Como o uso de plantas de poder e psicodélicos podem ajudar a aliviar o sofrimento humano? Quais são as barreiras para as chamadas medicinas da floresta, como a Ayahuasca, se tornarem parte da Psiquiatria convencional? Como se projeta e conduz pesquisas sobre o uso terapêutico de tais plantas de uma maneira ética e significativa? Como irá aparentar o tratamento de transtornos mentais com estas plantas? Estas são algumas das perguntas básicas as quais eu vim lidando no decorrer dos últimos três anos, enquanto completava residência em Psiquiatria e tentava iniciar uma carreira na ciência psicodélica e sua forma de cura.
Neste breve texto, tentarei esboçar algumas respostas introdutórias para as perguntas acima, bem como discutir os desafios em integrar diferentes áreas do conhecimento com o modelo biológico atual da Psiquiatria. Eu acredito que a adoção de uma perspectiva multidimensional complexa do sofrimento humano e o aproveitamento delicado de maneiras diferentes de entender plantas psicodélicas são fatores-chave para o paradigma emergente de cura psicodélica.
Diferentes perspectivas sobre as Plantas Psicodélicas
Plantas psicoativas e fungos tem se relacionado com humanos por milhares de anos, tendo diferentes e vários papéis na sociedade, na cultura, religião e na medicina. Como resultado dessa complexa e histórica relação, existem inúmeras formas pelas quais podemos entender e falar sobre estas plantas.
A Ayahuasca como um exemplo, uma perspectiva indígena ou antropológica pode ver a bebida como não apenas sagrada, mas como uma “planta de espírito” ou “professora”, com a qual uma pessoa ou um xamã interage para produzir o efeito desejado. Essa compreensão contrasta totalmente com uma visão biomédica da Ayahuasca como uma coleção de alcaloides e outros compostos químicos, principalmente um agonista (quando uma substância química se liga em um receptor e o ativa) do receptor da serotonina 2A e um inibidor da MAO (monoamina oxidase), que alteram a conectividade da rede cerebral e a neuroplasticidade. Talvez entre essas visões existam as perspectivas psicológicas do chá como um “psicodélico”, capaz de provocar estados não-ordinários de consciência que podem trazer o insight psicológico e a mudança.
À medida em que o uso da Ayahuasca se torna mais difundido, existem várias outras maneiras de conceituá-la ou explicá-la. Perspectivas espirituais ou religiosas podem classificar o chá como “enteógeno” ou “sacramento”, capaz de catalisar profundas experiências espirituais ou místicas. Discursos mais recentes consideram a Ayahuasca como uma “ferramenta cognitiva”, ou “ferramenta evolutiva” que pode intensificar a criatividade e ajudar nossa espécie a evoluir ou viver mais harmoniosamente. Finalmente, a Ayahuasca e outras plantas psicodélicas são, muitas vezes, chamadas carinhosamente de medicinas da floresta por usuários da contemporaneidade que desejam destacar seus efeitos de cura profunda.
A Planta Medicinal na Era da Psiquiatria Biológica
Enquanto meu treinamento na psiquiatria enfatizou uma abordagem “biopsicossocial” para diagnóstico e tratamento, parece claro que o campo da psiquiatria como um todo tem, nas últimas décadas, priorizado a compreensão biológica do sofrimento mental. De acordo com este paradigma, doenças mentais como depressão e esquizofrenia, bem como dependências, são consideradas doenças cerebrais resultantes de circuitos neurais aberrantes e desequilíbrios químicos. Essa perspectiva visava servir a múltiplos propósitos: 1) ajudar a psiquiatria a tomar o seu lugar no meio de outras especialidades da medicina fundamentadas nas ciências biológicas; 2) desestigmatizar a doença mental e as dependências, retratando-os como doenças crônicas tratáveis, como diabetes ou algum tipo de doença cardíaca, e não como falhas morais ou resultantes de um caráter fraco; e 3) como o público crítico argumentaria, para ajudar a promover os produtos farmacêuticos como o principal meio de abordar a doença mental e aliviar o sofrimento cotidiano.
Embora não negue que este paradigma levou a avanços no nosso entendimento sobre certas doenças mentais e que pode ser utilizado como uma lente explicativa poderosa para certos pacientes, gostaria de salientar que uma compreensão estritamente biológica da doença mental é inconsistente com a minha compreensão sobre como plantas psicodélicas funcionam para trazer cura.
O paradigma biológico coloca a pessoa em situação de sofrimento como uma vítima relativamente impotente de um cérebro doente, obscurecendo as causas sociais, psicológicas e espirituais mais profundas do sofrimento e prescreve a adesão passiva à medicação como o modo primário de cura.
Em contraste, acredito que a experiência com plantas psicodélicas nos confronta poderosamente com a realidade que existimos como seres multidimensionais complexos, com mentes cerebrais, corpos, corações e espíritos, todos conectados uns aos outros e com nossos seres naturais e sociais. A partir dessa perspectiva, a fonte do sofrimento não é apenas do cérebro; o sofrimento pode surgir da doença em qualquer uma dessas camadas de existência e ser propagado através delas de formas complexas. Isso explicaria, por exemplo, como o stress social é internalizado como sintoma psicológico ou físicos.
O Desafio de Integrar o Conhecimento
A principal implicação de cunho terapêutico em ver o sofrimento mental nesta maneira multidimensional é que os tratamentos adequados devem agora ser capazes de intervir nas múltiplas camadas da existência. O principal argumento que eu gostaria de enfatizar é que esse tipo de cura multidimensional a) requer um engajamento ativo da pessoa em situação de sofrimento (bem como em psicoterapia), e b) pode ser alcançado através do uso de plantas psicodélicas medicinais utilizando as diferentes visões conceituais descritas acima. Assim, como pesquisador clínico e acadêmico, vejo o principal desafio do campo emergente da ciência psicodélica como sendo a integração de modos de conhecimento e abordagens para a cura que, anteriormente, se encontravam desconectados e conflitantes.
Dada a predominância dos quadros biológicos dentro da Psiquiatria acadêmica, desafios significativos relacionados a essa integração manifestam-se tanto ao transmitir tais ideias a colegas e agências financiadoras, quanto ao tentar traduzir essas ideias em ensaios clínicos e protocolos de tratamento. Como estudamos e utilizamos um medicamento com múltiplos ingredientes ativos que funciona de modo complexo, multidimensional e idiossincrática quando a ciência moderna é inerentemente reducionista, ao procurar moléculas únicas que têm mecanismos biológicos de ação específicos para explicar seus efeitos terapêuticos sobre os processos patológicos que podem ser vistos, reconhecidos e medidos? Como a ciência pode explicar a interação entre as propriedades físicas de uma medicina como a Ayahuasca e seus componentes metafísicos de cura que são complementares ao seu uso, como música, dieta, oração e outros aspectos do Xamanismo? Acredito que superar esses desafios de integração representa uma grande oportunidade para o campo da ciência psicodélica e, caso bem-sucedida, pode revolucionar a maneira como pensamos e tratamos a doença mental.
Integração de conhecimento: passado e presente
Felizmente, o processo de integrar diferentes tipos de conhecimento sobre as plantas psicodélicas já foi iniciado. Populações indígenas ao redor do mundo possuem séculos de conhecimento relacionados ao uso de plantas psicoativas para fins espirituais, religiosos e de cura. Relatos antropológicos e interdisciplinares e o engajamento direto entre cientistas, usuários ou praticantes dos rituais e povos indígenas (por exemplo, a Conferência Mundial de Ayahuasca) trazem as partes interessadas com diferentes perspectivas e tipos de conhecimento ao diálogo uns com os outros. No Ocidente, existem modelos “psicodélicos” e “psicolíticos” de uso de substâncias psicodélicas ao lado da psicoterapia para tratar transtornos de humor e dependência de substâncias que remontam aos anos 1950. Esses modelos serviram de base para ensaios clínicos recentes e podem ser modificados e atualizados à medida que se ganha mais conhecimento e que este vá sendo integrado.
A onda atual de pesquisa psicodélica tem sido caracterizada por trazer avançadas ferramentas científicas e métodos para suportar o estudo de substâncias psicodélicas, incluindo a neuroimagem e farmacologia molecular, bem como uma metodologia robusta de ensaio clínico utilizando o controle do placebo duplo-cego. Ao crédito destes investigadores, essa pesquisa não só trouxe novos entendimentos sobre como os psicodélicos afetam o cérebro, mas também começaram a elucidar como tais mudanças biológicas podem ser correlacionadas com a experiência psicológica e espiritual. Por exemplo, Robin Carhart-Harris demonstrou como as mudanças psicodélicas induzidas na conectividade cerebral se correlacionam com experiências específicas de tipo místico e subjetivo. Submetendo-se a tais experiências do tipo místico, tem se mostrado correlacionado com o benefício terapêutico em estudos recentes com psilocibina, o ingrediente ativo dos “cogumelos mágicos”.
O estudo de medicamentos complementares e alternativos seguiu uma trajetória similar. Nos últimos anos, estudos cada vez mais sofisticados começaram a esclarecer como práticas e modalidades que costumavam ser entendidas como espirituais ou energéticas, como meditação e acupuntura, têm efeitos biológicos e psicológicos que contribuem para seu potencial terapêutico.
Rumo à “Integração de Paradigmas Críticos”
Embora esses desenvolvimentos recentes sejam um bom sinal para o futuro da pesquisa e do tratamento com psicodélicos, eu gostaria de concluir argumentando para defender o foco sustentado entre pesquisadores e profissionais neste campo sobre integração do conhecimento, colaboração multidisciplinar e abordagens de tratamento multimodal – o que eu chamo de “integração de paradigmas críticos”.
Os atuais determinantes políticos, econômicos e filosóficos continuarão a puxar a pesquisa e o tratamento com psicodélicos em uma direção biológica. Portanto, é crítico neste tempo ressurgente para a ciência psicodélica que os pesquisadores visam integrar diferentes tipos de conhecimento e planejem protocolos de tratamento que refletem entendimentos multidimensionais complexos de como as plantas psicoativas produzem cura. Este último é crucial pois as diretrizes de tratamento são geralmente baseadas em evidências produzidas por ensaios clínicos. Assim, os modelos que nós construímos e estudamos agora estão aperfeiçoando como as plantas medicinais serão usadas na Medicina nas próximas décadas.
Vamos tratar plantas psicodélicas medicinais como qualquer outra classe de psicofármacos, tomados de modo passivo por pacientes enquanto o medicamento re-conecta com seus cérebros? Procuraremos criar formulações que minimizem seus “efeitos colaterais” psicoativos e somáticos ou purgativos, bem como foi feito com o uso psiquiátrico da ketamina? Ou esses tratamentos, de uma natureza radicalmente diferente, interagindo com nossos corpos-mente-cérebro-espírito de uma forma complexa que requer um engajamento ativo, não só durante o tempo de administração da droga, mas o antes e depois? Acredito que o entusiasmo popular por trás da cura psicodélica e os benefícios terapêuticos profundos e duradouros relatados até agora em ensaios clínicos argumentam para este último. Se a psiquiatria tradicional e as instituições sociais relacionadas irão abraçar este novo paradigma, isto ainda está para ser descoberto.
O autor gostaria de reconhecer as contribuições intelectuais de Jeffrey Guss M.D., Ryan Wallace M.D., e Alexander Belser M.Phil., No desenvolvimento das idéias apresentadas aqui.
Agradecemos imensamente a tradução feita pela colaboradora Mirella Mochiutti.
Seja você também um colaborador, entre em contato:
equipemundocogumelo@gmail.com
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Tradução: Fernando Beserra
Tendo discutido os fatores que contribuem para o desenvolvimento de emergências em sessões não supervisionadas de LSD e descrito as práticas danosas que caracterizam muitas intervenções legais e profissionais, eu gostaria de delinear o que considero a abordagem ideal a crises psicodélicas, baseado no entendimento de suas dinâmicas. O que constitui uma emergência em uma sessão de LSD é altamente relativo e depende de uma variedade de fatores. Isso reflete em uma interação entre os próprios sentimentos do sujeito sobre a experiência, as opiniões e tolerância das pessoas presentes e o julgamento dos profissionais chamados para oferecer ajuda. Este último fator é de importância decisiva; ele depende do grau de entendimento do terapeuta quanto ao processo envolvido, sua experiência clínica com estados incomuns de consciência e sua liberdade de ansiedade. Na intervenção em uma crise psicodélica, como na prática psiquiátrica em geral, medidas drásticas frequentemente refletem o sentimento de medo e insegurança do cuidador, mas também a relação com o seu próprio inconsciente. A experiência da terapia com LSD e as novas psicoterapias experienciais claramente indicam que a exposição aos materiais emocionais profundos de outra pessoa tendem a quebrar as defesas psicológicas e ativar as áreas correspondentes no inconsciente da pessoa que cuida e testemunha o processo, ao menos que eles tenham se confrontado e trabalhado através destes níveis neles mesmos. Desde que as psicoterapias tradicionais são limitadas ao trabalho em material biográfico, mesmo um profissional com treinamento completo em análise é inadequadamente preparado para lidar com as experiências poderosas de natureza perinatal e transpessoal. A tendência prevalente a colocar todas estas experiências na categoria de esquizofrenia e suprimi-las a todo custo reflete não apenas a falta de entendimento, mas também uma autodefesa conveniente contra o material do seu próprio inconsciente.
Na medida em que aumentou a sofisticação e experiência clínica de terapeutas que trabalham com LSD, se tornou mais evidente que episódios negativos nas sessões psicodélicas não deveriam ser vistos como acidentes imprevisíveis, mas aspectos intrínsecos e legítimos do trabalho terapêutico com o material traumático inconsciente. Deste ponto de vista o termo coloquial “bummer” ou “bad trip” (viagem ruim) não faz sentido. Para um terapeuta que trabalha com LSD uma sessão psicodélica mal sucedida não é uma na qual o sujeito experimenta a ansiedade do pânico, tendências autodestrutivas, culpa abismal, perda de controle ou sensações de dificuldade física. Se propriamente manejadas, uma sessão dolorosa ou difícil com LSD pode trazer uma importante revelação terapêutica. Ela pode facilitar a resolução de problemas que atormentaram o sujeito de formas sutis por muitos anos e contaminaram sua vida cotidiana. Uma sessão mal sucedida, entretanto, é uma na qual, quando os sentimentos de dificuldade começam a emergir, o sujeito não se rende completamente ao processo e a Gestalt permanece não solucionada. Deste ponto de vista, todas as experiências psicodélicas nas quais o processo é frustrado pela administração de tranquilizantes e distrações externas como a transferência para um hospital psiquiátrico não são falhas por consequência da natureza do processo psicológico envolvido, mas porque o manejo da crise interferiu com uma resolução positiva.
Embora o LSD possa induzir experiências psicodélicas difíceis mesmo sob as melhores circunstâncias, seria um erro atribuir todas as “bad trips” a própria substância. O estado psicodélico é determinado por uma variedade de fatores não relacionados a substância; a incidência de sérias complicações depende criticamente da personalidade do sujeito e de elementos do set e do setting. Isso pode ser ilustrado comparando a incidência de complicações durante as experimentações iniciais supervisionadas com LSD e a cena psicodélica dos anos 60. Em 1960, Sidney Cohen publicou um artigo intitulado: LSD: efeitos colaterais e complicações. J. Nerv. Ment. Dis. 130::30, 1960. Ele estava baseado nos relatos de 44 profissionais que tinham administrado LSD e mescalina a aproximadamente 5 mil pessoas cerca de 25 mil vezes; o número de sessões por pessoa alternava entre uma e oitenta. No grupo de voluntários normais, a incidência de tentativas de suicídio após a sessão foi menor que um a cada mil casos e reações prolongadas durante mais que 48 horas foi de 0,8 por milhar. Este número foi um pouco mais alto quando pacientes psiquiátricos foram utilizados como sujeitos; em cada mil pacientes havia 1,2 tentativas de suicídio, 0,4 suicídios completos e 1,8 reações prolongadas durante mais que 48 horas. Em comparação com outros métodos de terapia psiquiátrica, portanto, o LSD apareceu como invulgarmente seguro, particularmente quando contrastado com outros procedimentos utilizados rotineiramente no tratamento psiquiátrico neste momento, como eletrochoques, comas insulínicos e psicocirurgia. Estas estatísticas contrastam bruscamente com a incidência de reações adversas e complicações associadas com experimentação não supervisionada. Durante a minha visita a clinica de Haight-Ashbury em São Francisco no final dos anos 60, eu fui informado pelo seu diretor David Smith que eles estavam tratando uma média de quinze bad trips por dia. Embora isso não necessariamente signifique que todos os clientes tiveram um efeito adverso duradouro de suas experiências psicodélicas, isso ilustra o tema em questão.
A experiência e sofisticação de psiquiatras e psicólogos em relação aos psicodélicos certamente não foi grande durante os anos iniciais e os settings estavam longe do ideal. Entretanto, as sessões reportadas no artigo do Dr. Cohen eram conduzidas em ambientes protegidos, em razoável supervisão e por indivíduos responsáveis. Em adição, estes que tinham experiências difíceis estavam em um lugar que era equipado para prover ajuda em caso de necessidade e eles não tinham que ser submetidos a ordem absurda de transferência a uma instalação psiquiátrica.
A crise psicodélica é causada por uma complicada interação de fatores internos e externos. O terapeuta tem que distinguir qual dos dois sets de influência é mais importante e proceder de acordo. O primeiro e mais importante passo no tratamento de uma crise psicodélica é criar um ambiente simples, seguro e de suporte físico e interpessoal para o sujeito. Em caso nos quais os fatores externos parecem produzir o papel principal, é importante remover o individuo de situações traumáticas ou mudar isso por uma intervenção ativa. Se a crise ocorrer em um local público, ele ou ela deve ser levado a um lugar quieto e isolado. Se o incidente ocorrer durante uma festa em uma residência privada, é importante simplificar a situação movendo o usuário a uma sala separada ou pedir aos convidados para ir embora. Poucos amigos próximos que parecerem sensíveis e maduros podem ser convidados a dar assistência no processo. Eles podem providenciar um suporte de grupo ou ajudar o sujeito a ativamente trabalhar através de problemas subjacentes durante o período de finalização da sessão. As técnicas de grupo envolvidas em sessões psicodélicas foram discutidas mais cedo neste livro.
Depois de criar um espaço seguro o próxima tarefa importante é estabelecer um bom contato com o sujeito. O relacionamento de confiança é provavelmente o pré-requisito mais significativo para o resultado positivo de uma sessão psicodélica em geral e para um manejo bem sucedido da crise em particular. Uma pessoa solicitada a intervir em uma crise desencadeada por LSD está em grande desvantagem se comparada a um terapeuta que trabalha com LSD, lidando com uma situação similar, no curso de um tratamento psicodélico, porque a sessão terapêutica é precedida de períodos de preparação sem o uso de substâncias no qual há tempo suficiente para estabelecer um bom contato e um relacionamento de confiança. Se uma situação difícil surge no curso de uma série com LSD, o cliente pode desenhar em sua memória de sessões prévias onde as experiências dolorosas foram trabalhadas com sucesso e integradas com a ajuda do terapeuta.
