Usos Espirituais do MDMA nas Religiões Tradicionais

A maioria dos professores espirituais são fortemente contra o uso de qualquer droga. Alguns alertam que as drogas irão desfazer anos de progresso árduo em direção a iluminação, enquanto outros dizem que o estado induzido pela droga pode parecer o mesmo, mas está em um nível inferior, e isso pode induzir as pessoas ao erro. Alguns poucos acreditam que um verdadeiro estado místico possa ser induzido por drogas, mas pensam que seu resultado é diminuído.

Entretanto, existem alguns professores que acreditam no valor do MDMA, tanto para a iluminação pessoal, quanto para o treinamento de outros. Eu entrevistei quatro: um monge Beneditino, um rabino, um monge Rinzai Zen e um monge Soto Zen. Também obtive comentários de outro monge Beneditino. Esses são lideres religiosos ativos que escrevem livros espirituais, ensinam prática espirituais e dão palestras públicas sobre assuntos espirituais, mas, exceto pelo último, nunca admitiram publicamente suas visões sobre o valor espiritual do MDMA. O monge Soto Zen, Pari, concorda que “Drogas não combinam com meditação. ” Entretanto, ele diz “Meditação combina maravilhosamente bem com drogas. ” Não há contradição: drogas perturbam padrões adquiridos na meditação, mas sob o efeito de MDMA é fácil meditar. “Ficar quieto enquanto toma MDMA te ajuda a aprender a sentar, provendo um conhecimento experiencial. ” Mas é um bom método para aprender? “É como um remédio. Se olharmos para o nosso estado mental e do planeta, devemos ser gratos por quaisquer meios que possam ajudar. Entretanto, assim como todo bom medicamento, também pode ser mal-usado. ” Todos eles acreditam que se beneficiaram do uso do MDMA, que pode ajudar a produzir uma experiência mística válida, não causa dano a mente e é útil para ensinar os estudantes. A razão para que eles não promovam seu uso é que eles devem seguir as politicas de suas ordens religiosas, e essas naturalmente obedecem a lei. Eu achei fascinante ouvir o quão similar suas experiências eram, ainda que diferentes para qualquer outra pessoa. Quando perguntei sobre o que eles achavam sobre o uso de MDMA por ravers, suas opiniões divergiram. O Beneditino sente que é profano pessoas tomarem drogas ao não ser que sejam espiritualmente orientadas, enquanto o rabino pensa que o sentimento de unidade e enxergar a vida por uma nova perspectiva é uma experiência igualmente válida para os ravers.

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Eu levei Bertrand, o monge Rinzai Zen, para uma festa rave onde ele tomou MDMA—anteriormente ele só havia tomado enquanto meditava. Quando sentiu o efeito, ele brilhou e anunciou “Isso é meditação! ” Longe de ser estranho para a sua experiência, ele viu que todos estavam totalmente absortos em suas danças sem consciência própria ou dialogo interno, e isso era a verdadeira essência da meditação.

O rabino não estava apenas ciente de que dançar sob o efeito do MDMA podia ser uma experiência espiritual, mas também que o misticismo estava agora mais prontamente disponível nas pistas de dança do que em igrejas, mesquitas ou sinagogas. Ele sugeriu que se sacerdotes experimentassem a droga, eles não somente apreciariam seu valor espiritual, mas seriam capazes de entender melhor os jovens. Pari fez a seguinte analogia: “É como um escalador andando pelas montanhas que está perdido na névoa e impedido de ver o pico que se dispôs a escalar. De repente a névoa se dissipa e ele experiência a realidade do pico, e ganha senso de direção. Mesmo que a névoa surja outra vez, e ainda que o caminho seja longo e árduo, o vislumbre é geralmente uma enorme ajuda e encorajamento.

Entrevista com um monge Beneditino

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Irmão Bartholemew é um monge que usou MDMA cerca de 25 vezes num período de 10 anos como ajuda para sua experiência religiosa. Normalmente ele toma sozinho, mas também tomou junto a um pequeno grupo de pessoas com objetivos semelhantes. Ele descreve o efeito como uma abertura de uma ligação direta com Deus. Enquanto usando o MDMA, ele experienciou uma compreensão muito profunda da compaixão divina. Ele nunca perdeu a claridade deste insight, e permanece como um reservatório onde ele pode recorrer. Outro beneficio de seu uso de MDMA foi que a experiência da presença divina lhe vinha sem esforço. O efeito se manifestava em sua forma elemental na respiração, o sopro divino. Após seu despertar, ele começou a descobrir a validade de todas as outras grandes experiências religiosas.

Ele acredita que a “ferramenta” do MDMA pode ser usada em níveis diferentes como uma ferramenta de pesquisa ou espiritual. Quando usado apropriadamente, é quase um sacramento. Tem a capacidade de lhe colocar no caminho certo para a união divina com ênfase no amor, amor vertical, num sentido de ascendência. Entretanto, esse ganho só é possível quando se olha na direção correta. Não deveria ser usado ao não ser que esteja realmente a procura de Deus, e não é apropriado para hedonistas ravers adolescentes. O lugar onde é ingerido deve ser quieto e sereno. Deve haver também uma ligação intima entre aqueles que compartilham a experiência. A experiência deve ser perseguida com uma certa dose de supervisão porque o MDMA produz uma tendência de que sua atenção se disperse. Existe também o perigo de delapidar a experiência ao ficar preso em sentimentos de euforia, ao invés de alcançar o reino espiritual. Entretanto, embora possa ser inestimável, não deve se tornar necessário, uma vez que a necessidade de uma droga lhe nega a liberdade.

[ Eu enviei ao Irmão Bartholemew uma cópia do texto acima para sua provação, e ele adicionou o seguinte: ]

Um elemento que você pode querer adicionar é o da intimidade da voz na conversação. MDMA sempre me empurra em um espaço de intimidade na conversação. Existe uma qualidade especial nela. Você sente uma sensação de peso, uma sensação de peso nesta conversação, de algo profundo, tão sério quanto a própria vida. É um espaço interno onde não há máscaras, sem pretensões, absolutamente aberto e honesto. Não é uma intimidade erótica, mas sim filosófica e mística. Isso faz algum sentido? Você tem consciência de que se trata de uma comunicação interna raramente alcançada na conversa comum. Realmente não há palavras adequadas para descrever esse estado de percepção, bastando dizer que é essencial em minha experiência.

