarde, cerca de 20 horas depois de eu ter chegado ao Instituto, todos haviam retornado a um estado normal de consciência. A essa altura, os respectivos parentes começaram a chamar pelos pacientes e senti grande consolo ao ver minha esposa. Por volta das nove horas, tivemos a cerimônia final; uma rosa foi dada de presente a cada sujeito. Nas minhas três semanas de permanência na Cidade do México, todos os pacientes que encontrei como observador ou como participante haviam retornado à consciência normal ao final do tratamento.

Alguns dias depois, os membros do meu grupo se reuniram para sessões de terapia em grupo de cinco horas ou, para alguns indivíduos, sessões privadas de menor duração. Cada paciente compôs um relato escrito de sua sessão para sua ficha. Essas sessões de acompanhamento continuaram até que a equipe decidisse que o paciente se beneficiaria com outra sessão longa, às vezes um mês depois, embora o espaço de tempo fosse maior à medida que o paciente melhorava. A melhora foi medida pelo teste de Hartman e também pelas impressões clínicas dos psiquiatras.

Como eu não era propriamente um paciente e como minha estadia no México seria breve, não participei de todo esse acompanhamento, mas participei de uma segunda longa sessão, cerca de duas semanas após a minha primeira.

Eu esperava tomar cloridrato de ketamina durante a minha segunda sessão, mas a irregularidade do meu coração persistiu e os médicos julgaram isso desaconselhável. Esta decisão mais uma vez voltou a minha mente para o tema da morte. Na minha segunda sessão, havia apenas 10 pacientes, um número mais gerenciável e ainda suficiente para uma interação valiosa entre os pacientes. Em todo caso, o procedimento foi semelhante à primeira vez, exceto que agora eu havia ingerido cogumelos Psilocybe frescos enviados em meu benefício pela própria Maria Sabina, uma curandeira de Huautla.

Dessa vez, re-experimentei o fenômeno da morte, mas em vez de descer ao inferno, a experiência assumiu quase o caráter de um festival, embora num contexto de solenidade alimentada pelas tensões do Requiem de Brahms. Não apenas obtive insights deliciosos e comoventes sobre minha própria vida subjetiva, mas também pude ver aspectos engraçados associados à minha morte, o que trouxe risos refrescantes. Eu também percebi como a cacofonia e a sobrecarga sensorial que foram projetadas para “me assustar completamente” têm um paralelo na sociedade em que a ocorrência perfeitamente natural da morte é transformada em um evento assustador que provoca medo na mente das pessoas comuns.

No geral, essa segunda sessão foi a mais rica das minhas 10 a 15 experiências com materiais psicodélicos. Foi a primeira experiência desse tipo em que a culpa não teve papel consciente. Não credito o resultado feliz dessa “trip” aos cogumelos, mas o importante condicionamento da minha “descida ao inferno” (a bad trip) anterior.

A eficácia da técnica do Dr. Roquet é evidente em meu estado de espírito desde que minhas experiências com ele ocorreram. Há quase dois anos, meu entusiasmo pela vida tem sido mais positivo do que nunca. Minha apreciação pela música cresceu quase a um vício e outros aspectos da minha vida foram igualmente enriquecidos. Naturalmente, isso me deu uma visão subjetiva do que o tratamento pode realizar para pessoas cuja saúde mental não está tão bem estabelecida quanto a minha.

Quais são as implicações da emocionante técnica do Dr. Roquet para o campo da saúde mental? Com base nas minhas três semanas de intenso envolvimento com seu programa, sinto que o que o psicanalista médio realiza em cinco ou seis anos,  Salvador  alcança com frequência em meses – e melhor, com custo de 10 a 20 vezes menor! O Dr. Roquet trouxe a psiquiatria para o século XX. Sem dúvida, um dia, seus métodos serão aprimorados, mas não duvido que sejam considerados um avanço crucial no progresso da psiquiatria.

Em minha pesquisa com drogas psicodélicas, muitas vezes descobri que as “bad trips” são as melhores trips, especialmente quando lidamos adequadamente com elas. O Dr. Roquet induz deliberadamente uma viagem ruim para trazer à tona os piores medos e problemas do paciente, embora isso possa significar, e geralmente significa, uma visita ao seu submundo particular, onde a ‘loucura’ se esconde. Por essa razão, o Dr. Roquet se refere à sua técnica como “psicodisléptica”, que significa “temporariamente perturbadora das funções da mente”. O objetivo específico dessa técnica é sobrecarregar as defesas cuidadosamente construídas que muitas vezes tornam a neurose ou psicose do paciente invulnerável ao médico. Muitos psiquiatras convencionais podem argumentar que esses métodos violentos podem prejudicar a psique. O resultado bem-sucedido de quase 3.000 pacientes tratados no Instituto obviamente responde melhor a essas objeções.

Qual a importância das substâncias no tratamento? Roquet diz que os medicamentos não representam mais de 10% do total do tratamento. Eu poderia concordar, mas também argumentaria que são 10% muito importantes. As substâncias psicodélicas parecem multiplicar a força da experiência e permitir que ela penetre nos níveis do inconsciente raramente visitados na psicoterapia comum.

Entre os outros fatores importantes na técnica estão os relacionamentos interpessoais. A naturalidade da equipe e a falta de alarme garantem ao paciente que o Dr. Roquet e seus colegas estão completamente no controle da situação. Mais importante, sua atitude ativamente compassiva durante as fases finais da terapia atua como uma influência vital de cura. Tão importante quanto é a interação entre os próprios pacientes – incluindo o toque de apoio e a consciência de que cada própria angústia é acompanhada pela de outra pessoa do outro lado da sala.

O Dr. Roquet desenvolveu uma teoria intuitiva e perspicaz subjacente à sua terapia, mas isso é muito complexo para ser apresentado aqui. Sem dúvida, ele eventualmente falará por si mesmo na tradução para o inglês.


Em 21 de novembro de 1974, o Dr. Salvador Roquet, seus assistentes e 25 pacientes foram presos durante uma sessão de terapia em grupo pela polícia mexicana, que invadiu o Instituto brandindo pistolas e metralhadoras. O ataque foi instigado por Guido Belasso, diretor ‘Centro Mexicano de Independência das Drogas’, de acordo com a revista mexicana “Tiempo”.

Os pacientes foram presos apenas brevemente, mas o Dr. Roquet e seu assistente, o Dr. Pierre Favreau, foram presos por vários anos devido à gravidade das acusações de crimes relativos à drogas. O Dr. Roquet operava sua clínica em total abertura por mais de seis anos tendo ganho a gratidão de oficiais do governo por sua ajuda na contenção de distúrbios na Universidade do México, tratando com sucesso um líder estudantil radical.

Uma organização dos ex-pacientes de Roquet, liderada por influentes mexicanos, veio em defesa do doutor e vários ilustres psiquiatras americanos testemunharam a validade e a eficácia de seus métodos. Por fim, os drs. Roquet e Favreau foram liberados das acusações e autorizados a reabrir o Instituto.

 

Traduzido diretamente de Psychedelic Libraby

Minha experiência como guia no projeto de pesquisa de psilocibina da Johns Hopkins

Universidade Johns Hopkins

Por Mary Cosimano

A universidade Johns Hopkins iniciou seus estudos psilocibina no ano de 2000. Desde então, eu tenho estado amplamente envolvida com a investigação e componentes clínicos de todos os seis estudos sobrepsilocibina e outros alucinógenos que estiveram em pauta por lá. Eu também tenho orientadopessoalmente mais de 300 sessões de estudo e tenho participado de mais de 1.000 encontrospreparatórios e de integração.

Com base na minha perspectiva clínica, eu gostaria de compartilhar o que eu pessoalmente acredito serum dos resultados mais importantes deste trabalho: a de que a psilocibina pode oferecer um meio de se reconectar à nossa verdadeira natureza, ao nosso autêntico self, e assim, ajudar a encontrar sentido nasnossas vidas. As experiências contadas para mim pelos participantes do estudo, bem como minhajornada pessoal, juntamente com os nossos resultados do estudo, representam uma grande massa dedados a partir da qual eu derivam minhas conclusões.

Quando eu tenho dificuldade em me expressar, eu lembro do que Ernest Hemingway escreveu em “Paris é uma festa” sobre o que ele fez quando teve tempos difícieis no início de sua carreira como escritor. Tudo o que você tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que você conhece.

O que vem a mim, agora é uma frase muito curta – na verdade, não uma frase, mas uma palavra: amor. Eu acredito que o que os humanos realmente querem é receber e dar amor.Eu acredito que o amor é o que nos liga uns aos outros e que tal ligação é provocada por sermos íntimos com os outros,através da partilha de nós mesmos com os outros. Eu acredito que a natureza do nosso eu verdadeiro é o amor.

Eu acredito que este tema, o amor, a necessidade de se reconectar com o nosso verdadeiro eu, abriga os resultadossubjacentes de nossos estudos com a psilocibina. No entanto, muitas vezes, temos medo de nos abrir para essa conexão e então colocamos barreiras e usamos máscaras. Se somos capazes de remover as barreiras, para baixar nossas defesas, podemos começar a conhecer e aceitar a nós mesmos, permitindo-nos assim receber e dar amor.

Em seu TED Talk sobre “O Poder da Vulnerabilidade, Brene Brown, Ph.D., nos ajuda a entender o quão importante é esse senso de conexão em um nível profundo. Em resumo, ela afirma que essa conexão é o motivo por estarmos aqui. É o que dá propósito e significado para as nossas vidas. A maneira de se conectar é ser vulnerável, o que significa ter a coragem de enfrentar nossos medos/temores de quepoderíamos falhar, medo que os outros vão perceber que não somos perfeitos, os temores de que somos de alguma forma indigna dessa conexão. Por acharmos que esta honestidade poderia pôr em risco uma conexão, nos fechamos, encobrimos, oufakeamos’.  A resposta da Dra. Brown para superar esses medos é a coragem. Ela ressalta que a coragem vem da palavra latina cor (coração), e que o significado original de coragem era para contar a sua história com todo o seu coração.

Como podemos ajudar os participantes do estudo psilocibina a alcançarem um estado de espírito em queé possível para eles se reconectar com seu verdadeiro eu e enfrentar os seus medos? Eu acredito que éuma combinação de nossas reuniões preparatórias com os efeitos da própria psilocibina.

Em nossas reuniões preparatórias, pretendemos criar um espaço onde os participantes se sintam seguros e protegidos. Acreditamos que este ambiente positivo e de paz é necessário para que eles tenham a coragem de contar a história de quem eles são. Trabalhamos para criar um profundo sentimento deconfiança, para que os participantes se sintam confortáveis para compartilhar tudo e qualquer coisa, os seus medos, alegrias, decepções e vergonhas, sem medo de ser rejeitado. Uma conversa íntima é uma das práticas mais importantes para ajudar a esta auto-revelação, e alguns dos nossos participantescompartilharam que suas sessões foram a primeira vez em que eles sentiram totalmente visualizados.Uma vez que eles se abriram e se compartilham, estão agora muito mais propensos a deixar as coisas fluirem e progredirem em suas experiências com psilocibina, gerenciando os momentos difíceis com mais facilidade, e eventualmente, restaurando a sua conexão profunda e intrínseca com seu verdadeiro eu.

Sala de tratamento para os estudos com psilocibina da Universidade Johns Hopkins

Depois de sua história ter sido contada e a confiança estabelecida, a sessão de psilocibina seguiu. A fim de alcançar o máximo benefício dessas sessões epara acessar estes estados de um profundo sentimento de amor e conexão, eu acredito que é necessárioestar relaxado tanto no corpo quanto namente. Quando estamos estressados, ansiosos ou com medo, nóspermanecemos tensos em nossos corpos. Estes estados de espírito e essas posturas nos impedem de ser capaz de relaxar e expandir nossa consciência. A fim de relaxar, um ambiente seguro e de confiança é necessário. Dessa forma, nossasreuniões de preparação têem permitindo os participantes relaxarem em uma experiência mais profunda eexpansiva. Esta expansividade muitas vezes leva a um profundo sentimento de amor e conexão consigo e com todos; tanto esta expansividade e este senso de conexão são temas recorrentes nas experiênciaspsilocibina.

Após uma sessão, um participante escreveu: “Eu estava me deleitando com os sentimentos inegáveis doamor infinito. Eu disse [a mim mesmo]: ‘Eu sou o amor, e tudo que eu sempre quero ser é o amor. Eu repeti isso várias vezes e estava sobrecarregado com a intensidade do amor. Eu estava ciente das lágrimas que inundavam meus olhos naquele momento. Todos os outros objetivos na vida pareciam completamente estúpidos.

Barbara Fredrickson, Ph.D., escreveu: “O amor é muito mais onipresente do que você jamais imaginou ser possível pelo simples fato que esse amor é conexão.

Outro participante disse: “Em certo momento eu estava passando pela escuridão, eu comecei a sentir um sentimento crescente de paz e união um intenso sentimento de amor e alegria emanava de todo o meu corpo e eu não podia imaginar como me sentir mais feliz. Eu sabia que as preocupações da vida cotidiananão tinham nenhum sentido e que “tudo o que importava eram as minhas conexões com as pessoas maravilhosas que são minha família e amigos.

Os dois primeiros estudos realizados psilocibina na Universidade Johns Hopkins (2008 Griffiths et al., 2011) mostraram que psilocibina, ocasionalmente, conduz a experiências místicas pessoal e espiritualmente significativos que produzem mudanças positivas nas atitudes, temperamento, altruísmo, comportamento e satisfação com a vida. Uma análise mais aprofundada (MacLean et al. 2011)encontraram aumentos significativos na abertura após uma alta dose de psilocibina em participantes que tiveram experiências místicas.

Acredito que esses resultados sugerem que o aumento do significado pessoal, um senso de significado espiritual, e um aumento na abertura são os fatores que permitem que os seres humanos se conectem aoseu verdadeiro eu que é, em sua essência, o amor.

Observei como os participantes de nosso estudo assistido com psilocibina para a ansiedade do câncermuitas vezes vinham para a sessão se sentindo “desconectados“, não apenas sobre o seu lugar nomundo, mas também, mais importante, desconectados de si mesmos, devido ao fato de que suas vidastinham mudado dramaticamente desde o seu diagnóstico. Muitos estavam fracos demais para continuar a trabalhar, e muitos perderam seus empregos. As aparências também mudaram, uma vez que perdiam peso, tônus muscular, e muitas vezes seus cabelos. Seus pensamentos e sentimentos que uma vez os definiram, já não são mais precisos. O que uma vez deu propósito e significado para suas vidas parecia sem sentido.

Um participante disse: “Uma vez que você tenha um diagnóstico de câncer, você é como um mortos-vivo.“Outra participante nos disse que ela estava vivendo como se já tivesse morrido.

Nossas entrevistas psiquiátricas estruturadas incluem duas questões que têm como alvo esse sentimento de desconexão:

1. Houve alguma mudança repentina no seu senso de quem você é e onde você está indo?

2. Você ocasionalmente se sente vazio por dentro?

Entre os nossos participantes com câncer, houve uma alta taxa de resposta positiva a estas duasquestões, que eu acredito, foi devido a sua perda de um senso de si próprio e de um significado em suas vidas. Nosso estudo de câncer, muitas vezes permite que os nossos participantes voltem a essa conexãocom seu verdadeiro eu, a acreditar que eles são dignos de amor e conexão. Um participante escreveu em seu relatório de seis meses que a depressão desapareceu completamente“, e que ela era “capaz de sairdo” mundo do câncer e voltar para si … e se sentiu capaz de se conectar com outras pessoas e cuidarmelhor de seu parceiro.

Duas citações adicionais de nossos voluntários resumem bem meus pensamentos sobre a importância da recuperação do amor, do verdadeiro self, e do significado durante e após as sessões:

“Tudo é varrido em uma epifania culminante do amor como a essência universal e como significado de todas as coisas. A jornada de espírito que vem de si mesmo, revelando a si mesmo seu próprio mistério interior, não é senão a auto-realização do amor.

“O objetivo de todos nós aqui juntos é servir constantemente de lembrete uns aos outrosde quem realmente somos.

É interessante refletir sobre as diferenças e semelhanças entre nossos estudos psilocibina da JohnsHopkins e estudos de psicoterapia assistida com MDMA, promovidos pelo MAPS. Os estudos JohnsHopkins têm caracterizado a fenomenologia da experiência psilocibina em voluntários saudáveis, e explorou o uso terapêutico da psilocibina no tratamento da ansiedade associada com o diagnóstico de câncer onde há risco de vida, e no tratamento de vício no cigarro. Embora os parâmetros terapêuticosdiferem entre os estudos da psilocibina (ansiedade do câncer e dependência) e do MDMA (transtorno de estresse pós-traumático ou PTSD), ambas as abordagens destacam a importância da confiança e relacionamento entre participante e seus guias/terapeutas. Uma diferença notável é que os estudos de psilocibina têm se caracterizado por experiências do tipo místico, e sugeriram que essas experiênciaspodem ser a base dos efeitos terapêuticos e outros efeitos positivos e duradouros. Seria produtivo evalioso determinar se mudanças semelhantes também ocorrem em resposta às sessões guiadas deMDMA.

Eu gostaria de reconhecer e agradecer a equipe de pesquisa com psilocibina da Johns Hopkins, os participantes do nosso estudo, e os nossos financiadores.

 

REFERÊNCIAS

Hemingway, Ernest; A Moveable Feast. Scribner Classics: New York, 1996.

Fredrickson, B. L. 2013. Love 2.0: How Our Supreme Emotion Affects Everything We Feel, Think, Do, and Become.