Em contraste, o profissional lidando com a crise fora do contexto terapêutico, caminha para dentro da situação de emergência como um estranho, usualmente sem nenhum contato prévio com o sujeito e outras pessoas envolvidas. Confiança e cooperação tem que ser estabelecidas em um tempo muito curto e muitas vezes em circunstâncias dramáticas. Estar livre de ansiedade, uma habilidade de permanecer centrado, empatia profunda e intimo conhecimento das dinâmicas dos estados psicodélicos são as únicas formas de gerar a confiança no âmbito destas circunstâncias.
É essencial transmitir um senso de proteção e segurança, enfatizando a natureza autolimitada da experiência com LSD. Não importa quão critica as condições pareçam ser, em muitos casos ela será resolvida espontaneamente de cinco a oito horas depois da ingestão da substância. Este limite de tempo deve ser claramente comunicado ao sujeito e outras pessoas presentes; até este tempo não há absolutamente razão para pânico ou preocupação, entretanto, manifestações emocionais e psicossomáticas podem ocorrer. Também é uma grande vantagem manter o sujeito em uma posição reclinada, mas isso deve ser atingido sem utilizar nenhuma força física e restrição aberta. Com pouca experiência, alguém pode desenvolver uma técnica na qual é possível efetivamente restringir o indivíduo usando um contexto de suporte e cooperação, mais do que de conflito.
Quando o contato adequado foi estabelecido, uma estrutura positiva deve ser oferecida para a experiência psicodélica difícil. É essencial apresentar ela como uma oportunidade de encarar e trabalhar através de certos aspectos traumáticos de inconsciente, mais do que um acidente trágico e infortunado. Uma pessoa dando assistência uma crise psicodélica deve fazer tentativas consistentes de internalizar a experiência do sujeito que usou LSD e encorajar ele ou ela a olhar os temas críticos envolvidos. O usuário de LSD deve ser encorajado a manter os seus olhos fechados e confrontar a experiência, independente qual ela seja. O terapeuta deve repetidamente comunicar ao sujeito que a forma mais rápida de sair do estado difícil é se rendendo a dor física e emocional, experiência ela completamente e procurando canais apropriados para expressá-la. O processo de se render pode ser facilitado grandemente pela música. Se um aparelho de som de boa qualidade estiver avaliável, e o sujeito aberto a isso, música deve ser introduzida na situação tão logo seja possível.
Quando um bom rapport for estabelecido, é possível oferecer assistência ativa usando contato físico reconfortante, elementos de grande esforço lúdico (playful struggle) e pressão ou massagem nas partes do corpo onde a energia parece estar bloqueada. Isso não deve ser feito se o laço de confiança é precário ou ausente; isso é absolutamente contraindicado se o sujeito estiver paranoico e inclui as pessoas presentes entre o seu ou a sua perseguidor(a). Em alguns casos simplesmente estar com o cliente e jogar com o tempo pode ser a única solução. Em tais circunstâncias, é essencial usar qualquer meio possível e recursos existentes para impedir que a pessoa que usou LSD machuque a si mesma ou a outros e cause sérios danos materiais. Enquanto seguir a regra básica, tentativas ocasionais devem ser feitas para estabelecer o rapport e ganhar a cooperação do individuo.
Se a Gestalt da experiência permanecer não concluída quando o efeito da droga está terminando, atividade psicológica ou física deve ser utilizada para facilitar a integração. Idealmente, o sujeito deve completar a sessão se sentindo confortável e relaxado, sem nenhum sintoma residual emocional ou psicossomático. As duas técnicas que se provaram uteis neste contexto – a abordagem abreativa e a hiperventilação de limpeza – foram discutidas mais cedo neste livro (p. 156-7, 159-60). Depois que o sujeito encontrar um estado psicológico e físico confortável, é importante criar uma atmosfera segura e nutridora pelo resto do dia e noite. Idealmente, uma pessoa que passou por uma crise psicodélica não deve ser deixada sozinha, por ao menos 24 horas depois da ingestão da droga. Depois deste tempo, o terapeuta deve ver o cliente novamente, reavaliar a situação e, dependendo da condição da pessoa, escolher uma estratégia futura. Em muitos casos nenhuma disposição adicional é necessária, se a crise foi tratada adequadamente. É útil discutir a experiência com LSD em detalhe e facilitar a sua integração na vida cotidiana do paciente. Se reclamações emocionais ou psicossomáticas significativas apareceram como resultado da experiência com LSD, devem ser tomadas providências para uma terapia de descoberta e trabalho corporal. Uma seleção individualizada de técnicas de meditação, práticas de Gestalt, abordagem neo-reichiana, imaginação guiada com música, respiração controlada, massagem de polaridade ou rolfing devem ser oferecidas ao cliente.
Onde a condição clínica permanecer precária apesar de todo o trabalho de desvelamento, este tratamento deve ser continuado em uma internação. Se todas as abordagens acima se provarem inefetivas, a integração pode ser facilitada por meios químicos. Idealmente, uma sessão de psicodélica supervisionada deve ser agendada depois da preparação adequada. Esta abordagem pode parecer paradoxal ao profissional de saúde mental médio, desde que ela envolve a administração da mesma droga ou categoria de drogas que aparentemente trouxe ao cliente o problema em primeiro lugar. No entanto, o uso judicioso de psicodélicos nestas circunstâncias é o tratamento preferencial. A experiência clínica mostrou que é extremamente difícil restaurar as defesas pelo uso de técnicas de cobertura como os tranquilizantes, uma vez que o inconsciente foi aberto por uma poderosa substância psicodélica. É muito mais fácil continuar a estratégia de desvelamento e facilitar a completar a Gestalt não finalizada.
Psilocibina, metilenodioxianfetamina (MDA), tetrahidrocanabinol (THC), e dipropiltriptamina (DPT) são alternativas viáveis ao LSD. Eles têm os mesmos efeitos gerais e são menos contaminados por má publicidade. MDA e o THC parecem ser particularmente úteis neste contexto, por causa de seus efeitos suaves e afinidade seletiva a sistemas positivamente governados no inconsciente. Trabalho psicológico efetivo com estas substâncias envolve menos dor emocional e psicossomática do que quando o LSD é utilizado.
Como os psicodélicos acima não estão prontamente avaliáveis, e obter permissão para usá-los envolve procedimentos administrativos tediosos, uma sessão com Ritalina (100-200mg) ou Ketalar (100-150mg) pode ser uma abordagem factível. Tranquilizantes não devem ser usados em nenhuma condição relacionada ao uso de psicodélicos até que todas as abordagens de desvelamento acima tenham sido tentadas e falharam.
Abordagens poderosas sem drogas também pode ser usadas no lugar de tranquilizantes em todos os casos nos quais a experiência com LSD pobremente resolvida resultou em condições psicóticas de longo prazo e hospitalizações psiquiátricas durando meses ou anos. Se estes não produzem melhora clínica suficiente, terapia psicodélica, usando as substâncias mencionadas acima, é a próxima escolha lógica. Ketalar, uma droga que é legalmente avaliável e foi usada no contexto médico para anestesia geral pode se provar promissora nestes casos desesperados.
Eu gostaria de concluir esta discussão da intervenção em crise psicodélica com a descrição da situação mais dramática deste tipo que eu encontrei na minha carreira profissional.
No meu terceiro ano em Big Sur, Califórnia, eu fui acordado às 4:30 em uma manhã por uma ligação telefônica. Era o guarda noturno do próximo Instituto Esalen pedindo ajuda. Um casal de jovens chamado Peter e Laura, que estavam viajando pela costa, estacionaram o seu trailer VW na rota costeira 1 nas proximidades do Instituto Esalen e decidiram tomar LSD juntos. Eles saíram da cama no trailer e, pouco depois da meia noite, ingeriram a droga. A experiência de Laura foi relativamente suave, mas Peter progressivamente desenvolveu um agudo estado psicótico. Ele se tornou paranoico e violento e depois de um período de agressão verbal ele começou a jogar coisas em volta e demolir o carro. Neste ponto, Laura entrou em pânico, trancou ele no trailer e buscou ajuda em Esalen. Ele apareceu na guarita completamente nua, segurando as chaves do carro em suas mãos. O guarda noturno conhecia sobre meu trabalho prévio com psicodélicos e decidiu me ligar; ele também acordou o Rick Tarnas, um psicólogo residente que fez a sua dissertação sobre drogas psicodélicas.
Enquanto o guarda estava cuidando da Laura, que se acalmou e teve uma experiência prazerosa e não complicada com LSD, Rick e eu andamos para o trailer. Na medida em que nos aproximamos do carro nós ouvimos os altos barulhos e gritos; quando chegamos mais perto, percebemos que várias das janelas estavam quebradas. Nós destrancamos o carro, abrimos a porta e começamos a conversar com Peter. Apresentamo-nos e falamos para ele que tínhamos considerável experiência com estados psicodélicos e viemos para ajuda-lo. Eu timidamente enfiei a minha cabeça dentro da porta e olhei para o campista; uma garrafa de meio litro não acertou a minha cabeça por 10 centímetros e caiu no painel. Eu repeti isso varias vezes e mais dois objetos vieram voando em minha direção. Quando sentimos que Peter não tinha mais nada para jogar, nos rapidamente nos movemos na direção do campista e deitamos na cama dobrável, em cada lado dele.
Nós continuamos a conversar com o Peter, assegurando a ele que tudo estaria bem em uma hora ou duas; sabendo que ele e sua namorada tinham tomado LSD depois da meia noite, nós podemos dar ele um prazo de tempo definido. Tornou-se óbvio que ele estava em um estado paranoico e nos viu como agentes hostis do FBI que vieram para busca-lo. Nós seguramos os seus braços de uma forma confortável e tranquilizadora, mudando isso em um aperto firme quando ele buscava escapar, mas evitando um real antagonismo físico e luta. O tempo todo, nos mantemos conversando sobre como nós tivemos experiências difíceis e como elas foram, retrospectivamente, úteis. Esta condição oscilou por cerca de uma hora entre desconfiança com impulsos agressivos carregados de ansiedade e episódios de alívio quando era possível se conectar com ele.
Na medida em que o tempo passava e o efeito do LSD se tornava menos intenso, Peter vagarosamente começou a desenvolver confiança. Ele estava cada vez mais disposto a manter seus olhos fechados e encarar a experiência e nos estávamos mesmo aptos a começar a trabalhar, cuidadosamente, nas partes bloqueadas do seu corpo, encorajando a plena expressão emocional. Às sete horas todos os elementos negativos tinham desaparecido por completo da experiência com LSD do Peter. Ele se sentia purificado e renascido e estava verdadeiramente aproveitando o novo dia. Sua hostilidade prévia se tornou em uma gratidão profunda e ele se manteve repetindo o quando ele apreciou a intervenção.
Aproximadamente às sete e meia Laura apareceu no trailer e se juntou a nos; ela estava em uma ótima condição, mas estava naturalmente preocupada sobre Peter. Rick e eu ajudamos a dissipar as consequências negativas dos eventos dramáticos da noite e facilitamos a reunião deles. Nós os aconselhamos fortemente contra dirigir naquele dia. Eles gastaram o dia de lazer no oceano Pacífico e no próximo dia continuaram a sua jornada ao sul. Eles estavam em um bom animo, embora estivessem um pouco preocupados sobre a conta de reparo de seu trailer danificado.
A História humana é um período caótico de transição metamórfica. É um portal no qual entramos macacos e sairemos alguma outra coisa impossível de ser prevista.
O que hoje chamamos de “tecnologia” não é simplesmente uma escolha histórico-evolucionária e nem mesmo uma produção do homem, é simplesmente parte de um processo de transformação pelo qual estamos passando e nem sequer temos controle. Apenas pensamos que temos. Somos primatas numa montanha-russa cujas dimensões e direções estão fora do nosso campo de visão. Mas gostamos de brincar de sermos os maquinistas dessa coisa.
Com a tecnosfera em estado avançado de desenvolvimento, tendemos a pensar na tecnologia em termos de sistemas e máquinas avançadas, mas é importante lembrar que, o que quer que seja “isso”, é parte de nós no mínimo desde que construímos as primeiras ferramentas de pedra lascada para caçar, na pré-história. Dissolvendo por um momento nossas atuais concepções históricas e culturais, vemos que esse é o próprio processo que caracteriza nossa espécie; é o que permite nos vermos com orgulho como diferentes dos demais primatas. Não é algo que estamos “fazendo”, é algo que estamos passando, e que nos modifica em um ritmo cada vez mais acelerado.
Na medida em que avança, esse processo também acelera, pois cada avanço destranca um novo campo de potencialidade que antes não poderia ser vislumbrado. É um processo análogo ao da evolução biológica, já que a vida se desenvolve num regime de complexificação orgânica exponencial, como representado em símbolos mitológicos como a “árvore da vida”.
Num sobrevoo mais distanciado da nossa realidade cotidiana, vemos que não trata apenas de um processo análogo, mas de fato do mesmo processo. Não existe uma separação realmente rígida entre evolução tecnológica e evolução biológica, ambos podem ser vistos como estágios diferentes do mesmo movimento evolutivo. Aquilo que fez organismos unicelulares se agregarem para formar organismos complexos, iniciando a evolução da vida no planeta, agora invade o âmbito da evolução epigenética através da cultura e da tecnologia humanas, anunciando a emergência de uma nova dimensão evolucionária na Terra.
Mas isso é apenas a continuação avançada do que sempre ocorreu. À medida em que esse processo se complexifica em miríades de ramificações, cada novo salto carrega um potencial maior de transformação e acontece em um intervalo de tempo menor que o anterior, rumo a uma concrescência onde o desenvolvimento tecnológico, que é atual fio de navalha do processo, se dará de forma automática e instantânea. Nesse ponto, é como se a tecnologia assumisse as rédeas do seu próprio desenvolvimento – como o nascimento de uma nova criatura completamente imprevisível e fora dos domínios de controle humano. O mito futurista da máquina que adquire vida própria ganha aqui um fundamento lógico. E a explosão das atividades epigenéticas nos últimos 50 mil anos (que representam nada mais que o último segundo da nossa história evolutiva) é um sintoma de estamos nos aproximando disso.
O que geralmente não é levado em conta nesse tipo de história à la ficção científica é a verdadeira implicação disso na natureza da realidade humana. Considerando que a nossa percepção do tempo é um produto da exposição e processamento de informações pelo cérebro, isso significa que, nesse ponto de infinitas transformações instantâneas, em nossa percepção subjetiva, o que se passa no atual microssegundo de existência será, no próximo, tão antigo quanto a idade da pedra é hoje para nós, e o próximo será tão novo e transformador que nem sequer poderíamos imaginá-lo antes, assim como um primata em evolução nunca poderia imaginar a invenção da internet.
O passado não mais nos preparara para o futuro em nenhum nível, pois mesmo nosso futuro mais imediato é inteiramente desconhecido e imprevisível. Não há mais “farol” para iluminar o caminho à frente. Em outras palavras: Nossas faculdades cognitivas normais entram em colapso.
O tempo é a nossa rota de colisão e fusão com essa estranha entidade psicotecnológica que mantivemos contato ao longo da história. Não apenas nós estamos nos tornando máquinas, mas do ponto de vista das máquinas, elas estão se tornando nós. É um processo simbiótico que dará origem a uma criatura transhumana totalmente diferente de qualquer coisa possível de ser imaginada.
É um grande prazer fazer a minha estreia como colunista aqui no Mundo Cogumelo. Me lembro que o site já era uma referência para mim quando comecei a escrever em um antigo blog: o Enteogenico, em 2009. Segui escrevendo a coluna Portas da Percepção, no Hempadão, a partir de 2010, durante quase 10 anos. E de lá para cá, o movimento psicodélico brasileiro amadureceu e os conhecimentos se tornarem mais amplos e acessíveis. Para que me conheçam um pouco: sou psicólogo, um dos membros fundadores da Associação Psicodélica do Brasil (APB) e atualmente faço meu doutorado em psicologia clínica (PUC-SP) sobre o suporte psicológico às crises induzidas por psicodélicos.
Neste primeiro texto, aqui no mundo cogumelo, vou escrever um pouco sobre uma experiência que tive com cogumelos mágicos em contexto terapêutico, no qual fiquei, durante um pouco mais de seis horas, acompanhado por uma psicóloga e um psicólogo. Estudo o tema da psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos há muitos anos, já tendo realizado grupos de estudo e dado cursos sobre o tema. Parte deste processo, no que tange seu viés coletivo, em especial sobre a integração da experiência psicodélica, foi consolidado em um projeto coletivo no TRIP (Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica), um projeto da Associação Psicodélica do Brasil (https://associacaopsicodelica.org/trip/), que teve o Sandro Rodrigues como idealizador/organizador. Mas como não há regulamentação, não é possível realizar a terapia psicodélica de forma oficial. Por esta razão, no melhor dos casos, posso informar profissionais de saúde que utilizarei meus cogumelos, por meu próprio desejo, e eles podem utilizar um manejo, por meio da uma compreensão de redução de danos e da ética profissional, isto é, não negarem o atendimento. Além, é claro, de depois de qualquer experiência pessoal com psicodélicos, também poderem contribuir com a integração da experiência, caso sejam profissionais capacitados e não sejam preconceituosos.
A experiência narrada foi realizada em 2020. Há algum tempo estava usando apenas microdosagem e/ou minidosagem, tendo feito, inclusive, o protocolo do James Fadiman no primeiro caso. Tal uso cuidadoso se deveu a uma mudança no padrão de uso, desde que tive um quadro de ansiedade no final de 2018, quando me encontrava absolutamente absorvido por uma quantidade de trabalhos e responsabilidades sobre-humanas. Desde então, retornei a psicoterapia e utilizei durante alguns meses um antidepressivo inibidor seletivo de recaptação de serotonina (ISRS), além de manter um uso de ansiolítico em SOS, que logo abandonei. Quando abandonei o antidepressivo, após alguns meses de uso, conforme preconizado e prescrito, iniciei o protocolo de microdosagem de LSD, testados com o reagente de Ehrlich, o que acredito que tenha ajudado a realizar um desmame mais tranquilo do antidepressivo, em especial devido aos efeitos serotoninérgicos (e, quem sabe, à neurogênese) relacionados aos efeitos dos psicodélicos indois.
O uso dos cogumelos não me era desconhecido, embora nunca tenha feito uso regular deles. Desta forma, optei por uma dose de 3g de Psilocybe cubensis desidratados, de uma fonte que sabia que conseguiria cogumelos com um efeito bastante potente. Além disso, sempre estive bastante ciente, pelos usos que já realizei de substâncias psicodélicas, que o fator set-setting-matrix por vezes é mais potente do que um olhar reducionista e quimicocêntrico da dose. Não compactuo da visão, para mim uma bobagem, de achar que a dose forte ou heroica é 5, 7 ou 10g, sem considerar o sujeito e o ambiente de uso. Entre o padrão/genérico e o concreto, podem ocorrer grandes abismos, por razões que não pretendo aprofundar aqui.
Além disso, a escolha pelos cogumelos com psilocibina/psilocina parecia ser uma escolha adequada, já que estudos (GROB et al., 2011; GRIFFITHS et al, 2016; ROSS et al, 2016) demonstram a sua importância para redução de ansiedade, mesmo que em um contexto diferente do meu (nestes estudos a ansiedade teve melhoras, mas os estudos focaram na ansiedade em pacientes com doenças terminais). Na verdade, os cogumelos com psilocibina parecem ter usos terapêuticos em diferentes campos da saúde mental, como discuto neste texto (https://www.cartacapital.com.br/blogs/hempadao/cogumelos-e-saude-mental/).