Entrevista com o rabino na Sinagoga Oeste de Londres

Após uma conversa que tocou na necessidade da preparação para a morte, eu perguntei ao rabino uma questão sobre o valor do MDMA para os pacientes terminais (referência ao estudo do Dr. Charles Grob em Los Angeles.) Ele respondeu que o MDMA possui tanto valor para os moribundos, quanto aos ravers, permitindo assim a sensação de unidade, possibilitando ver a vida de uma nova perspectiva. A proibição não é a melhor maneira de se lidar com uma substância que pode ser sacramental da mesma forma como a comunhão do vinho. Essas substâncias podem despertar sensações estranhas que podem ser desconfortáveis, mas são essenciais para uma compreensão mais profunda de nós mesmos. Entretanto, existem outros métodos para alcançar esses sentimentos, como aqueles descritos em um livro chamado Mind Aerobics.

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No final, o rabino me chamou para vir para o palco. Ele me levou em uma escada da saída de incêndio, fora dos ouvidos de sua comitiva, e me disse que ele não podia arcar com o risco de prejudicar o seu projeto, apoiando publicamente o uso de drogas ilegais, mas que ele tinha o meu livro (ele o elogiou.) Ele acreditava que o MDMA e outros psicodélicos poderiam ser usados para um imenso beneficio, não apenas para a consciência pessoal, mas pelo bem de Gaia e o bem-estar cósmico do planeta. Ele deu a entender que a experiência com MDMA possuía a mesma qualidade e valor potencial que outras experiências místicas, e sugeriu que os sacerdotes experimentassem a droga, tanto para entender os jovens, como para validar as experiências espirituais produzidas por drogas. Ele se referiu à conclusão de Abraham Maslow a respeito das “experiências de pico”: que tomar uma droga é como atingir o topo da montanha por um teleférico ao invés da labuta da escalada—pode ser visto como trapaça, mas te leva ao mesmo lugar. Ele finalizou me dando um grande abraço e me encorajando em meu trabalho.

Visita ao monge e professor Rinzai Zen

Bertrand é um monge Zen budista e professor de meditação na casa dos 70 anos. Seguindo uma carreira convencional, ele teve uma experiência de despertar com mescalina quando ele tinha 47 que o fez reavaliar sua e buscar um caminho espiritual. Isso o levou a encarar o Rinzai Zen com um mestre japonês rigoroso. Embora tenha achado o treino extremamente difícil, ele eventualmente se tornou o abade de um monastério Zen.

Bertrand tomou MDMA cerca de 25 vezes nos últimos 10 anos. Ele geralmente usou-o no segundo dia de uma meditação de sete dias, e descobriu que a droga permitiu que ele prestasse atenção de todo coração, sem qualquer distração. Como estudante, ele também usou uma vez quando praticava um exercício Zen chamado Koan. Durante os Koans, o mestre nomeia a tarefa que o aluno deve contemplar, como o clássico “compreender o som de um bater de palmas. ” O estudante tem de demonstrar compreensão, normalmente após um tempo considerável, e muitas vezes é lhe dito para tentar de novo.

Sob efeito do MDMA, Bertrand atravessou por entre os Koans com uma impressionante facilidade. Ele, inclusive, se sentiu iluminado em duas ocasiões, apesar dele não confiar que essas experiências sejam do nível mais alto. Ele também conhece um monge Zen suíço que usa MDMA, mas ele nunca contou ao seu mestre. Ele sente que a experiência seria de grande valor para alguns de seus devotos e rígidos companheiros monges Zen, embora ele conheça apenas um outro monge Zen que faça uso de MDMA.

Perguntado se a experiência com MDMA tinha igual valor quanto chegar “lá” da maneira difícil, ele respondeu que o MDMA simplesmente permite que usuário foque, de todo coração, em sua tarefa atual, e o resultado é real em todos os aspectos porque são os mesmos. De fato, o MDMA permitiu que ele fosse mais longe do que ele era capaz sem a substância. Eu o pressionei para descobrir os aspectos negativos, e ele me disse que uma vez ele cometeu o erro de tomar o MDMA pouco antes de liderar uma meditação. Isso abriu seus olhos para o quão tensos e necessitados seus alunos eram. Ele expressou aquilo que sentia muito livremente: que eles pareciam como cadáveres, todos alinhados com seus chales negros! Isso era inapropriado, e ele não usou novamente o MDMA quanto ensinava. Ele sentiu que seu erro estava em não respeitar que seus alunos se encontravam em um espaço diferente.

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Entretanto, Bertrand acredita que o MDMA seria uma ferramenta extremamente útil para ensinar os estudantes que também estivessem sob efeito. Na verdade, ele se perguntou se viveria o bastante para poder usa-lo legalmente. Pressionado sobre os possíveis problemas, ele disse que sempre haverá pessoas que chegam querendo a iluminação em uma bandeja, e a notícia de que existe uma nova técnica usando uma droga atrairia aqueles que esperam que “seja feito por eles”. A festa rave foi a primeira vez que Bertrando tomou MDMA exceto quando estava meditando, e ele foi surpreendido pelo quão diferente a experiência era. De antemão, ele disse que mal suportava ao barulho e volume do som. Depois que o MDMA fez efeito, ele pode ver o valor do volume ao “afogar” as distrações. A batida monótona era semelhante a algumas cerimônias de índios americanos que também fornecem a sensação de união tribal pelo uso de uma droga—embora tenha sentido que a rave perdeu a estrutura cultural e foco dos indígenas. (Bertrand já foi convidado de um ritual Indigena Americano, embora não tenha tomado nenhuma droga.) Ele podia ver o valor dessa nova experiência para o Budismo como expansiva — meditação era contrativa, mas ambos foram essenciais.