Brown, Brené 2010. TEDx talk: The Power of Vulnerability June 2010

Griffiths, R.R., Richards, W.A., Johnson, M.W., McCann, U.D., Jesse, R. 2008. “Mystical-type experiences occasioned by psilocybin mediate the attribution of personal meaning and spiritual significance 14 months later.”Journal of Psychopharmacology, 22(6), 621-632.

Johnson, M.W., Garcia-Romeu, A., Cosimano, M.P., and Griffiths R.R. 2014. “Pilot study of the 5-HT2AR agonist psilocybin in the treatment of tobacco addiction.” Journal of Psychopharmacology, 28(11), 983-92.

Griffiths, R.R., Johnson, M.W., McCann, U., Richards, W.A., Richards, B.D., and Jesse, R.. 2011. “Psilocybin occasioned mystical-type experiences: immediate and persisting dose-related effects.” Psychopharmacology, 218(4), 649-665.

MacLean, K.A., Johnson, M.W., and Griffiths, R.R. 2011. “Mystical experiences occasioned by the hallucinogen psilocybin lead to increases in the personality domain of openness.” Journal of Psychopharmacology, 25(11), 1453-1461.


Mary Cosimano, M.S.W., está atualmente com o Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins e serviu como guia de estudo e coordenadora de pesquisa para os estudos de psilocibina por 15 anos. Durante esse tempo, ela tem servido como guia de sessão para os seis estudospsilocibina e outros estudos alucinógenos e já realizou mais de 300sessões. Ela já trabalhou como clínica ensinando meditação individual e em grupo para pacientes com câncer de mama em pesquisa na Universidade Johns Hopkins, foi conselheira comportamental para perda de peso, e tem 15 anos de experiência com assistência direta aos pacientescomo voluntária em uma instituição de saúde mental

Cogumelos mágicos promovem mudanças permamentes na personalidade

mars-1-alex-grey-bicycle-day-3

Apenas uma dose forte de cogumelos alucinógenos pode alterar a personalidade de uma pessoa por mais de um ano e, talvez de forma permanente, diz estudo.

As pessoas que receberam a psilocibina, o componente ativo dos “cogumelos mágicos” que provocavisões e sentimentos de transcendência, demonstraram uma personalidade mais aberta”, após suas experiências, um efeito que persistiu por pelo menos 14 meses. Essa “Abertura” é um termo psicológico referindo-se a uma apreciação por novas experiências. As pessoas que estão mais abertas tendem a terimaginação mais ampla e valorizam a emoção a arte e a curiosidade.

Essa mudança de personalidade é incomum, disse a pesquisadora Katherine MacLean, porque a personalidade raramente muda muito após os 25 ou 30 anos.

Johns-Hopkins-Baltimore-02
Escola de Medicina Johns Hopkins, em Baltimore

A raiz da mudança parece não ser a substância em si, disse a pesquisadora à LiveScience, mas sim as experiências místicas que a psilocibina frequentemente desencadeia. Estes profundossentimentos transcendentais não são menos reais para as pessoas que os vivenciaram só por terem sido induzidos quimicamente, disse ela.“Este é um dos primeiros estudos que mostra que você realmentepode mudar a personalidade adulta“, disse MacLean, pesquisadora de pós-doutorado na Escola deMedicina da Universidade JohnsHopkins.

Muitos anos mais tarde, as pessoas estão dizendo que foi uma das experiências mais profundas de suas vidas“, disse MacLean. “Se você pensar sobre isso nesse contexto, não é surpreendente que pode serpermanente.

 

Viajando pela ciência

Pesquisas sobre alucinógenos são geralmente associados a figuras da contracultura dos anos 1960, comoKen Kesey e suas festas do “Acid Test” movidas a LSD. Mas na última década, emergiu uma abordagemsóbria, que busca passo-a-passo estudar o efeito dos alucinógenos, disse MacLean. Os experimentos são rigidamente controlados – não é fácil de obter permissão para dar a voluntários drogas ilegais – mas elesestão revelando que essas substâncias, que normalmente são mais associadas aos shows do Grateful Dead do que o escritório do psiquiatra, podem afinal ter uma série de usos médicos.

mapsEm Massachusetts, a organização sem fins lucrativos MAPS(Associação Multidisciplinar para o Estudo de Psicodélicos), está investigando, dentre outros estudos, a possibilidade de usar o MDMA para tratar o transtorno de estresse pós-traumático. Ambos LSD e psilocibinaestão sob investigação para a sua utilização no tratamento da ansiedade; O Orientador de pós-doutorado de MacLean na Universidade JohnsHopkins, Roland Griffiths, está conduzindo um estudo para descobrir se psilocibina pode aliviar a ansiedade e depressão em pacientes com câncer. Outro dos estudos de Griffiths se concentra no uso de psilocibinapara quebrar a dependência da nicotina.

No estudo atual, MacLean e seus colegas analisaram questionários de personalidade a partir de 51 pessoas que tinham tomado a psilocibina como parte de dois estudos separados da Johns Hopkins. Os voluntários eram todos novatos para drogas alucinógenas.

Cada pessoa compareceu entre duas a cinco sessões de oito horas com a droga, em que se sentava com os olhos vendados em um sofá ouvindo música uma forma de incentivar a introspecção. Durante uma das sessões, os voluntários receberam uma dose de moderada a alta de psilocibina, mas nem eles nemos pesquisadores sabiam se seriam de uma pílula de psilocibina ou um placebo em cada dia.

Em um experimento, os participantes entraram no laboratório duas vezes. Em uma visita que lhes foi dada psilocibina de fato e na outra vez lhes deram ritalina que lhes daria efeitos colaterais sem as alucinações.

Em outro experimento, ao longo de um curso de cinco sessões, os participantes receberam ou um placebo ou uma dose variável do fármaco. Para as finalidades deste estudo, os investigadores concentraram-se na sessão de dose elevada, que foi a mesma dose administrada durante o primeiroexperimento.

Antes das sessões com a psilocibina, os participantes preencheram o questionário de personalidade que media ‘abertura’. Eles também preencheram o mesmo questionário algumas semanas mais tarde e, em seguida, novamente cerca de 14 meses após a sua alta dose de alucinógeno.

 

Transcendência em uma pílula

Pill1Os resultados, publicados em setembro de 2011 no Journal of Psychopharmacology,revelou que, apesar de outros aspectos da personalidade permanecerem os mesmos, a ‘abertura’ aumentou após uma experiência de psilocibina. O efeito foi especialmentepersistente para aqueles que relataram umaexperiência mística” com sua dosagem. Estasexperiências místicas foram marcados por um sentimento de profunda conexão, juntamente com sentimentos de alegria, reverência e paz,disse MacLean.

Provavelmente não é apenas psilocibina que provoca alterações como esta, mas outras substânciasmais que desencadeiam esses tipos de experiências de mudança profunda de vida, qualquer sabor queelas tenham”, disse ela. Para muitas pessoas, a psilocibina lhes permitiu transcender as suas formas de pensar sobre o mundo.”

Cerca de 30 dos 51 voluntários tiveram uma experiência mística, disse MacLean. As mudanças deabertura’ nestes participantes foram maiores do que essas alterações são tipicamente observadas ao longo de décadas de experiência de vida em adultos.

MacLean alertou para não tentar fazer este experimento em casa. Os participantes do estudo estavam sob estrita supervisão durante a sua sessão com psilocibina. O apoio psicológico e preparação ajudaram a manter transtornos e bad trips a um nível mínimo, mas muitos participantes ainda relataram medo,ansiedade e angústia depois de tomar psilocibina.

9Xivg
“Eu posso imaginar como em um cenário sem supervisão, esse tipo de medo ou ansiedade em conjunto, a clássica bad trip, poderia ser muito perigosa”, disse MacLean

Não é ainda claro se o uso sem supervisão resultaria nas mesmas alterações na abertura da personalidade como pode ser visto no estudo, disse MacLean. O grupo de estudo era pequeno, e já estava mais propenso a uma abertura do que a população em geral.

MacLean está agora investigando os efeitos da combinação da psilocibina com a meditação. Ela diz que poderia haver muitos benefícios terapêuticos para aumentar a abertura, inclusive ajudando a pessoa a romper com padrões de pensamentos negativos. Esses estudos também poderão iluminar a conexão anedótica entre alucinógenos e a arte, disse ela: “No lado mais especulativo, isto sugere que pode haver uma aplicação da psilocibina para a criatividade ou outras obras intelectuais que realmente ainda não têm sido exploradas a fundo.”

.
Dra. Katherine MacLean
Dra. Katherine MacLean

LSD Volta a Ter Uso Terapêutico

Proibido em 1966, LSD volta a psicoterapia como prática e pesquisa

Hoffman-blotterPela primeira vez em mais de quatro décadas a dietilamida do ácido lisérgico, droga mais conhecida como LSD, foi usada como complemento para a psicoterapia experimental em um ensaio clínico controlado, aprovado pelo Food and Drug Administration americano. E um estudo recém-publicado, sobre uma bateria de testes que relata que os efeitos da medicação que combatem a ansiedade em pacientes que enfrentam doenças terminais foram grandes, permanentes e livre de efeitos colaterais preocupantes.

Em suma, tudo era festa.

Em um estudo piloto realizado na Suíça, 12 pacientes que sofrem de ansiedade profunda devido a doenças graves, participaram de várias sessões de psicoterapia sem drogas e em seguida, se juntaram a um par de terapeutas para duas sessões de psicoterapia de um dia inteiro, separados por duas a três semanas, sob a influência do LSD. Após a redução gradual de toda medicação contra a ansiedade ou antidepressivo e evitar álcool por pelo menos um dia, os participantes do estudo receberam ou uma dose de 200 microgramas de LSD ou um “placebo ativo” de 20 microgramas da substância.

Enquanto da dose placebo era esperado que produzisse efeitos curta duração e detectáveis​​, não era esperado que melhorasse o processo psicoterapêutico. A dose maior, por sua vez, “deverá produzir o espectro de uma experiência típica LSD, sem dissolver completamente as estruturas do ego normais”, escreveram os pesquisadores.

Os pacientes que receberam a maior dose de LSD para as duas sessões relataram menos ansiedade depois de suas experiências de ácido, ao passo que a ansiedade permanecia entre os quatro indivíduos que não receberam a dose completa.

Mais importante, os indivíduos que tiveram a dose completa experimentaram melhorias mensuráveis ​​e duradouras em seu “estado” e “traço” (característica) de ansiedade, que refletem os níveis de ansiedade que são fustigados por alteração das circunstâncias (estado) e aqueles que são aspectos estáveis ​​de personalidade (traço). Oito semanas após a intervenção, aqueles que receberam doses plenas de LSD tiveram quedas em ambos traço e estado. Por outro lado, a ansiedade traço aumentou para todos os quatro que tomaram o placebo e o estado subiu em dois dos quatro.

Associação Multidisciplinar para o Estudo de PsicodélicosO estudo, liderado pelo psiquiatra suíço Peter Gasser, M.D., foi publicado online esta semana no Journal of Nervous and Disease Mental. Ele foi patrocinado pelo MAPS (Associação Multidisciplinar para o Estudos de Psicodélicos), um grupo sem fins lucrativos com sede em Santa Cruz, que incentiva a pesquisa sobre os usos terapêuticos legítimos para alucinógenos.

Nos últimos anos, a atenção médica e pública para pacientes terminais e tratamentos paliativos vem aumentando. Contra esse pano de fundo, o governo dos EUA começou a afrouxar sua antiga resistência contra a exploração de drogas como o LSD como um meio de aliviar o que alguns chamaram de “angústia existencial “.

A pesquisa sobre o potencial terapêutico de outras drogas conhecidas por sua popularidade na rua – incluindo a psilocibina, o agente psicoativo em cogumelos psilocybe e o MDMA, ou Ecstasy – também está recebendo sinal verde do governo federal. Além de vários estudos utilizando MDMA junto com a psicoterapia no tratamento da ansiedade terminal, esta droga está em estudo, e tem se mostrado promissora, como um tratamento para o transtorno de estresse pós-traumático.

Não foram observadas flashbacks ou outros efeitos prolongados e apenas seis eventos adversos – incluindo ilusões, sofrimento emocional e sensação de frio ou de anormalidade – foram relatados pelos indivíduos durante a sua experiência, mas os mesmos se resolveram tão logo o efeito do ácido se dissipou.

Albert Hofmann (1906 – 2008) “o pai do LSD”

De certa forma, o estudo piloto foi um retorno do LSD para sua terra natal. Descoberto em 1938 em Basel pelo químico suíço Albert Hofmann da Sandoz Laboratories, efeitos psicoativos do LSD foram rapidamente colocados em uso por psiquiatras que tratavam com ele a dependência de álcool, distúrbios psicossomáticos e neurose. Desta vez, as cápsulas contendo o medicamento experimental foram compostos em Bichsel Labs em Interlaken, na Suíça.

A psicoterapia assistida com LSD foi ampla e abertamente praticada nos Estados Unidos até 1966 – e muito mais tarde no mundo inteiro, como a droga psicodélica de rua, tornou-se o amado objeto do crescente uso “não médico”, que a tornou ilegal em 1966, acabando com todas as pesquisa dos EUA sobre os seus potenciais benefícios terapêuticos.

“Minha experiência com LSD trouxe de volta algumas emoções perdidas e a habilidade de confiar, um monte de insights psicológicos, e um momento fora do tempo quando o universo não parecia como uma armadilha, mas como uma revelação de absoluta beleza” – disse Peter, um indivíduo austríaco participante do estudo.

“Este estudo histórico marca o renascimento da investigação da psicoterapia assistida pelo LSD” comemorou Rick Doblin, Ph.D., Diretor Executivo do MAPS. “Os resultados positivos e evidências de segurança claramente mostram porque estudos adicionais maiores são necessários.”

___

– Fonte: L.A. Times (Março 5, 2014)

– Fonte: MAPS (Março 4, 2014)

Estudo Publicado (Março 3, 2014)

Psilocibina: Possibilidades Terapêuticas do Psilocybe

Segue abaixo uma pesquisa sobre a Psilocibina realizada com o apoio do Departamento de Psicologia da Pontifícia Univercidade Católica (PUC) de Minas,  enviada ao micélio por Vinícius Ferraz e com a seguinte justificativa:

“Tendo em vista o complexo e intrigante fenômeno proporcionado pelos psicodélicos, ressalto a importância desta presente pesquisa, que ao investigar as possibilidades terapêuticas de uma destas substâncias, a Psilocibina, da margem a discussão sobre suas aplicações medicinais e propriedades curativas que podem vir a ser de grande préstimo a humanidade.

A pesquisa também contribuirá com o levantamento de material teórico, apresentando ao leitor o que houve de mais importante nos estudos desenvolvidos com psicodélicos na literatura e os modos de investigação e aplicação contemporâneos dessas substâncias, com ênfase na Psilocibina, que disponibilizará a pesquisadores e ao mundo científico informações adicionais para o estudo do tema. A importância deste estudo reside no crescente interesse científico que se apresenta no país com a investigação das mais diversas substâncias psicodélicas nos mais diferentes âmbitos.

Estudo este que é de grande relevância social levando em consideração tão antiga e intrínseca relação entre as substâncias psicodélicas e a humanidade no decorrer de sua história, sustentando a necessidade de elucidar e trazer a tona uma maior compreensão sobre o fenômeno para que a falta de esclarecimento sobre o tema não resulte na falta de critério e discernimento em seu uso e acabe por transformar uma possível ferramenta de pesquisa e terapia em um problema social.”

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Departamento de Psicologia
Psilocibina: Possibilidades terapêuticas do cogumelo psicodélico
Vinícius Ferraz
Caio de Azevedo
Belo Horizonte
2010

Psilocibina: Possibilidades terapêuticas do cogumelo psicodélico
Artigo Cientifico apresentado para o departamento de psicologia, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, unidade Coração Eucarístico.
Belo Horizonte

“Eu vejo a questão dos psicodélicos como uma parte da longa marcha em direção á liberdade humana, que tem certos marcos ao longo do caminho, como a abolição da escravatura, a conquista pelo direito de voto ás mulheres, a inclusão dos negros nos processos da sociedade democrática e agora, a necessidade do estabelecimento do direito universal das pessoas tomarem substâncias alteradoras de consciência.
Tudo se trata da marcha triunfante em direção á uma sociedade onde a dignidade do individuo é sempre o primeiro valor a ser honrado.
Não queremos ser governados pelos medos do fundamentalismo cristão, ou pela superficialidade do cientificismo, ou pelo sombrio vazio espiritual do materialismo.
Nós queremos nos conectar primeiro com nossos corpos, e através dos nossos corpos com o planeta É disso que os alucinógenos, as plantas psicoativas e as substancias psicodélicas se tratam.”
Terence McKenna

Psilocibina: Possibilidades terapêuticas do cogumelo psicodélico

1. Prefácio

As substâncias psicodélicas têm sido estudadas há pouco mais de um século, desde que a ciência ocidental descobriu os seus usos entre as culturas tradicionais. A partir desse período até nossos tempos de ciência contemporânea, diversos estudos foram realizados em campos diferentes de acordo com as décadas e com os interesses envolvidos no estudo dessas substâncias.

A psilocibina (alcalóide pertencente à família das triptaminas) é uma poderosa substância psicodélica encontrada naturalmente em uma diversidade de espécies de cogumelo dos gêneros Psilocybe, Stropharia, Conocybe e Panaeolus, das quais o Psilocybe cubensis e o Psilocybe mexicana são as mais conhecidas. Descoberta em 1953, pelo autor e pesquisador russo Gordon Wasson, a psilocibina é um psicodélico relativamente novo, em termos científicos, já que a sua entrada nos laboratórios foi posterior à descoberta de outras substâncias como a mescalina, 60 anos antes. Logo ganhou grande relevância científica, protagonizando uma série de estudos, principalmente relativos à prática psicoterápica auxiliada por psicodélicos, até cair no silêncio sufocante imposto pela política norte-americana da Guerra às Drogas.