Durante todo o último período de psicoterapia fui aprendendo diversas formas de manejo da minha ansiedade, assim como mergulhando em minha sombra, nas questões que surgiram do meu si-mesmo e de outros arquétipos e complexos constelados. Tomando consciência, aos poucos, dos meus demônios e potenciais latentes. Mas a questão da ansiedade permanecia lá. Mesmo com ou sem o antidepressivo. Mesmo após tanto tempo de análise e mesmo sem crises que me deixassem atordoado e com a sensação de morte, lá estava ela. E por vezes me incomodava muito. Na verdade, ainda incomoda. E, bem, me parecia que em algum momento seria bom buscar não apenas mecanismos para lidar e fazer ela diminuir, mas olhar ela de frente. Encontrar a sua raiz ou a sua finalidade. Para que ela precisava se postar ali? E por que, afinal, eu não tinha encontrado uma forma de integrar aquilo que fazia o sintoma surgir… Como ir além da razão, do racional e olhar a ansiedade de frente? Sonhos e imaginação ativa certamente eram formas que eu já utilizara. Mas, ainda assim, sentia que não tinha entrado realmente neste espaço e que era necessário ir além. Além da busca de superar a ansiedade e de cura, havia ainda uma busca, paradoxal, de viver o que tivesse que ser vivido durante a experiência psicodélica, de forma a não me fechar em uma expectativa que pudesse dificultar o mergulho no inconsciente. É importante escrever, sobre este tópico, que como psicólogo junguiano, tenho a compreensão de que a relação entre consciente e inconsciente seja marcada pela compensação.
Na psicologia analítica entende-se que, ao longo do processo de vida de uma pessoa, seu crescimento e desenvolvimento, o uso contínuo de determinadas funções psicológicas (pensamento-sentimento-sensação-intuição) levam a unilateralidade da consciência, a padrões de conduta que excluem uma parcela dos conteúdos e pulsões humanas ao inconsciente, seja por uma via de repressão ou pela pouca atenção disponibilizada para estes. A unilateralidade, aponta Jung (1958/2006, par 138): “é uma característica inevitável, porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade. A unilateralidade é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente”. Dito de outro modo, se eu ficar focado demais em uma leitura racional/conceitual do mundo, provavelmente vou deixar de observar, continuamente e cada vez mais, certas dimensões afetivas ou avaliativas sobre o mesmo mundo/fenômeno que eu me relacionava/observava. O direcionamento da consciência é compensado ou complementado pelo inconsciente, tencionando a produção de símbolos. A posição da pessoa diante do inconsciente e da emergência de imagens carregadas de afetos, até então negados ou não reconhecidos, é fundamental para o desenvolvimento deste processo. O apoio do terapeuta adequadamente treinado também seria determinante para ajudar o paciente a efetivar a reunião de consciente e inconsciente e para chegar a uma nova atitude (JUNG, 1958/2006).
Após escrever um pouco sobre o set, isto é, sobre as minhas expectativas, mas que também envolvem a minha psique como um todo, é preciso escrever sobre o setting.
O uso dos cogumelos foi equivocadamente feito antes de chegar no espaço que seria realizado o uso, em um consultório. Quando entrei no carro para seguir com o um dos terapeutas para o consultório, resolvi tomar as 10 capsulas de 300mg de cogumelos mágicos. Por sorte não tivemos trânsito e chegamos no consultório cerca de 15 minutos depois. O efeito demorou menos de 20 minutos para começar e já começou bastante forte. Quando chegamos no consultório não houve muito tempo para preparar o som e o que fosse necessário para a viagem. Deu tempo, mas foi tudo por pouco. Pensei em outras viagens que o tempo para fazer efeito demorou bem mais, cerca de 30 a 40 minutos.
M.A.P.S.
Um dos pontos centrais era a escolha do setting musical. Para tal manifestação da mente, foram escolhidas as músicas que a Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) utiliza em psicoterapia aliada ao uso de MDMA. As músicas foram muito boas e importantes durante a viagem, mas em alguns momentos é como se estivessem “fora de tempo”, em especial no final da sessão, pensando nos momentos da terapia psicodélica desde o período da latência, passando pelo platô até a descida do efeito. Ex: músicas muito tensas ou aceleradas, que podem ser propícias para o momento do platô, podem ser pouco adequadas no momento que se espera uma saída da viagem, mais tranquila, que seria o fechamento daquela experiência.
Cabe destacar que eu me mantive com uma espécie de venda nos olhos (na verdade um tecido) durante a experiência e fiquei, boa parte dela, deitado em um sofá, enquanto escutava a música.
Genericamente, a experiência se desenvolveu em cenas. A cada música eu entrava em um território, em uma narrativa. Afetivamente foi tudo muito impactante. Eu coloquei as músicas em uma caixa bluetooth e acabei preferindo ficar sem fones de ouvido. Algumas destas narrativas, que vinham com a música, eram mais assustadoras, outras mais agradáveis. Em tempo, quando abria o olho (imagino que tenha ficado cerca de 2 horas sem abri-los), tudo se movia a todo tempo. Via as energias seguindo meus movimentos e o chão se conectando [cada fragmento] e movendo. Também pareciam padrões (o chão).
Um primeiro impacto foi pensar o quão autorizado eu estaria para falar o que eu vivia, para expressar as imagens do mistério/sagrado para os terapeutas. E o quão autorizados estávamos para realizar aquela terapia/cerimônia. Então eu percebi que eu não estava em uma sala de consultório, mas que eu estava, paradoxalmente, em um templo sagrado. O consultório deveria ser um templo para poder receber as experiências psicodélicas. Se não fosse assim, não havia autorização para conduzir a experiência. Essa mensagem foi sentida como um aprendizado, tanto na experiência, quanto após a mesma.
A psilocibina já é conhecida – no contexto da ciência – em catalisar experiências religiosas desde a pesquisa de doutorado do psiquiatra Walter Pahnke, orientada pelo psicólogo Timothy Leary em 1962, quando Pahnke forneceu psilocibina a um grupo experimental no Good Friday Experiment. No retorno das pesquisas com psicodélicos, uma nova experiência de campo foi realizada, desta vez por Roland Griffiths, Johnson e Maclean, que observaram que a experiência com psilocibina produz uma mudança de personalidade nos usuários. Os pesquisadores já sabiam que, de acordo com as pesquisas de Metzner em 1963 e McGlothlin e Arnold, de 1971, que administrada em condições de suporte, 50 a 80% dos participantes reivindicavam mudanças benéficas na personalidade, valores, atitudes e comportamentos.
Para Griffiths e outros (2011) a experiência positiva da psilocibina, para um impacto de longo termo, depende da profundidade dos insights e de experiências “tipo-místicas”, como as descritas por Pahnke em sua experiência do Good Friday Experiment. Os temas centrais da experiência mística, como definida por Stace e Hood são: sentimentos de unidade e interconexão com todas as pessoas e coisas, um senso de sagrado, sentimentos de paz e alegria, sensação de transcender o tempo e o espaço normais, inefabilidade, e uma crença intuitiva de que a experiência é a fonte de verdade objetiva sobre a natureza da realidade.
Então toda aquela psicoterapia precisava dialogar com o sagrado. Parece que precisaria ocorrer uma conexão entre a ciência e os saberes tradicionais. Não é que eu ou os psicólogos precisassem ser xamãs, mas é como se tivéssemos que estar conectados com aquele saber ancestral.
Até duas horas após o início do efeito (10:30 às 13h aprox. – primeira vez que vi a hora) certamente foram as viagens mais fortes. Foi curioso (e falei muitas vezes essa palavra, sem saber me expressar melhor), que no início da experiência é como se eu já tivesse recebido todas as informações que eu buscava. Vinham insights como mensagens de autoridade [que eu tentava expressar] e eu falava, mas muito baixo, e para os terapeutas parecia mesmo que eu estava falando comigo mesmo, o que era verdade, mas ao mesmo tempo eu tentava narrar – sem sucesso – o que estava acontecendo. E meus braços dançavam no ar, em uma busca de manter aquela conexão viva e alinhada.
Uma mensagem em particular que foi muito forte e que eu recebi foi que o segredo era me aceitar, inclusive com a minha ansiedade. Isso foi muito impactante e impressionante, quer dizer, a ansiedade compreendida como algo que me constituía e que eu deveria aceitar, olhar com carinho. Não é nada simples, mas posso dizer que esse posicionamento fez com que eu lidasse melhor com ela e evitasse o uso de medicações.
Uma imagem muito forte foi a de uma cobra. Me recordo de mais de uma vez ver os olhos da cobra, uma cobra ameríndia. Quando eu a via, eu percebia que estava entrando novamente na experiência, entrando no mundo dela. No mundo ameríndio e tradicional. A serpente era uma espécie de guardiã do espaço sagrado. Embora seus olhos fossem amedrontadores, era uma guardiã do mundo transcendental, que permitia ver além dos olhos. Depois cheguei a me lembrar, no tocante a serpente/cobra, das pinturas de Alexandre Segrégio (https://alexandreluiz.art.br/galeria/#visionario). Ao lado, um desenho que iniciei depois, buscando me aproximar da imagem.
A entrada era uma imersão no inconsciente coletivo e na autonomia de suas imagens arquetípicas e míticas, que me traziam fortes afetos. Era como se, ao mesmo tempo, tudo estivesse conectado a minha vida pessoal, mas aquelas imagens e cenas expressassem algo muito além de mim.
Em um momento senti como se estivesse passando por uma experiência de nascimento de um terapeuta, como se não contasse, de alguma forma, os anos anteriores como psicoterapeuta e eu estivesse ali passando por uma espécie de ritual de nascimento. Não senti propriamente uma morte. Tampouco me vi nascendo, mas senti essa energia e pensamentos (como se não fossem meus, mas da experiência, desta voz) que eu estava ali nascendo como terapeuta. Eu estava no alto, em um vácuo, para renascer, mas as imagens passavam rápido. Parte me parecia vago, como se eu tentasse/precisasse entender, e parte parecia claro que se tratava deste processo.
É importante recordar aqui do set que mencionei no início do texto. As expectativas que modulam a experiência psicodélica, as imagens arquetípicas que são nela constelados, dependem não apenas das expectativas conscientes, mas igualmente das inconscientes. Era óbvio que, como aquela era a minha segunda experiência psicodélica em contexto terapêutico, eu tivesse uma grande pré-ocupação com a minha formação enquanto profissional e terapeuta. E, aparentemente, este tema periférico se tornou central durante este mergulho psíquico. O processo de morte e renascimento, ou mesmo de nascimento simbólico, são temas arquetípicos, tratados nas mais diversas culturas, mitologias e religiões. Entre os Fang no Congo e no Gabão, por exemplo, ao utilizarem a Tabernantha iboga, psicodélico que contém ibogaina, falam da ocorrência de uma “pequena morte”, por meio da qual a pessoa se reúne aos seus ancestrais que são acompanhados ao reino dos vivos, trazendo generosidade (DE RIOS, 2005).
Em processos de transformação há a importância de um espaço de suporte e fechamento, denominado na alquimia de vas herméticum. Esse vaso alquímico, hermeticamente fechado, facilita a imersão nas chamas dos afetos e do inconsciente. A imersão, por vezes, é sentida como provocando um aniquilamento do eu, para um novo renascimento. No meu caso, não senti esta morte do eu. Mas senti este nascimento como algo muito importante para o meu desenvolvimento enquanto ser humano e enquanto psicoterapeuta. O vaso alquímico, no contexto psicoterapêutico, pode ser comparado ao espaço seguro – no qual o sigilo é resguardado – no qual ocorre a transformação.
Chegando no momento da saída do platô da experiência psicodélica, posso dizer que eu me sentia mais cansado e com medo. Havia um medo sub-reptício do quanto eu suportaria daquela intensidade. E o medo de não voltar já começava a aparecer à consciência… Então eu lembro de ver muito impactado um portão (com duas portas) vermelho, no meio do mar, que dava acesso ao Self e eu não tive coragem de seguir, porque é como se, caso eu abrisse aquela porta, a experiência se tornaria muito mais louca e impactante e também poderia ter muito menos a presença do Eu. Me assustei com isso, com o medo da loucura, e não abri a porta. Senti depois que isso pode ter impactado negativamente a minha experiência (não abrir). Por outro lado, que eu poderia não estar pronto para aquele encontro em particular, pois, por vezes, uma epifania pode cegar ou até matar (amplificação).
Qualquer processo de transformação pode aumentar a ansiedade e o medo, pois é da própria mudança da identidade que está em jogo. Stanislav Grof (1980) expõe que é importante encorajar a pessoa a uma completa rendição experiencial sem controlar ou bloquear o processo em decorrência de reservas ou incertezas cognitivas (GROF, 1987). Neste momento, entretanto, parecia muito difícil, mesmo que me sentisse cuidado, ir além. Parte da experiência posterior com as imagens, foi já de um cansaço mental. Eu via fluxos e não conseguia lembrar depois deles ou acompanhá-los plenamente. Mantive a consciência, mas sinto que neste momento já havia algum rebaixamento de consciência. Só conseguia seguir os fluxos, que também já eram mais brandos (por outro lado).
Várias conversas foram travadas com os terapeutas na medida em que eu ia voltando, e as vezes sentia a necessidade de parar um pouco de conversar, porque era muito cansativo. E eu voltava a deitar e fechar os olhos. Mas se não entrava na experiência, também era cansativo. Na compreensão de Grof (1980), em LSD Psychotherapy, o melhor procedimento teria sido estimular o meu retorno a experiência, mesmo que por meio da hiperventilação. Mesmo que a terapia não tenha sido conduzida desta forma, é importante recordarmos que o suporte a experiências psicodélicas ainda é um campo experimental e muito importante ser desenvolvido. Grande parte das pesquisas contemporâneas enfatiza muito mais os resultados quantitativos e dá pouca atenção a parte qualitativa e dos manejos das sessões com psicodélicos em psicoterapia.
Retorno. Neste final, no momento de descida da experiência, eu ia a um pátio algumas vezes e foi bom, porque pude ver o céu e me sentir bem. Mas posso dizer que meu sentimento ficou muito instável. Me sentia bem, me sentia mal, me sentia com medo, me sentia como um guerreiro, seguro, me sentia desconectado, me sentia de muitas formas. Certamente este foi o momento mais difícil de toda a sessão. Em alguns momentos eu dancei (pouco tempo), com os efeitos mais fortes (foi agradável) e depois tive momentos que tive vontade de dançar, cheguei a querer dançar com os terapeutas, que eles dançassem também, mas me senti afastado. Senti que era uma necessidade minha e não deles. Mas isso fez com que eu sentisse estranho (na segunda vez, que a experiência era menos intensa) e senti que o eu estava inibindo aquele processo. A consciência racional que retornava acabava bloqueando parte daquela experiencia de entrega necessária. Senti como se fosse estranho eu estar dançando no meio do consultório sozinho. Cheguei a desenhar, mas tudo que eu fazia não alterava a sensação de estranhamento e alguma solidão. Eu me sentia muito frágil e pouco seguro de sair dali, enquanto pensava na importância da minha família na minha vida e o quanto eu gostaria de estar bem para estar com ela. Enquanto isso, em uma experiência um pouco mais agradável, o tapete do consultório se tornou um enorme muro de metal, com alguns seres andando. Era um resíduo da trip que retornava, por vezes mais forte. Fiquei bastante tempo olhando aquele tapete alquímico, sem buscar qualquer interpretação.
Após cerca de 4 horas eu fiquei extremamente cansado. O efeito já era periférico, mas o fato de insistir em conversar não era claro se era o melhor a fazer. Por um lado, eu não conseguia retornar completamente a experiência, e permanecia com um humor desagradável e com uma sensação de desamparo bastante profunda, mas sem objeto. Ir embora ou até ir à rua parecia algo muito difícil… Em algum momento percebi que ia ter que lidar com o estado emocional desagradável que eu estava, pois não poderia continuar ali para sempre e não era bom. A despedida foi um pouco triste, do espaço e da terapeuta. Eu não tinha animo para dar uma despedida melhor. Para sair animado de lá, apesar de ter a clareza que tinha sido a uma das experiências psicodélicas mais profundas que eu tinha experimentado.
Matrix. A matrix, de acordo com Betty Eisner (1997), envolve o pré e o pós-experiência psicodélica. Ou seja, as relações ambientais mais amplas que o setting, incluindo amigos e familiares. O modo de suporte dos amigos e familiares pode, de acordo com esta perspectiva de Eisner, alterar o próprio resultado da terapia psicodélica.
Fui me sentar em uma padaria para tomar um suco com o outro terapeuta e comer um pão com ovo. A possibilidade de sair de mim e poder perguntar como ele estava e outras coisas, reduziu levemente os sentimentos difíceis que estava vivendo. Depois disso, fui muito bem acolhido em casa. Embora a minha companheira não use substâncias psicodélicas, ela estava preparada já, ciente da experiência, e havia ligado para ela e falado como estava me sentindo, mais ou menos às 16:30h, um pouco antes de sair da psicoterapia. Tinha pensado em ver algo bem light na televisão (série), preferencialmente alguma série que a minha filha pré adolescente gosta, algo infantil-adolescente. Acabou que elas não foram ver série e vi um episódio de Witcher com a minha companheira, foi bom ela estar comigo e me senti melhor.
Pós-experiência. Fiquei com dor de cabeça a noite até a manhã seguinte. Houve um aumento da ansiedade, que foi melhorando aos poucos. Embora eu estivesse muito cansado, tive dificuldades para dormir e acordei, na verdade me levantei da cama, sincronicidade! às 4:20h da manhã. Fiquei no CPU e depois consegui dormir mais umas duas horas. Foi bom no dia seguinte não ter compromissos mais duros, pois me senti bastante cansado ainda e com instabilidade no humor (embora cada vez menor).
Os sentimentos negativos foram melhorando e três a quatro dias depois eu já estava me sentindo realmente bem. A experiência trouxe muito o que trabalhar posteriormente na psicoterapia regular e não psicodélica e de forma muito mais profunda do que o habitual. Hoje consigo olhar de forma muito positiva para trás, mesmo que tenha sido muito difícil e duro, inclusive pela piora inicial que passei nos dois dias pós-sessão. Por outro lado, tratou-se de um mergulho que eu considero que não seria viável na psicoterapia regular e que promoveu uma ampliação de consciência significativa.
Integração. Eu costumo a dizer que a sessão psicodélica, durante uma prática psicoterapêutica, é onde as coisas começam e não onde as coisas terminam. O impacto terapêutico dos psicodélicos, ao que parece, está relacionado tanto ao efeito subjetivo e fisiológico da substâncias, quanto as posteriores compreensões e integrações da experiência. Isso envolve o quanto nos transformamos na nossa vida diária e em nosso modo de ser e estar no mundo, mesmo que isso nem sempre seja trivial ou óbvio.