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Sua primeira reação após o MDMA começar a fazer efeito foi tristeza por sua posição como parte de uma instituição de uma religião restritiva, e a realização de que o treinamento Zen não era adequado para os ocidentais em sua presente forma. Mais tarde, ele entrou na dança. Conforme sua face mudava de severa para feliz, ele exclamou: “Isso é meditação — estar realmente no presente e não em sua cabeça”. No dia seguinte, ele disse que sentiu como se a experiência havia deixado uma impressão em sua vida, e ele não tinha certeza onde isso o levaria. Enfatizou o que ele já sabia: que seus estudantes eram muito contraídos, e essa experiência expansiva da rave era o que eles precisavam, e era uma pena que ele não poderia advogar sobre isso em sua posição.
No dia seguinte, ele me disse que isso podia ser um ponto de virada muito importante em sua vida. Ele tinha que passar um tempo para digerir o que havia aprendido, mas sua resposta imediata era que ele não podia continuar sendo parte de uma instituição de sua escola na sua presente forma. Ele podia ver que o aspecto contrativo do treino havia sido muito enfatizado em sua escola, na crença de que os ocidentais já eram muito expansivos. Na verdade, aqueles que buscavam mestres Zen no Oeste realmente precisavam da habilidade de ser expansivos — e a rave proporcionava isso. Um mês depois, Bertrand me telefonou para dizer que ele acabará de ministrar um retiro de uma semana, que foi mais leve e positivo, quase como uma sensação de alegria. Ele atribuiu isso ao efeito da experiencia da rave, que por sua vez afetou os participantes. Também, ele se sentiu muito mais jovem e mais flexível. De fato, um problema de coluna que havia lhe causado dores por anos parecia estar completamente curado, o que fez ele suspeitar que especificamente esse problema na coluna era causado pela mente. Eu enviei os rascunho das entrevistas com o rabino e o monge Beneditino à Bertrand. Ele comentou que sua experiência se assemelhava com a do rabino sobre estar em um estado mental aberto. Divergia com o Beneditino, que dizia que o MDMA lhe permitia focar totalmente sem distração, e com atenção prolongada. Ele sentiu que a base do estado mental era enfatizada. Perguntei como ele sugeria usar o MDMA. Ele recomendou meditação após a abertura como uma forma de canalizar a energia liberada. Bertrando descreveu o MDMA como uma “experiência nutridora”

Visita a um monge e professor Soto Zen

Pari tomou LSD na universidade. Na verdade, ele mudou-se para uma comuna que tomava LSD em rituais semanais regulares, porém mais tarde essa busca por conhecimento o levou para longe das drogas para a Yoga, a qual ele praticou por muitos anos. Entã ele viajou e se envolveu com o Zen, vivendo em uma comunidade Soto Zen por 10 aos até ser ordenado monge. Ele havia sido feito desde então Abade pelo seu mestre; isso é, lhe é dado o poder para ordenar novos monges Zen. Ele agora vive em uma bela e tranquila casa Vitoriana na cidade com sua esposa e filho, onde ele tem um pequeno zendo (sala de meditação). Ele também tem um centro de retiro nas montanhas. Ele divide seu tempo entre o Budismo e ativismo social/ecológico. Nos últimos 5 anos, Pariu tomou MDMA cerca de 15 vezes, geralmente sozinho ou com sua esposa e amigos íntimos. Aquilo lhe fornecia uma grande clareza e tranquilidade, muito parecido com seshin— prática que dura 1 semana — quando tudo se torna mais claro, mais desperto.

Tradicionalmente, ensinamentos orientais são fortemente contra às drogas. Mas sua tradição em particular possui uma exceção a essa regra, e seu professor no Japão havia usado peyote, LSD e MDMA. Certa vez Pari irritou o professor Budista vietnamita Thich Nhat Hanh por apontar que a maioria dos estudantes ocidentais o procuravam pelas experiências com as drogas, então não era certo para ele ter uma posição forte contrária ao uso de drogas, especialmente já que ele não havia experimentado por si mesmo.

Ele havia usado MDMA para ensinar com alguns estudantes, incluindo um que já fora sido ordenado monge. Esse era um homem extremamente intenso e colocava um esforço tremendo para fazer o seu melhor na meditação. O MDMA o ajudou a ver que o tentar em si era o seu principal obstáculo. Outro estudante era um homem de negócios bem sucedido e mão de ferro. MDMA simplesmente o parou — ele mudou dramaticamente em uma pessoa calorosa e satisfeita que apenas queria se sentar tranquilamente no zendo.

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Quando perguntei se o sucesso com o MDMA era válido tanto quanto sem, ele respondeu : “É a experiência que importa, não como você chega lá. Olhe para a história das grande religiões. Muitos dos seus fundadores e santos tiveram uniões místicas durante febre causada por ferimentos, durante o qual, como sabemos hoje, o corpo produz substâncias psicodélicas. Um bom exemplo seria Inácio de Loyola, fundador da ordem Jesuíta.

Eu perguntei a Pari se pensava que haviam alguns tipos de pessoas que não se beneficiariam ou seriam enganados pelo MDMA. “Pode ser um problema para aqueles que não estão suficientemente aterrados, aqueles com tendencia a flutuar em outros mundos facilmente, de qualquer modo. Entretanto, a maioria de nós somos muito ligados a terra, presos demais nessa realidade em particular e uma pequena ajuda de um amigo pode ser de grande valor.” Ao contrário do LSD e outras drogas, o MDMA age em termos de relacionamentos — consigo, Deus, natureza. Ele ainda abre um terreno comum com outras pessoas as quais ainda não conhece.

Eu perguntei se havia algum motivo para usar o MDMA uma vez a iluminação ter sido atingida. “Atingir a iluminação para a maioria de nós é transitório e raro. Depois de um tempo, a experiência direta é substituída pela lembrança dela e uma experiência direta de tempos em tempos ajuda e revigora.” Mas, eu perguntei, a experiência induzida pela droga era realmente a mesma? Após certa hesitação Pari respondeu, “Sim, o estado da mente é idêntico, ainda assim há uma diferença sútil, talvez em razão dos efeitos físicos da droga no corpo. Sem a droga, há apenas um fator a menos. Isso é simples, e talvez implique em ser melhor. O valor desse estado é o mesmo: poder olhar para trás e ver o estado da mente “normal” com uma perspectiva clara mas diferente.