Após um período de quase extinção como linha de pesquisa, o retorno ao interesse envolvido com o intrigante fenômeno proporcionado pelos psicodélicos ocorre no final do século XX (década de 90) e continua seu reflorescimento em pleno século XXI. Apesar dos milhares de estudos desenvolvidos até então, pouco se sabe e menos ainda é desenvolvido no Brasil, país que possui grande biodiversidade dessas substâncias e variabilidades em suas formas de uso social. A cultura de uso de psicodélicos no Brasil e na América em geral atrai os interesses de diversos grupos de pesquisas interessados nesse fenômeno, que têm gerado debates amplos nos campos da neurociência, da ciência cognitiva e das ciências sociais, principalmente da antropologia e etnologia.

A presente dissertação buscou apresentar ao leitor o que houve de mais importante nos estudos desenvolvidos com a psilocibina e o cogumelo psicodélico na literatura, contrastando os dois grandes momentos da psilocibina na ciência, de 1950 a 1960 e de 1990 a 2010, separados por um período marcado pela moratória científica arbitrariamente imposta pela política norte-americana de guerra as drogas. As pesquisas mais relevantes de cada um destes períodos, envolvendo a administração de psilocibina em seres humanos, foram levantadas e analisadas com intuito de investigar a natureza da alteração mental que a psilocibina induz no indivíduo e as possibilidades destas alterações produzirem efeitos terapêuticos. Foi apresentado também um breve histórico, onde se procurou situar historicamente o cogumelo psicodélico e sua relação com a vida e cultura humana.

Tendo em vista o complexo e intrigante fenômeno proporcionado pelos psicodélicos, ressalto a importância desta presente pesquisa, que ao investigar as possibilidades terapêuticas de uma destas substâncias, a Psilocibina, da margem a discussão sobre suas aplicações medicinais e propriedades curativas que podem vir a ser de grande préstimo a humanidade.

A pesquisa também contribuirá com o levantamento de material teórico, apresentando ao leitor o que houve de mais importante nos estudos desenvolvidos com a psilocibina na literatura e os modos de investigação e aplicação contemporâneos dessas substâncias, que disponibilizará a pesquisadores e ao mundo científico informações adicionais para o estudo do tema. A importância deste estudo reside no crescente interesse científico que se apresenta no país com a investigação das mais diversas substâncias psicodélicas nos mais diferentes âmbitos.

Estudo este que é de grande relevância social levando em consideração tão antiga e intrínseca relação entre as substâncias psicodélicas e a humanidade no decorrer de sua história, sustentando a necessidade de elucidar e trazer a tona uma maior compreensão sobre o fenômeno para que a falta de esclarecimento sobre o tema não resulte na falta de critério e discernimento em seu uso e acabe por transformar uma possível ferramenta de pesquisa e terapia em um problema social.

2. Os Cogumelos Psicodélicos e a Psilocibina

Figura 1. Cogumelo da espécie Psilocybe cubensis

2.1 Introdução

A prática humana de promover estados alterados, incomuns ou ampliados de consciência induzidos por substâncias psicoativas é bastante antiga, pré-data a história escrita e é atualmente empregada em várias culturas em diversos contextos socioculturais e ritualísticos (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001).

Diversas substâncias psicoativas conhecidas como alucinógenas verdadeiras, tais como psilocibina, ergotamina, DMT, mescalina, LSD, entre outras de mesma natureza química podem, de acordo com as diferentes descrições dos seus efeitos serem denominadas de substancias psicotomiméticas (substancias que mimetizam a psicose), de substâncias psicodélicas (substancias que manifestam a mente ou “aquele que manifesta o espírito”) ou enteógenos (substancias que induzem experiências de significado espiritual ou “aquele que desperta o divino interior”) (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001). Para os propósitos deste estudo utilizaremos o termo de substâncias psicodélicas, por ser a denominação mais utilizada nos artigos científicos de psicologia e que mais se enquadra nos objetivos desta investigação.

A psilocibina – alcalóide pertencente à família das triptaminas – é uma poderosa substância psicodélica encontrada naturalmente em uma diversidade de espécies de cogumelo dos gêneros Psilocybe, Stropharia, Conocybe e Panaeolus, das quais o Psilocybe cubensis e o Psilocybe mexicana são as mais conhecidas. Estas espécies são geralmente encontradas na América do Sul e na América Central, sendo endêmicos em países como o México e o Brasil, mas podem também ser verificados em outras regiões do globo, principalmente nas localizações equatoriais e tropicais (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001).

Alguns pesquisadores acreditam que a psilocibina abre uma porta para o subconsciente, permitindo que o mundo consciente seja encarado de uma perspectiva o de percepção sensorial ampliada: as cores se destacam, detalhes minúsculos dos objetos são revelados e estruturas coloridas cruzam o campo de visão. O efeito pode degenerar em desorientação, reações paranóicas, inabilidade para distinguir entre fantasia e realidade, pânico e depressão (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001).

2.2 Histórico

Os cogumelos psicodélicos tem sido parte integrante da história humana há muitos milênios e têm desempenhado papel importante em várias cerimônias religiosas. Os maias que habitavam a Guatemala há 3.500 anos utilizavam um fungo conhecido na língua nahuátl como Teonanácatl – a Carne de Deus. Esse Cogumelo provavelmente pertence ao Gênero Psilocybe, embora também possa ser relacionada a duas outras variedades: Conocybe ou Stropharia. O primeiro registro histórico do consumo do cogumelo Psilocybe data de 1502, durante a coroação do imperador Montezuma (Heim, 1972).

Com o início das grandes navegações e “descoberta” do novo continente surge o primeiro contato dos povos europeus com as culturas pré-colombianas que utilizavam o cogumelo em seus rituais. Despreparados e assustados pelos efeitos da droga, os conquistadores espanhóis tomaram a decisão de proibir a religião nativa e o uso dos fungos psicoativos, considerando estes cultos como “obra do diabo”. (Heim, 1972)

Não existe qualquer evidência do emprego cerimonial dos cogumelos ‘mágicos’ por culturas tradicionais na América do Sul, exceto achados arqueológicos no norte da Colômbia datando de 300-100 anos a.C., conquanto seu uso ritualístico ainda é observado em outras partes do continente americano, principalmente México e países vizinhos. Acredita-se que o ritual com cogumelos por povos indígenas no México exista há pelo menos 2.200 a 3000 anos, como demonstra a datação de achados arqueológicos de esculturas de pedra em forma de cogumelos (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001). Um estudo recente sugere que o uso de cogumelos ‘mágicos’, provavelmente Psilocybe cubensis, também tenha ocorrido na história do Egito antigo, utilizado ritualmente e descrito no Livro Egípcio dos Mortos (Berlant, 2005).

Não há dados na literatura acerca do uso de cogumelos no Brasil. A utilização contemporânea de cogumelos, na América do Sul e em diversas localidades do mundo, ocorre em sua maioria de maneira recreacional ou hedonística, devido à facilidade de comércio pela internet, inexistência de legislação reguladora (no caso do Brasil) e pela facilidade de serem encontrados em condições naturais (no estrume de bovinos).

O interesse dos cogumelos pela ciência aconteceu no início do século XX, quando o geógrafo alemão Carl Sapper descreveu em 1898 esculturas de pedra com formas de cogumelos (Figura 2), por ele interpretadas como representações fálicas, mais tarde evidenciadas por se tratarem dos cogumelos que há muito eram utilizados em rituais mágicos. O único conhecimento acerca do uso ritual de cogumelos consistia nas descrições de um guia de missionários de 1656 contra as idolatrias indígenas, incluindo a ingestão de cogumelos e recomendando sua extirpação (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001).

Figura 2. Deuses cogumelos de pedra. (A) Cogumelo de pedra Maya de El Salvador, período formativo em anos de 300 a.C. – 200 d.C. Altura de 33,5 cm. (Retirada de Schultes et al., 2001). (B) Cogumelos de pedra encontrados na Guatemala, datação em anos de 1000 a.C. – 500 d.C.

Figura 2. Deuses cogumelos de pedra. (A) Cogumelo de pedra Maya de El Salvador, período formativo em anos de 300 a.C. – 200 d.C. Altura de 33,5 cm. (Retirada de Schultes et al., 2001). (B) Cogumelos de pedra encontrados na Guatemala, datação em anos de 1000 a.C. – 500 d.C.

Outros documentos antigos que parecem citar o uso de cogumelos na antiguidade são o Rig Veda(Livro dos Hinos hindu) na Índia e o The Westcar Papyrus no Egito, também havendo possibilidade de os gregos terem utilizado (Berlant, 2005).

3. Estudos e pesquisas

3.1 Estudos e pesquisas de 1950 – 1960.

Os estudos científicos com os cogumelos Psilocybe têm origem na década de 50, através de expedições ao México com intuito de obter um maior conhecimento a cerca das culturas tradicionais da região, onde xamãs, através da ingestão de cogumelos psicodélicos em rituais sagrados extraordinários, induziam poderosas visões para curar e guiar o destino de seus povos.

Em 1953, o autor e pesquisador russo Gordon Wasson e sua esposa Valentina Pavlovna realizaram um estudo de expedição de campo para o México, para estudar o uso de cogumelos alucinógenos em rituais e cerimônias de cura. Esta expedição marca o inicio do estudo do cogumelo psicodélico pela ciência. Em 1955, eles se tornaram os primeiros estrangeiros a participar do ritual com cogumelos sagrados dos índios Mazatecas. Gordon Wasson fez muito para divulgar a sua descoberta, publicando o artigo sobre suas experiências em uma influente revista da época, a Life Magazine, em 1957 (Allen, 1987; Wasson, 1957).

O relato de Wasson sobre sua experiência com cogumelos provoca o interesse da comunidade cientifica sobre o fenômeno, descrevendo com fascinação seus efeitos:

“Tudo o que se vê naquela noite se banha na claridade da origem: a paisagem, as casas, os utensílios de uso diário, os animais, tudo é calmamente irradiado pela luz primordial; dir-se-ia que as coisas apenas acabam de serem produzidas pelo criador! Esta novidade total – a aurora da criação – o submerge e o envolve, o dissolve na sua beleza inexplicável (…) Seu espírito está livre, você vive uma eternidade numa noite, vê o infinito no grão de areia. O que você vê e escuta grava-se na sua memória, é gravado ali para sempre. Enfim, você conhece o inefável, sabe o que é o êxtase! (…) Uma simples planta abre as portas, libera o inefável, traz o êxtase. Não é a primeira vez na história da humanidade que as formas mais humildes de vida dão a luz ao divino. Por mais desconcertante que seja, a maravilha que anuncia merece ser ouvida pelos homens.” (Wasson, 1961, pag.8-12)

Auspiciado por Roger Heim, micologista e diretor do Museu Nacional de História Natural de Paris, Wasson desenvolve uma série de contribuições para os campos da botânica e antropologia realizando a identificação do cogumelo psicodélico através da colheita sistemática, cultura em laboratório e análise detalhada das diferentes espécies de cogumelos do gênero Psilocybe e seu uso ritualístico. Mais tarde Wasson e Heim se associam a Sandoz, uma empresa farmacêutica suíça, fornecendo amostras de cogumelos para uma pesquisa mais abrangente a cerca das propriedades químicas e farmacológicas (Forte, 1997; Heim, 1972).

Em 1958, cinco anos após a identificação por Wasson, o cientista suíço (e mais conhecido como o “pai” do LSD) Albert Hoffmann, investiga as propriedades químicas desse cogumelo e extrai a psilocibina e a psilocina, substância de propriedades psicotrópicas e alucinógenas que depois foram sintetizadas. A psilocibina é um psicodélico relativamente novo, em termos científicos, já que a sua entrada nos laboratórios foi posterior à descoberta de outras substâncias como a mescalina, 60 anos antes, e do LSD, anterior em uma década. Albert Hoffman foi o primeiro cientista a isolar o princípio ativo e a descrever sua estrutura molecular: o alcalóide de coloração azulada, na verdade eram dois deles e extremamente similares, foram batizados de Psilocibina e Psilocina, em alusão ao gênero Psilocybe: palavra de origem grega que significa cabeça (cybe) pelada (psilos). Os resultados, obtidos por Hoffman em colaboração com dois colegas (A. Brack e Dr. H. Kobel) e o professor Roger Heim, foram publicados, em março de 1958, em nota no jornal científico Experientia. Os mecanismos de ação, em fato, devem-se a um princípio único, visto que a psilocibina converte-se em psilocina dentro do próprio corpo através de um processo chamado desfoforilação, mas os dois compostos são naturalmente encontrados nos cogumelos, sendo o primeiro deles verificado em maior porcentagem (Hoffmann, Heim, Brack & Kobbel, 1958).

Posteriormente, em parceria com outros quatro colegas (A. J. Frey, H. Ott, T. Petrzilka e F. Troxler), Hoffman descobriu a síntese da psilocibina, cuja fórmula foi patenteada em 1963. Os resultados da pesquisa foram publicados em dezembro de 1958, também no jornal Experientia. A substância foi identificada como similar a outros químicos com o LSD, cujos intensos efeitos psíquicos denunciavam a urgência de novas frentes de pesquisa. A psilocibina entrou, decisivamente, para a família daqueles estranhos e misteriosos alcalóides que vinham desafiando a percepção sobre a natureza da mente humana. A partir da descoberta da sintetização, os laboratórios Sandoz, para o qual Hoffman trabalhava, passaram a disponibilizar a substância, assim como o LSD e outros psicodélicos, para as novas frentes de pesquisa que se disseminavam no início dos anos 60, principalmente norteados pelas vanguardas investigativas da Psiquiatria e Neurologia (Hoffmann, Frey, Ott, Petrzilka & Troxler, 1958).

Em 1959, a psilocibina já se tornava a protagonista de uma série de estudos científicos, principalmente relativos à prática psicoterápica auxiliada por psicodélicos. Uma pesquisa francesa intitulada Les Effets Psychiques de la Psilocybine et les Perspectives Thérapeutiques (Os Efeitos Psíquicos da Psilocibina e as Perspectivas Terapêuticas) liderada pelo médico Jean Delay, pioneiro da pesquisa sistemática da psilocibina nos domínios psiquiátricos, administrou a psilocibina em 13 pacientes saudáveis e em 30 pacientes diagnosticados com desordens mentais e concluiu que a substância, com efeito alucinógeno mais leve do que a mescalina e efeito despersonalizante menor do que o LSD, possuía um significativo potencial enquanto ferramenta terapêutica por sua capacidade de provocar melhor acessibilidade aos conteúdos do paciente, assim como desencadear efeito psicolítico, ou seja, liberar estes conteúdos na forma de revivências (geralmente da infância), estímulos da memória afetiva e eventos traumáticos (Delay, Pichot, Lempérière, Nicolas-Charles & Quétin, 1959). No mesmo ano, Delay, deu continuidade à investigação, publicando o artigo Premiers Essais de la Psilocybine en Psychiatrie (Primeiros Ensaios da Psilocibina na Psiquiatria) (Delay, Pichot & Nicolas-Charles, 1959).

Ainda em 1959, o psiquiatra alemão F. Gnirss desenvolveu uma pesquisa intitulada Untersuchungen mit Psilocybin, einem Phantastikum aus dem Mexikanischen Rauschpilz Psilocybe mexicana (Estudos com psilocibina, um psicodélico do cogumelo Psilocybe mexicana), através da qual administra o alcalóide em um grupo de 18 pacientes saudáveis, através deste estudo Gnirss identifica propriedades psicotrópicas na substância , que significa que a Psilocibina age no Sistema Nervoso Central (SNC) produzindo alterações de comportamento, humor e cognição, possuindo grande propriedade reforçadora sendo, portanto, passíveis de auto-administração. Conclui que a substância é de significativa importância teórica e possibilidade de utilização psicoterapêutica. (Gnirss, 1959).

Em 1960, outra pesquisa francesa, desenvolvida pelo psiquiatra A. M. Quétin, resultou em conclusões similares ao administrar o fármaco em um grupo de 32 pacientes saudáveis e 68 pacientes diagnosticados com quadros psicóticos com idades entre 16-66 (21 esquizofrênicos, 6 com delírios crônicos, 6 com psicoses maníaco-depressiva, 6 oligofrênicos, 29 com neuroses, incluindo 3 alcoólicos). Através da análise exaustiva Quétin afirmou que a droga é certamente de grande interesse para o diagnóstico e, provavelmente, também para a psicoterapia (Quétin, 1960).

Inspirado pelo artigo de Wasson na Life Magazine (Wasson, 1957), o psicólogo, neurocientista, escritor, Ph.D. e professor de Harvard, Timothy Leary, viajou para o México com o intuito de experimentar e pesquisar os cogumelos psicodélicos (Higgs, 2006). Em 1960, ao voltar para Harvard, os psicólogos Timothy Leary e Richard Alpert iniciaram o projeto intitulado de “Harvard Psilocybin Project”, do qual fizeram parte também o ensaísta filosófico e autor de Portas da Percepção Aldous Huxley, o Presidente da Associação Psiquiátrica Americana John Spiegel, o superior de Leary em Harvard David McClelland, o psicólogo e professor da Universidade da Califórnia Frank Barron e dois estudantes graduados que já haviam trabalhado em um projeto à cerca da mescalina. Durante o programa, que durou de 60 a 62, uma série de experimentos foi desenvolvida para investigar as implicações da psilocibina sobre a natureza dos distúrbios psicóticos, tratamento de desordens de personalidade e psicoterapia auxiliada pelo uso do químico. Este projeto fazia parte do programa de pesquisa psicodélica em Harvard (Harvard Psychedelic Drug Research Program) inaugurado em 1960 por 35 professores, instrutores e estudantes graduados que deram luz a várias pesquisas importantes com psicodélicos na época (Higgs, 2006; Leary, 1961).