Na psicologia analítica, entende-se por integração uma operação psíquica de superação da dualidade e tensão entre consciente e inconsciente, por meio da elaboração de símbolo(s) que permitam incorporar porções cindidas da personalidade. Ocorre, neste caso, um maior equilíbrio psíquico e com a ampliação da consciência, a continuidade de um processo direcionado à totalidade. Em alguns autores do campo da psicoterapia com psicodélicos, a integração já se refere a um aspecto mais simples e prático, isto é, o quanto você transformou ou alterou a sua atividade de vida diária, graças as experiências psicodélicas que viveu. Daí que este processo pode ser ajudado tanto em psicoterapia individual, quanto em grupo, por outros psiconautas. Na verdade, ambas as concepções estão muito relacionadas.
Era isso o que tinha para contar! Espero que tenham gostado e que, em um futuro não muito distante, já tenhamos a psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos regulamentada no Brasil!
Referências:
BESERRA, F. R. Experienciando a Arte Visionária: uma compreensão junguiana da interação de estudantes com a obra de Alex Grey. 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2014.
DE RIOS, M. D. Rejoinder: the bad trip revisited. Anthropology of Consciousness. v. 16, n. 1, 2005, p. 45-48.
EISNER, B. Set, setting and matrix. Journal of Psychoactive Drugs, v. 29, n. 2, 1997, p. 213-216.
GRIFFITHS, R, R. et al. Psilocybin produces substantial and sustained decrease in depression and anxiety in patients with life-threatening cancer: a randomized double-blind trial. J. Psychopharmacol, v. 30, 2016, p. 1181–1197.
GRIFFITHS, R. R. Psilocybin occasioned mystical-type experiences: Immediate and persisting dose-related effects. Psychopharmacology. Berl. 2011; v. 218, n. 4, p. 649–665.
GROF, S. Além do cérebro: nascimento, morte e transcendência em psicoterapia. São Paulo: McGraw-Hill, 1987.
GROF, S. LSD psychotherapy. California: Hunter House, 1980.
JUNG, Carl Gustav. A função transcendente In: A natureza da psique. Obras Completas, v. VIII/2 – 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 1958/2006b. p. IX-24.
MACLEAN, K. A.; JOHNSON, M. W.; GRIFFITHS, R. R. Mystical Experiences Occasioned by the Hallucinogen Psilocybin Lead to Increases in the Personality Domain of Openness. J Psychopharmacol. nov. 2011; v. 25, n. 11, p. 1453–1461.
ROSS, S. et al. Rapid and sustained symptom reduction following psilocybin treatment for anxiety and depression in patients with life-threatening cancer: A randomized controlled trial. J Psychopharmacol, 2016, v. 30, p. 1165–1180.
O texto original em inglês pode ser encontrado em Psychedelic Library
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Sem a compreensão do desejo profundo que os seres humanos têm de autotranscendência, da relutância natural que experimentam em tomar o caminho duro e difícil da ascensão espiritual, e da consequente procura de uma falsa libertação ou abaixo ou sob um aspecto de sua personalidade, não poderemos entender a época em que vivemos ou mesmo a história em geral, a vida como foi vivida no passado e como o é em nossos dias. Por essa razão, proponho discutirmos alguns dos sucedâneos mais comuns da Graça, nos quais e através dos quais homens e mulheres têm tentado escapar da consciência torturante de serem apenas eles mesmos.
Atualmente, na França, existe um comerciante de bebidas alcoólicas para cada cem habitantes. Nos Estados Unidos, há provavelmente pelo menos um milhão de alcoólatras inveterados, além de um número bem maior de beberrões contumazes, cuja doença ainda não se tornou fatal. Quanto ao consumo de inebriantes no passado, não temos dados estatísticos precisos. Na Europa ocidental, entre os celtas e os teutões, durante toda a Idade Média e o início da época moderna, o consumo do álcool era talvez maior do que é hoje. Enquanto tomamos chá, café ou soda, nossos ancestrais se refrescavam com vinho, cerveja, hidromel e, séculos depois, com gim, brandy e “usquebaugh”.[104] Beber água regularmente era uma penitência imposta aos malfeitores, ou então considerada pelos religiosos, juntamente com o vegetarianismo ocasional, como uma mortificação muito severa. Não consumir inebriantes era uma excentricidade bastante marcante, a ponto de despertar comentários e apelidos depreciativos. Daí tais sobrenomes como o italiano Bevilacqua, o francês Boileau e o inglês Drinkwater.
O álcool é apenas uma das muitas drogas utilizadas pelos seres humanos como meio de libertação para o eu insulado. Entre os narcóticos naturais, estimulantes e alucinógenos, não há um cujas propriedades não sejam conhecidas desde tempos imemoriais. Pesquisas modernas nos deram um bom número de novos sintéticos, mas, no que se refere aos venenos naturais, simplesmente desenvolveram métodos mais aperfeiçoados de extração, concentração e nova composição dos elementos já existentes.
Do ópio ao curare, do cânhamo indiano à cocaína dos Andes e ao fungo siberiano, todas as plantas, arbustos e fungos capazes de entorpecer, excitar ou provocar visões quando ingeridos, já tinham sido descobertos e utilizados de forma sistemática. O fato é significativamente estranho; pois parece provar que sempre e em todos os lugares os seres humanos sentiram a precariedade absoluta de suas existências pessoais, a miséria de serem apenas o seu ser insulado e não outra coisa maior, alguma coisa, nas palavras de Wordsworth, “far more deeply interfused”.[105] Explorando o mundo à sua volta, o homem primitivo “experimentou todas as coisas que o cercavam e se fixou no bem”. No que se refere a autopreservação, o bem era cada fruto e folha comestíveis, cada semente, raiz e noz salubres. Mas, em outro contexto — o da insatisfação pessoal e do desejo de autotranscendência —, o bem era tudo contido na natureza por meio do que a consciência individual pudesse ser transformada.
As mudanças provocadas pelas drogas podem ser manifestamente para pior, podem causar mal-estar no momento e vício no futuro, assim como degeneração e morte prematura. Nada disso importa. Só o que interessa é a consciência, pelo menos por alguns momentos, por uma ou duas horas que seja, de ser alguém, ou, na maioria dos casos, ser outra coisa que não o ser insulado.
“Eu vivo, ou melhor, não sou eu que vivo, mas o vinho, o ópio, a mescalina e o haxixe vivem em mim.” Atravessar os limites do eu insulado representa uma tal libertação, que mesmo quando se obtém a autotranscendência por meio de náuseas que levam ao delírio, de paralisias que levam à alucinação e ao estado de coma, a experiência com drogas sempre foi considerada pelos primitivos e mesmo pelos civilizados como intrinsecamente divina. Êxtases através do uso de inebriantes constituem ainda uma parte essencial da religião de muitos africanos, sul-americanos e polinésios. Foi também outrora, o que fica provado em documentos que se conservaram, parte não menos essencial da religião dos celtas, teutões, gregos, povos do Oriente Médio e dos conquistadores arianos da Índia. A ideia não se reduz a que a “cerveja justifica melhor que Milton os objetivos de Deus em relação aos homens”. A cerveja é o deus. Entre os celtas, Sabázio era o nome divino que se dava à alienação sentida quando sob os efeitos da cerveja. Mais ao sul, Dionísio era, entre outras coisas, a concretização sobrenatural dos efeitos psicofísicos provocados pelo excesso de vinho. Na mitologia védica, Indra era o deus de um entorpecente chamado Soma, hoje em dia desconhecido. Herói exterminador de dragões, Indra era a projeção aumentada no céu do não eu estranho e glorioso experimentado pelo intoxicado. Identificado com a droga, ele se torna, como Soma-Indra, a fonte da imortalidade, o mediador entre o humano e o divino. Nos dias de hoje, a cerveja e os demais tóxicos, atalhos para a autotranscendência, não são mais adorados como deuses. Houve uma mudança na teoria, mas não na prática; pois muitos milhões de homens e mulheres civilizados continuam a prestar sua devoção, não ao espírito libertador e transfigurador, mas ao álcool, ao haxixe, ao ópio e seus derivados, aos barbitúricos e outros produtos sintéticos acrescentados ao velho catálago de venenos capazes de provocar a autotranscendência. Em cada caso, é claro, o que parece um deus é na verdade um demônio, o que simula liberação é de fato escravidão. A autotranscendência é invariavelmente descendente, no sentido do subumano, da degradação pessoal.
Do mesmo modo que o uso de inebriantes, a sexualidade primária, praticada por puro prazer e afastada do amor, foi outrora um deus, adorado não só como princípio de fecundidade, mas como manifestação do Não Ser absoluto, imanente em todo o ser humano. Teoricamente, a sexualidade primária há muito deixou de ser um deus. Mas na prática ainda pode se vangloriar de um número incontável de adeptos.
Existe uma sexualidade primária que é inocente, e outra que é moral e esteticamente sórdida. D. H. Lawrence escreveu de maneira encantadora sobre a primeira; Jean Genet escreveu detalhadamente, e com uma força terrível, sobre a segunda. A sexualidade do Éden e a sexualidade do esgoto — ambas têm o poder de levar o indivíduo além dos limites de seu eu insulado. Mas a segunda e (como tristemente se deduz) mais comum variedade leva aqueles que com ela compactuam ao mais baixo nível de subumanidade, desperta a consciência e deixa uma lembrança de mais total alienação do que a primeira.
Eis aí, para todos aqueles que sentem necessidade de escapar de sua identidade aprisionada, a constante atração da libertinagem e de equivalentes exóticos da libertinagem, tais como os descritos no decorrer desta narrativa.
Na maioria das sociedades civilizadas, a opinião pública condena a depravação e o vício das drogas como sendo errados do ponto de vista ético. E à reprovação moral são somados o desencorajamento fiscal e a repressão legal. O álcool é altamente taxado, a venda de narcóticos é proibida em toda parte e certas práticas sexuais são consideradas criminosas. Mas quando passamos do vício dos entorpecentes e da sexualidade primária ao terceiro meio de obter a autotranscendência descendente, encontramos da parte dos moralistas e legisladores uma atitude bastante indulgente. Isso parece ainda mais espantoso quando se pensa que o delírio das multidões, como podemos denominar, é muito mais perigoso à ordem social, constitui uma ameaça muito mais dramática a esta tênue crosta de decência, razão e tolerância mútua que constitui uma civilização, do que a bebida ou a libertinagem. Na verdade, um hábito generalizado e já longamente arraigado de excesso de entrega total ao prazer ligado à sexualidade pode resultar, como argumentou J. D. Unwin,[106] na redução do nível de energia de uma sociedade inteira, tornando-a, por conseguinte, incapaz de atingir ou manter um alto nível de civilização.
Do mesmo modo, o vício das drogas, se suficientemente difundido, pode diminuir a eficiência econômica política e militar da sociedade em que prevalece. Nos séculos XVIII e XIX, o álcool era a arma secreta dos traficantes de escravos europeus; a heroína, a dos militares japoneses no século xx. Embriagado, o negro era uma presa fácil. Quanto ao chinês viciado, podia-se ter certeza de que não causaria problemas ao conquistador. Mas esses casos são excepcionais. Deixada a seu arbítrio, uma sociedade geralmente tende à aceitação do seu veneno favorito. O entorpecente é um parasita no organismo político, mas um parasita que seu hospedeiro (falando num sentido metafórico) tem forças suficientes e bastante bom senso para manter sob controle. E o mesmo se aplica à sexualidade. Nenhuma sociedade que baseasse suas práticas sexuais nas teorias do Marquês de Sade poderia sobreviver, e na verdade nenhuma sociedade nem sequer se aproximou de tais práticas. Até mesmo os mais liberais entre os paraísos polinésios possuem regras e regulamentos imperativos categóricos e mandamentos. Contra os excessos da sexualidade, assim como do vício das drogas, as sociedades parecem saber se proteger com bastante sucesso. As defesas contra os delírios das multidões e suas consequências desastrosas parecem ser, na maioria das vezes, muito menos apropriadas. Os moralistas profissionais que investem contra a embriaguez são estranhamente reticentes sobre o vício igualmente repugnante da intoxicação nas massas — da autotranscendência descendente no sentido da subumanidade provocada pelo processo de se reunir em multidão.
“Onde dois ou três se reúnem em meu nome, lá estou entre eles.” Entre duzentos ou trezentos a presença de Deus se torna mais problemática. E quando os números atingem o milhar, ou vários milhares, a probabilidade de Deus estar lá, na consciência de cada indivíduo, declina até o ponto de se extinguir por completo. Porque a natureza de uma multidão excitada (e toda multidão é automaticamente autoexcitante) é tal que, onde dois ou três mil se reúnem, há ausência não somente da divindade, mas mesmo de traços mínimos de humanidade. O fato de ser um na multidão liberta o homem da consciência de ser um eu insulado e leva-o a um estágio infrapessoal, onde não existe responsabilidade, bem ou mal, necessidade de pensamento, julgamento ou discernimento — somente um sentimento vago de estar junto, o sentimento de uma excitação partilhada, de uma alienação coletiva. E a alienação é mais prolongada e menos cansativa do que a provocada pela libertinagem; a manhã seguinte, menos deprimente do que a que se segue à autointoxicação pelo álcool ou morfina. Além disso, pode-se aderir ao delírio da multidão não somente sem sentimento de culpa, mas até na maioria dos casos com o positivo esplendor da consciência limpa. Porque, longe de condenar a autotranscendência descendente provocada pela intoxicação em meio à massa, os líderes da Igreja e do Estado encorajam-na ativamente sempre que vier a servir a seus próprios fins. Individualmente, assim como nos grupos coordenados e com um objetivo comum que constituem a sociedade, homens e mulheres demonstram uma certa capacidade para o pensamento racional e para o livre-arbítrio à luz dos princípios morais. Reunidos em multidão, os mesmos homens e mulheres comportam-se como se não possuíssem razão nem livre-arbítrio. A intoxicação provocada pela multidão os reduz a uma condição infrapessoal e de irresponsabilidade antissocial. Drogados pelo veneno misterioso que toda multidão excitada secreta, caem em um estado de alta sugestionabilidade, semelhante ao que se segue a uma injeção de sódio amital ou à indução, seja por que meio for, a um leve transe hipnótico. Enquanto estiverem nesse estado, acreditarão em qualquer bobagem que lhes gritarem e responderão a qualquer ordem ou comando que lhes derem, por mais criminoso, louco ou sem sentido que seja. Para os indivíduos sob a influência do veneno secretado pelas massas, “tudo que eu repetir três vezes é verdade” —[107] e o que eu disser trezentas vezes é a revelação, é a palavra de Deus por inspiração direta. É por essa razão que os homens que detêm a autoridade — os padres e os dirigentes do povo — nunca proclamaram virtualmente a imoralidade dessa forma de autotranscendência descendente.
Na verdade, os delírios de massas provocados pelos membros da oposição em nome de princípios heréticos foram sempre denunciados pelos que estão no poder. Mas aqueles provocados por agentes governamentais, em nome da ortodoxia, são um assunto totalmente diferente. Todas as vezes em que pode servir aos interesses dos homens que controlam o Estado e a Igreja, a autotranscendência horizontal pela intoxicação das massas é considerada legítima e altamente desejável. Romarias e reuniões políticas, manifestações religiosas e paradas patrióticas — essas coisas são eticamente corretas se se tratarem de “nossas” romarias, “nossas” reuniões, manifestações ou paradas. O fato de a maioria dos que tomam parte nessas atividades ficar temporariamente desumanizada pelo veneno coletivo é de pouca importância, se comparado com o fato de que sua desumanização pode ser usada para consolidar os poderes políticos e religiosos dominantes.
Quando o delírio das massas é explorado em beneficio do governo e das Igrejas ortodoxas, os exploradores são sempre muito cuidadosos em não deixar a intoxicação ir muito longe. As minorias governantes aproveitam-se do desejo ardente que sentem os seus governados pela autotranscendência descendente para, em primeiro lugar, distraí-los e em seguida colocá-los num estado de não individualidade altamente sugestionável. Cerimônias políticas e religiosas são bem recebidas pelas massas, como oportunidades de se embriagarem com o veneno das multidões; e por seus governantes, como ocasiões de implantar ideias em mentes que cessaram momentaneamente de ter capacidade de raciocínio ou de livre-arbítrio.
O sintoma derradeiro de intoxicação das massas é uma violência maníaca. Exemplos de delírios de multidões que culminam em destruição gratuita, em automutilação brutal, em selvageria fratricida sem objetivo e contra os interesses elementares de todos os envolvidos são encontrados em quase todas as páginas dos livros dos antropólogos e — um pouco menos frequentemente, mas com desoladora regularidade — nas histórias mesmo das mais adiantadas civilizações. A não ser quando desejam liquidar com uma minoria impopular, os representantes do Estado e da Igreja são prudentes em não provocar um furor capaz de escapar de seu controle. Tais escrúpulos não constrangem o líder revolucionário que odeia o status quo e que só tem um desejo: criar um caos sobre o qual possa — quando tomar o poder — impor um novo tipo de ordem. Quando o revolucionário explora essa ânsia de autotranscendência descendente, vai até o limite mais frenético e demoníaco. Para homens e mulheres desgostosos de serem seres insulados e cansados das responsabilidades que têm como membros de um grupo humano com determinados objetivos, ele oferece oportunidades animadoras de “livrar-se disso tudo” durante paradas, manifestações e reuniões públicas. Os departamentos de organizações políticas são grupos objetivos. Uma multidão é o equivalente social do câncer. O veneno que ela secreta despersonaliza seus membros até o ponto de começarem a agir com uma violência selvagem da qual em seu estado normal seriam inteiramente incapazes. O revolucionário encoraja seus seguidores a manifestar esse derradeiro e pior sintoma de intoxicação das massas e então passa a dirigir sua fúria contra os inimigos, os que detêm o poder econômico, político e religioso.
Nos últimos quarenta anos, as técnicas utilizadas na exploração do desejo do homem em relação a essa forma mais perigosa de autotranscendência descendente alcançaram um extremo de perfeição jamais visto na história. Para começar, há mais pessoas por milha quadrada do que em qualquer outra época, e os meios de transporte para arrebanhar grandes grupos e, percorrendo enormes distâncias, concentrá-los em um único edifício ou condomínio são muito mais eficientes que no passado. Enquanto isso, mecanismos novos e outrora inimagináveis para animar as multidões foram inventados. Existe o rádio, que ampliou enormemente o alcance da voz estridente do demagogo. Há o alto-falante. amplificando e repetindo incessantemente a música violenta que expressa os ódios de classe e o nacionalismo agressivo.
A câmera (da qual já se disse ingenuamente que “não pode mentir”) e seus frutos: o cinema e a televisão; esses três tornaram a concretização de fantasias tendenciosas absurdamente fácil. E há finalmente a maior de nossas invenções sociais, a educação gratuita e compulsória. Todos sabem ler e estão portanto à mercê dos propagandistas, tanto do governo quanto do comércio, que possuem as fábricas de papel, de máquinas de linotipo e de prensas rotativas. Junte uma turba de homens e mulheres previamente condicionados pela leitura diária de jornais; submeta-os a uma orquestra com amplificadores, luzes brilhantes e o discurso de um demagogo que (como acontece com todos os demagogos) é ao mesmo tempo explorador e vítima da intoxicação das massas, e em pouco tempo você pode reduzi-los a um estado de subumanidade. Nunca tão poucos foram capazes de transformar tantos em tolos, maníacos e criminosos.