Qual a situação ideal? “Para um iniciante, um amigo confiável e mais experiente é altamente recomendável. Você deve criar um ambiente que ache convidativo. Faça a prática espiritual que você tiver. Para alguns pode ser cantar, rezar, pintar, meditar ou sentar em uma catedral; para outros é andar sozinho pelas montanhas.” Porém, ele alertou que nem toda tentativa é positiva. Ele sentiu mal e tremulo em sua última experiência com MDMA, embora depois de uma hora ele vomitou e então se sentiu melhor.

Texto publicado originalmente por Nicholas Saunders na Newsletter MAPS – Volume 6 Número 1 de 1995

A Experiência Religiosa e a Meditação

(Do livro, ainda não editado em nosso idioma, “O Despertar da Inteligência”).

“Dissemos que íamos falar sobre um problema sobremodo complexo, ou seja: Existe experiência religiosa, e que significa “meditação”? Observando, podemos ver que, em todo o mundo, o homem sempre andou buscando uma coisa existente além da morte, além dos seus problemas, uma coisa duradoura, verdadeira, eterna. Deu-lhe o nome de “Deus”, e outros mais; e a maioria acredita em tal coisa, sem jamais tê-la experimentado. Prometem algumas religiões que se crermos em certos rituais, dogmas e salvadores, e se vivermos de um dado modo, encontraremos essa coisa maravilhosa, que podemos denominar como quisermos. Os que a têm “experimentado” diretamente fazem-no segundo o seu condicionamento, sua crença, as influências ambientes e culturais a que estão submetidos.

A religião, evidentemente, perdeu o seu significado, pois sempre houve guerras religiosas. Ela não resolve os nossos problemas. As religiões separaram os povos. Poderão ter exercido determinada influência civilizadora, mas não transformaram radicalmente o homem. Para começarmos a investigar se existe a “experiência religiosa”, e o que tal experiência representa, e o porquê de a chamarmos “religiosa”, evidentemente, em primeiro lugar, se faz mister muita sinceridade. Isso não significa ser sincero em obediência a algum princípio ou crença, ou em relação a algum “compromisso”, mas, sim, ver as coisas tais quais são, sem deformá-las, não só as coisas exteriores, senão também as interiores; significa jamais iludir a si próprio. Porque é facílimo nos iludirmos ao ansiarmos por uma dada experiência, religiosa ou de outra natureza – pelo uso de drogas, etc. Estamos, então, sujeitos a nos enredarmos em alguma espécie de ilusão.

Cabe-nos descobrir diretamente o que é “experiência religiosa”. Precisamos imbuir-nos de humildade e sinceridade, a fim de não exigirmos para nós algum proveito ou ganho. Devemos, pois, atentar em nossos próprios desejos, apegos e temores, para os compreendermos a fundo, e não deixarmos a mente deformar-se de nenhuma maneira, impedindo assim toda e qualquer ilusão. E, igualmente, cumpre indagar: Que significa “experimentar”?

Não sei se já consideraram esta questão. Em regra, cansamo-nos das habituais experiências cotidianas. De todas elas estamos fartos, e quanto mais “sofisticada” ou intelectual a pessoa, tanto mais deseja viver só no agora – o que quer que isso signifique – e inventar uma filosofia do presente. A palavra “experiência” exprime passar por um certo estado, do começo ao fim, e dá-lo por acabado. Mas, infelizmente, para a maioria toda experiência deixa uma cicatriz, uma lembrança, agradável ou desagradável, e nós desejamos conservar as aprazíveis. Se ansiamos por qualquer espécie de experiência, espiritual, religiosa ou transcendental, devemos primeiramente descobrir se existe tal experiência, e também o que ela expressa. Se você passou por alguma e não é capaz de reconhecê-la, ela deixa de existir. Um dos elementos essenciais da experiência é o reconhecimento. E, havendo reconhecimento, aquilo que se experimenta já é conhecido, já foi sentido, pois, do contrário, não seria reconhecido.

Assim, ao falar de experiência religiosa, espiritual ou transcendental, a pessoa deve tê-la conhecido antes, para ser capaz de reconhecer que está experimentando algo diferente de uma experiência comum. Parece lógico e verdadeiro que a mente deve ser capaz de reconhecer a experiência, e o reconhecimento implica que a coisa já é conhecida e, por conseguinte, não é nova.

Ao desejarmos experiências no terreno religioso, nós as desejamos porque não resolvemos os nossos problemas, nossas ânsias, desesperos, temores e tristezas de cada dia; por essa razão pretendemos algo “mais”. Nessa pretensão de “mais” encontra-se a ilusão. Isso é bem lógico e verdadeiro, penso eu. Não digo que a lógica seja sempre verdadeira, mas, quando, sã e equilibradamente, nos servimos da lógica e da razão, conhecemos as limitações da razão. O desejo de experiências mais amplas, profundas e fundamentais leva-nos a alongar ainda mais o caminho do conhecido. Isso me parece claro, e espero estejamos em comunhão, em “participação” uns com os outros.

Outrossim, investigando o terreno religioso, queremos descobrir o que é a verdade, se existe uma realidade, se existe um estado mental fora do tempo. A procura implica também uma entidade que busca. E que está buscando essa entidade? Como saberá que o que descobre, em sua busca, é verdadeiro? E, ainda, se ela encontra o verdadeiro – pelo menos o que pensa ser o verdadeiro – o que ela encontra depende de seu condicionamento, de seus conhecimentos, de suas anteriores experiências; a busca torna-se, então, apenas mais uma projeção de suas passadas esperanças, temores e anseios.

A mente que está investigando – não, buscando – deve achar-se totalmente livre destas duas coisas: o desejo de experiência e a busca da verdade. Isso porque, se estamos buscando, procuramos diferentes instrutores, lemos livros vários, aderimos a vários cultos, seguimos diversos gurus, etc, etc. – como quem percorre as vitrines das lojas. Essa busca não tem nenhum significado.

Assim, ao investigarem esta questão – “Que é mente religiosa, e qual a natureza da mente que já não tem experiência alguma” – vocês devem saber se a mente pode libertar-se do desejo de experiência e pôr fim a toda atividade de busca. Impende investigar, sem nenhum “motivo” ou propósito, os fatos concernentes ao tempo e se existe um estado atemporal. Tal investigação requer que não se tenha crença alguma, não se esteja ligado a nenhuma religião ou organização dita espiritual, que não se siga nenhum guru e, portanto, não se esteja sujeito a nenhuma autoridade – inclusive, e principalmente, à deste orador. Porque as pessoas são facilmente influenciáveis, excessivamente crédulas, ainda que sejam “sofisticadas” e muito sabedoras; mas estão sempre ansiando por alguma coisa, sempre a desejar e, por essa razão, crêem.