Em 1961, foi conduzido um dos mais significativos estudos feitos pela Harvard Psilocybin Project intitulado de “Um novo programa de mudança de comportamento para infratores adultos usando psilocibina” (A New Behavior change program for adult offenders using psilocybin), mais conhecido como “A experiência da prisão de Concord”. O experimento foi realizado no período de 1961 a 1963 por uma equipe de pesquisadores da Universidade de Harvard, sob a direção de Timothy Leary, dentro dos muros da Prisão Estadual de Concord, uma prisão de segurança máxima para jovens delinqüentes. O estudo envolveu a administração de psilocibina para auxiliar a psicoterapia de grupo para 32 presos, em um esforço para reduzir as taxas de reincidência criminal. Os registros da Prisão Estadual de Concord sugeriam que 64% dos 32 indivíduos voltariam para a prisão no prazo de seis meses após a liberdade condicional. No entanto, após seis meses, apenas 25% das pessoas em liberdade condicional retornaram a prisão, seis por causa de violação da condicional e dois para novos crimes. Estes resultados são ainda mais dramáticos quando a literatura correcional é pesquisada, poucos projetos de curto prazo com prisioneiros têm sido eficazes até mesmo em menor grau. Além disso, testes de personalidade indicaram uma mensurável mudança positiva no comportamento dos presos depois da experiência com a psilocibina, em comparação com os mesmo antes da experiência (Leary, Metzner, Presnell, Weil, Schwitzgebel & S. Kinne, 1965). Esta é apenas uma de várias pesquisas produzidas pelo Harvard Psilocybin Project nesta época.

O desenvolvimento do projeto, no entanto, foi significativamente prejudicado pela desenvoltura um tanto quanto anti-acadêmica de Timothy Leary, que extremamente fascinado pelas experiências de consciência desencadeadas por tais alcalóides, abandonou gradativamente a figura do pesquisador para investir-se da figura quase mística de um profeta do alucinógeno. Em 1963, Timothy Leary foi expulso de Harvard depois de ter promovido uma experiência psicotrópica com uma turma inteira de estudantes de psicologia (com o consentimento destes, naturalmente) sem monitoramento laboratorial ou intuito de pesquisa. Aos poucos foi se desfazendo da característica científica para tornar-se, anos mais tarde, uma espécie de guru da cultura psicodélica que vinha incitando os fluxos intensos da contracultura. (Higgs, 2006; Leary, 1963) A popularização de enteógenos promovida por Robert Wasson, Timothy Leary, Terence McKenna, entre outros autores e pesquisadores, levou a uma explosão no uso de cogumelos contendo Psilocibina por todo o mundo.

Até o momento drástico em que os psicodélicos escaparam dos laboratórios e tornaram-se os protagonistas de uma batalha política e, em função da política norte-americana da Guerra às Drogas, foram terminantemente proibidos, inclusive no universo científico. Até o final dos anos 60 e início dos 70, quando os Estados Unidos responderam violentamente aos questionamentos da Contracultura, movimento do qual fazia parte expressiva a utilização destas drogas, os principais estudos concentravam-se em traçar paralelos entre as três principais substâncias do grupo – LSD, mescalina e psilocibina – e em examinar a potencialidade psicoterapêutica e possível relação entre os estados alterados de consciência provocados pela adição destes alcalóides e os distúrbios mentais. Com a medida que pôs fim às pesquisas, e através da qual o governo norte-americano arbitrariamente revogou toda e qualquer qualidade científica dos psicodélicos, a psilocibina foi, assim como os demais, silenciada, apenas voltando aos laboratórios após quase trinta anos de moratória (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001).

3.2 Estudos e pesquisas de 1990 – 2010.

De 1953 ao final dos anos 60 as substâncias psicodélicas, como a psilocibina, foram o centro de diversas pesquisas, já citadas anteriormente, até caírem no silêncio sufocante imposto pela política norte-americana da Guerra às Drogas. Aproximadamente três décadas após o período marcado pela moratória científica arbitrariamente fixada, os psicodélicos iniciaram um expressivo movimento de retorno aos domínios científicos (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001). Somente na década de 90 se reiniciaram seriamente as pesquisas com psicodélicos em humanos, principalmente devido aos esforços do Dr. Rick Strassman, da Universidade do Novo México, nos EUA, e do Dr. Franz Vollenweider, da Universidade Psiquiátrica Hospital Zürich, na Suíça (Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001). A partir deste momento e até os dias de hoje, a psilocibina tornou-se novamente o centro de diversos estudos.

Em 2004, o psiquiatra norte-americano Charles Grob, da Universidade da Califórnia, desenvolveu a pesquisa intitulada “Pilot Study of Psilocybin Treatment for Anxiety in Patients With Advanced-Stage Cancer” (Estudo Piloto de Tratamento de psilocibina para ansiedade em pacientes com câncer em estágio avançado) que investigou a substância enquanto fator terapêutico em pacientes com câncer em estado terminal explorando a sua segurança e eficácia. O estudo incluiu a administração de uma pequena dose (0,2 mg/kg) de psilocibina em 12 pacientes adultos – dos quais 11 eram mulheres – com câncer em estágio avançado e ansiedade, que ficaram deitados, com os olhos vendados, e ouvindo música a seu gosto durante seis horas sob supervisão de terapeutas treinados. A freqüência cardíaca, a pressão arterial e a temperatura dos voluntários foram monitoradas ao longo de cada tratamento. Os investigadores também verificaram os níveis de depressão, ansiedade e humor em cada um deles. Duas semanas após a experiência com a psilocibina, os voluntários reportaram que se sentiam menos deprimidos e ansiosos. Seis meses depois, o nível de depressão tinha diminuído 30%, conforme os resultados publicados na Archives of General Psychiatry. Alguns voluntários relataram estados de consciência ligeiramente alterados após receber a psilocibina, mas os pesquisadores não notaram efeitos adversos fisiológicos, ainda não foram identificados possíveis efeitos maléficos na utilização de psilocibina. Ainda assim, outros testes são necessários para examinar a segurança e a eficácia do cogumelo. O estudo, que procurava a redução do estresse e dor, obteve resultados animadores no aumento da qualidade de vida dos pacientes e os dados revelaram um aspecto promissor na utilização terapêutica da substância (Grob, Danforth, Chopra, Hagerty, McKay, Halberstadt & Greer, 2010).

Em 2006, o psiquiatra Francisco Moreno, da Universidade do Arizona, iniciou uma pesquisa sobre o uso terapêutico da substância em pacientes diagnosticados com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) que resistiram a outros tipos de tratamento, assim como para fins de teste de segurança do alcalóide no organismo. Em uma clínica com ambiente controlado, a psilocibina foi usada com segurança em pacientes com TOC e foi associado a reduções agudas no TOC sintomas básicos em vários indivíduos. As conclusões reportaram que todos os pacientes, da amostra de nove, experienciaram melhorias nos quadros obsessivos compulsivos durante o período da experiência. Apesar de ser uma pequena pesquisa, com uma amostra e um alcance não tão significativos, Moreno reportou seu ânimo diante da potencialidade da substância: “O que vimos foi uma drástica diminuição dos sintomas durante um período de tempo. As pessoas diziam que não se sentiam tão bem há anos” (Moreno, Wiegand, Taitano & Delgado, 2006).

Em outro estudo, em 2006, o neurocientista Roland Griffiths, da Universidade Johns Hopkins, administrou psilocibina em 36 voluntários saudáveis, que participavam regularmente de atividades religiosas ou espirituais, com o objetivo de investigar os mecanismos da experiência mística/espiritual induzida pela psilocibina. Foram realizadas três sessões em intervalos de dois meses onde a psilocibina foi administrada via oral aos voluntários em doses altas (30 mg/70 kg). Nas sessões de 8 horas, realizadas individualmente, os voluntários eram encorajados a fechar os olhos e dirigir a sua atenção para seu interior. O comportamento dos voluntários foi monitorado e avaliado durante as sessões e questionários foram preenchidos imediatamente após e dois meses após as sessões, avaliando os efeitos da substancia e as características da experiência. Cerca de dois terços dos voluntários relatou haver vivenciado uma completa experiência mística, caracterizada por uma sensação de unidade com todo o universo. Entre os resultados foram relatados uma série de grandes alterações na percepção, experiência subjetiva e humor lábil – incluindo ansiedade – dos participantes. Em dois meses, os voluntários classificaram a experiência como possuidora de substancial sentido pessoal e significado espiritual, além de atribuírem a psilocibina as mudanças positivas em suas atitudes e comportamentos, coerentes com observações e avaliações cientificas (Griffiths, Richards, McCann & Jesse, 2006). Griffiths continuou monitorando os voluntários de sua pesquisa por quatorze meses após este estudo, através de entrevistas periódicas com intuito de avaliar os efeitos agudos e persistentes da administração das doses de psilocibina. Dentre os resultados obtidos pode se observar que os voluntários ainda atribuíam à experiência a causa de seus altos níveis de satisfação com a vida e a associaram ao crescente bem-estar que sentiam desde então. Foi relatado pela maioria dos participantes que seu humor, suas atitudes e comportamentos mudaram para melhor. Entrevistas estruturadas com familiares, amigos e colegas de trabalho em geral, confirmaram as observações dos sujeitos. Testes psicológicos e relatórios dos próprios sujeitos não mostraram nenhum dano aos participantes do estudo, embora alguns admitiram ansiedade extrema ou outros efeitos desagradáveis nas primeiras horas após a administração da psilocibina. Além disto, não foram observadas dependência física ou intoxicações proporcionadas pela substância. Griffiths conclui que sob condições bem definidas, com uma preparação cuidadosa, se pode gerar de forma segura e bastante confiável uma experiência mística que pode trazer mudanças positivas a uma pessoa. Afirma também que seu estudo é um passo inicial de uma série de trabalhos científicos com a psilocibina que acabará por ajudar pessoas (Griffiths, Richards, Johnson, McCann & Jesse, 2008).

Ainda em 2006, o psiquiatra John Halpern, da Universidade de Harvard, liderou um estudo com intuito de investigar os efeitos terapêuticos da psilocibina em pacientes diagnosticados com uma enxaqueca intensa conhecida como cefaléia em salvas. Considerada como a mais forte dor de cabeça que se conhece, a cefaléia em salvas é extremamente dolorosa e de ocorrência rara. É caracterizada por uma dor unilateral que atinge a zona ocular ou temporal, sua duração varia de 15 minutos a 3 horas podendo apresentar de uma até oito crises por dia, a dor é tão insuportável que muitos pensam em suicídio e alguns de fato o cometem. Com o objetivo de trazer alívio para suas excruciantes dores de cabeça, Bob Wold, depois de ter tomado sem eficácia mais de 75 medicamentos prescritos, em mais de 100 combinações diferentes e tendo como ultimo recurso quatro opções cirúrgicas, algumas de alto risco, e todas sem promessa de resultado definitivo, Wold conheceu dois médicos que sabiam que Albert Hofmann, quando sintetizou o LSD, procurava tratamentos para hemorragias durante o parto e para dores de cabeça. Devido à ilegalidade do LSD em todo o mundo e sua difícil síntese, os médicos e Wold decidiram tentar um tratamento com psilocibina. O resultado foi tão expressivo e marcante que Bob se viu, pela primeira vez em duas décadas, livre de suas dores. Bob Wold fundou uma organização, a Clusterbusters, para ajudar pacientes com a mesma condição e estudar os efeitos da psilocibina como tratamento, através da qual mantêm contato com cerca de 200 vitimas, de onde Wold pode levantar uma série imensa de informações – adquiridas em forma de questionários – que foram apresentadas à Harvard. A organização chamou atenção da universidade, que iniciou um estudo, onde seus autores entrevistaram 53 vítimas de cefaléia em salvas que experimentaram psilocibina ou LSD para tratar de sua condição. Vinte e dois dos 26 pacientes em que a psilocibina foi administrada reportaram diminuição dos ataques e alguns até mesmo a remissão por períodos extensos. A associação cresceu e hoje conta com apoio de pesquisadores em instituições formais de pesquisa, ajudando dezenas de pacientes na mesma condição (Sewell, Halpern & Pope, 2006).

As pesquisas atuais têm apontado, com dados promissores, que psicodélicos possuem uma potencialidade ainda pouco conhecida pelos cientistas e que jamais deveriam ter sido condenados a repressão durante longas décadas. Os novos estudos têm inspirado um honesto retorno de alcalóides como a psilocibina aos domínios da ciência e desmentindo a deturpada imagem pintada pelas políticas antidrogas norte-americanas nos anos 60.

4. Metodologia

O estudo foi realizado através de revisões bibliográficas de artigos científicos que tratam sobre o tema. As revisões estão divididas em duas partes: de 1950-1960 e de 1990-2010.

Coletamos os resultados de 8 pesquisas, 4 de cada época, de diversos pesquisadores que administraram psilocibina em humanos. Os resultados foram analisados e separados por tópicos de acordo com a natureza dos efeitos produzidos pela psilocibina (como humor, cognição e comportamento), buscando nestes efeitos as possibilidades do uso da substância em tratamentos, investigando sua eficácia, segurança e contra-indicações.

5. Resultados

1950-1960
1959 – Os Efeitos Psíquicos da Psilocibina e as Perspectivas Terapêuticas.
Autoria: Delay
Objetivo: Pesquisar sistemáticamente os efeitos psíquicos da psilocibina e suas perspectivas terapêuticas.
Metodologia: Administração de psilocibina em 13 indivíduos normais e 30 portadores de transtornos mentais.
Resultados:

  • Humor: Alteração no humor, com predominio de euforia e váriações para sentimentos de desconforto, apreensão ou ansiedade acentuada.
  • Cognição: Disturbios de atenção, ideação, alteração na noção subjetiva de tempo, afastamento da realidade ou isolamento do individuo, pensamentos delirantes.
  •  Comportamento: Excitação, com movimentos compulsivos e gargalhadas sem motivos aparentes, alternando para desânimo e indiferença.
  • Percepção: Alteração na intensidade das impressões sensoriais (predominantemente visuais, mas também acústicas e gustativas), ilusão, alucinação, distorção da imagem corporal, disturbios de propriocepção, despersonalização e interpretação antagonista do ambiente.
  • Memória: Estimulação da memoria da infância, incluindo experiencias traumáticas, acesso ao material esquecido e liberação de inibições (ab-reação emocional).

Conclusão: Para os autores o acesso ao material esquecido e a liberação de inibições (ab-reação emocional) poderia ter grande valor terapêutico e interesse para a psicologia e psiquiatria.
Referência: Delay, Pichot, Lempérière, Nicolas-Charles & Quétin, 1959

1959 – Estudos com psilocibina, um psicodélico do cogumelo Psilocybe mexicana.
Autoria: Gnirss
Objetivo: Verificar os efeitos da substância em populações humanas.
Metodologia: Administração de psilocibina em 18 pacientes saudáveis.
Resultados:

  • Humor: Alteração no humor, com predomínio de euforia.
  • Comportamento: Possui ação direta no Sistema Nervoso Central, produzindo alterações de comportamento, com efeitos iniciais de atividades reduzidas e variando para uma segunda fase com o aumento da atividade e excitação.
  • Percepção: Alterações da imagem corporal, sentimentos de despersonalização e distúrbios de percepção sensorial.
  • Efeitos somáticos: Foram relatadas alterações no funcionamento do sistema nervoso autônomo como bradicardia, aumento da pressão arterial, diminuição da freqüência respiratória e aumento do volume respiratório, dor de cabeça, vertigem e dessincronização do EEG.

Conclusão: O autor afirma que a psilocibina possui ação direta no Sistema Nervoso Central, produzindo alterações de comportamento, humor e cognição, possuindo grande propriedade reforçadora sendo, passíveis de auto-administração.
Referência: Gnirss,1959

1960 – A Psilocibina na psiquiatria e clínica experimental.
Autoria: Quétin
Objetivo:
Metodologia: Administração de psilocibina em 32 pessoas saudáveis, com idade entre 25-35 anos e 68 pacientes diagnosticados com quadros psicóticos.
Resultados:

  • Humor: Não houve mudança
  • Memória: Liberação de memórias reprimidas.
  • Efeitos somáticos: Produz bradicardia, hipoglicemia e uma pequena alteração na esfera psíquica.

Conclusão: O efeito da psilocibina é comparável à do LSD e mescalina, mas difere em manifestações somáticas e não há nenhuma mudança na contagem de leucócitos. O modo de ação é complexo e ainda não esclarecido. A droga é certamente de grande interesse para o diagnóstico e, provavelmente, também para a psicoterapia. A reação dos indivíduos saudáveis podem às vezes ser previsíveis se o tipo de personalidade é conhecido: estudos psicométricos devem ser feitos.
Referência: Quétin,1960

1965 – Um novo programa de mudança de comportamento para infratores adultos usando psilocibina.
Autoria: Leary
Objetivo: Reduzir as taxas de reincidência criminal.
Metodologia: Administração de psilocibina em 32 presos, para auxiliar a psicoterapia de grupo.
Resultados:

  • Comportamento: Houve uma mudança positiva no comportamento dos presos depois da experiência com a psilocibina, em comparação com os mesmos antes da experiência.