Na Rússia comunista, na Itália fascista e na Alemanha nazista, os exploradores da tendência fatal da humanidade para a intoxicação das massas têm seguido o mesmo método. Quando em oposição revolucionária, encorajaram a multidão sob sua influência a se tornar destrutivamente violenta. Mais tarde, quando tomaram o poder, só permitiram à intoxicação das massas se expandir livremente em relação a estrangeiros e bodes expiatórios escolhidos. Tendo alcançado um status quo que desejavam manter, passaram então a controlar a descida até a subumanidade, conservando-a no ponto ideal aquém da agitação. Para esses neoconservadores, a intoxicação das massas tornou-se daí em diante de valor inestimável como um meio de aumentar a sugestionabilidade dos indivíduos e assim torná-los mais dóceis às manifestações de autoritarismo. O melhor antídoto conhecido contra o pensamento livre é estar em uma multidão. Daí a repulsa total dos ditadores à “psicologia pura” e à vida particular.
Drogas, sexualidade primária e intoxicação das massas — são esses os três caminhos mais conhecidos para a autotranscendência descendente. Há muitos outros, não tão trilhados quanto essas estradas em declive, mas levando não menos certamente para o mesmo objetivo de degradação pessoal.
Basta pensar, por exemplo, no movimento rítmico. Nas religiões primitivas, o movimento rítmico prolongado é frequentemente usado com a finalidade de provocar um estado de êxtase impessoal e subumano. A mesma técnica visando o mesmo fim tem sido utilizada por muitos povos civilizados — pelos gregos, por exemplo, pelos hindus, por muitas seitas dervixes no mundo islâmico, e por seitas cristãs tais como as dos shakers e crentes. Em todos esses casos, o movimento rítmico, prolongado e repetitivo é uma forma de ritual praticada deliberadamente visando a uma autotranscendência descendente. A história também registra muitas explosões esporádicas de danças agitadas, balanços e meneios de cabeça involuntários e incontroláveis. Essas epidemias que numa região denominam de tarantismo, em outra de dança de são Vitor, têm ocorrido geralmente em tempos difíceis que sucedem a guerras, pestes e fome, e são mais comuns onde a malária é endêmica. O objetivo inconsciente dos homens e mulheres que se entregam a essas loucuras coletivas é o mesmo que perseguem os membros das seitas que usam a dança como um rito religioso — ou seja, o de fugir do eu insular através de um estado de irresponsabilidade, sem culpas passadas ou anseios futuros, mas apenas o presente com a feliz sensação de ser outro.
Intimamente associado com o rito produtor de êxtase do movimento rítmico encontra-se o ritual produtor do som ritmado. A música é tão grandiosa quanto a natureza humana e tem alguma coisa a dizer ao homem em todos os aspectos de seu ser, do sentimental ao intelectual, do visceral ao espiritual. Em uma de suas diversas modalidades, a música é uma droga poderosa, em parte estimulante e em parte narcotizante, mas inteiramente alteradora. Nenhum homem, não importa quão altamente civilizado seja, consegue ouvir durante muito tempo tambores africanos, contos indianos ou hinos patrióticos galeses e manter sua personalidade crítica e consciente intacta. Seria interessante juntar um grupo dos mais eminentes filósofos das melhores universidades, trancá-los num quarto quente com dervixes marroquinos ou voduístas haitianos e medir, com um cronômetro, a força de sua resistência psicológica aos efeitos do som ritmado. Os positivistas lógicos resistiriam mais que os idealistas subjetivos? Os marxistas se provariam mais fortes que os tomistas ou vedantistas? Que campo de experiência fascinante e fértil! Por enquanto, o que podemos seguramente prever é que, se expostos o suficiente aos ritmos monótonos e aos cantos, cada um de nossos filósofos acabaria por dar pulos e gritos juntamente com os nativos.
Os movimentos rítmicos e o som ritmado são geralmente, por assim dizer, somados à intoxicação das massas. Mas existem também caminhos privados que podem ser tomados pelo viajante solitário que não gosta de multidões ou não tem fé suficiente nos princípios, instituições e pessoas em torno dos quais as multidões se reúnem. Um desses caminhos particulares é o do mantra, ao qual Cristo denominou de “vã repetição”. Nos cultos religiosos públicos, a vã repetição é quase sempre associada com o som ritmado.
As litanias e similares são cantadas ou pelo menos entoadas. É com música que obtêm seus efeitos semi-hipnóticos. A vã repetição, quando praticada na privacidade, age sobre a mente não devido à sua associação com o som rítmico (pois funciona mesmo quando as palavras são apenas imaginadas), mas por meio do poder de concentração e memória. A repetição constante da mesma palavra ou frase leva frequentemente a um estado de percepção ou mesmo transe profundo. Uma vez induzido, o transe pode ser desfrutado em si mesmo como uma deliciosa sensação de um “não eu infrapessoal”, ou então utilizado deliberadamente com o objetivo de melhorar a conduta pessoal através da autossugestão e de preparar o caminho para a realização máxima da autotranscendência ascendente. Da segunda possibilidade falaremos mais tarde em outro trecho. No momento, estamos preocupados com a vã repetição como um caminho descendente que leva à completa alienação infrapessoal.
Devemos agora considerar um método estritamente fisiológico de fugir ao eu insulado: o caminho da penitência corporal. A violência destrutiva, que é o sintoma final da intoxicação das massas, não é sempre dirigida para o exterior. A história da religião está repleta de casos sinistros de autoflagelações, automutilações, autocastrações e até suicídios coletivos. Esses atos são consequência de delírio da multidão e são praticados em estados de exaltação. Muito diferente é a penitência corporal praticada privadamente e de cabeça fria. Nesse caso, o ato de flagelação é iniciado por uma determinação da vontade pessoal; mas sua consequência (ao menos em alguns casos) é uma transformação temporária da personalidade insulada em alguma coisa diferente. Essa outra coisa é a consciência, em si mesma intensa demais, por ser única, da dor física. A pessoa que se autoflagela se identifica com sua dor e, ao se transformar em apenas a percepção de seu corpo sofredor, livra-se daquele sentimento de culpa ligado ao passado e da frustração presente, daquela ansiedade obsessiva em relação ao futuro, que constituem uma grande parte do ego neurótico. Houve uma fuga de individualidade, uma passagem descendente para um estado de martírio puramente fisiológico. Mas a autoflagelação não precisa permanecer necessariamente nessa região de consciência. Como o homem que faz uso da vã repetição para superar-se a si mesmo, há possibilidade de fazer uso da alienação temporária da individualidade como uma ponte, digamos, levando ascensionalmente para a vida do espírito.
Isso levanta uma questão muito importante. Até que ponto e em que circunstâncias é possível a um homem usar o caminho descendente para atingir a autotranscendência espiritual? À primeira vista, tudo parece indicar que o caminho para baixo jamais terá a oportunidade de ser o caminho para cima. Mas no domínio da existência os problemas não são tão simples como são no nosso mundo bem organizado das palavras. Na vida real, um movimento descendente pode algumas vezes ser o início de um ascendente.
Quando a concha do ego é partida e começa a surgir uma consciência subliminar e fisiológica do não eu sob nossa personalidade aparente, acontece algumas vezes que captamos um lampejo, rápido mas apocalíptico, daquela alteridade que é o Fundamento de todo o nosso ser. Enquanto permanecemos isolados em nossa identidade, não temos consciência dos diversos não eus aos quais estamos ligados — o não eu orgânico, o não eu subconsciente, o não eu coletivo do meio psíquico no qual nossos pensamentos e sentimentos possuem sua vida, e o não eu imanente e transcendente do Espírito. Qualquer fuga, mesmo através de um caminho descendente, para fora da individualidade insulada, torna possível uma percepção ao menos momentânea do não eu em cada nível, incluindo o mais elevado. William James, em seu Varieties of religious experience, dá exemplos de “revelações anestésicas” que se seguem a inalações de gás hilariante. Teofanias semelhantes são algumas vezes experimentadas por alcoólatras e talvez existam momentos, durante a intoxicação produzida por quase qualquer tipo de droga, quando a percepção de um não eu superior ao eu em processo de desintegração torna-se possível por um breve lapso de tempo. Mas esses surtos momentâneos de revelação custam muito caro. Para os viciados em drogas, o momento de percepção espiritual (se ele realmente acontece) cede lugar bem cedo a um estupor subumano, exaltação ou alucinação, seguidos por terríveis ressacas e, a longo prazo, por um enfraquecimento permanente e fatal da saúde física e mental. Uma vez ou outra, uma única “revelação anestésica” pode agir, como qualquer outra manifestação da divindade, no sentido de estimular quem a experimenta a um esforço de autotransformação e autotranscendência ascendente. Mas pelo fato de tal coisa poder eventualmente acontecer não se justifica o emprego de métodos químicos de autotranscendência. Esse é um caminho descendente, e a maioria dos que o tomam atingirá um estado de degradação em que períodos de êxtase subumano sealternarão com períodos de uma individualidade consciente tão miserável que qualquer fuga, mesmo que seja para o suicídio lento do vicio das drogas, será preferível.
O que é verdade quanto às drogas, também o é, mutatis mutandis, quanto à sexualidade primária. O caminho leva para baixo, mas durante o percurso pode haver teofanias ocasionais. Os Deuses das Trevas, como os chamava Lawrence, podem mudar suas características e se tornar reluzentes. Na Índia existe uma ioga tântrica, baseada em técnicas psicofisiológicas complicadas, cujo propósito é transformar a autotranscendência descendente da sexualidade primária em autotranscendência ascendente. No Ocidente, o equivalente que mais se aproximou dessas práticas tântricas foi a disciplina sexual imaginada por John Humphrey Noyes e praticada pelos membros da Comunidade Oneida. Em Oneida, a sexualidade primária era não apenas civilizada com sucesso; era também compatível e subordinada a uma forma de protestantismo sinceramente pregada e firmemente praticada.
A intoxicação das massas desintegra o ego muito mais profundamente que a sexualidade primária. Suas exaltações, suas loucuras, sua sugestionalidade elevada ao mais alto grau só podem ser comparadas às intoxicações provocadas por drogas como álcool, haxixe e heroína. Mas mesmo a um componente de uma multidão excitada pode ocorrer (num estágio ainda inicial de autotranscendência descendente) uma revelação autêntica da alteridade que está acima da individualidade. Eis a razão por que algumas vezes pode surgir algum bem das reuniões mais coribânticas visando a despertar o fervor religioso. Algum bem tanto quanto um grande mal pode também resultar do fato de que as pessoas em meio à multidão tendem a se tornar sugestionáveis além da conta. Enquanto se encontram nesse estado, são sujeitas a estímulos que têm o poder de operar como ordens dadas a hipnotizados, mesmo depois que voltam a seu estado normal.
Como o demagogo, o pregador e o ritualista desintegram o ego de seus ouvintes reunindo-os em grupo e deixando-os sonados pelo excesso de vã repetição e som rítmico. Então, ao contrário do demagogo, fazem sugestões, algumas das quais são autenticamente cristãs. Isso, se funciona, resulta em uma reintegração das individualidades destruídas num nível mais elevado. Pode haver também reintegrações de personalidade sob a influência de ordens pós-hipnóticas transmitidas por políticos demagogos. Mas essas ordens são todas incitamento ao ódio, por um lado, e obediência cega e ilusão compensatória, por outro. Iniciada com uma dose maciça de veneno em meio a multidões, confirmada e orientada pela retórica de um maníaco que é ao mesmo tempo um explorador maquiavélico da fraqueza dos outros homens, a catequização política resulta na criação de uma nova personalidade, pior que a antiga e muito mais perigosa, porque inteiramente devotada a um partido cujo objetivo primordial é liquidar seus oponentes.
Fiz uma distinção entre demagogos e religiosos baseando-me no fato dos últimos poderem algumas vezes fazer algum bem, enquanto os primeiros podem apenas, pela própria natureza das coisas, fazer o mal. Mas não imaginemos que os exploradores religiosos da intoxicação das massas são inteiramente inocentes. Pelo contrário, foram os responsáveis no passado por males quase tão imensuráveis quanto os causados às suas vitimas (junto com as vítimas daquelas vítimas) pelos demagogos revolucionários de nossos dias. No decorrer das últimas seis ou sete gerações, o poder das organizações religiosas para fazer o mal diminuiu consideravelmente por todo o mundo ocidental. Deve-se isso primeiramente ao incrível progresso tecnológico e à consequente procura, pelas massas, de ilusões compensatórias que parecem ser mais positivistas que metafísicas. Os demagogos oferecem tais ilusões pseudopositivistas, enquanto as Igrejas não o fazem. Enquanto a sedução das igrejas declina, diminuem também sua influência, sua riqueza, seu poder político e, junto com tudo isso, sua capacidade para praticar o mal numa escala maior. As circunstâncias libertaram o sacerdote de certas tentações a que seus antecessores quase sempre não resistiam em séculos passados. Fariam bem em se afastarem voluntariamente de tais tentações que ainda persistem. Entre elas, destaca-se a tentação de obter poder através do estímulo ao desejo humano insaciável de autotranscendência descendente. Produzir deliberadamente a intoxicação das massas — mesmo que seja em nome da religião e supostamente “para o bem” do intoxicado — não se justifica moralmente.
No que se refere à autotranscendência horizontal, pouco precisa ser dito — não porque o fenômeno não seja de importância (longe disso), mas por ser por demais óbvio para exigir análise e por ocorrer com tanta frequência que se torna difícil de classificá-lo em poucas palavras.
Para escapar dos horrores do eu insulado, a maior parte dos homens e mulheres escolhe, na maior parte das vezes, não subir nem descer, mas escapar para os lados. Eles se identificam com uma causa maior que seus próprios interesses imediatos, mas que não os faz cair na degradação, e, se mais elevada, sem ultrapassar os níveis dos valores sociais correntes. Essa autotranscendência horizontal ou quase horizontal pode estar em qualquer coisa tão trivial quanto um hobby, ou tão valiosa quanto um casamento por amor. Pode ser produzida através da autoidentificação com qualquer atividade humana, desde a gerência de um negócio até a pesquisa sobre física nuclear, de compor músicas até colecionar selos, do dever político de educar crianças aos estudos dos hábitos matinais dos pássaros. A autotranscendência horizontal é da maior importância. Sem ela não haveria arte, ciência, lei, filosofia nem civilização na verdade. E não haveria também guerra, odium theologicum ou ideologicum, nem intolerâncias constantes, nem perseguições. Esses grandes bens e males imensos são decorrentes da capacidade do homem para uma autoidentificação total e constante com uma ideia, um sentimento, uma causa. Como poderemos ter o bem sem o mal, uma civilização avançada sem bombardeio de saturação ou extermínio de hereges políticos ou religiosos? A resposta é que não poderemos possuir isso enquanto nossa autotranscendência permanecer apenas horizontal. Quando nos identificamos com uma ideia ou causa estamos de fato adorando alguma coisa comum, incompleta e provinciana, alguma coisa que, embora nobre, é contudo ainda demasiadamente humana.
“Patriotismo”, como uma grande patriota concluiu no dia de sua execução pelos inimigos de seu país, “não é o suficiente”.
Nem o socialismo, nem o comunismo, nem o capitalismo; nem a arte, a ciência, a ordem pública, nenhuma religião ou igreja. Tudo isso é indispensável, mas nada disso é o bastante.
A civilização exige do indivíduo uma autoidentificação devotada às mais elevadas causas da humanidade. Mas se essa autoidentificação com o que é humano não é acompanhada por um esforço consciente e congruente visando a atingir a autotranscendência ascendente no sentido da vida universal do espírito, os bens alcançados estarão sempre misturados a males que os contrabalançam. “Fazemos”, escreveu Pascal, “da verdade um ídolo; porque a verdade sem caridade não é Deus, mas Sua imagem e ídolo, a quem não devemos amar nem venerar.” E não é apenas errado adorar um ídolo; é também excessivamente inconveniente. A adoração da verdade separada do amor cristão — autoidentificação com a ciência, não acompanhada de identificação com o Fundamento de todo o ser — resulta no tipo de situação com que presentemente nos defrontamos. Todo ídolo, por mais sublime que seja, transforma-se, com o tempo, num Moloch, sedento de sacrifiício humano.
Sobre o Autor
Aldous Leonard Huxley nasceu em 26 de Julho de 1894 no condado de Surrey, na Inglaterra. Seu primeiro livro foi publicado em 1916, uma coletânea de poemas. Autor de uma linhagem de reconhecidos intelectuais, em que sobressai o avô, o biólogo Thomas Henry Huxley, defensor das idéias evolucionistas de Darwin, Aldous teve sua reputação literária estabelecida a partir de 1921 com a novela Crome Yellow. Imediatamente seguiram-se sátiras brilhantes (Antic Hay, de 1923; Folhas inúteis, de 1925; Contraponto, de 1928), nas quais o autor analisa de maneira espirituosa, porém implacável, as agruras da sociedade contemporânea.
No período anterior a segunda guerra mundial, a obra de Huxley adquire um tom mais sombrio. São desse período Admirável Mundo Novo (publicado em 1932 denuncia os aspectos desumanizadores do “progresso” científico e material) e Sem olhos em Gaza (novela pacifista de 1936), além de uma série de ensaios.
Em 1937, no auge da fama, Huxley deixa a Europa e se muda para a Califórnia. No momento em que o Ocidente se preparava para a guerra, ele começa a acreditar que a chave para a resolução dos problemas do mundo estaria na troca da razão individualista ocidental pela “sabedoria perene”, de caráter místico, centrada na idéia da unidade. São dessa fase tanto as obras de ficção O Tempo Deve Parar, de 1944 e A Ilha, de 1962 (uma espécie de sequência de Admirável Mundo Novo), quanto o famoso relato de sua primeira experiência com Mescalina, As Portas da Percepção, de 1954, onde Jim Morrison buscaria o nome para sua ainda desconhecida banda “The Doors”. Os Demonios de Loudun, cujo epílogo foi apresentado neste artigo, foi a obra anterior a Portas da Percepção.
Nos últimos dias de sua vida, já impossibilitado de falar, Huxley escreveu um pedido à sua mulher para injetar 100 µg de LSD. Ela injetou uma dose às 11:45 da manhã e outra algumas horas depois. Ele morreu às 17:21 do dia 22 de novembro de 1963, aos 69 anos. As cinzas de Huxley foram enterradas no jazigo da família,[2] no cemitério de Watts, casa de Watts Mortuary Chapel em Compton, uma vila perto de Guildford, Surrey, Inglaterra.
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MundoCogumelo de volta ao ar, e para marcar nosso retorno, escolhemos um artigo de 1976 de Walter Houston Clark que ilustra uma questão que vem sendo pouco debatida com a profundidade necessária. A Bad Trip, e se ela deveria ser evitada, contornada ou apreciada com a atenção que doamos a todo professor que algo possa nos ensinar.
Tendo em vista algumas abordagens perigosas de reducionismo químico, em sites e páginas de ufanismo farmacológico, que contrariam a psicologia, a redução de danos e negam a própria experiência humana enquadrando como meros desequilíbrios químicos as profundas questões psicológicas que envolvem as experiencias mais difíceis, conhecidas popularmente como “bad trips”, este artigo nos leva a debater essas experiências como momentos-chave de uma reestruturação pessoal, psicológica e social das mais impactantes que podemos alcançar. Apesar de antigo, o texto não é obsoleto e remonta, com todas as ressalvas que o tempo trouxe de atualizações, uma questão profunda e muitas vezes negligenciada.