Assim, a mente que investiga para descobrir o que é religião deve achar-se inteiramente livre de qualquer forma de crença, de qualquer forma de medo; porque o medo, conforme já explicamos, é um elemento deformador, produtivo de violência e agressão. Por conseguinte, ao investigarmos o estado religioso e seu movimento, devemos achar-nos livres do temor. Isso requer sinceridade e humildade.

No tocante à maioria de nós, a vaidade é um dos maiores impedimentos. Porque, tendo lido muito, tendo assumido compromissos com algum guru que anda a oferecer a sua filosofia, pensamos saber, pelo menos um pouco, e esse é o começo da vaidade. Ao averiguarmos uma questão tão importante como esta, precisamos fazê-lo com isenção, isto é, sem nada sabermos a seu respeito. Vocês, de fato, não sabem nada, sabem? Ignoram o que é a Verdade, o que é Deus – se tal entidade existe – o que é uma mente religiosa. Lêem livros que tratam desta questão, da qual se fala há milênios e estão vivendo com base no conhecimento e nas experiências de outros, com base na propaganda. É necessário pôr tudo isso de lado, se desejam descobrir alguma coisa; por conseguinte, a investigação desta matéria é uma coisa sumamente “séria”. Se desejam “brincar”, existem entretenimentos de toda espécie: os chamados espirituais, os de cunho religioso; mas estes não têm valor algum para o homem de reflexão.

Para investigar o que é a mente religiosa, devemos estar livres de nosso condicionamento, de nosso cristianismo, de nosso budismo, com a respectiva propaganda de milhares de anos, a fim de que tenhamos isenção para observar. Isso é sobremaneira difícil, porque tememos achar-nos sós. Desejamos segurança, externa e internamente; por isso, dependemos dos outros – do sacerdote, do guia espiritual, do guru que diz: “Experimentei e, portanto, sei”. Temos de estar completamente sós – mas não, isolados. Há vasta diferença entre estar isolado e estar completamente só, ser um todo não fracionado. O isolamento é um estado de espírito em que cessaram as relações e, em nossa vida e atividades diárias, erguemos (consciente ou inconscientemente) uma muralha em torno de nós para não sofrermos danos. Esse isolamento, naturalmente, impede qualquer espécie de relação. “Estar só” implica que a pessoa não depende de outra, psicologicamente, não está apegada a ninguém; isso não é dizer que não há, então, amor; o amor não é apego. “Estar só” significa que, profundamente, interiormente, não existe nenhum movimento de medo e, por conseguinte, nenhum movimento de conflito.

Se me acompanharam até aqui, podemos passar a investigar o que exprime disciplina. Geralmente, disciplina é para nós uma espécie de “treinamento”, de repetição, um meio de vencer um obstáculo, ou de resistir, reprimir, controlar, ajustar. Tudo isso está implicado na palavra “disciplina”, tal como a consideramos. Já o significado etimológico da palavra é “aprender”.

A mente que quer aprender deve ter curiosidade, vivo interesse; e, quanto à mente que “já sabe”, esta não tem possibilidade de aprender. Disciplina, por conseguinte, significa aprender por que razão controlamos, reprimimos, por que razão há medo, porque nos ajustamos, comparamos e, conseqüentemente, nos vemos em conflito. O próprio ato de aprender produz ordem; não a ordem criada segundo um plano ou padrão: na mesma investigação da confusão, da desordem, existe ordem. Em regra, vivemos confusos por dúzias de razões, que, por ora, não precisamos examinar. Necessitamos aprender sobre a confusão, sobre a vida desordenada que estamos levando; não nos cabe tratar de estabelecer a ordem na confusão, ou na desordem, mas, sim, aprender sobre a confusão e a desordem. Assim, enquanto aprendemos, nasce a ordem.

A ordem é uma coisa viva, e não uma coisa mecânica; a ordem, por certo, é virtude. Na mente que se acha confusa, que se ajusta, que imita, não existe ordem, porém conflito. E em conflito a mente se acha em desordem e, deste modo, é sem virtude. Com esse investigar, com esse aprender, vem a ordem, e a ordem é virtude. Observem-se, vejam o estado de desordem em que se encontra sua vida – tão confusa e mecânica! Nesse estado, queremos descobrir uma maneira moral de viver com ordem e com uma mente sã. Como pode a pessoa confusa, que apenas sabe obedecer ou imitar, ter qualquer espécie de ordem, qualquer espécie de virtude? Examinando-se a moralidade social, vê-se que é totalmente imoral; poderá ser “respeitável”, mas o que é respeitável é quase sempre sem ordem.

A ordem é necessária, porque só com ela é possível uma ação plena, e ação é vida. Mas nossa ação produz desordem; há a ação política, a ação religiosa, a ação atinente aos negócios, à família; todas essas ações são fragmentárias e, portanto e naturalmente, contraditórias. Você é um duro homem de negócios e, em casa, um meigo ente humano – pelo menos mostra sê-lo; aí há contradição e, por conseguinte, desordem. A mente em desordem não tem possibilidade de compreender o que é virtude. E, hoje em dia, com a licença existente em todos os sentidos, não existe ordem nem virtude. A mente religiosa necessita dessa ordem não obediente a nenhum padrão ou plano estabelecido por você ou por outrem. Mas, essa ordem, esse senso de retidão moral, só vem quando se compreende a desordem, a confusão, o caos em que estamos vivendo.

O que acabamos de dizer visa a mostrar como lançar as bases da meditação. Se não lançarmos essas bases, a meditação se tornará uma fuga. Com essa espécie de meditação pode-se ficar brincando toda a vida, e é isso o que a maioria das pessoas está fazendo: vivendo vidas medíocres, confusas, desordenadas e encontrando maneiras de quietar a mente, pois há tanta gente a prometer “uma mente quieta” (o que quer que isso signifique).