Conclusão: O estudo concluiu que o novo programa de psicoterapia de grupo, auxiliada pela administração de psilocibina, e programas de pós-libertação carcerária, reduziria significativamente os índices de reincidência criminal. Os registros da Prisão Estadual de Concord sugeriam que 64% dos 32 indivíduos voltariam para a prisão no prazo de seis meses após a liberdade condicional. No entanto, após seis meses, apenas 25% das pessoas em liberdade condicional retornaram a prisão, seis por causa de violação da condicional e dois por novos crimes.
Referência: Leary, Metzner, Presnell, Weil, Schwitzgebel & S. Kinne, 1965

1990-2010
2006 – Segurança, tolerância e eficácia da psilocibina em 9 pacientes com Transtorno Obsessivo-Compulsivo.
Autoria: Moreno
Objetivo: Uso terapêutico da psilocibina em pacientes diagnosticados com TOC, que resistiram a outros tipos de tratamentos.
Metodologia: Administração de psilocibina em 9 pacientes portadores de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).
Resultados:

  • Comportamento: Foi observada uma diminuição acentuada dos sintomas de TOC em todos os pacientes. A diminuição dos sintomas em pacientes que sofrem de transtorno obsessivo-compulsivo durou após as primeiras 24 horas após a ingestão da psilocibina.
  • Efeitos somáticos: Um indivíduo apresentou hipertensão transitória.

Conclusão: As conclusões reportaram que a psilocibina foi usada com segurança em todos os pacientes, da amostra de nove, que experienciaram reduções agudas nos sintomas básicos do TOC e melhorias nos quadros obsessivos compulsivos durante o período da experiência.
Referência: Moreno, Wiegand, Taitano & Delgado, 2006

2006 – Reação da cefaléia em salvas à psilocibina e ao LSD.
Autoria: Halpern
Objetivo: Investigar os efeitos terapêuticos da psilocibina e do LSD em pacientes diagnosticados com uma enxaqueca intensa, conhecida como cefaléia em salvas.
Metodologia: Administração de psilocibina em 53 pacientes com cefaléia em salvas.
Conclusão: Foi confirmada a eficácia completa (definida como a causa da parada total dos ataques) ou a eficácia parcial (definida como diminuição da intensidade ou freqüência dos ataques, mas não a extinção dos mesmos) da psilocibina neste tratamento em 42% dos 53 indivíduos.
Referência: Sewell, Halpern & Pope, 2006

2006 – A psilocibina pode ocasionar experiências místicas possuindo substancial sentido pessoal e significado espiritual.
Autoria: Griffiths
Objetivo: Investigar os mecanismos da experiência mística/espiritual induzida pela psilocibina e avaliar os efeitos psicológicos, agudos e de longo prazo, proporcionados por uma dose alta de psilocibina.
Metodologia: Administração de psilocibina em 36 voluntarios adultos saudaveis, que participavam regularmente de atividades religiosas ou espirituais.
Resultados:

  • Humor: Humor lábil, com sentimentos de transcendência, tristeza, alegria, e/ou ansiedade. Redução de ansiedade de longo prazo após experiencia.
  • Cognição: Senso de significado e/ou idéias de referência. Sensação de bem estar ou satisfação com a vida.
  • Comportamento: Resultados mais elevados de estimulação/excitação e de atividade motora espontânea, sonolência muito baixa, agitação e maior contato físico com os monitores. Mudanças positivas duradouras nas atitudes e comportamentos dos sujeitos.
  • Percepção: Alteração perceptivas como pseudo-alucinações visual, ilusões, e sinestesias.

Conclusão: O estudo, constata que as modificações sofridas no humor, afeto e cognição dos sujeitos, após a expreriência com a psilocibina, são típicas desta substância e produzem uma série de grandes alterações na percepção, experiência subjetiva e humor lábil, incluindo ansiedade, dos participantes. Maiores elevações, a longo prazo, nos índices de atitudes positivas, bom humor, sociabilidade e comportamentos assertivos. Experiência classificada pelos sujeitos como estando dentre as cinco experiências mais significativas de sua vida, considerando-a como possuidora de substancial sentido pessoal e significado espiritual.
Referência: Griffiths, Richards, McCann & Jesse, 2006

2010 – Estudo Piloto de Tratamento de psilocibina para ansiedade em pacientes com câncer em estágio avançado.
Autoria: Grob
Objetivo: Investigar a segurança e eficácia terapêutica da psilocibina para pacientes com câncer terminal
Metodologia: Administração de psilocibina em 12 indivíduos adultos com câncer em estágio avançado e ansiedade.
Resultados:

  • Humor: Melhora de humor que atingiu significância de seis meses, com redução da ansiedade no tempo de até três meses após o tratamento.

Conclusão: O estudo, que procurava a redução do estresse e dor, obteve resultados animadores no aumento da qualidade de vida e melhora do humor e ansiedade dos pacientes e os dados revelaram um aspecto promissor na utilização terapêutica da substância, estabelecendo a viabilidade e segurança da administração de doses moderadas de psilocibina para pacientes.
Referência: Grob, Danforth, Chopra, Hagerty, McKay, Halberstadt & Greer, 2010.

6. Discussão e análise dos dados

A partir da análise dos resultados obtidos nestas 8 pesquisas realizadas através da administração de psilocibina, entre outros conhecimentos sobre o tema, podemos observar alguns aspectos que devem ser levados em consideração:

Em relação aos efeitos somáticos produzidos pela psilocibina, que são divulgados mais amplamente em 3 pesquisas, que consiste nas alterações no funcionamento do sistema nervoso autônomo como bradicardia, aumento da pressão arterial, diminuição da freqüência respiratória e aumento do volume respiratório, dor de cabeça, vertigem e hipoglicemia podem representar riscos para algumas pessoas, necessitando de acompanhamento médico. Outros efeitos somáticos observados como midríase, hipotensão, congestão facial, suor, astenia e sono são aparentemente os mesmos, tanto em pessoas com transtornos mentais quanto em pessoas normais. Andar ébrio e tremores acontecem paralelamente.

Em relação aos efeitos psíquicos, são caracterizados em primeiro lugar por perturbações do humor, como euforia e sensação de bem-estar, é interessante notar uma inversão do humor nos melancólicos. A agitação é freqüente, variando muitas vezes de um estado eufórico para sentimentos de desconforto, mal-estar geral, fadiga com apreensão, perplexidade e até mesmo ansiedade, nos mostrando o quão sensível para emoções a psilocibina deixa o paciente.

O comportamento é alterado, geralmente há uma grande excitação com o uso da substância, podendo ocorrer, por exemplo, movimentos compulsivos que se alternam para desânimo e indiferença. Porém a longo prazo pode ser constatado uma melhora significativa nos comportamentos e atitudes do sujeito.

A cognição é afetada por distúrbios de atenção, alteração na noção subjetiva de tempo, afastamento da realidade, isolamento do indivíduo e ocorre pensamento delirantes. Os fenômenos intelectuais apresentam déficit, como perturbações de concentração, às vezes são de um tipo onírico que pode ser ansioso, e até erótico.

A percepção é alterada, ocorrendo alteração na intensidade das impressões sensoriais, distorção da imagem corporal e podendo ocorrer ilusões e sinestesias. Os contatos com o mundo exterior traduzem modificações que levam, por exemplo, os melancólicos a sorrir, os catatônicos a procurar contato. Às vezes desaparece a timidez e um fenômeno nomeado por um dos autores como reticências, que diz da “omissão voluntária do que se poderia dizer”. Sentimentos de despersonalização não são raros.

A memória é afetada através da estimulação da memória da infância, da liberação de inibições (ab-reação emocional) e liberação de memórias reprimidas. As manifestações mais interessantes aplicam-se as evocações, permitindo aos pacientes reviver suas crises de angústia ou cenas que podem tê-los marcado. A supressão das inibições permanece também como um dos resultados mais dignos de atenção.

Podemos considerar, de um modo geral, que existe grande semelhança entre os efeitos da psilocibina nos sujeitos normais e nos doentes mentais.
A liberação de memórias reprimidas ocorre igualmente a ambos, entretanto, nas pessoas normais são recordações de infância geralmente não penosas, enquanto que nos doentes mentais são, mais freqüentemente, cenas traumatizantes.

Convém separar os efeitos da psilocibina conforme a condição psíquica do sujeito, se ele é psicótico ou neurótico. Nos esquizofrênicos crônicos, nos dementes, toda possibilidade de resposta afetiva parece abolida, os risos discordantes sem nenhum motivo ou razão são freqüentes. Nos paranóicos de evolução recente as reações são violentas, as vezes provocadas por poderosas recordações nas quais as testemunhas presentes podem ser identificadas a personagens ligadas a cenas do passado do doente, que as reencontra, sob o efeito da substância. Assim sendo, a agressividade deste em relação a certas pessoas de seu ambiente renascerá, devido a esta lembrança provocada, necessitando de maio cuidado neste ponto.

Nos casos de neurose, determina-se o interesse da aplicação da psilocibina. Nos psicopatas, a atitude se revelará teatral ou pueril. As lembranças afluem, o sujeito registra-as com todo o cortejo afetivo: reivindicações, frustrações, invejas, culpabilidade (Quétin, 1960). Assim sendo, a supressão das inibições e dos recalques acelera-se, fixa-se. Em alguns casos, essas modificações chegam a uma verdadeira tomada de consciência intelectual do paciente sobre seu estado, o que pode levar a uma espécie de euforia, a qual aguçaria, por exemplo, seu “apetite” renovador, levando o sujeito a novas atitudes.

Nos histéricos, enfim, numa primeira fase ansiosa acentuada pela desconfiança, sucederá um desaparecimento progressivo da hostilidade em relação às testemunhas. Pouco a pouco, as lembranças longínquas se reconstituem, acumulam, as circunstâncias do passado tornam a juntar-se. Também nos portadores de transtorno obsessivo-compulsivo o sentimento de culpa pode exteriorizar-se, fazendo nascer os elementos que permitirão que talvez se desenhem — definidas pelo próprio doente — as etapas sucessivas de sua despersonalização, trazendo uma grande melhora para sua vida e redução, com raros casos de extinção, dos sintomas.

Este efeito sobre a memória humana, provocando o acesso a memórias reprimidas, é de grande interesse para a psicologia, se mostrando um método eficaz no tratamento de algumas desordens mentais e outros transtornos, provocando uma significativa melhora na vida dos pacientes e se mostrando segura para sua aplicação, se mediante a um acompanhamento profissional e um direcionamento terapêutico.

7. Considerações finais

Os efeitos únicos produzidos pela psilocibina fornecem panoramas para o estudo da mente em geral e da consciência humana em particular. Permitem a exploração de diversos parâmetros e mecanismos atrelados ao processo consciente, como a percepção sensorial e a autoconsciência.
Nas mãos do terapeuta, a psilocibina não apenas pode agir francamente sobre o ressurgimento de lembranças reprimidas como também despertar um desejo de aproximação entre o paciente e o terapeuta, formando um vínculo onde seja possível uma colaboração maior de ambas as partes para a revelação da origem das perturbações mentais.

Mostrando-se então uma eficaz ferramenta terapêutica, e comprovando minhas hipóteses de que a proibição desta substância advém antes de uma arbitrariedade preconceituosa de pretextos hediondos do que de um real risco a vida ou bem-estar do ser humano. Porém, para uma aplicação segura e com resultados benéficos da psilocibina, como uma ferramenta auxiliar em processos terapêuticos, mais estudos são necessários.

Referências
Allen, 1987; Allen, J. W. Wasson’s First Voyage: The Rediscovery of Entheogenic Mushrooms. Ethnomycological Journals Sacred Mushroom Studies vol. II, 1987.
Berlant, 2005; Berlant, S. R. The entheomycological origin of Egyptian crowns and the esoteric underpinnings of Egyptian religion. Journal of Ethnopharmacology, 2005.
Delay, Pichot, Lempérière, Nicolas-Charles & Quétin, 1959; Delay J, Pichot P, Lempérière T, Nicolas-Charles P, Quétin AM. “Les effets psychiques de la Psilocybine et les perspectives thérapeutiques”. Presse Méd., 1959.
Delay, Pichot & Nicolas-Charles, 1959; Delay J, Pichot P, Nicolas-Charles P. “Premiers essais de la psilocybine en psychiatrie”. Neuro-Psychopharmacology, 1959.
Forte, 1997; FORTE, Robert. Entheogens And The Future Of Religion. San Francisco, CSP, 1997.
Gnirss, 1959; Gnirss F. “Untersuchungen mit Psilocybin, einem Phantastikum aus dem mexikanischen Rauschpilz Psilocybe mexicana”. Schweiz. Arch. Neurol. u. Psychiat., 1959.
Griffiths, Richards, McCann & Jesse, 2006; Griffiths RR, Richards WA, U. McCann e R. Jesse. Psilocybin can occasion mystical-type experiences having substantial and sustained personal meaning and spiritual significance. Psychopharmacology, vol.187, n°3. 07 july 2006.
Griffiths, Richards, Johnson, McCann & Jesse, 2008; Griffiths RR, Richards WA, Johnson MW, McCann UD, Jesse R. Mystical-type experiences occasioned by psilocybin mediate the attribution of personal meaning and spiritual significance 14 months later. Psychopharmacology. 01 July 2008.
Grob, Danforth, Chopra, Hagerty, McKay, Halberstadt & Greer, 2010; Charles S. Grob, Alicia L. Danforth, Gurpreet S. Chopra, Marycie Hagerty, Charles R. McKay, Adam L. Halberstadt, George R. Greer. Pilot Study of Psilocybin Treatment for Anxiety in Patients With Advanced-Stage Cancer. Arch. Gen Psychiatry. 2010, September.
Heim, 1972; Heim, Roger. História da descoberta dos cogumelos alucinógenos do México. In Mandala: a experiência alucinógena, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1972.
Higgs, 2006; Higgs, John. I have America surrounded: the life of Timothy Leary. Barricade Books Inc., 2006.
Hoffmann, Frey, Ott, Petrzilka & Troxler, 1958; Hoffmann, A., Frey, A., Ott, H., Petrzilka, T., Troxler, F. Elucidation of structure and synthesis of Psilocybin. Experientia, 1958.
Hoffmann, Heim, Brack & Kobbel, 1958; Hoffmann, A., Heim, R., Brack, A., Kobbel, H. Psilocybin, a psychotropic principle from the Mexican hallucinogenic fungus Psilocybe mexicana Heim. Experientia, 14:107, 1958.
Leary, 1961; Leary, T. F. 1961. A program of research with consciousness-altering substances. Harvard University, Center for Research in Personality. Undated (Spring or Summer of 1961). Covering the academic year of 1960-1961. Mimeographed.
Leary, 1963; Leary, T. F. 1963. Report on the Harvard Psilocybin Project. Unpublished. January 15.
Leary, Metzner, Presnell, Weil, Schwitzgebel & S. Kinne, 1965; Leary, T. F., Metzner, R., Presnell, M., Weil, G., Schwitzgebel, R., and S. Kinne. A New Behavior change program for adult offenders using psilocybin. Psychotherapy: Therapy, Research, and Practice vol. 2(2). July. Chicago, Illinois, 1965.
Moreno, Wiegand, Taitano & Delgado, 2006; Moreno FA, Wiegand CB, Taitano EK, Delgado PL. “Safety, Tolerability, and Efficacy of Psilocybin in 9 Patients with Obsessive-Compulsive Disorder”. J Clin Psychiatry, 2006.
Quétin, 1960; Quétin AM. “La Psilocibina en Psychiatrie et clinique expérimentale”. Tese de Doutorado. 1960 10 de junho.
Schultes, Hofmann & Ratsch, 2001; Schultes, R. E., Hofmann, A., Rätsch, C. Plants of the gods – their sacred, healing and hallucinogenic powers. 2º edição, Rochester-Vermont, Healing Arts Press, 2001.
Sewell, Halpern & Pope, 2006; Sewell RA, Halpern JH, Pope HG Jr. Response of cluster headache to psilocybin and LSD. Neurology.27 June 2006.
Wasson, 1957; Wasson, R. Gordon. Seeking the magic mushrooms. Life Magazine, 1957.
Wasson, 1961; Wasson, R. Gordon. The Hallucinogenic Fungi Of Mexico – An Inquiry Into The Origins of The Religious Idea Among Primitive Peoples. Botanical Museum Leaflets, Harvard University, 1961.

Curando a Dissociação – Jung

Extraído de “O Homem e seus Símbolos” – Carl G. Jung


jung2Nosso intelecto criou um novo mundo que domina a natureza, e ainda a povoou de máquinas monstruosas. Estas máquinas são tão incontestavelmente úteis que nem podemos imaginar a possibilidade de nos descartarmos delas ou de escapar à subserviência a que nos obrigam. O homem não resiste às solicitações aventurosas de sua mente científica e inventiva, nem cessa de congratular-se consigo mesmo pelas suas esplêndidas conquistas. Ao mesmo tempo, sua genialidade revela uma misteriosa tendência para inventar coisas cada vez mais perigosas, que representam instrumentos cada vez mais eficazes de suicídio coletivo.

Em vista da crescente e súbita avalancha de nascimentos, o homem já começou a buscar meios e modos de sustar esta explosão demográfica. Mas a natureza pode vir a antecipar esta tarefa, voltando contra ele as suas próprias criações. A bomba de hidrogênio, por exemplo, seria um freio seguro para este aumento de população. A despeito da nossa orgulhosa pretensão de dominar a natureza, ainda somos suas vítimas na medida em que não aprendemos nem a nos dominar a nós mesmos. De maneira lenta, mas que nos parece fatal, atraímos o desastre.