“BAD TRIPS” podem ser as Melhores Trips Walter Houston Clark Revista FATE, Abril de 1976
Uma mistura única de análise freudiana e xamanismo mexicano
pode representar um avanço para a psicoterapia.
Quase um século se passou desde que Sigmund Freud revolucionou nossa compreensão das doenças mentais e seu tratamento. Muitos pensadores importantes – como Carl Jung – foram consideravelmente além de Freud ao canalizar as profundezas da psique humana. Mas nenhuma das inúmeras técnicas psicoterapêuticas desenvolvidas durante essas décadas de pesquisa conseguiu cumprir completamente sua promessa teórica em termos de resultados práticos. A psicoterapia para a maioria das pessoas continua sendo um empreendimento duvidoso, arriscado e caro.
Um médico mexicano pouco conhecido desenvolveu uma técnica que chega tão perto de cumprir sua promessa quanto qualquer outra com a qual eu esteja familiarizado. Combina várias formas de psicoterapia ocidental com a sabedoria dos xamãs indígenas mexicanos. Essas abordagens foram combinadas com a genialidade do Dr. Salvador Roquet, um eminente médico mexicano de saúde pública cujas realizações incluem banir a febre amarela do México. As responsabilidades do Dr. Roquet o colocaram em contato com os índios mexicanos e, consequentemente, com suas abordagens incomuns em relação à saúde, incluindo o uso de plantas alucinógenas para pesquisar a alma, a fim de curar a mente.
Quando o Dr. Roquet soube do meu interesse no uso de drogas psicodélicas para a reabilitação de prisioneiros, ele me convidou para a Cidade do México para investigar sua técnica. No início de 1974, visitei o “Instituto de Psicosintesis Robert S. Hartman”, nome de sua clínica na Cidade do México. O Instituto é um dos três ramos da Associação Albert Schweitzer; os outros são uma missão médica para indígenas e uma escola baseada nos desdobramentos psicológicos descobertos pelo Dr. Roquet em seu trabalho psiquiátrico. O Dr. Roquet me convenceu de que a melhor maneira de observar sua técnica era participar pessoalmente das sessões. Dessa forma, acredito que a melhor introdução à sua psicoterapia altamente original é relacionar minhas próprias experiências com ela.
Me dirigi ao Instituto às 22h em uma noite de fevereiro, junto com vários outros pacientes. Recebemos um teste psicológico chamado “Questionário de Valores Hartman”. Depois disso, mais pacientes chegaram e nos reunimos em uma sala adjacente para nos familiarizarmos entre si. Como não sei falar espanhol, me senti um pouco isolado até que um dos participantes me pediu em inglês para dizer algo sobre mim. Enquanto ele traduzia minhas observações para os outros, senti-me mais à vontade e mais um membro do grupo. Eventualmente, havia cerca de 25 de nós.
Entre meia-noite e uma hora da manhã, fomos levados a uma sala com menos de 30 por 40 pés. Cerca de 1.000 pés quadrados foram reservados como área de tratamento para os pacientes. Durante as próximas 20 horas, nenhum paciente teve permissão para deixar a área de tratamento, exceto para ir ao banheiro adjacente. Um espaço de 10 por 30 pés alocado para o corpo médico e equipamentos eletrônicos foi dividido da área de tratamento por uma mesa na qual o Dr. Roquet, sua equipe e alguns observadores estavam sentados. Seus casacos brancos os distinguiam dos pacientes. As paredes estavam cobertas com quadros bizarros pintados por ex-pacientes e imagens de Freud, Gandhi e o ex-presidente chileno Salvador Allende, além de um crucifixo pendurado em uma parede.
Após um breve período de exercícios semelhantes à ioga, cada um de nós foi autorizado a selecionar uma esteira como uma espécie de base para o período do tratamento. Os pacientes se deitaram e uma música repousante foi ligada. Logo depois, as luzes foram apagadas e uma série de filmes sonoros foi exibida. Eram cenas de violência, morte e pornografia grosseira, aparentemente projetadas para chocar e perturbar a sensibilidade do paciente comum. Em contrapartida, na sequencia exibiram outras cenas que refletiam beleza natural, amor, ternura e afins, de modo que toda a paixão e experiência humanas fossem representadas. Em outras partes da sala, imagens paradas com temas semelhantes foram projetadas contra as paredes. Coforme esse show de variedades continuava, a música aumentou gradualmente em volume e cacofonia. Os pacientes podiam assistir as cenas ou não como quisessem, mas era difícil ignorar o ataque aos nossos ouvidos. No entanto, a equipe nos impediu de adormecer.
Durante esse período, um paciente após o outro foi chamado à mesa, pesado e examinado por um médico. O médico que me examinou observou que meu coração estava forte o suficiente para o tratamento, mas que eu não deveria abusar. A altitude da Cidade do México me trouxe de volta uma irregularidade cardíaca que estava sob controle antes de eu deixar os Estados Unidos. Esta notícia, acentuada por algumas das cenas do vídeo, ajudou a transformar meus pensamentos em morte e problemas associados. Os outros pacientes pareciam igualmente perturbados.
Por volta das quatro ou cinco horas, a equipe começou a administrar as substâncias psicodélicas, a droga e a dosagem foram personalizadas para cada paciente. (Meu relógio havia sido retirado de mim, para que meu senso de tempo fosse desorientado.) Minha própria vez chegou no que julguei que eram cerca de seis horas e recebi 250 microgramas de LSD-25. Logo após todas as dosagens terem sido administradas, a sobrecarga sensorial atingiu seu pico. A música cacofônica e uma alternância de luzes brilhantes e escuridão total pontuada por estranhos efeitos neon criaram uma atmosfera extremamente estranha.
A essa altura, a sala começou a se assemelhar a um poço de cobras do século XIX ou mesmo a uma confusão do século XVIII. Muitos de nós chorávamos, outros rolavam no chão e gritavam angustiados, outros vomitavam, alguns olhavam para o espaço e outros ainda faziam movimentos hostis em direção ao equipamento eletrônico. Às vezes, eu tinha medo de que alguns pacientes pudessem atacar o Dr. Roquet, sentado impassivelmente, dirigindo os efeitos da experimentação responsável por essa violência e perturbação.
Eu próprio fiquei possuído por uma noção confusa de que as pessoas de jaleco branco eram atormentadores deliberados nomeados pela Inquisição para me tirar da razão. Todos pareciam tão imperturbáveis com a confusão que estavam criando que eu andei até a mesa e os denunciei violentamente por sua presunção, um ato dificilmente característico no meu estado mental normal. Com minha rápida alternância entre preocupações com a aproximação da morte, a ansiedade que me assustava sobre a experimentação com psicodélicos e a angústia por muitas coisas que pretendia, mas deixei de fazer, toda a experiência pode ser descrita como uma descida ao inferno. Eu mal conseguia distinguir o que era externo do que era interno.
No final desta fase do tratamento, a música e outros estímulos sensoriais foram diminuídos ou desligados e as luzes acesas. Referindo-se a registros individuais quando necessário, o Dr. Roquet convocou vários pacientes à mesa em sucessão e os questionou sobre seus problemas e experiências enquanto o resto de nós ouvia. Os tradutores interpretaram as várias línguas para os outros pacientes. Alguns pacientes foram convidados a ler passagens curtas apropriadas para seus problemas, talvez algo pessoal ou talvez escolhido pelos médicos, geralmente com expressões de angústia pungente. Uma jovem leu uma passagem do romance de Flaubert, Madame Bovary, que lhe externou uma identificação dolorosa com a personalidade de Emma, descrita no romance.
Durante esta fase do tratamento, certos indivíduos receberam uma injeção de cloridrato de ketamina, uma nova e poderosa droga usada pelo Dr. Roquet. Seus efeitos variavam com pessoas diferentes, mas geralmente produzia uma ab-reação¹ violenta. Um jovem que recebeu a injeção estava dando seu relato quando, de repente, caiu no chão em uma demonstração violenta de angústia e terror, vomitando e se contorcendo em tormento.
¹ ab-reação
PSICOLOGIA
descarga emocional pela qual um indivíduo se liberta do afeto que acompanha a recordação de um acontecimento traumático [Pode ser provocada, por exemplo, por hipnose, ou ocorrer de forma espontânea no decorrer do processo psicoterápico.].
Nesse momento, dois funcionários com sacolas e toalhas vieram em seu auxílio, demonstrando infinita gentileza e compaixão. Essa cena me impressionou com tanta força quanto minha convicção anterior de que os funcionários eram perseguidores. Percebi que toda a provação havia sido fabricada para o benefício dos pacientes e que o que parecia um inferno tinha se convertido em um paraíso. Essa percepção chamou minha atenção para os aspectos positivos do tratamento e me ajudou a voltar à normalidade.
Depois de mais ou menos uma hora, esta fase do tratamento terminou, as luzes foram apagadas novamente, música suave voltou a ser tocada e fomos convidados a descansar por várias horas. No final deste período, as janelas foram abertas, deixando entrar a luz do sol. Não tínhamos permissão para sair da sala, mas fomos convidados a nos exercitar e nos expressar dançando, se quiséssemos. A essa altura, senti-me intensamente sensível aos meus colegas e grato aos funcionários. Como não conseguia me comunicar na língua deles, me vi expressando meus sentimentos na dança improvisada.
Após o período de descanso, os poucos pacientes não processados receberam atenção. A equipe distribuiu a cada paciente fotos significativas de seus próprios arquivos – geralmente fotografias de família, fotos do próprio paciente em várias idades ou fotos de amigos e amantes. Por vezes, isso desencadeou mais cenas emocionais. Mas no final da tarde, cerca de 20 horas depois de eu ter chegado ao Instituto, todos haviam retornado a um estado normal de consciência. A essa altura, os respectivos parentes começaram a chamar pelos pacientes e senti grande consolo ao ver minha esposa. Por volta das nove horas, tivemos a cerimônia final; uma rosa foi dada de presente a cada sujeito. Nas minhas três semanas de permanência na Cidade do México, todos os pacientes que encontrei como observador ou como participante haviam retornado à consciência normal ao final do tratamento.
Alguns dias depois, os membros do meu grupo se reuniram para sessões de terapia em grupo de cinco horas ou, para alguns indivíduos, sessões privadas de menor duração. Cada paciente compôs um relato escrito de sua sessão para sua ficha. Essas sessões de acompanhamento continuaram até que a equipe decidisse que o paciente se beneficiaria com outra sessão longa, às vezes um mês depois, embora o espaço de tempo fosse maior à medida que o paciente melhorava. A melhora foi medida pelo teste de Hartman e também pelas impressões clínicas dos psiquiatras.
Como eu não era propriamente um paciente e como minha estadia no México seria breve, não participei de todo esse acompanhamento, mas participei de uma segunda longa sessão, cerca de duas semanas após a minha primeira.
Eu esperava tomar cloridrato de ketamina durante a minha segunda sessão, mas a irregularidade do meu coração persistiu e os médicos julgaram isso desaconselhável. Esta decisão mais uma vez voltou a minha mente para o tema da morte. Na minha segunda sessão, havia apenas 10 pacientes, um número mais gerenciável e ainda suficiente para uma interação valiosa entre os pacientes. Em todo caso, o procedimento foi semelhante à primeira vez, exceto que agora eu havia ingerido cogumelos Psilocybe frescos enviados em meu benefício pela própria Maria Sabina, uma curandeira de Huautla.
Dessa vez, re-experimentei o fenômeno da morte, mas em vez de descer ao inferno, a experiência assumiu quase o caráter de um festival, embora num contexto de solenidade alimentada pelas tensões do Requiem de Brahms. Não apenas obtive insights deliciosos e comoventes sobre minha própria vida subjetiva, mas também pude ver aspectos engraçados associados à minha morte, o que trouxe risos refrescantes. Eu também percebi como a cacofonia e a sobrecarga sensorial que foram projetadas para “me assustar completamente” têm um paralelo na sociedade em que a ocorrência perfeitamente natural da morte é transformada em um evento assustador que provoca medo na mente das pessoas comuns.
No geral, essa segunda sessão foi a mais rica das minhas 10 a 15 experiências com materiais psicodélicos. Foi a primeira experiência desse tipo em que a culpa não teve papel consciente. Não credito o resultado feliz dessa “trip” aos cogumelos, mas o importante condicionamento da minha “descida ao inferno” (a bad trip) anterior.
A eficácia da técnica do Dr. Roquet é evidente em meu estado de espírito desde que minhas experiências com ele ocorreram. Há quase dois anos, meu entusiasmo pela vida tem sido mais positivo do que nunca. Minha apreciação pela música cresceu quase a um vício e outros aspectos da minha vida foram igualmente enriquecidos. Naturalmente, isso me deu uma visão subjetiva do que o tratamento pode realizar para pessoas cuja saúde mental não está tão bem estabelecida quanto a minha.
Quais são as implicações da emocionante técnica do Dr. Roquet para o campo da saúde mental? Com base nas minhas três semanas de intenso envolvimento com seu programa, sinto que o que o psicanalista médio realiza em cinco ou seis anos, Salvador alcança com frequência em meses – e melhor, com custo de 10 a 20 vezes menor! O Dr. Roquet trouxe a psiquiatria para o século XX. Sem dúvida, um dia, seus métodos serão aprimorados, mas não duvido que sejam considerados um avanço crucial no progresso da psiquiatria.
Em minha pesquisa com drogas psicodélicas, muitas vezes descobri que as “bad trips” são as melhores trips, especialmente quando lidamos adequadamente com elas. O Dr. Roquet induz deliberadamente uma viagem ruim para trazer à tona os piores medos e problemas do paciente, embora isso possa significar, e geralmente significa, uma visita ao seu submundo particular, onde a ‘loucura’ se esconde. Por essa razão, o Dr. Roquet se refere à sua técnica como “psicodisléptica”, que significa “temporariamente perturbadora das funções da mente”. O objetivo específico dessa técnica é sobrecarregar as defesas cuidadosamente construídas que muitas vezes tornam a neurose ou psicose do paciente invulnerável ao médico. Muitos psiquiatras convencionais podem argumentar que esses métodos violentos podem prejudicar a psique. O resultado bem-sucedido de quase 3.000 pacientes tratados no Instituto obviamente responde melhor a essas objeções.
Qual a importância das substâncias no tratamento? Roquet diz que os medicamentos não representam mais de 10% do total do tratamento. Eu poderia concordar, mas também argumentaria que são 10% muito importantes. As substâncias psicodélicas parecem multiplicar a força da experiência e permitir que ela penetre nos níveis do inconsciente raramente visitados na psicoterapia comum.
Entre os outros fatores importantes na técnica estão os relacionamentos interpessoais. A naturalidade da equipe e a falta de alarme garantem ao paciente que o Dr. Roquet e seus colegas estão completamente no controle da situação. Mais importante, sua atitude ativamente compassiva durante as fases finais da terapia atua como uma influência vital de cura. Tão importante quanto é a interação entre os próprios pacientes – incluindo o toque de apoio e a consciência de que cada própria angústia é acompanhada pela de outra pessoa do outro lado da sala.
O Dr. Roquet desenvolveu uma teoria intuitiva e perspicaz subjacente à sua terapia, mas isso é muito complexo para ser apresentado aqui. Sem dúvida, ele eventualmente falará por si mesmo na tradução para o inglês.
Em 21 de novembro de 1974, o Dr. Salvador Roquet, seus assistentes e 25 pacientes foram presos durante uma sessão de terapia em grupo pela polícia mexicana, que invadiu o Instituto brandindo pistolas e metralhadoras. O ataque foi instigado por Guido Belasso, diretor ‘Centro Mexicano de Independência das Drogas’, de acordo com a revista mexicana “Tiempo”.
Os pacientes foram presos apenas brevemente, mas o Dr. Roquet e seu assistente, o Dr. Pierre Favreau, foram presos por vários anos devido à gravidade das acusações de crimes relativos à drogas. O Dr. Roquet operava sua clínica em total abertura por mais de seis anos tendo ganho a gratidão de oficiais do governo por sua ajuda na contenção de distúrbios na Universidade do México, tratando com sucesso um líder estudantil radical.
Uma organização dos ex-pacientes de Roquet, liderada por influentes mexicanos, veio em defesa do doutor e vários ilustres psiquiatras americanos testemunharam a validade e a eficácia de seus métodos. Por fim, os drs. Roquet e Favreau foram liberados das acusações e autorizados a reabrir o Instituto.
Steve Jobs nunca se acanhou ao comentar sobre seuuso de psicodélicos e se referir à sua experiência com LSD como “uma das duas ou três coisas mais importantes que já fiz na vida.” Assim, chegando ao fim da sua vida, o inventor do LSD Albert Hofmann decidiu escrever uma carta ao criador do iPhone para ver se este se interessava em dedicar parte de seu patrimônio naquilo que já esteve uma vez na ponta da sua língua.
Hofmann escreveu em 2007 uma carta até então nunca divulgada para Jobs a pedido de seu amigo Rick Doblin, que administra uma organização dedicada ao estudo dos benefícios médicos e psiquiátricos dos psicodélicos. Hofmann, um químico nascido na Suíça, morreu em abril de 2008 com 102 anos.
A carta de Hofmann pra Jobs se encontra transcrita abaixo caso você tenha dificuldade em compreendê-la:
Caro Sr. Steve Jobs,
Saudações de Albert Hofmann. Soube pela mídia que você se diz ajudado criativamente pelo LSD no desenvolvimento dos computadores Apple e sua jornada espiritual pessoal. Estou interessado em aprender mais sobre como o LSD lhe foi útil.
Escrevo agora, pouco depois do meu 101º aniversário, para requerer-lhe que apoie a pesquisa proposta pelo psiquiatra suíço Dr. Peter Gasser para o estudo de psicoterapia LSD-assistida em pacientes com ansiedade associada a doenças fatais. Este será o primeiro estudo em psicoterapia LSD-assistida em 35 anos.
Espero que me ajude a transformar minha criança problema em minha criança solução.
Sinceramente,
A. Hofmann
Escrita logo após seu 101º aniversário, a carta apresenta uma caligrafia impressionante para um homem de sua idade. Mostrei-a para minha avó, Ruth Grim, que era oito anos mais nova que Hofmann e que fez uma análise amadora sobre a escrita enquanto Hofmann estava viajando. Sem saber de quem se tratava, ela disse por email que “tempo atrás, algo aconteceu que o fez ter uma visão deturpada sobre as coisas. Talvez ele se sentiu ameaçado. E também… criativo com suas mãos, duro consigo mesmo, pensa demais, teimoso, cuidadoso com o jeito que se expressa, não é influenciado pelo o que os outros pensam.”
Doblin diz que Hofmann frequentemente dizia que ele teve uma infância feliz e que não o caracterizaria como deturpado. Hofmann, por sua vez, geralmente se referia ao LSD como sua própria “criança problema” e em sua carta ele pede a Jobs que o “ajude a transformar a criança problema numa criança solução.”
Ele pede especificamente a Jobs que financie as pesquisas propostas pelo psiquiatra suíço Peter Gasser e direciona Jobs para a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos de Doblin (MAPS).