Assim, para a mente ardorosa, pois trata-se de uma coisa importante e não de uma brincadeira é necessário estar-se livre de toda crença, de toda e qualquer ligação porque nós estamos ligados ao todo da vida, e não a um fragmento dela. Em maioria estamos vinculados a alguma revolução física, política, a um movimento religioso, a uma espécie de vida espiritual, monástica, etc. Todas essas coisas são ligações fragmentárias. Falamos sobre liberdade porque dela necessitamos para ligarmos o nosso ser, a nossa energia, vitalidade e paixão à totalidade da vida e não a uma de suas partes. Podemos então começar a investigar o que significa meditar.

Não sei se já consideraram esta questão da meditação. Provavelmente alguns de vocês têm “brincado de meditar”, procurando controlar seus pensamentos, seguir diferentes sistemas, mas isso não é meditação. Temos de abrir mão de todos os sistemas que se nos têm oferecido: sistema Zen, Meditação Transcendental, etc. – armadilhas trazidas da Índia e da Ásia, nas quais tanta gente se deixa aprisionar. Precisamos examinar a questão dos sistemas, dos métodos, e espero tenham vontade de fazê-lo; porque nós estamos participando, todos juntos, no exame deste problema.

Quando temos de seguir um sistema, que sucede à nossa mente? Que implicam os sistemas e os métodos? Um guru. Não sei porque eles se denominam, a si próprios, “gurus”. Não encontro um termo suficientemente forte com que reprovar a classe dos gurus, com sua autoridade (eles pensam que sabem). O homem que diz “Eu sei”, esse homem não sabe. Ou, se ele diz “Experimentei a Verdade”, desconfiem dele decididamente. São estes os que oferecem os sistemas. Um sistema envolve: praticar, seguir, repetir, alterar “o que realmente é” e, por conseguinte, aumentar o conflito. Os sistemas tornam a mente mecânica, não libertam ninguém; poderão prometer a liberdade no fim de tudo, mas a liberdade está no começo e não no fim. Se querem investigar a verdade sobre qualquer sistema, sem terem liberdade, logo de início, acabarão então, fatalmente, adotando um método e com a mente incapacitada de ser sutil, ágil, sensível. Podem, pois, abandonar completamente todos os sistemas. O importante não é controlar o pensamento, mas compreendê-lo, compreender as origens, os começos do pensamento, que se acham na própria pessoa. Quer dizer, o cérebro armazena “memórias” (isso vocês mesmos podem observar, e não necessitam de ler livros sobre a matéria); se ele não armazenasse “memórias”, seria completamente incapaz de pensar. A memória é o resultado da experiência, do conhecimento, de cada um ou da comunidade, da família, da raça, etc. O pensamento brota daquele reservatório de “lembranças”. O pensamento, portanto, jamais é livre, é sempre velho; não existe essa coisa chamada “liberdade de pensamento”.

O pensamento, em si, não pode ser livre, embora fale sobre liberdade; em si próprio, ele é o resultado das “memórias”, experiências e conhecimentos trazidos do passado; em conseqüência, ele é velho. Todavia, necessitamos desse acervo de conhecimentos, pois, sem ele não poderíamos funcionar, não poderíamos falar uns aos outros, não poderíamos voltar para casa, etc. O conhecimento é de essencial importância.

Compete-nos descobrir se, na meditação, o conhecimento tem fim, se nela estamos livres do conhecido. Se a meditação é a continuação do conhecimento, a continuação de tudo o que o homem acumulou, não há, então, nela, liberdade. Só há liberdade se compreendemos a função do conhecimento e, por conseguinte, dele nos achamos livres.
Estamos explorando o campo do conhecimento, para vermos quando deve funcionar e quando se torna um empecilho à investigação mais profunda. Se as células cerebrais continuam ativas, só podem funcionar no campo do conhecimento. É só isso que o cérebro pode fazer, ou seja, funcionar no campo da experiência, do conhecimento, no campo do tempo, vale dizer, no passado. Meditação é descobrir se existe um campo ainda não contaminado pelo conhecido.

Se, meditando, continuo com o que antes aprendi, com o que já sei, estou então vivendo no passado, no campo de meu condicionamento. Nesse campo não há liberdade. Posso adornar a prisão em que estou vivendo, fazer coisas diversas dentro dela, mas há sempre uma limitação, uma barreira. Cumpre, pois, descobrir se as células cerebrais, evolvidas através de milênios, podem estar totalmente quietas e em correspondência com uma dimensão desconhecida. Quer dizer, pode a mente tornar-se tranqüila?

Foi sempre esse o problema das pessoas religiosas, através dos séculos, reconhecendo que se necessita de total serenidade, porque só então se pode ver. Se estamos a tagarelar, com o espírito em movimento, a correr para todos os lados, é óbvio que não podemos ver nem escutar totalmente. Assim, dizem as pessoas religiosas: “Controle a mente, segure-a, coloque-a numa prisão”; não descobriram uma maneira de pôr a mente num estado de completa e absoluta quietude. Dizem: “Não cedam a nenhum desejo, não olhem para uma mulher, para os belos montes, para as árvores e a beleza da Terra, porque se o fizerem, aquela beleza poderá sugerir-lhes a lembrança de uma mulher ou um homem. Portanto, controlem-se, perseverem, concentrem-se”. Assim fazendo, os põem em conflito e, desta maneira, haverá mais o que controlar, mais o que superar. Sucede isso há milênios, por se ter percebido a necessidade de uma mente tranqüila. Ora, como pode a mente serenar sem esforço, sem controle, sem se lhe traçarem limites? No momento em que se pergunta “como?”, cria-se a necessidade de um sistema. Portanto, aqui não há como”.

Pode a mente quietar-se? Não sei o que irão fazer ao perceberem verdadeiramente a necessidade de terem aquela mente que, estando absolutamente quieta, se torna sobremodo sensível e sutil. Como pode isso verificar-se? Esse é um problema de meditação, porque só essa é a mentalidade religiosa. Só ela é capaz de ver o todo da vida como uma unidade, como um movimento unitário, não fragmentado. Essa mentalidade, por conseguinte, atua totalmente e não fragmentariamente, porque sua ação emana da quietude completa.