Já não existem deuses cuja ajuda possamos invocar. As grandes religiões padecem de uma crescente anemia, porque as divindades prestimosas já fugiram dos bosques, dos rios, das montanhas e dos animais e os homens-deuses desapareceram no mais profundo do nosso inconsciente. Iludimo-nos julgando que lá no inconsciente levam vida humilhante entre as relíquias do nosso passado. Nossas vidas são agora dominadas por uma deusa, a Razão, que é a nossa ilusão maior e mais trágica. É com a sua ajuda que acreditamos ter ”conquistado a natureza”.

Esta expressão é um simples slogan, pois esta pretensa conquista nos oprime com o fenômeno natural da superpopulação e ainda acrescenta aos nossos problemas uma incapacidade psicológica total para realizarmos os acordos políticos que se fazem necessários. Continuamos a achar natural que homens briguem e lutem com o objetivo de afirmar cada um a sua superioridade sobre o outro. Como pensar, então, em “conquista da natureza?”

Como toda mudança deve, forçosamente, começar em alguma parte, será o indivíduo isoladamente que terá de tentar e experimentar levá-la avante. Esta mudança só pode principiar, realmente, em um só indivíduo; poder á ser qualquer um de nós. Ninguém tem o direito de ficar olhando à sua volta, à espera de que alguma outra pessoa faça aquilo que ele mesmo não está disposto a fazer.

Mas como ninguém parece saber o que fazer, talvez valha a pena que cada um de nós se pergunte se, por acaso, o seu inconsciente conhecerá alguma coisa que nos possa ser útil a todos. A mente consciente, decididamente, parece incapaz de ajudar-nos. O homem hoje dá-se conta dolorosamente de que nem as suas grandes religiões nem as suas várias filosofias parecem capazes de fornecer-lhe aquelas idéias enérgicas e dinâmicas que lhe dariam a segurança necessária para enfrentar as atuais condições do mundo.

Sei bem o que haveriam de dizer os budistas: as coisas andariam bem se as pessoas seguissem “a nobre trilha óctupla” do Dharma (lei, doutrina) e compreendessem verdadeiramente o self (ou si-mesmo) . Já os cristãos afirmam que se as pessoas tivessem fé em Deus teríamos um mundo melhor. Os racionalistas insistem que se as pessoas fossem inteligentes e ponderadas todos os nossos problemas seriam controlados. A verdadeira dificuldade é que nenhum deles trata de resolver estes problemas pessoalmente.

Os cristãos muitas vezes perguntam por que Deus não se dirige a eles, como se acredita que fazia em tempos passados. Quando ouço este tipo de questionamento lembro-me sempre do rabi a quem perguntaram por que ninguém mais hoje em dia vê Deus, quando no passado Ele aparecia às pessoas com tanta freqüência. Resposta do rabi: ”É que hoje em dia já não mais existe gente capaz de curvar-se o bastante.”

Resposta absolutamente certa. Estamos tão fascinados e envolvidos por nossa consciência subjetiva que nos esquecemos do fato milenar de que Deus nos fala, sobretudo através de sonhos e visões. O budista despreza o mundo das fantasias inconscientes considerando-as ilusões inúteis; o cristão coloca sua Igreja e sua Bíblia entre ele próprio e o seu inconsciente; e o racionalista ainda nem sabe que a sua consciência não é o total da sua psique. Este tipo de ignorância continua a existir apesar de o inconsciente ser, há mais de 70 anos, um conceito científico básico e indispensável a qualquer investigação psicológica séria.

Não podemos mais nos permitir uma atitude de “Deus Todo -Poderoso”, elegendo-nos juizes dos méritos ou das desvantagens dos fenômenos naturais. Não baseamos nossos conhecimentos de botânica na ultrapassada classificação entre plantas úteis e inúteis, ou os de zoologia na ingênua distinção entre animais inofensivos e perigosos. Mas, complacentemente, continuamos a admitir que consciência é razão e inconsciência é contra-senso. Em qualquer outra ciência tal critério faria rir, tal a sua improcedência. Os micróbios, por exemplo, são razoáveis ou absurdos?

Seja o que for a inconsciência, sabe-se que é um fenômeno natural que produz símbolos provadamente relevantes. Não podemos esperar que alguém que nunca tenha olhado através de um microscópio seja uma autoridade em micróbios. Do mesmo modo, quem não fez um estudo sério a respeito dos símbolos naturais não pode ser considerado juiz competente do assunto. Mas a depreciação geral da alma humana é de tal extensão que nem as grandes religiões, nem as várias filosofias, nem o racionalismo científico se dispõem a um estudo mais profundo.

Apesar de a Igreja Católica admitir a ocorrência dos somnia a Deo missa (sonhos enviados por Deus), a maioria dos seus pensadores não faz um esforço sério para compreender os sonhos. Duvido que exista um tratado ou uma doutrina protestante que se humilhe a ponto de aceitar a possibilidade de a vox Dei ser percebida em algum sonho. Mas se o teólogo acredita mesmo na existência de Deus, com que autoridade pode afirmar que Deus é incapaz de nos falar através dos sonhos?

Passei mais de meio século investigando os símbolos naturais e cheguei à conclusão de que tanto os sonhos como seus símbolos não são fenômenos inconseqüentes ou desprovidos de sentido. Ao contrário, os sonhos fornecem as mais interessantes revelações a quem quiser se dar ao trabalho de entender a sua simbologia. O resultado, é bem verdade, pouco tem a ver com problemas cotidianos como vender ou comprar. Mas o sentido da vida não está de todo explicado pela nossa atividade econômica, nem os anseios mais íntimos do coração humano atendidos por uma conta bancária.

Neste período da história humana em que toda a energia disponível é dedicada ao estudo e à investigação da natureza, dedica-se pouquíssima atenção à essência do homem — a sua psique — enquanto multiplicam-se as pesquisas sobre as suas funções conscientes. No entanto, as regiões verdadeiramente complexas e desconhecidas da mente, onde são produzidos os símbolos, ainda continuam virtualmente inexploradas. E é incrível que, apesar de recebermos quase todas as noites sinais enviados por estas regiões, pareça tão tedioso decifrá-los que poucas pessoas se tenham preocupado com o assunto. O mais importante instrumento do homem, a sua psique, recebe pouca atenção e é muitas vezes tratado com desconfiança e desprezo. “É apenas psicológico” é uma expressão que significa, habitualmente: “Não é nada.”

De onde exatamente virá este imenso preconceito? Estivemos sempre tão manifestamente ocupados com o que pensamos que nos esquecemos por completo de indagar o que pensará a nosso respeito a psique inconsciente. As idéias de Sigmund Freud vieram acentuar, em muitas pessoas, o desdém existente com relação à psique. Antes dele descurava-se e ignorava-se sua existência; agora a psique tornou-se uma espécie de depósito onde se despeja tudo que a moral refuga.

Este ponto de vista moderno é, certamente, unilateral e injusto. Nosso conhecimento atual do inconsciente revela que é um fenômeno natural e, tal como a própria Natureza, pelo menos neutro. Nele encontramos todos os aspectos da natureza humana — a luz e a sombra, o belo e o feio, o bom e o mau, a profundidade e a sandice. O estudo do simbolismo individual, e do coletivo, é tarefa gigantesca e que ainda não foi vencida. Mas ao menos já existe um trabalho inicial. Os primeiros resultados são encorajadores e parecem oferecer resposta às muitas perguntas — até aqui sem nenhuma réplica — que se faz à humanidade de hoje.

Ayahuasca e Redução do Uso Abusivo de Psicoativos: Eficácia Terapêutica?

Material interessante e muito completo, que nos foi enviado em PDF  pelo amigo Aduad Attar, a quem somos gratos

 


 

yashua

Psicologia: Teoria e Pesquisa

Set-Dez 2006, Vol. 22 n. 3, pp. 363-370

Ayahuasca e Redução do Uso Abusivo de Psicoativos: Eficácia Terapêutica?

Rafael Guimarães dos Santos
Universidade de Brasília

Célia Carvalho de Moraes
Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília

Adriano Holanda
Universidade de Brasília

RESUMO

Trata-se de uma avaliação do possível papel do uso da ayahuasca, em contexto religioso, como auxiliar na redução do consumo abusivo de psicoativos, a partir de uma pesquisa de estudo de caso. Foi realizada uma entrevista aberta com uma usuária regular de cocaína, nicotina e álcool que abandonou este comportamento após entrar em contato com a ayahuasca num contexto ritualizado. O caso foi analisado à luz da comparação deste com a literatura existente sobre o assunto. Foi traçada uma relação entre o início do uso da ayahuasca e o abandono do uso de cocaína, nicotina e álcool pela entrevistada, a partir da avaliação das representações simbólicas e das descrições de suas primeiras experiências com a bebida.

A palavra ayahuasca tem sua origem na língua Quéchua, língua falada nos altiplanos andinos (Dobkin de Rios, 1972), e significa, dentre outras, “corda dos mortos”, em referência às várias espécies de cipó utilizadas como base da preparação de um psicoativo utilizado por pelo menos 72 grupos indígenas diferentes, espalhados pelo Brasil, Colômbia, Peru, Venezuela, Bolívia e Equador (Luna, 1986). O termo ayahuasca refere-se a diferentes elementos: 1) a força espiritual que estaria presente na substância e 2) a própria substância, que é feita a partir de diferentes espécies do cipó Banisteriopsis (Malpighiaceae) adicionadas com outras plantas (Groisman, 2000)2. Pode-se dizer que o termo aplica-se também à substância preparada somente com espécies do cipó, prática esta encontrada, por exemplo, entre os índios Maku, na região fronteiriça entre Brasil e Colômbia (Davis, 1997).

Desde meados do século XIX, com a expansão do Ciclo da Borracha, a ayahuasca vem sendo utilizada por populações não indígenas, como seringueiros, pescadores e agricultores das áreas rurais dos estados brasileiros do Acre e de Rondônia, por exemplo (Araújo, M., 2004). Por volta da segunda década do século XX, no interior de Rio Branco-AC, foi criada por Raimundo Irineu Serra a religião do Santo Daime, culto que consagra a ayahuasca (neste contexto, batizada de Daime) em rituais religiosos com influências do catolicismo popular, do espiritismo kardecista, dos cultos afro e do xamanismo (Couto, 1989; Goulart, 1996; Labate & Araújo, 2004; MacRae, 1992).

Na década de 1940 foi fundada por Daniel Pereira de Mattos, também em Rio Branco-AC, a Barquinha, religião ayahuasqueira também formada com elementos indígenas, cristãos e afro-brasileiros, com uma maior influência da Umbanda (Araújo, W., 2004; Frenopoulo, 2004; Labate, 2004, Santos, 2004). E em 1961, foi fundada por José Gabriel da Costa, em Porto Velho-RO, a União do Vegetal (UDV), a maior e mais institucionalmente organizada das religiões ayahuasqueiras, cujos ensinamentos são baseados em uma doutrina cristã-reencarnacionista permeada por elementos do espiritismo kardecista e de outras manifestações religiosas urbanas. Além disso, possui um caráter mais sóbrio e menos festivo que as outras organizações (Santo Daime e Barquinha), não praticando danças ou cantos com instrumentos (Brissac, 1999, 2004).

Em recente publicação, Labate (2004) estudou os usos ritualizados da ayahuasca em contextos urbanos, usos estes marcados por uma influência de orientalismos, vocabulários provenientes do universo New Age e da Psicologia. Os usos religioso-institucionais da ayahuasca se encontram hoje em vários países do mundo, como Espanha, França, Holanda, Estados Unidos e Japão (Lima, 2004).

Ayahuasca, xamanismo e o uso problemático de psicoativos

O que caracteriza o uso problemático ou abusivo de certas substâncias não é, necessariamente, a quantidade e a freqüência de uso destes psicoativos, embora estes fatores possam fazer parte do comportamento descrito. Mais do que quantidade de substâncias e freqüência de uso destas, que poderiam atuar num nível primário (físico-biológico) do indivíduo, são as desarmonias na vida sociocultural, familiar e psico-social deste indivíduo (p. ex., estigmatização no emprego e na vida social mais ampla, isolamento social pela comunidade, maus-tratos por parte da polícia), ou seja, num nível secundário, que seriam as principais características deste uso problemático de psicoativos.

Existem vários relatos na literatura sobre os possíveis efeitos benéficos do uso ritual e/ou supervisionado de substâncias alucinógenas como uma alternativa às terapias contemporâneas para o auxílio na dependência ou no uso problemático de certos psicoativos, sobretudo o álcool (Blewett & Chwelos, 1959/2005; Carneiro, 2005; Grob, 2002; Grof, 2001).

Logo após a descoberta dos efeitos do LSD-25 por Albert Hofmann em 1943, várias substâncias desta classe foram aplicadas e testadas no contexto psicoterapêutico, médico, espiritual e em práticas “psicoespirituais”, ou seja, práticas que, em condições favoráveis de supervisão e preparação, buscam a reestruturação do indivíduo por meio de um estado de consciência cósmica que seria semelhante aos êxtases religiosos espontâneos conhecidos como unio mystica, samadhi ou satori, que são experienciados como uma iluminação por uma realidade transcendente em qual a Criação e o Ego são Um (Schultes & Hofmann, 1992).

Como exemplo destas práticas pode-se citar a a) terapia psicodélica, na qual, após uma intensa preparação, é administrada uma única dose do psicoativo, dose esta bastante alta, visando desencadear uma experiência místico-espiritual no indivíduo e, a partir daí, elaborar as mudanças cognitivo-comportamentais necessárias; e b) a terapia psicolítica, na qual pequenas doses são administradas ao longo do tempo, geralmente semanalmente ou mensalmente, intercaladas por psicoterapias baseadas em grande parte no modelo psicanalítico, com o objetivo de facilitar o processo de transferência entre o paciente e o terapeuta e, além disso, facilitar o acesso a memórias reprimidas da infância (Adaime, no prelo; Grob, 2002; Grof, 2001; Schultes & Hofmann, 1992).

Esta opção de se utilizar certos psicoativos para auxiliar o tratamento do uso abusivo de outros psicoativos também ocorre em grupos indígenas extremamente afetados pelo álcool. O fato de o álcool ser muitas vezes uma substância exógena e descontextualizada nestes grupos humanos, pode ser um dos motivos de seu abuso por parte desta população (Mabit, 2002). Como exemplos do uso tradicional de psicoativos no tratamento do alcoolismo pode-se citar a) o uso ritual de cactos contendo mescalina por parte dos curandeiros da costa peruana, uma prática com uma alta taxa de sucesso (por volta de 60%, após cinco anos) e b) a recuperação de práticas ancestrais, incluindo o uso ritual do peiote e do tabaco, por grupos indígenas norte-americanos (Mabit, 2002).

No final da década de 60 do século XX, devido às informações alarmistas provenientes da mídia e à expansão do uso de alucinógenos dos centros de pesquisa das faculdades para as ruas, a pesquisa envolvendo seres humanos e estas substâncias foram proibidas, dificultando o aprofundamento dos potenciais neuroquímicos e psicoterapêuticos destas substâncias peculiares (Carneiro, 2005; Grob, 2002; Grof, 2001). No entanto, o uso religioso de certos vegetais como o peiote nos EUA e México, a iboga na África, e a ayahuasca no Brasil e na Amazônia Ocidental, continuou sendo praticado com uma certa liberdade e autonomia (Fericgla, 1998; Furst, 1994; Labate, 2003).

Nestes contextos, as plantas são carregadas de um simbolismo altamente complexo, no qual fazem parte de seu consumo os aspectos: a) biológicos – a planta em si, suas substâncias e o organismo do indivíduo; b) psicológicos – o indivíduo, suas expectativas, motivações e preparações para o consumo do psicoativo; c) socioculturais – o indivíduo, sua comunidade e suas regras sociais; e d) ambientais – local do uso da substância, música, danças, plantas aromáticas, decoração etc (Grob, 2002; Grof, 2001; Leary, Metzner & Alpert, 1964/1995). Tanto a mescalina (do peiote) como a ibogaína (da iboga) vêm sendo estudadas como possíveis alternativas para a dependência e o uso problemático de psicoativos (Grof, 2001; Labate, 2003).

Recentemente, um estudo realizado com 15 membros da União do Vegetal que consagravam a ayahuasca ritualmente por pelo menos 10 anos demonstrou, entre outras coisas, que de acordo com os critérios da CID-10 e DSM-III-R, cinco dos examinandos tinham antecedentes de desordens formais por abuso de álcool, dois de depressão maior e três de ansiedade fóbica; 11 examinandos tinham uma história de uso moderado a grave de álcool anterior à sua entrada na UDV, com cinco deles referindo episódios associados com comportamento violento (dois deles tinham sido presos por causa de sua violência) (Grob & cols., 2004).

Além destes dados, o estudo de Grob e cols. (2004) evidenciou que quatro indivíduos também relataram envolvimento anterior com abuso de outros psicoativos, incluindo cocaína e anfetamina, e que oito dos 11 examinandos com histórias anteriores de álcool e abuso de outros psicoativos eram dependentes de nicotina na época do seu primeiro encontro com a UDV. Muitos dos examinandos do estudo de Grob e cols. referiram uma variedade de comportamentos disfuncionais anteriores à sua entrada na UDV. Autodescrições incluíram “impulsivo, sem respeito, raivoso, agressivo, opositor, rebelde, irresponsável, alienado, fracassado”.