Doblin e Hofmann eram próximos; Doblin deu ao doutor seu primeiro ecstasy nos anos 80 quando ainda era legal, e de acordo com ele, Hofmann amou, dizendo que finalmente ele havia encontrado uma droga que poderia usar com sua mulher, que não era fã do LSD.
Doblin me providenciou uma cópia da carta; o filho de Hofmann, Andreas Hofmann, encarregado das propriedades de seu pai, autorizou sua publicação.
De acordo com Doblin, a carta resultou numa conversa de uns 30 minutos entre ele e Jobs mas nenhuma contribuição à causa. “Ele ainda pensava ‘Vamos colocar no abastecimento de água e assim fica todo mundo louco,” se lembra um desapontado Doblin, que diz ainda não ter perdido a esperança de que Jobs viria até ele com sua contribuição.
O fato de Jobs ter usado LSD e ter afirmado do quanto isso contribuiu à sua forma de pensar está longe de ser uma exceção no mundo da tecnologia. Os psicodélicos influenciaram alguns dos principais cientistas da computação nos Estados Unidos. A história por trás destas conexões está registrada em vários livros, o melhor deles sendo provavelmente “What the Dormouse Said: How the 60s Counterculture Shaped the Personal Computer”, pelo repórter da área de tecnologia John Markoff.
De acordo com Markoff, os psicodélicos aceleraram as revoluções nos computadores e na internet ao mostrar para as pessoas que a realidade pode ser profundamente alterada por uma forma de pensar inconvencional e altamente intuitiva. Douglas Engelart é um exemplo de um psiconauta que fez isso: ajudou a inventar o mouse. Jobs da Apple disse que Bill Gates da Microsoft seria “um cara mais aberto caso tivesse tomado ácido uma vez.” Numa entrevista em 1994 para a Playboy, no entanto, Gates não negou uso de drogas quando jovem.
O pensamento diferenciado — ou aprender a Pensar Diferente, como já dizia o slogan de Jobs — é a principal característica da experiência com ácido. “Quando estou sob efeito do LSD e ouvindo algo que é puramente ritmo, sou levado para um outro mundo e para um outro estado mental onde eu paro de pensar e passo a saber,” contou Kevin Herbert para a revista Wired num simpósio que comemorava o centésimo aniversário de Hofmann. Hebert, empregado de longa data da Cisco System que com sucesso baniu o teste de drogas de tecnólogos na companhia, comenta que “resolveu seus maiores problemas técnicos enquanto viajava ao ouvir os solos de bateria do Greatful Dead.”
“Isso deve estar mudando alguma coisa na comunicação interna do meu cérebro,” disse Herbert. “O processo dentro de mim que me permite resolver problemas passa a trabalhar de forma diferente, ou talvez partes diferentes do meu cérebro passam a ser usadas.”
O Burning Man, fundado em 1986 pelos entusiastas em tecnologia de São Francisco, sempre teve a intenção de fazer um grande número de pessoas usarem diferentes partes de seus cérebros para um fim não específico, mas aparentemente esclarecedor e que beneficiasse o bem de todos. O evento foi rapidamente realocado para o deserto de Nevada pois passou a ser grande demais para a cidade. Hoje, é mais provável que você encontre por lá um engenheiro de software do que um ex-hippie. Larry Page e Sergey Brin, os fundadores do Google, participam do evento por um bom tempo, e a influência de São Francisco e Seattle na cultura tech está em todos os lugares, nos acampamentos e nas exibições montadas para os oito dias de festival. O site na internet diz lisergicamente que “tentar explicar o que é o Burning Man pra alguém que nunca esteve lá é como tentar explicar como é uma determinada cor para alguém que é cego.”
No evento em 2007, fiquei acampado no Camp Shift — Shift que em inglês significa “mudar”, “mudar sua consciência” — perto de quatro carros alegóricos alugados por Alexander e Ann Shulgin e seus amigos septo e octogenários vindo do norte da Califórnia. Estes respeitáveis senhores, os pais e mães espirituais do Burning Man, passam as noites sentados numa cadeira de plástico e sorrindo até o amanhecer. Perto da gente, um cara que eu conhecia de Eastern Shore — e que ocupava um cargo público — havia montado um mini campo de golfe com nove buracos e meio. Por que nove buracos e meio? “Porque é o Burning Man,” ele explicou. Nosso acampamento contava com palestras sobre psicodélicos e um “passeio” chamado “Dance, Dance, Immolation.” (o que em português seria “Dança, Dança, Sacrifício”). Os participantes vestiam uma roupa antiinflamável e tentavam dançar junto das luzes que piscavam. Cometa um erro, e você é engolido pelas chamas. A primeira pergunta no FAQ era, “É seguro? Resposta: Provavelmente não.”
John Gilmore foi o quinto empregado da Sun Microsystems e registrou o domínio Toad.com em 1987. O conhecido psiconauta é um dos ricaços, veterano do festival. Hoje um ativista das liberdades civis, e talvez mais conhecido por conta da Lei Gilmore, observa que “a Rede interpreta a censura como um dano e dá um jeito de contorná-la.” Ele me disse que a maioria dos seus colegas dos anos 60 e 70 usavam psicodélicos. “Os psicodélicos me ensinaram que a vida não é racional. A IBM era uma empresa muito racional,” ele disse, explicando porque a gigante do mundo corporativo foi ultrapassada por empresas até então sem grandes investimentos externos como a Apple. Mark Pesce, coinventor da LMRV (Linguagem para Modelagem de Realidade Virtual) e dedicado comparecedor do Burning Man, concordou que há uma certa relação entre expansão da mente através de químicos e avanços na tecnologia: “Os homens e mulheres, as pessoas por trás [da realidade virtual] eram todas chapadas,” ele disse.
Gilmore, no entanto, duvida que um relação direta causa-efeito entre drogas e a Internet possa ser comprovada. O tipo de pessoa que é inspirada pela possibilidade de criar novos modos de armazenar e compartilhar conhecimento, ele disse, geralmente é o mesmo tipo que se interessa pela exploração da consciência. Num nível básico, ambos são uma busca por algo fora da realidade convencional — a mesma abordagem que muitos processos criativos e espirituais têm, sendo que grande parte destes é estritamente livre de drogas. O que não deixa de ser verdade, nota Gilmore, é que muitas pessoas chegam a conclusões e certas revelações durante uma viagem. Talvez uma dessas revelações acabou se tornando um código de programação.
E talvez em outras áreas científicas também. De acordo com Gilmore, o inconformista químico/surfista Kary Mullis, famoso entusiasta do LSD, lhe disse que o ácido o ajudou a desenvolver a reação em cadeira da polimerase (PCR), um avanço crucial para a bioquímica. A descoberta lhe rendeu o Prêmio Nobel em 1993. E de acordo com o repórter Alun Reese, Francis Crick, descobridor da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA juntamente de James Watson, disse a seus amigos que a primeira vez que ele visualizou a forma de dupla-hélice foi durante uma viagem de doce.
Não é nenhum segredo que Crick tomava ácido; ele também apoiou publicamente a legalização da maconha. Reese, que divulgou a história para uma agência de notícias depois da morte de Crick, disse que quando ele conversou com Crick sobre o que os amigos do cientista haviam lhe contado, ele “escutou atentamente, mesclando encanto e êxtase” e “não demonstrou nenhum sinal de surpresa. Quando terminei ele disse ‘Imprima uma palavra sobre isso e eu lhe processo.'”
* * * * *
Caro Ric,
Obrigado por tudo o que faz pela minha criança problema. Estou contente por contribuir com o que puder de minha parte.
Aprendi muito com sua maravilhosa carta, sobre fazer as coisas depois de esperar pelo momento certo, a forma clara e cuidadosa com que organiza e realiza o seu trabalho.
Espero que minha carta a Steve Jobs corresponda à sua expectativa, especialmente no que se refere ao escolher ter usado papel e caneta. [Doblin pediu para que Hofmann timbrasse pessoalmente a carta]. Acredito que segui a sua receita.
Acredito que o Dr. Gasser terá o seu pedido atendido .
— A princípio, eu não estava de acordo com a ideia depublicar esta entrevista [na revista High Times]. Eu estava chocado e surpreso pela existência de tal revista, cujos textos e propagandas tendem a tratar o assunto das drogas ilegais com uma atitude casual e irresponsável. Também, a maneira com a qual a High Times trata sobre a política da maconha, cujo problema necessita urgentemente de uma solução, não corresponde à minha abordagem. Mesmo assim, eu cheguei a decisão de que minhas declarações, aparecendo numa revista direcionada a leitores que, atualmente, fazem uso de drogas ilegais, pode ser de especial valor e poderia ajudar a diminuir o abuso e uso indevido das drogas psicodélicas. Michael Horowitz convenceu-me de que uma descrição precisa da descoberta do LSD, das plantas mágicas mexicanas (sobre as quais tantas versões enganosas existem), e minha opinião dos vários aspectos do problema das drogas, dentre outros tópicos, seria útil para uma grande e interessada audiência de pessoas nos Estados Unidos. Esta entrevista tem como objetivos a promoção de informação sobre o que essa classe de drogas pode e não pode fazer, e quais são os seus potenciais perigos.
No alto da Segunda Guerra Mundial, quatro meses após a criação artificial da primeira reação nuclear ser liberada em uma pilha de minério de urânio em Chicago, um traço acidentalmente absorvido do produto de um semi natural fungo do centeio, silenciosamente explodiu no cérebro de um químico suíço de 37 anos, que trabalhava nos laboratórios de pesquisa da Sandoz em Basel. Ele relatou ao seu diretor:
“Fui forçado a interromper meu trabalho no laboratório no meio da tarde e ir para casa, enquanto eu era apreendido por uma peculiar inquietação associada a uma sensação moderada de tontura… uma espécie de embriaguez que não era desagradável, e que era caracterizada por uma atividade extrema da imaginação … surgiu sobre mim um fluxo ininterrupto de imagens fantásticas de plasticidade e vividez extraordinárias e acompanhadas por um intenso, caleidoscópio jogo de cores….”
Três dias depois, em 19 de abril de 1943, o Dr. Albert Hofmann ocupou-se de um auto experimento, que tanto confirmou os resultados de sua experiência psicoativa anterior, como revelou uma fascinante nova descoberta: aqui jazia a primeira substância conhecida a produzir efeitos psíquicos em dosagens muito pequenas, mensuráveis apenas em microgramas! O Dr. Hofmann havia descoberto o LSD-25.
A dietilamida do ácido lisérgico (LSD) foi entusiasticamente investigada pela profissão psiquiátrica europeia como uma possível chave para a natureza química da doença mental. Acreditava-se que seus efeitos mimetizavam o estado psicótico. Assim que o LSD foi introduzido na psiquiatria americana em 1950, rapidamente o interesse disseminou-se entre os militares dos Estados Unidos e aos interesses de segurança nacional. Em meados de 1950, o LSD estava sendo pesquisado como um intensificador da criatividade e estimulador da aprendizagem; rumores de suas qualidade extáticas, místicas e psíquicas começaram a vazar através dos escritos de Aldous Huxley, Robert Graves e outros luminares literários.
Um experimento de Harvard, não médico e em larga escala, envolvendo o LSD e outras drogas psicodélicas no início dos anos 60, precipitou uma feroz controvérsia sobre os limites da liberdade acadêmica, e focou a atenção nacional na droga hoje conhecida como “ácido”. A meio caminho da turbulenta década, um milhão de pessoas havia experimentado o LSD do mercado-negro, engendrando uma revolução neurológica cujo o resultado ainda não foi averiguado. Em 1966, o Congresso proibiu o LSD.
O Dr. Hofmann hoje vive numa aposentadoria confortável, em uma colina com vista para a fronteira Suíça-França. Ele concedeu a High Times esta exclusiva entrevista, para discutir não apenas as implicações de sua descoberta do LSD, mas também suas investigações químicas menos divulgadas, sobre os agentes ativos de várias plantas sagradas mexicanas.
Considerando o trabalho de sua vida, o Dr. Hofmann parece um provável candidato ao Prêmio Nobel em química. Suas descobertas não apenas ampliaram nosso conhecimento de químicos psicoativos e disparou a imaginação de milhares de cientistas, historiadores e outros pesquisadores; mas elas tiveram um direto e revolucionário impacto na habilidade da humanidade de entender e ajudar a si mesma.
Horowitz:
Que trabalho você fazia antes de descobrir o LSD?
Hoffman:
Nos primeiros anos de minha carreira, no laboratório de pesquisas farmacêuticas da Sandoz em Basel, eu estava ocupado principalmente com investigações sobre componentes cardíacos, glicosídeos da cila (ou “Scilla maritima”). Estas investigações resultaram na elucidação da constituição química do núcleo comum destes agentes, fornecendo medicamentos valiosos que são amiúde usados no tratamento de insuficiência cardíaca.
A partir de 1935, eu trabalhei nos alcalóides do ergot, resultando no desenvolvimento da ergonovina, a primeira preparação sintética de alcalóides naturais do ergot: Methergin, usado em obstetrícia para interromper hemorragias; e Hydergine, para queixas geriátricas.
Em 1943, os resultados deste primeiro período da minha pesquisa na área do ergot foram publicados num jornal científico, “Helvetica Chimica Acta”. Como resultado de meus primeiros oito anos da pesquisa com ergot, eu sintetizei um grande número de derivados do ergot: amidas do ácido lisérgico; o ácido lisérgico sendo o núcleo característico dos alcalóides naturais do ergot. Dentre essas amidas do ácido lisérgico, também estava a dietilamida do ácido lisérgico.
Horowitz:
Você tinha LSD em seu laboratório já em 1938?
Hofmann:
Sim. Na época, uma série de experimentos farmacológicos estavam sendo realizados no departamento de farmacologia da Sandoz. Excitação acentuada foi observada em alguns dos animais. Mas estes efeitos não pareceram interessantes o suficiente aos meus colegas de departamento. O trabalho com LSD foi suspenso por vários anos. Como eu tinha um sentimento estranho de que seria valioso executar estudos mais profundos neste composto, acabei preparando uma quantidade fresca de LSD na primavera de 1943. No decorrer deste trabalho, uma observação acidental levou-me a executar um planejado auto experimento com tal composto, que então resultou na descoberta dos extraordinários efeitos psíquicos do LSD.
Horowitz:
Que tipo de droga você estava tentando fazer quando sintetizou o LSD?
Hofmann:
Quando eu sintetizei a dietilamida do ácido lisérgico, código de laboratório LSD-25 (ou simplesmente LSD), eu havia planejado a preparação de um composto analéptico; um estimulante circulatório e respiratório. A dietilamida do ácido lisérgico está relacionado, em sua estrutura química, com a dietilamida do ácido nicotínico, conhecido por ser um analéptico eficaz.
Horowitz:
A descoberta do LSD foi um acidente?
Hofmann:
Eu diria que o LSD foi resultado de um complexo processo, que teve sua gênese em um conceito bem definido, seguido por uma síntese apropriada, isto é, a síntese da dietilamida do ácido lisérgio – durante o curso do qual uma observação fortuita serviu como gatilho para um auto experimento planejado, que então levou a descoberta dos efeitos psíquicos deste composto.
Howoritz:
“LSD-25” significa que a preparação do LSD, com os característicos efeitos psicoativos, foi a vigésima quinta que você fez?
Hofmann:
Não, o número 25 por trás do LSD significa que a dietilamida do ácido lisérgico foi o vigésimo quinto composto que eu havia preparado numa série de amidas do ácido lisérgico.
Horowitz:
No relato publicado de sua primeira experiência com o LSD, em 16 de abril de 1943, às 15h00 em Basel, você escreveu sobre uma “intoxicação de laboratório”. Você engoliu algo, respirou um vapor, ou algumas gotas de solução caíram sobre você?
Hofmann:
Não, eu não engoli nada, e eu estava acostumado a trabalhar sob várias condições de limpeza pois, em geral, essas substâncias são tóxicas. Você deve trabalhar muito, muito limpo. Provavelmente, um traço da solução de dietilamida do ácido lisérgico, que eu estava cristalizando do álcool metílico, foi absorvido através da pele dos meu dedos.
Horowitz:
Quão grande foi a dose que você tomou naquela primeira vez, e qual foi a natureza e intensidade daquela experiência?
Hofmann:
Eu não sei—um traço imensurável. A primeira experiência foi bem fraca, consistindo em pequenas mudanças. Tinha uma agradável qualidade de filme de conto de fadas. Três dias depois, em 19 de abril, 1943, eu fiz meu primeiro experimento planejado, com 0,25 miligramas (ou 250 microgramas).
Horowitz:
Você engoliu?
Hofmann:
Sim, eu preparei uma solução de 5 miligramas e tomei uma fração correspondente a 250 microgramas, ou 25 milionésimos de uma grama. Eu não esperava que esta dose funcionasse, e planejava tomar mais e mais, até obter os efeitos. Na época, não havia nenhuma outra substância conhecida que tivesse qualquer efeito numa dose tão pequena.
Horowitz:
Os seus colegas sabiam que você estava fazendo este experimento?
Hofmann:
Somente meu assistente.
“Das minhas experiências com LSD… eu recebi o conhecimento de não apenas uma, mas de um número infinito de realidades.”
Horowitz:
Você estava familiarizado com o trabalho sobre mescalina feito por Klüver, Beringer e Rouhier no final dos anos 1920, antes de você fazer, em você mesmo, experimentos com substâncias alteradoras da mente?
Hofmann:
Não – eu fiquei interessado no trabalho deles somente após a descoberta do LSD. Eles são pioneiros na área das plantas psicoativas.
A mescalina, estudada pela primeira vez por Lewin em 1888, foi o primeiro alucinógeno disponível como um composto quimicamente puro; LSD foi o segundo. As investigações de Karl Beringer foram publicadas na clássica monografia “Der Meskalinrausch” em 1928, mas nos anos seguintes, interesse na pesquisa de alucinógenos desapareceu gradualmente.
Não foi até minha descoberta do LSD, que é aproximadamente 5.000 a 10.000 vezes mais ativo que a mescalina, que esta linha de pesquisa recebeu novo ímpeto.
Horowitz:
Naquela tarde, por quanto tempo você conseguiu escrever notas de laboratório?
Hofmann:
Não muito. À medida que os efeitos se intensificavam, eu percebia não saber o que iria acontecer, se algum dia eu voltaria ao normal. Eu pensei que estava morrendo ou ficando louco. Eu pensei na minha esposa e duas crianças pequenas, que nunca saberiam, ou entenderiam, por que eu teria feito aquilo. Meu primeiro auto experimento planejado com o LSD foi uma “bad trip”, como dizem nos dias de hoje.
Horowitz:
Por que levou quatro anos, desde a sua descoberta dos efeitos psíquicos do LSD, até a publicação de seu relato? Sua informação foi abafada?
Hofmann:
Não havia abafamento sobre este conhecimento. Depois da confirmação, por parte dos meus voluntários da equipe da Sandoz, da ação deste extraordinário composto, o Professor Arthur Stoll, que na época era o diretor do departamento de farmacologia da Sandoz, perguntou-me se eu permitiria seu filho, Werner A. Stoll—que estava iniciando sua carreira no hospital psiquiátrico da Universidade de Zurique—enviar este novo agente para um estudo psiquiátrico fundamental em voluntários normais e em pacientes psiquiátricos. Esta investigação levou um longo tempo, pois, o Dr. Stoll, assim como eu e a maioria dos jovens suíços naquele período de guerra, frequentemente tínhamos que interromper nossos serviços e servir ao exército. Esse excelente e compreensivo estudo não foi publicado até 1947.