A verdadeira base é uma vida de relação total, uma vida com ordem e, por conseguinte, virtude, uma vida interior simples e, portanto, austera – a austeridade da simplicidade profunda, própria da mente isenta de conflito. Se lançarem essa base, facilmente, sem esforço algum (porque, tão logo se introduz o esforço, há conflito), verão a sua genuína valia. É, conseqüentemente, a percepção de “o que é” que realiza a transformação radical.

Só a mente tranqüila pode compreender que, em sua quietude, há um movimento bem diverso, de diferente dimensão, de outra qualidade. Esse movimento, sendo inefável, não pode ser expresso em palavras. O que pode ser descrito só nos leva até este ponto: o ponto em que, tendo lançado a base correta, percebemos a necessidade, o valor e a beleza da serenidade espiritual.

Para a maioria, a beleza se encontra em alguma coisa: um edifício, uma nuvem, a forma de uma árvore, um lindo rosto. A beleza está “lá fora” ou faz parte da natureza da mente em que não há atividade egocêntrica? Porque a meditação, tão importante como a alegria que nela encontramos, é a compreensão da beleza. A beleza, com efeito, é o total abandono do “eu”; e os olhos que abandonaram o “eu” podem ver as árvores e sua pujança, e a formosura de uma nuvem. Isso acontece quando não existe nenhum centro constituído pelo “eu”. É uma coisa que sucede a qualquer de nós, – não é verdade? – ao vermos, por exemplo, uma majestosa montanha que subitamente se nos descortina. Tudo foi varrido para o lado, exceto aquela majestade. A montanha, a árvore, nos absorve completamente.

Algo semelhante sucede a uma criança que se diverte com um brinquedo; o brinquedo a absorve e, se se quebra, ela volta a suas ocupações habituais, suas travessuras, seus choros. Conosco se dá a mesma coisa, ao vermos a montanha ou a árvore solitária no alto de um monte, elas nos absorvem. E nós desejamos absorver-nos em alguma coisa – numa idéia, numa atividade, num compromisso, numa crença, ou noutra pessoa tal qual a criança com seu brinquedo.

A beleza, pois, significa sensibilidade – um corpo sensível, graças a uma alimentação adequada e a uma maneira correta de viver. A mente se torna, então, naturalmente quieta. Não é possível aquietar a mente, porque você é que é o causador de todos os males, você é que se acha perturbado, ansioso, confuso. Como pode torná-la tranqüila? Mas, ao compreender o que é quietude e o que é confusão, ao entender o que é sofrimento e que é possível acabar com ele, e, também, ao compreender o que é o prazer – então, dessa compreensão, surge uma mentalidade serena; não precisamos buscá-la. Devemos partir do começo, e o primeiro passo é o último passo. Eis o que é meditação.”

INTERROGANTE: Faz o senhor a apologia da beleza das montanhas, dos montes, do céu. Essa apologia não é útil para o comum das pessoas. A apologia que serve é a da sordidez.

KRISHNAMURTI: Está bem; façamos a apologia das ruas imundas de Nova Iorque, a apologia da miséria, da pobreza, dos guetos, das guerras, para as quais cada um de nós contribuiu. Vocês sentem de outro modo, porque se separaram, se isolaram; portanto, não estando em relação com os outros, corrompem-se e permitem que a corrupção se espalhe pelo mundo. Eis porque a corrupção, a poluição, as guerras, o ódio, não podem ser sustados por nenhum sistema político ou religioso, por nenhuma organização. Cumpre haver transformação. Não o percebem? Precisam deixar de ser o que são. Não à força de “querer”; meditação é expurgar a mente da vontade. Verifica-se, então, uma ação de espécie inteiramente diferente.

INTERROGANTE: Se pudermos alcançar o privilégio de nos conscientizarmos, como poderemos ajudar àqueles que se acham condicionados, àqueles que abrigam um profundo ressentimento?

KRISHNAMURTI: Permita-me interrogá-lo porque usa a palavra “privilégio”. Que há de sagrado ou de “privilegiado” em estar-se conscientizado? Essa é uma coisa natural, não acha? – estar ciente. Se você tiver ciência de seu condicionamento, da agitação, da sordidez, da miséria, da guerra, do ódio, existentes no mundo – se de tudo isso estiver inteirado, estabelecerá uma relação tão completa entre você – que ficará em relação com todos os outros entes humanos. Verá, então, que não causará dano aos outros; eles é que causam dano a si próprios. E, assim o que se pode fazer é sair pelo mundo a pregar, a falar – mas não com o desejo de ajudá-los, compreende? Esta é a coisa mais terrível que se pode dizer: “Quero ajudar a outrem”. Quem é você, quem sou eu, para ajudar os outros?

Senhor, a beleza da árvore ou da flor não “deseja” ajudá-lo. A você é que cabe olhar a sordidez ou a beleza; e se é incapaz de olhá-las, trate de descobrir porque se tornou tão indiferente, tão insensível, tão superficial e vazio. Se o descobrir, ver-se-á num estado em que a vida fluirá como as águas, e você nada terá de fazer.

INTERROGANTE: Qual a relação entre a percepção das coisas exatamente como são e a consciência?

KRISHNAMURTI: Você só conhece a consciência pelo seu conteúdo, e esse conteúdo são as coisas que estão sucedendo no mundo, do qual você faz parte. O esvaziar desse conteúdo não significa ficar privado da consciência, senão ingressar numa dimensão bem diferente. Sobre essa dimensão não é possível especular. O que podemos fazer é tratarmos de descobrir se é possível descondicionarmos a mente pela conscientização, pelo tornar-nos atentos.

INTERROGANTE: Eu próprio não sei o que é o amor, o que é a Verdade, ou o que é Deus. Mas diz o senhor que “amor é Deus”, em vez de “Amor é Amor”. Poderá explicar porque diz “Amor é Deus”?

KRISHNAMURTI: Eu não disse que amor é Deus.