Entretanto, avaliações de diagnóstico psiquiátrico revelaram que apesar de uma porcentagem apreciável de usuários de longo tempo da ayahuasca terem tido desordens relativas ao álcool, depressivas ou de ansiedade anteriores à sua iniciação com o alucinógeno, todas as desordens tinham remitido sem recaídas depois de sua entrada na UDV. Os examinandos referiram que desde sua entrada na UDV suas vidas passaram por mudanças profundas. Além da total descontinuidade do abuso de psicoativos, os sujeitos enfaticamente afirmaram que sua conduta diária e orientação para o mundo à sua volta tinham tido radical reestruturação (Grob & cols., 2004).

Baseado no estudo de Grob e cols. (2004), Labigalini (1998) desenvolveu uma pesquisa sobre as vivências subjetivas de quatro indivíduos que apresentavam dependência grave ao álcool, dois deles também dependentes de cocaína, e que remitiram poucos meses após começarem a freqüentar os rituais da UDV. A principal conclusão do trabalho foi a de que os indivíduos entrevistados não trocaram a dependência ao álcool por outra dependência. Além disso, ficou evidenciado que o uso de ayahuasca que esses indivíduos passaram a fazer periodicamente durante os rituais não possuía contornos psicopatológicos de uma compulsão. Esta compulsão também não foi encontrada na relação destes indivíduos com a instituição religiosa, por meio de seus valores e práticas rituais, e com o grupo (Labigalini, 1998).

Baseando-se na análise das entrevistas e nas observações participantes neste estudo, Labigalini apontou os seguintes fatores como variáveis importantes na melhora dos sujeitos: a) as características do estado de consciência vivenciados nas experiências com a ayahuasca, b) a inserção social em um novo grupo e c) a estruturação e regulação dos rituais por meio de suas sanções sociais.

Ainda neste contexto, vale citar a existência do Centro Takiwasi, em Tarapoto, Peru, fundado em 1992 (Mabit, 2004). Neste centro, Mabit e colaboradores – curandeiros locais, médicos, psicólogos e terapeutas – exploram os potenciais curativos do racionalismo ocidental juntamente com as práticas espirituais do xamanismo e das terapias tradicionais amazônicas, utilizando plantas eméticas, dietas, isolamento na floresta, vida comunitária, psicoterapia e a ayahuasca, desenvolvendo métodos alternativos para lidar com o uso problemático de psicoativos, principalmente a pasta base de cocaína, cuja área é uma das principais consumidoras do mundo (Mabit, 1996a, 1996b, 2002). Segundo Mabit (2002, p. 28):

Após 15 anos de observação de mais de oito mil casos de ingestão da Ayahuasca sob condições específicas de preparação, prescrição e acompanhamento terapêutico, nós podemos afirmar que a ingestão destas preparações possui uma ampla variedade de indicações, com uma total ausência de dependência. A expansão do espectro perceptual, que simultaneamente envolve o corpo, as sensações e os pensamentos, permite a des-focalização da percepção ordinária da realidade, proporcionando ao sujeito a possibilidade de confrontar seus problemas habituais por conta própria e sob uma nova perspectiva. A intensa aceleração dos processos cognitivos que acompanha esta experiência pode permitir ao sujeito a capacidade de conceber soluções originais que se enquadram à sua personalidade e situação únicas.

A partir destas referências e modelos teóricos pretendemos elaborar e investigar, por meio da análise fenomenológica da entrevista e de observações participantes em rituais de consagração da ayahuasca, o caso de uma jovem que abandonou o uso problemático de álcool, cocaína e nicotina após conhecer o uso ritualizado da ayahuasca. Esta jovem apresentou-se como uma voluntária para a realização de uma pesquisa sobre os aspectos legais, históricos, doutrinários e religiosos do uso da ayahuasca, trabalho este que partiu dos estudos do grupo Arché – Programa de Pesquisas em Psicologia e Fenomenologia da Religião e da Espiritualidade –, que se encontra atualmente vinculado ao Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise, do Departamento de Psicologia Clínica, no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB).

Método

Trata-se de um estudo de caso associado a uma revisão bibliográfica sobre o consumo ritualizado da ayahuasca por pessoas que faziam um uso abusivo ou problemático de outras substâncias – cocaína e pasta base de cocaína, álcool, nicotina, anfetaminas etc – e que posteriormente abandonaram ou controlaram este comportamento. Foram utilizadas técnicas da antropologia, como a observação participante, realizada em diversos grupos ayahuasqueiros nos arredores de Brasília, e referenciais teóricos do grupo Arché, como o texto de Amatuzzi (1998).

No grupo Arché, tivemos contato com Maria (nome fictício), jovem desinibida e espontânea com 20 anos na época e que se apresentou como estudante universitária com pendores artísticos, segundo ela mesma, membro de um grupo que utiliza a ayahuasca em suas cerimônias religiosas e como voluntária para nos auxiliar na pesquisa mais ampla sobre a ayahuasca. Maria começou nos ajudando no levantamento de documentos sobre as principais religiões ayahuasqueiras brasileiras (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal) e nas semanas subseqüentes permitiu que fizéssemos uma entrevista aberta sobre sua experiência pessoal com a ayahuasca. Esta entrevista ocorreu na casa de um dos autores do presente artigo, em um ambiente de tranqüilidade e conforto. A entrevista, aberta, foi norteada por perguntas abertas, tais como: “O que é a ayahuasca para você?”, “Como foi a sua primeira experiência com a ayahuasca?”, “Porque ou com que finalidade você utiliza a ayahuasca?”. Esta entrevista foi gravada, transcrita e posteriormente analisada.

Na conversa com Maria, chamou a atenção o fato de que ela fazia um uso abusivo de álcool, cocaína e nicotina e que este comportamento se remitiu pouco tempo após o início do consumo cerimonial da ayahuasca. Não só o uso problemático de alguns psicoativos foi abandonado, mas Maria passou por uma transformação radical em seus valores e atitudes perante o mundo. Este trajeto foi descrito com detalhes em sua entrevista e enfocou-se a relação entre o abandono do uso de álcool, cocaína e nicotina e o início do uso religioso da ayahuasca.

O rico e complexo material proveniente deste recorte foi re-analisado e comparado com a literatura sobre o assunto, buscando avaliar os elementos significativos da experiência de Maria nos estados alterados de consciência proporcionados pelo uso da ayahuasca em contexto ritualizado.

Resultados e Discussão

Apenas trechos de maior importância serão comentados. As palavras textuais da entrevistada foram assinaladas em itálico.

Maria apresentou-se como uma jovem de vida turbulenta, vida esta caracterizada por uma busca de algo e por um envolvimento com certos psicoativos – álcool, cocaína e nicotina – e com pessoas que não eram muito legais. Ela havia consumido cocaína por dois anos consecutivos quase todo dia, segundo ela, além do álcool e da nicotina. Não gostava de religião. Antes de conhecer a ayahuasca Maria já tinha uma intenção, uma iniciativa pessoal de parar de usar os outros psicoativos, substâncias que ela caracterizou como estimulantes, da vida noturna.

Porque eu fiquei um ano sem ver Sol. Só saia seis horas de casa e voltava sete horas da manhã. Dormia o dia inteiro, saía… Não fazia nada, não estudava… Era maluca.

Foi quando Maria conheceu pessoas que não faziam parte de seu contexto que sua vida começou a mudar. Durante uma crise de abstinência Maria viu a oportunidade de conhecer a ayahuasca que, segundo ela, a salvou:

Aí eu comecei uma crise de abstinência e no dia que eu conversei com o João (nome fictício), que foi a pessoa que me levou para conhecer o vegetal (nome da ayahuasca neste contexto), falei para ele “João, sabe onde vende cocaína?”, “Sei”, “Vamos sair comigo na sexta?”, “Não, eu tenho compromisso”, “Para onde você vai?”, “Vou beber um chá”, “Me leva?”. Aí ele me levou. Aí eu me salvei.

Em seu primeiro contato com a ayahuasca – caracterizado pela entrevistada como sendo a experiência mais forte e poderosa – Maria relatou vivências de caráter místico-religioso, alteração de percepções e de emoções, susto, medo de morrer, reações somáticas intensas como vômito, choro e tosse além de ab-reações e catarses. Estas experiências, realizadas em um local onde ocorrem periodicamente cerimônias com a ayahuasca, estavam culturalmente contextualizadas e sancionadas, permeadas por conceitos próprios e, de certo modo, eram inclusive estimuladas.

Segundo Mabit (2002, pp. 26-27), “a indução ritualizada de modificações da consciência, com ou sem substâncias, estabelece uma estrutura simbólica universal dentro da qual estas experiências adquirem significado, permitindo que o indivíduo se inscreva dentro de um modelo de integração cultural”.

O ambiente físico e o contexto simbólico-ritual onde se realizou a cerimônia, o setting, era propício para este tipo de experiência. Segundo Strassman (1984), um ambiente controlado e supervisionado, como geralmente ocorre nas religiões ayahuasqueiras, tem uma maior possibilidade de otimizar as experiências com substâncias alucinógenas, como a ayahuasca, diminuindo as chances da ocorrência de reações adversas. Neste caso, o ambiente exerce papel primordial na experiência como um todo.

No contexto em questão, as reações somáticas foram explicadas e encaradas por Maria como sendo um processo de limpeza, no qual, juntamente com as visões e demais experiências sensoriais e cognitivas proporcionadas pela ayahuasca, toda a experiência pode ser reconstruída e contextualizada, permitindo a reavaliação de comportamentos, valores e atitudes anteriores de Maria.

Comecei a sentir minha pressão baixa. Nesse momento eu fiquei assustada porque eu tinha pressão baixa e achei que podia ter um problema. Percebi que quanto mais eu lutava contra aquela sensação pior ela ficava, uma sensação bem forte. Relaxei, deitei, e quando eu deitei comecei a ver cobras, umas coisas bem esquisitas mesmo. Vomitei muito nesse momento, e quando vomitava eu não vomitava coisa do estômago, eu vomitava álcool, eu bebia muito… Eu vomitava e sentia cheiro de álcool. Cheirei muita cocaína… Tive nesse momento de limpeza um dos momentos mais fortes da minha vida, mais incríveis, porque foi uma potência de informações do meu ser e uma limpeza… Senti minha garganta arranhar, minha cabeça doía e adormeceu minha boca e eu não forcei nada pra sair do meu nariz, simplesmente saiu uma placa branca, uma placa assim no chão e eu “Caramba! Isso aqui é cocaína”. Peguei e disse “Me limpou!”. Depois disso eu comecei a chorar muito, mas eu chorava de alegria, eu estava me sentindo tão bem naquele momento, tão bem tão bem tão bem e ao mesmo tempo eu estava triste porque eu sabia que a minha caminhada ia ser longa, que eu tinha muita coisa para resolver. Aí eu pensei na minha família, no meu pai na minha mãe, quanto tempo que eu não tinha uma relação legal com eles sabe? Regressão, lembrei da minha infância… Uma pessoa na fogueira falou “É assim mesmo. A gente limpa, faz a limpeza, têm essa relação mesmo…”. Estava uma noite linda, uma lua cheia maravilhosa, eu nunca tinha percebido o tanto que a natureza é linda… Naquele momento eu percebi que é de lá que eu vim. Senti-me viva naquele momento. Eu acordei, como se eu tivesse acordado para vida, sabe?

Pode-se perceber na fala uma enorme carga emocional depositada em três momentos principais: religação com os valores familiares, integração com a Natureza e, principalmente, durante os processos de limpeza, processos estes comuns nos meios ayahuasqueiros (p. ex., Couto, 1989). Nesta limpeza, o que mais chama a atenção são as percepções do cheiro de álcool e da visão da placa de cocaína que teria saído de seu nariz. Sabe-se que a ayahuasca, bem como demais substâncias desta classe, tem a capacidade de desencadear sinestesias e que estas podem ser manipuladas para os mais diversos fins, inclusive com finalidades terapêuticas (Luna, 1986). Ao estudar as práticas dos vegetalistas e dos xamãs sul-americanos, Luna (1986, p. 106) os caracteriza como mestres de sinestesia:

Suas músicas (do xamã, entre os Shipibo-Conibo) podem, por assim dizer, ser ouvidas de maneira visual e os padrões geométricos podem ser vistos acusticamente. Este fenômeno é freqüentemente relatado nos textos das canções xamânicas. Por exemplo, um remédio pode ser chamado de ‘minha música pintada’, ‘minha voz’, ‘meu pequeno vaso pintado’, ‘minhas palavras com aqueles desenhos’, ou ‘meu padrão vibrante.

No caso das alterações sensoriais, emotivas e cognitivas, e independente de se classificar o que ela passou como sendo sinestesia, alucinação, ilusão, imaginação ou se ela realmente sentiu o cheiro de álcool ou se o que ela viu era realmente cocaína, o que deve ser levado em consideração é o potencial transformativo que esta experiência tem para o indivíduo. Claro, seria de muito interessante saber se a ayahuasca teria esta capacidade de “limpar”, literalmente, o organismo de um ser humano nestes níveis, mas esta é uma pergunta que não poder ser respondida pela presente pesquisa.

Neste processo relatado por Maria, a alta carga emocional e cognitiva presente em suas experiências e falas demonstra um enorme potencial para que uma mudança de seus valores e atitudes possa ocorrer. Tal experiência do transcendente se assemelha às psicoterapias psicodélicas praticadas nos anos 1960 com substâncias como o LSD-25, na qual um dos objetivos buscados e muitas vezes atingidos, era o da mudança radical de valores, filosofia de vida e atitudes perante os outros, o mundo e consigo mesmo (Grof, 2001).

Vale ainda citar a importância e a compreensão do papel da amizade para a análise do processo de Maria. Durante o período turbulento de sua vida, ela disse que estava andando com pessoas não muito legais, mas que ao se afastar destas pessoas, ela pôde conhecer a ayahuasca e outro grupo social. Neste novo contexto Maria descobre amigos mesmo, que a auxiliam:

Só me auxiliam aqui. E a amizade, e as pessoas que eu convivo… nossa, muito, muito, muito bom. São amigos mesmo, porque amigo hoje em dia é difícil né? É difícil, porque agente convive com várias pessoas ao mesmo tempo e acha que um é amigo, outro é amigo. Vou te dizer que desde quando eu comecei a beber o vegetal, eu percebi que daquela galera que eu andava antes, quem são meus amigos daquela galera… Eu tinha assim cerca de uns 40 amigos, que eu achava que eram amigos.

Entretanto, Maria parece atribuir grande responsabilidade por sua “cura” a si mesma, à ayahuasca e a colocar em prática aquilo que aprendeu nos rituais. Mesmo não menosprezando o possível papel do acolhimento em um contexto religioso, da mudança de amizades e da melhora das relações interpessoais como prováveis causas de sua mudança de comportamento, Maria diz que:

Foi o vegetal mesmo. Na verdade não foram as pessoas, foi eu mesma que me encontrei. Não foi o contexto não, isso é conseqüência. Não adianta nada eu ir lá beber o chá, posso beber um litro de vegetal, posso beber todo dia, se eu receber o que é certo e não colocar em prática na minha vida eu vou ficar empacada. (…) É só agente querer mesmo.

No caso do estudo realizado por Grob e cols. (2004) com membros da União do Vegetal, encontramos paralelos entre as experiências relatadas pelos membros da UDV e aquelas descritas por Maria. Todos os examinandos da UDV relataram que suas experiências com o uso ritual da ayahuasca tiveram um profundo impacto no curso de suas vidas. Para muitos deles o ponto crítico foi sua primeira experiência com a bebida, quando relatam como tema comum desta experiência a vivência de se estar num caminho autodestrutivo que os conduziria inevitavelmente à sua própria ruína e mesmo à morte, a menos que embarcassem numa mudança radical de sua conduta pessoal e orientação (Grob & cols., 2004).

aya

Maria relata que as experiências com a ayahuasca teriam a capacidade de mostrar a verdade, e que este tipo de vivência seria para nos encontrarmos. Além disso, a bebida psicoativa seria como um amigo, idéia que lembra o conceito de planta professora ou espírito planta, presente entre as religiões ayahuasqueiras e também entre os curandeiros da Amazônia (Luna, 1986; MacRae, 1992):

Porque ele fala mesmo, ele coloca agente lá no acocho, ele dá paulada na gente…

Por meio destas falas, nas quais fica evidente o discurso de autoconhecimento e de encontro com a realidade, e não a fuga desta, podemos encontrar semelhanças entre as experiências e valores atribuídos à ayahuasca por Maria e as vivências dos indivíduos pesquisados por Labigalini (1998, pp. 58-59):

Através das entrevistas foi possível perceber que os indivíduos entrevistados relatavam que no período em que estavam usando álcool e outras drogas sentiam muita ansiedade e apresentavam dificuldades emocionais importantes em suas vidas. No entanto, ao começarem a freqüentar os rituais da UDV e beberem a ayahuasca, referiram que passaram por mudanças profundas a partir de um contato direto com aspectos difíceis de suas personalidades. Neste sentido, a experiência com a ayahuasca parece não reproduzir um aspecto presente na experiência e na busca dos farmacodependentes, onde o uso das diferentes substâncias, como o álcool e a cocaína, acontece motivado por uma vontade de obter prazer e se distanciar da realidade.

Levando-se em conta todas estas análises, citações e observações sobre a relação do uso cerimonial da ayahuasca e o abandono do uso problemático de psicoativos, vale citar que, em relação à dependência pelo álcool, estudos realizados com inibidores de recaptação de serotonina com ratos dependentes de álcool demonstraram que havia uma redução importante no consumo de álcool após tratamento com estes agentes (Labigalini, 1998). No caso da ayahuasca, existem relatos de que uma das suas principais substâncias – a -carbolina tetrahidroharmina, ou THH, presente no cipó – teria uma fraca capacidade de inibir a recaptação de serotonina (Frecska, White & Luna, 2004; McKenna, Callaway & Grob, 1998).