INTERROGANTE: Lendo um de seus livros …

KRISHNAMURTI: Desculpe a interrupção … não leia livros! Daquela palavra se tem usado e abusado. Ela está “carregada” dos desesperos e esperanças do homem. Você tem o seu Deus, e os comunistas têm o deles. Assim, se me permite sugeri-lo, trate de descobrir o que é o Amor. Só descobrirá o que é o amor, se souber o que ele não é. Não, se o souber intelectualmente, porém, na vida real, afastando tudo o que o nega – o ciúme, a ambição, a avidez; as divisões que diariamente se verificam; eu e você, nós e eles, brancos e pretos. Infelizmente, as pessoas não o fazem, porque isso requer energia e a energia só vem ao observarmos a realidade, sem dela fugirmos. Vendo o que realmente é, então, observando-o, teremos a energia necessária para transcendê-lo. Não podemos transcendê-lo, se forcejamos para evitá-lo, para traduzi-lo ou superá-lo. Note simplesmente “o que é”, e descobrirá o que é amar. O amor não é prazer. E sabe o que significa descobri-lo realmente, você mesmo, em seu interior? Significa já não haver medo, nem apego, nem dependência, mas tão somente uma relação isenta de qualquer divisão.

INTERROGANTE: Pode-me dizer algo sobre a função do artista na sociedade? Desempenha ele algum papel além do que lhe é atribuído?

KRISHNAMURTI: Que é um artista? Aquele que pinta quadros, escreve poesias, aquele que busca expressar-se por meio da pintura ou escrevendo livros ou dramas? Porque separamos o artista de nós outros? Ou, porque diferenciamos o intelectual dos demais indivíduos? Colocamos o intelectual num certo nível, o artista noutro nível, talvez mais alto, e o cientista num nível mais elevado ainda. Depois, perguntamos: “Qual a função deles na sociedade?” Não se trata de saber qual é a função deles, mas qual é a sua junto à coletividade. Porque foi você que criou a desordem existente. Qual a sua função? Descubra-o. Isto é, trate de descobrir porque vive dentro deste mundo de sordidez, ódio e aflição; aparentemente, ele não o atinge.

Como vê, o senhor escutou estas palestras, participou em algumas das coisas ditas e compreendeu – nós o esperamos – muitas delas. Com isso pode tornar-se um “centro de relações corretas” e, portanto, compete-lhe transformar esta terrível, corrupta e destrutiva sociedade.

INTERROGANTE: Poderá falar sobre o tempo psicológico?

KRISHNAMURTI: O tempo é velhice, o tempo é sofrimento, o tempo não respeita ninguém. Há o tempo cronológico, medido pelo relógio. Este é indispensável; do contrário, não poderíamos ter condução, viajar, preparar uma refeição, etc. Mas, nós aceitamos outra espécie de tempo, ou seja “amanhã eu serei, amanhã mudarei, futuramente me tornarei isto ou aquilo”; psicologicamente, criamos este tempo – amanhã. Mas, existe esse dia imediato? Eis uma pergunta que tememos fazer a sério. Porque nós desejamos o amanhã: “amanhã terei o prazer de me encontrar com você, amanhã eu compreenderei, minha vida será diferente. Amanhã conhecerei a iluminação. E desse modo o futuro se torna a coisa mais importante de nossa vida. Ontem você se deleitou sexualmente, fruiu vários prazeres, e deseja repeti-los no dia seguinte, ou logo depois.

Faça a si próprio esta pergunta, e descubra a verdade respectiva: “Existe realmente um amanhã fora do pensamento” que projeta o amanhã? O futuro, com efeito, é uma invenção do pensamento. Se, psicologicamente, não houvesse um amanhã, que aconteceria, hoje, em sua vida? Uma tremenda revolução, não é? Sua ação se transformaria radicalmente, não é assim? Você seria, agora, um ente total e não um ente projetado do passado para o presente e daí para o futuro.

Tal equivale a viver e morrer todos os dias. Faça-o, e verá o que exprime viver completamente hoje. E isso não é amor? Ninguém diz “Amanhã amarei”. Ou amamos ou não amamos. O amor não reside no tempo; nele só está o amargor, porque o amargor, tal como o prazer, é pensamento. Devemos, pois, descobrir o que é o tempo, e descobrir se existe um “não amanhã” (no tomorrow). Isso é viver; há então aquela vida eterna – porque, na Eternidade, não existe tempo.

Krishnamurti

FONTE: http://www.cuidardoser.com.br/

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Meditação


Pensem na mente como um oceano, sendo suas ondulações os pensamentos. Tais ondulações são inseparáveis do oceano, assim como pensamentos são inseparáveis da natureza da mente. Em um oceano muito revolto poderá cair um caminhão, que não perceberemos os efeitos causados por este fato, enquanto em um oceano calmo, poderemos ver claramente as reações de qualquer mínimo estímulo, como uma pequena gota caindo na água.

Meditar, pra mim, não objetiva parar de pensar, mas acalmar o “oceano” com a intenção de clarear a consciência para a natureza dos pensamentos. “Parar de pensar” é consequência do meio utilizado, e conseguimos isso através da prática da concentração, seja na respiração, em mantras e sons ou simplesmente na observação da própria mente, testemunhando sua manifestação natural. Meditar é testemunhar, e a melhor testemunha de um fato é sempre aquela que apenas o observa , de forma alheia, sem envolvimento ou agregação de valores.

Os pensamentos surgem naturalmente em um fluxo, mas no estado de meditação nos tornamos os observadores, sem se apegar a emoções e pensamentos específicos. Assim passamos a conhecer melhor o oceano, não apenas as ondas em sua superfície. Muitas pessoas falam que para meditar devemos nos esforçar para “afastar todos os pensamentos”, porém pra mim isso não faz sentido, pois nunca poderemos calar a mente com um esforço mental incessante como este. Existe uma grande diferença entre “afastar pensamentos” e “se afastar dos pensamentos”, sendo esta segunda a única forma de meditação, na minha opinião. O erro está em pensar na meditação como uma luta contra os processos naturais da mente. Quando nos esforçamos para simplesmente afastar os pensamentos, sempre fazemos isso através de novos pensamentos e nunca entramos no silêncio. Porém se não nos preocuparmos com isso e praticarmos apenas a concentração, o silêncio virá naturalmente.

Os efeitos da prática podem ser observados pela diminuição natural do fluxo de pensamentos, que permite uma observação mais clara, e pela permanência no “espaço vazio” entre os pensamentos, que caracteriza o estado de meditação. A meditação proporciona auto-conhecimento, ao ponto que buscamos não interpretar a realidade com nossos conceitos contaminados de valores sociais, culturais ou o que quer que sejam. Nesse momento não se busca compreender nada, apenas sentir.