Logo, mesmo comentando de maneira breve e simples este aspecto psicofarmacológico da ayahuasca – pois não é o objetivo deste artigo – valeria a pena explorar de maneira metódica e a longo prazo, o possível papel do chá per se como um agente farmacologicamente eficaz no auxílio do tratamento de dependência ou uso problemático de psicoativos.

Conclusões

Segundo alguns pesquisadores (Samorini, 2002), o desejo de alterar periodicamente a consciência seria um impulso inato ao ser humano, análogo à fome ou ao impulso sexual. Além disso, encontramos em McKenna, T. (1995) e em Amatuzzi (1998) sugestões de que a consciência religiosa seria biologicamente natural à espécie humana, tendo se desenvolvido por meio do processo de seleção natural, pois teria valor de adaptação e subsistência para o indivíduo, pois estas experiências místico-religiosas seriam potencialmente adaptativas e ligadas à solução de problemas e à criatividade, porque a partir de uma tensão, proporcionariam uma reestruturação cognitiva.

Ainda referindo-se ao texto de Amatuzi, encontramos a referência de Tamminen sobre a complexidade do fenômeno religioso e de suas complicações: 1) o acesso que se pode ter à experiência religiosa é indireto, ou seja, se faz por meio do que as pessoas lembram e relatam, e em como elas a sentem e interpretam; 2) essa interpretação que os sujeitos fazem, depende de sua filosofia geral; e 3) a lembrança da experiência é determinada pelos valores presentes. Além disso, ele menciona também as cinco dimensões da religiosidade sistematizadas por Glock e Stark (conforme citados por Amatuzzi, 1998), que são dimensões que se interpenetram: dimensão experiencial (= experiência religiosa), dimensão ideológica (= crenças religiosas), dimensão intelectual (= conceitos com os quais é pensada), dimensão ritualística (= práticas religiosas) e dimensão conseqüente (= efeitos na vida diária).

Na análise da entrevista de Maria podem-se vislumbrar vários pontos de conexão com os autores anteriormente citados. Na perspectiva de Hay e de Jackson (conforme citados por Amatuzzi, 1998), contempla-se a experiência de Maria, com todas as suas manifestações somático-psicológicas, como uma capacidade e possibilidade intrínseca do ser humano, na qual, numa situação de aparente caos corporal e mental, o corpo-mente tem a capacidade de se adaptar de maneira criativa, valendo-se de seus mecanismos endógenos para voltar ao equilíbrio. Neste sentido, traçam-se paralelos com as experiências de emergência, perigos, doença, dificuldades, experiências de quase-morte ou de ameaça à existência do indivíduo (Grof, 2001; Lumby, 1998; Tamminen, citado por Amatuzzi, 1998).

Nestas experiências, o indivíduo pode ver sua própria morte com uma nitidez e realismo tão intensos que ele pode acreditar que está realmente morrendo (Grof, 2001; Lumby, 1998). Estas passagens são situadas no modelo de Grof (2001) no nível transpessoal, que são caracterizadas por elementos de criação e destruição do mundo, experiências filogenéticas, seqüências de morte e renascimento, cenas naturais (tempestades, nascer do sol etc), expansão da consciência e do ego, visões de seres celestiais e/ou infernais etc. Segundo Grof, estas experiências possuem um enorme potencial transformativo para o indivíduo, se são realizadas com a devida supervisão, preparação e cuidado, por parte tanto do indivíduo como da pessoa que orienta o processo.

De acordo com a hipótese de Lumby (1998), a eficácia destas experiências de quase-morte no tratamento de pessoas que fazem um uso problemático e abusivo de psicoativos estaria em sua capacidade de desencadear insights sistêmicos e orientações cognitivas explícitas características da consciência humana quando esta se encontra perante uma situação imediatamente ameaçadora à sua existência. Neste estado de consciência, a pessoa teria a oportunidade de vivenciar uma morte-simbólica, na qual seus valores, comportamentos e filosofia seriam questionados e, após a experiência, os insights poderiam ser vislumbrados e direcionados para uma nova prática cotidiana.

…é como entrar numa nave, eu boto fé. Assim, você nunca viajou numa nave espacial, vamos imaginar aí… Aí tu entra numa nave de repente você se vê lá no espaço pff! Você sai de uma… você sai de um contexto assim ó, de coisas que você transformou pra você né, pra sua vida, coisas que você vai adquirindo ao longo dos anos né? Tipo, uma coisa material mesmo né, de tipo “isso é certo, isso é errado”, “você tem que aprender isso porque se não você não vai ser ninguém na vida”. Sabe esses contextos assim e de repente, naquele momento que eu bebi o vegetal, eu percebi que a gente faz tanta coisa que é inútil pra nossa vida, e agente se mata por conta dessas coisas assim, e agente esquece de dar valor pras coisa que realmente são importantes. Eu acredito que é o nosso ser, o que é bom pra gente, que faz bem pra gente.

Aqui podemos dialogar com Tamminen (citado por Amatuzzi, 1998) e com Glock e Stark (citado por Amatuzzi, 1998). O acesso que tivemos da experiência de Maria possui a complicação de ser um relato de um evento passado, permeado por elaborações e interpretações feitas pela entrevistada. Tal complexidade pode ser comparada com as dimensões intelectual (conceitos) e ideológica (crenças), pois Maria teve tempo para lembrar, re-lembrar, conceituar e, inclusive, desenvolver uma linguagem religiosa que não possuía antes da experiência.

Entretanto, no nível das dimensões experiencial (experiência religiosa) e conseqüente (efeitos na vida diária) o que importa é o significado e a compreensão que a experiência desencadeou em Maria. No caso, o sentido parece ter sido o de uma experiência de Deus, do numinoso, do raro, excepcional e extraordinário, a experiência esmagadora do mysterium tremendum et fascinas, de Sentido Radical, segundo Vaz (conforme citado Amatuzzi, 1998).

O vegetal abre tudo. Abre tudo, escancara mesmo. Escancara mesmo.

De maneira geral, podemos concluir que o abandono do uso problemático e abusivo de certos psicoativos por parte de Maria (cocaína e álcool) foi uma experiência radical, com efeitos de longo prazo em sua vida e que não parece possuir nenhuma característica de “troca de um psicoativo por outro” ou de dependência da instituição, embora Maria tenha passado por um processo de conversão religiosa.

Passou. Foi incrível. Incrível. Mudou assim, eu entrei no arco-íris, sabe quando você achou o pote de ouro no final do arco-íris? Foi isso que aconteceu na minha vida. Agora eu fico impressionada assim ó, e outra coisa, e essa história de largar de fumar, de largar essas coisa, eu vejo assim, o pessoal fala dessa história da tal da fisiologia, cara, a nossa cabeça é capaz de tanta coisa. As pessoas não sabem disso. (…) Eu não vejo o vegetal como uma necessidade. Tipo “é necessário pra minha sobrevivência”. Não. Eu vejo ele como um auxiliador pra minha consciência. Ele assim ó, quando eu conheci ele eu percebi que “puts, cara, que legal ele me ajudou a abrir várias coisas”, que tavam aqui cafifadas na minha cabeça e eu não sabia porque que tavam atrapalhando a minha vida, porque que eu tava seguindo determinados caminhos. É que nem aquelas gavetinhas da nossa memória, quando agente tem aula de psicologia, o pessoal fala que agente vai guardando até que agente não consegue mais abrir. (…) Aí, quando você vai bebendo constantemente ele, você vai aprendendo a abrir uma de cada vez. Entendeu?

Maria afirma nunca mais ter sentido vontade de consumir álcool ou cocaína –”Deus me livre, Nossa Senhora! Ninguém merece não” –, embora confessasse ainda sentir vontade de fumar tabaco (na época da pesquisa Maria estava há dois meses sem fumar).

Tudo isso ocorreu dentro de um processo, numa transformação que dialoga com os acontecimentos ao redor do indivíduo, não podendo ser reduzida nem a um aspecto estritamente farmacológico (possível efeito da ayahuasca per se) nem estritamente místico-religioso, conforme conclusão do estudo realizado por Grob e cols. (2004, p. 664-665):

Tal mudança foi particularmente notada na área de consumo excessivo de álcool, onde além dos cinco examinandos que tiveram diagnósticos anteriores do CIDI relativos a desordens por abuso de álcool, seis examinandos adicionais referiram padrões moderados de consumo de álcool que se aproximavam do status de diagnóstico psiquiátrico real na entrevista formal estruturada. Todos estes onze examinandos com envolvimento anterior com álcool alcançaram a completa abstinência pouco depois de se filiarem à seita da hoasca (nome da ayahuasca neste contexto). Além disto, foram bastante enfáticos quanto a transformações radicais no seu comportamento, atitudes em relação aos outros e visão da vida. Eles estão convictos de que têm sido capazes de eliminar sua raiva crônica, ressentimento, agressão e alienação, assim como em adquirir maior autocontrole, responsabilidade para com a família e comunidade e realização pessoal através da participação nas cerimônias da hoasca na UDV. Embora os efeitos salutares de um forte sistema de suporte em grupo e filiação religiosa não possam ser minimizados, não é inconcebível que o uso por longo tempo da hoasca por si mesmo possa ter tido um efeito terapêutico e positivo direto no status psiquiátrico e funcional dos indivíduos. Análises bioquímicas anteriores de preparados da hoasca indicaram significativa ação inibidora da monoamino-oxidase, o que pode ser relevante para esses achados clínicos.

Para finalizar, com a palavra, Maria:

– Porque hoje em dia eu dou muito mais valor na vida do que pessoas que nunca passaram por situações que eu passei.

Referências

Adaime, R. D. (no prelo). A pesquisa do inconsciente no século dos alucinógenos. Cadernos de Subjetividade. [ Links ]

Amatuzzi, M. M. (1998). A Experiência Religiosa: estudando depoimentos. Estudos de Psicologia, 15(2), 3-27. [ Links ]

Araújo, M. G. J. (2004). Cipó e Imaginário entre Seringueiros do Alto Juruá. Revista de Estudos da Religião 1, 41-59.[ Links ]

Araújo, W. S. (2004). A Barquinha: Espaço Simbólico de uma Cosmologia em Construção. Em B. C. Labate & W. S. Araújo (Orgs.), O uso ritual da ayahuasca (2ª ed., pp.541-555). Campinas, São Paulo: Mercado de Letras. [ Links ]

Blewett, D. B. & Chwelos, N. (2005). Handbook for the Therapeutic Use of LSD-25: Individual and Group Procedures. Regina, Saskatchewan (Trabalho original publicado em 1959) [ Links ]

Brissac, S. (1999). Alcançar o Alto das Cordilheiras: A vivência mística de discípulos urbanos da União do Vegetal. Trabalho apresentado em IX Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, Rio de Janeiro. [ Links ]

Brissac, S. (2004). José Gabriel da Costa: Trajetória de um brasileiro, Mestre e autor da União do Vegetal. Em B. C. Labate & W. S. Araújo (Orgs.), O uso ritual da ayahuasca (2ª ed., pp. 571-587). Campinas, São Paulo: Mercado de Letras. [ Links ]

Carneiro, H. (2005). A odisséia psiconáutica: a história de um século e meio de pesquisas sobre plantas e substâncias psicoativas. Em B. C. Labate & S. L. Goulart (Orgs.), O uso ritual das plantas de poder (pp. 57-81). Campinas, São Paulo: Mercado de Letras. [ Links ]

Couto, F. L. (1989). Santos e Xamãs. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília. [ Links ]

Davis, W. (1997). One River: Explorations and Discoveries in the Amazon Rain Forest. New York: Simon & Schuster Inc., Touchstone. [ Links ]

Dobkin de Rios, M. (1972). Visionary Vine: Hallucinogenic Healing in the Peruvian Amazon. Illinois: Waveland Press, Inc.[ Links ]

Fericgla, J. M. (1998). El peyote y la ayahuasca en las nuevas religiones mistéricas americanas. Em A. Espina (Ed.), Antropología en Castilla y León e Iberoamérica. Aspectos generales y religiosidades populares (pp. 325-347). Salamanca, España: Instituto de Investigaciones Antropológicas de Castilla y León. [ Links ]

Frecska, E., White, K. D. & Luna, L. E. (2004). Effects of ayahuasca on binocular rivalry with dichoptic stimulus alternation. Psychopharmacology 173, 79_87. [ Links ]

Frenopoulo, C. (2004). The mechanics of religious synthesis in the Barquinha religion. Revista de Estudos da Religião 1, 19-40. [ Links ]

Furst, P. T. (1994). Alucinógenos y cultura. México: Fondo de Cultura Económica. [ Links ]

Goulart, S. (1996). As raízes culturais do Santo Daime. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo.[ Links ]

Grob, C. S. (2002). Hallucinogens: a reader. New York: Tarcher/Putnam. [ Links ]

Grob, C. S., McKenna, D. J., Callaway, J. C., Brito, G. S., Neves, E. S., Oberlaender, G., Saide, O. L., Labigalini, E., Tacla, C., Miranda, C. T., Strassman, R. J., & Boone, K. B. (2004). Farmacologia humana da hoasca: efeitos psicológicos. Em B. C. Labate & W. S. Araújo (Orgs.), O uso ritual da ayahuasca (2ª ed., pp. 653-669). Campinas, São Paulo: Mercado de Letras. [ Links ]

Grof, S. (2001). LSD psychoterapy (3ª ed.) Sarasota, Florida: Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies.[ Links ]

Groisman, A. (2000). Santo Daime in the Netherlands: An Anthropological Study of a New World Religion in a European Setting. Dissertação de Doutorado, Universidade de Londres, Londres. [ Links ]

Labate, B. C. (2003). Viagem ao encontro da iboga. Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Retirado em 21/08/2005, do NEIP (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos), http://www.neip.info/downloads/Eboka.pdf.[ Links ]

Labate, B. C. (2004). A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras.[ Links ]

Labate, B. C. & Araújo, W. S. (Orgs.) (2004). O uso ritual da ayahuasca (2ª ed.) Campinas, São Paulo: Mercado de Letras. [ Links ]

Labigalini, E. (1998). O uso de ayahuasca em um contexto religioso por ex-dependentes de álcool – um estudo qualitativo. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. [ Links ]

Leary, T., Metzner, R. & Alpert, R. (1995). The Psychedelic Experience: a manual based on the Tibetan Book of the Dead. New York: Citadel Press. (Trabalho original publicado em 1964) [ Links ]

Lima, E. G. C. (2004). O uso ritual da Ayahuasca: da Floresta Amazônica aos centros urbanos. Monografia em Geografia Cultural, Universidade de Brasília, Brasília. [ Links ]

Lumby, M. (1998). Religions of the Twice-Born: Northwest Amazonian Ayahuasca Shamanism and Near-Death Experience. MAPS Newsletter 8(3), 16-17. Retirado em 21/08/2005, da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), http://www.maps.org/news-letters/v08n3/08316lum.html . [ Links ]

Luna, L. E. (1986). Vegetalismo: shamanism among the mestizo population of the Peruvian Amazon. Studies in Comparative Religion, Almqvist and Wiksell International, Stockholm. [ Links ]

Mabit, J. (1996a). Takiwasi: Ayahuasca and Shamanism in Addiction Therapy. MAPS Newsletter 6(3). Retirado em 21/08/2005, da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), http://www.maps.org/news-letters/v06n3/06324aya.html . [ Links ]

Mabit, J. (1996b). The Takiwasi Patient’s Journey. MAPS Newsletter 6(3). Retirado em 21/08/2005, da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), http://www.maps.org/news-letters/v06n3/06327tak.html. [ Links]

Mabit, J. (2002). Bleding Traditions – Using Indigenous Medicinal Knowledge to Treat Drug Addiction. MAPS Newsletter 12(2), 25-32. Retirado em 21/08/2005, da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies),http://www.maps.org/news-letters/v12n2/12225mab.html. [ Links ]

Mabit, J. (2004). Produção visionária da ayahuasca no contexto dos curandeiros da Alta Amazônia Peruana. Em B. C. Labate & W. S. Araújo (Orgs.), O uso ritual da ayahuasca (pp. 147-180). 2ª ed. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras. [ Links ]

MacRae, E. (1992). Guiado pela Lua: Xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do Santo Daime. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]

McKenna, D. J., Callaway, J. C. & Grob, C. S. (1998). The scientific investigation of Ayahuasca: a review of past and current research. The Heffter Review of Psychedelic Research 1, 65-77. Retirado em 21/08/2005, do EROWID,http://www.erowid.org/chemicals/ayahuasca/ayahuasca_journal3.shtml. [ Links ]

McKenna, T. (1995). O retorno à Cultura Arcaica. Rio de Janeiro: Ed. Record [ Links ]

Ott, J. (1994). Ayahuasca Analogues: Pangaean Entheogens. Kennewick: Natural Books Co. [ Links ]

Samorini, G. (2002). Animals and Psychedelics: The Natural Word and the Instinct to Alter Consciousness. Rochester, Vermont: Park Street Prees. [ Links ]

Santos, R. G. (2004). A cura religiosa no contexto de um grupo da Barquinha: uma religião ayahuasqueira brasileira [Resumo]. Em Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (Org.), Resumos de comunicações científicas, V Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia. Mato Grosso: SBEE. [ Links ]

Schultes, R. E. & Hofmann, A. (1992). Plants of the gods: their sacred, healing, and hallucinogenic powers. Rochester: Healing Arts Press. [ Links ]

Strassman, R. J. (1984). Adverse Reactions to Psychedelic Drugs: A Review of the Literature. The Journal of Nervous and Mental Disease, 172(10), 577-595. [ Links ]