Horowitz:
Agentes governamentais, cientes do LSD, lhe abordaram durante a Segunda Guerra Mundial?
Hofmann:
Antes do relatório psiquiátrico de Werner Stoll em 1947, não havia nenhum conhecimento geral sobre o LSD. Em contrapartida, nos círculos militares dos anos 1950, havia discussão aberta sobre o LSD como uma “droga incapacitante”, e portanto “uma arma sem morte”. Na época, o Exército dos EUA enviou um representativo a Sandoz para falar comigo sobre o procedimento de produção de LSD em larga quantidade.
Claro, o plano de usá-lo como um “agente incapacitante” não foi viável, pois não havia maneira de distribuir uniformemente as doses—alguns tomariam um monte e outros não tomariam nada. Discussões sobre os usos militares do LSD não eram segredo naqueles tempos, apesar de alguns jornalistas falarem como se fosse.
Horowitz:
O nome de Arthur Stoll aparece junto ao seu no artigo de química onde a síntese do LSD é descrita pela primeira vez. Qual era a conexão dele com esta investigação?
Hofmann:
O nome de Stoll, como parte de sua função de diretor do departamento, aparece em todos os artigos vindos dos laboratórios de pesquisa da Sandoz; mas ele não teve conexão direta nenhuma com a descoberta do LSD. Ele foi um dos pioneiros na pesquisa com ergot, tendo isolado em 1918 o primeiro alcalóide quimicamente puro do ergot—a ergotamina—que mostrou ser um medicamento útil no tratamento de enxaqueca. Mas então a pesquisa com ergot foi interrompida na Sandoz, até que eu retomei-a novamente em 1935.
Horowitz:
Quem foi a segunda pessoa a tomar LSD?
Hofmann:
Professor Ernst Rothlin, o então diretor do departamento de farmacologia da Sandoz. Rothlin estava duvidoso quanto ao LSD; ele alegou ter uma volição forte, e que era capaz de suprimir os efeitos de drogas. Mas após ter tomado 60 microgramas—um quarto da dose que eu havia tomado—ele ficou convencido. Eu tive que rir enquanto ele descrevia suas fantásticas visões.
Horowitz:
Você tomou LSD fora do laboratório?
Hofmann:
Por volta de 1949 a 1951, eu arranjei algumas sessões domiciliares com LSD, na companhia amigável e privada de dois bons amigos: o farmacologista Heribert-Konzett, e o escritor Ernst Jüenger. Jüenger é o autor de, entre outras obras, “Abordando Revelações: Drogas e Narcóticos” [“Annaeherungen; Drogen und Rausch“. Stuttgart: Klett. 1970].
Eu fiz isso com o intuito de investigar a influência dos arredores, das condições exterior e interior na experiência do LSD. Esses experimentos mostraram-me o enorme impacto do—para usar termos modernos—set & setting sobre o conteúdo e caráter da experiência.
Também aprendi que o planejamento tem suas limitações. Apesar do bom humor no início de uma sessão—expectativas positivas, belos cenários e companhia simpática—certa vez eu caí numa terrível depressão. Esta imprevisibilidade dos efeitos é o maior perigo do LSD.
Horowitz:
Há quanto tempo e com que frequência você continua a tomar LSD?
Hofmann:
Os meus 10 a 15 experimentos com LSD foram distribuídos ao longo de 27 anos. O último foi em 1970. Desde então, eu não tomei mais LSD, pois acredito que, tudo o que uma experiência de LSD pode me dar, já foi-me dado. Talvez, mais tarde em minha vida, eu precise tomar uma ou várias vezes mais.
Horowitz:
Qual foi a sua maior dose única de LSD tomada?
Hofmann:
250 microgramas.
Horowitz:
Você recomendaria o uso de LSD?
Hofmann:
Eu suponho que sua pergunta refere-se ao uso não medicinal de LSD. Atualmente, se tal uso fosse legal (o que não é o caso), eu sugeriria as seguintes diretrizes: a experiência é melhor conduzida por uma pessoas madura, estável e com uma razão significativa para tomar o LSD.
No que diz respeito aos seus efeitos psíquicos e sua constituição química, o LSD pertence àquele grupo de drogas mexicanas, “peyotl”, “teononocotl” e “ololiuqui”, que tornaram-se drogas sagradas devido a sua misteriosa maneira de afetar o cerne da mente.
A veneração temerosa das religiões indígenas pela droga psicodélica, pode ser substituída, em nossa sociedade, por respeito e reverência, baseado em conhecimento científico estabelecido de seus efeitos psíquicos únicos.
Esta atitude respeitosa em relação ao LSD, deve ser complementada por condições externas apropriadas—pela escolha de um ambiente inspirador e uma companhia selecionada para a sessão; e havendo assistência médica disponível, no caso em que for preciso.
Horowitz:
Os efeitos do ergotismo são similares aos do LSD?
Hofmann:
Há duas formas de ergotismo: “ergotismus gangrenosus” e “ergotismus convulsivus”. A primeira é caracterizada por sintomas de gangrena, porém não acompanha efeitos psíquicos. Na última forma, contrações e convulsões dos músculos acarretam, frenquentemente, num estado comparável à epilepsia—uma condição às vezes acompanhada por alucinações, e assim relacionada aos efeitos do LSD. Isso pode ser explicado pelo fato de que os alcalóides do ergot têm o mesmo núcleo básico que o LSD; isto é, eles são derivados do ácido lisérgico.
“Eu fiquei sabendo… que os russos estudaram os usos do LSD em investigações militares e parapsicológicas; e que eles estavam à procura de um antídoto.”
Horowitz:
Você concorda com o termo “psicodélico”, cunhado pelo Dr. Humphry Osmond?
Hofmann:
Eu acho que é um bom termo. Corresponde melhor aos efeitos dessas drogas do que “alucinógenos” ou “psicotomiméticos”. Outra denominação adequada seria “phantastica”, cunhada por Loius Lewin nos anos 1920; mas não foi aceita em países anglo-saxônicos.
Horowitz:
Você descreveu as suas investigações sobre drogas psicoativas como um “círculo mágico”. O que você quer dizer?
Hofmann:
Minhas investigações com as amidas do ácido lisérgico me levaram ao LSD. O LSD trouxe os cogumelos sagrados mexicanos à minha atenção, que levou à síntese de psilocibina, que por sua vez trouxe a visita de Gordon Wasson e as subsequentes investigações com o “ololiuqui”. Lá, de novo eu me encontrei com as amidas do ácido lisérgico, encerrando o círculo mágico 17 anos depois.
Horowitz:
Você pode descrever os eventos que levaram a isso?
Dr. Hofmann segurando o fungo Ergot no centeio, março 1976.
Hofmann:
Após ter estudado a cerimônia do cogumelo no México, durante 1954 e 1955, Gordon Wasson e sua esposa convidaram o micologista Roger Heim a acompanhá-los numa nova expedição em 1956, a fim de identificar o cogumelo sagrado.
Ele descobriu que, a maioria dos cogumelos, eram de uma nova espécie pertencente ao gênero “Psilocybe mexicana”, da família “Strophariaceae”. Em seu laboratório em Paris, ele foi capaz de artificialmente cultivar alguns deles, mas, após tentativas mal sucedidas em isolar o princípio ativo, ele enviou os cogumelos sagrados aos laboratórios Sandoz, na esperança de que nossa experiência com LSD nos permitiria resolver o problema. Num certo sentido, o LSD trouxe os cogumelos sagrados ao meu laboratório. Primeiramente, testamos o extrato de cogumelo em animais, mas os resultados foram negativos. Era incerto se os cogumelos cultivados e secados em Paris continuavam ativos; então, a fim de resolver este ponto fundamental, decidi testá-los em mim mesmo. Eu comi 32 espécimes secos de “Psilocybe mexicana”.
Horowitz:
Não é uma dose grande?
Hofmann:
Não. Os cogumelos eram muito pequenos, pesando apenas 2,4 gramas—uma dose média, segundo os padrões indígenas.
Horowitz:
Como foi?
Hofmann:
Tudo assumiu um caráter mexicano, fosse com meus olhos fechados ou abertos. Eu via apenas temas e cores mexicanas. Quando o doutor, supervisionando o experimento, curvou-se para verificar minha pressão sanguínea, ele foi transformado em um sacerdote asteca, e eu não ficaria surpreso se ele houvesse sacado uma faca de obsidiana.
Foi uma experiência forte e durou cerca de seis horas. Os cogumelos estavam ativos; os teste em animais deram resultados negativos devido à comparável baixa sensibilidade dos animais para substâncias com efeitos psíquicos.
Horowitz:
Você então procedeu com a síntese?
Hofmann:
Depois deste confiável teste em seres humanos (o que significa que eu e meus colegas de trabalho ingeriram as frações a serem testadas), eu extraí os princípios ativos dos cogumelos, purifiquei-os e finalmente os cristalizei.
Eu nomeei “psilocibina” o principal princípio ativo do “Psilocybe mexicana”; e psilocina para o seu alcalóide acompanhante, geralmente presente apenas em quantidades pequenas. Então, eu e meus colegas estávamos capazes de elucidar a estrutura química da psilocibina e psilocina, e após isso, nós conseguimos sintetizar tais compostos.
Hoje, a produção sintética de psilocibina é muito mais econômica do que obter do próprio cogumelo. Assim, o “teonanacatl” fora desmistificado—as duas substâncias, cujo efeitos mágicos fizeram os indígenas mexicanos acreditarem por milhares de anos que um deus residia no cogumelo, poderiam agora ser preparadas em uma retorta.
Horowitz:
Em uma de suas palestras gravadas, Aldous Huxley descreveu o encanto da famosa “curandera” de Wasson, Maria Sabina de Huautla, sobre a ingestão da psilocibina. Ela percebeu que poderia fazer magia durante todo o ano, e não apenas na sessão do cogumelo após as chuvas.
Hofmann:
Aquela era a minha psilocibina. Quando eu e Wasson visitamos Maria Sabina, não haviam cogumelos sagrados pois, era muito tarde na estação do ano; então fornecemos a ela pílulas contento psilocibina sintética.
Após ter tomado uma dose um tanto forte, no decorrer da sessão noturna, ela disse não haver diferenças entre as pílulas e os cogumelos. “O espírito do cogumelo está na pílula”, disse ela—prova final de que nossa preparação sintética era idêntica, em todos os aspectos, ao produto natural.
Horowitz:
O que incitou sua investigação de outra das plantas sagradas mexicanas, o “ololiuqui”?
Hofmann:
Quando Wasson veio a Sandoz, em meu laboratório, para ver os cristais de psilocibina sintética, ele estava encantado com os resultados de nossa investigação química, que haviam confirmado seus estudos etnomicológicos sobre os cogumelos sagrados. Nos tornamos amigos e fizemos planos futuros para investigar as plantas sagradas mexicanas.
O próximo problema que decidimos atacar, foi o enigma do “ololiuqui”, que é o nome asteca para as sementes de certas glórias-da-manhã. Com a ajuda de Wasson, eu pude obter sementes de “ololiuqui” coletadas por indígenas zapotecas. A análise química (das sementes de “ololiuqui”) forneceu um resultado bastante surpreendente. O princípio ativo que isolamos mostrou-se ser a amida do ácido lisérgico, e outros alcalóides do ergot.
Horowitz:
Então o “ololiuqui” é quimicamente relacionado ao LSD?
Hofmann:
Sim. O principal alcalóide do “ololiuqui” é a amida do ácido lisérgico, que difere do LSD—da dietilamida do ácido lisérgico—por apenas dois radicais etil. Eu não esperava encontrar derivados do ácido lisérgico—que na época eram conhecidos apenas como produtos de fungos inferiores do tipo ergot—também em plantas superiores, em espécies da glória-da-manhã da fanerogâmica família dos “Convolvulaceae”. Meus resultados foram tão surpreendentes, que o primeiro artigo enviado sobre o assunto, em Melbourne em 1960, havia sido recebido com ceticismo pelos meus colegas. Eles não acreditavam em mim. “Oh, você tem tantos compostos de ácido lisérgico em seu laboratório, talvez tenha contaminado seu “ololiuqui” com extratos deles”, diziam eles.
Horowitz:
Qual era o propósito de sua jornada ao México?
Hofmann:
Era uma expedição que Wasson organizou no outuno de 1962, em busca por outra não identificada e mágica planta mexicana, a saber, a chamada “hojas de la Pastora”. Nós viajamos a cavalo em trilhas indígenas pela Sierra Mazateca, chegando finalmente em tempo para estar presente numa cerimônia noturna, na cabana de uma curandera que utilizava o suco de folhas da “hojas de la Pastora”. Mais tarde, conseguimos obter algumas amostras da planta. Era uma nova espécie da família da hortelã, que foi, posteriormente, identificada botanicamente na Universidade de Harvard e nomeada “Salvia divinorum”. De volta ao meu laboratório na Sandoz, eu não tive sucesso em extrair o princípio ativo, que na “Salvia divinorum” é muito instável.
Horowitz:
Os efeitos psicoativos da “Salvia divinorum” são similares àqueles do LSD e “Psilocybe mexicana”?
Hofmann:
Sim, porém menos pronunciados.
Horowitz:
Quais escritores você acha que têm mais sucesso em transmitir a experiência psicodélica na literatura?
Na literatura alemã, Rudolf Gelpke merece ser mencionado a este respeito, mas eu creio que seu trabalho não esteja disponível em inglês. “Von Fahrten in den Weltraum der Seele” [“Viajem no Cosmos da Alma”], publicado no jornal “Antaios” em 1962, é especialmente bom. Eu devo também mencionar a nova monografia do Dr. Stan Grof, “Realms of the Human Unconscious” [New York: Viking, 1975], contendo descrições excelentes de sessões com LSD na perspectiva de estudos psiquiátricos.
Horowitz:
Herman Hesse ou Carl Jung alguma vez mostraram interesse em sua descoberta?
Hofmann:
Eu nunca conheci Hesse, mas seus livros—especialmente “O Jogo das Contas de Vidro” e “O Lobo da Estepe”—me interessaram profundamente em relação à pesquisa com LSD. É possível que Hesse experimentou com mescalina nos anos 1920, como alguns supõe—eu não tenho forma alguma de saber. Exceto um breve encontro com Jung, em um congresso internacional de psiquiatras, eu não tive contato com ele.
Horowitz:
Alguma vez você se encontrou com Aldous Huxley?
Hofmann:
Duas vezes. Em 1961, eu me encontrei com ele para almoço em Zurique; e novamente em 1963, quando ambos estávamos atendendo a Conferência WAAS [World Academy of Art and Science], onde tópicos gerais sobre superpopulação, esgotamento dos recursos naturais e ecologia foram discutidos. Eu fiquei profundamente impressionado com Huxley: ele irradiava vida, inteligência, bondade e franqueza—e claro, era extremamente articulado.
Horowitz:
O que você acha do “Livro Tibetado dos Mortos”, como um guia para a experiência psicodélica, conforme sugerido por Huxley e os pesquisadores de Harvard, dentre outros?
Hofmann:
As ideias e instruções gerais dadas, sobre como preparar e conduzir a sessão psicodélica, são o resultado de longas experiências nesta área, e parecem muito valiosas. O que me perturba é o uso estrangeiro do simbolismo tibetano. Eu prefiro que permaneçamos dentro do nosso próprio quadro cultural—que usemos símbolos encontrados nos escritos de místicos ocidentais, tais como Silesius, Eckhart, Boehme e Swedenborg.
Horowitz:
Qual foi sua impressão sobre o trabalho do Dr. Timothy Leary com psicodélicos?
Hofmann:
Eu formei minha primeira impressão do Dr. Leary em 1963. Naquela época, ele estava envolvido, juntamente com seu colega, o Dr. Richard Alpert, em um projeto na Universidade de Harvard investigando o uso de LSD e psilocibina na reabilitação de presidiários. O Dr. Leary me enviou um pedido de 100 gramas de LSD, e 25 quilos de psilocibina. Antes que o departamento de vendas da Sandoz pudesse executar a demanda de extraordinária quantidade de compostos psicodélicos, solicitamos ao Dr. Leary o fornecimento da licença de importação necessária das autoridades de saúde dos EUA. Ele falhou em fornecê-la. A maneira irrealista na qual ele lidou com esta transação, deixou a impressão de um pessoa indiferente aos regulamentos da sociedade.
Eu tive um vislumbre de outra faceta de seu caráter quando, mais tarde naquele mesmo ano, ele me convidou a participar de um encontro em Zihuatanejo (México) sobre pesquisa de drogas. Ele emfatizou que rádio, televisão e jornalistas das mais importantes mídias de massa estariam presentes, o que revelou uma personalidade muito pública em sua consciência.
Horowitz:
Você se encontrou com Leary mais tarde, não?
Hofmann:
Uma década depois que o Dr. Leary escapou da prisão e estava vivendo em exílio na Suíça. Eu estava ansioso para conhecê-lo pessoalmente, tendo lido tanto sobre ele na mídia durante o período de intervenção. No dia 3 de setembro de 1971, se encontraram em Lausanne o pai e o profeta do LSD.
Eu fiquei surpresso em encontrar, não um cientista do tipo professoral, nem um fanático; mas um delgado, sorridente e juvenil homem, representando mais um campeão de tênis do que um professor de Harvard.
No decorrer de nossa conversa, o Dr. Leary deu-me a impressão de uma pessoa idealística, que acredita na influência transformadora das drogas psicodélicas sobre a humanidade; que é consciente do complexo problema de drogas e, ainda assim, era desleixado quanto a todas as dificuldades envolvidas na promoção de suas ideias.
Horowitz:
Além do seu estilo pessoal, o que você achava das ideias do Dr. Leary na época de seu encontro na Suíça?
Hofmann:
Nós estávamos de acordo no que concerne a enorme importância de fazer uma distinção fundamental entre as drogas. Concordamos que o uso de drogas produtoras de dependência, especialmente a heroína (com seus desastrosos efeitos somáticos e psíquicos), deveriam ser evitadas por qualquer meio possível. Concordamos também, na avaliação dos potenciais efeitos benéficos das drogas psicodélicas. Nós discordamos quanto à extensão e por quem os psicodélicos devem ser usados.
Ao passo que o Dr. Leary advoga o uso de LSD, sob condições apropriadas, por pessoas muito jovens, por adolescentes, eu insisti que uma personalidade madura e estável fosse uma condição prévia. Madura pois, a droga pode liberar apenas o que já está na mente. Não traz nada novo—é como uma chave que pode abrir uma porta para o nosso subconsciente. Estável pois, é necessário força espiritual para manusear e integrar uma esmagadora experiência psicodélica em sua “Weltbild” (N.T.: visão de mundo).
Horowitz:
O LSD possui qualidades afrodisíacas?
Hofmann:
Apenas no sentido em que o LSD adiciona novas dimensões para todas experiências; incluindo, é claro, a sexual.
Horowitz:
Você se beneficiou financeiramente de sua descoberta do LSD?
Hofmann:
Não.
Horowitz:
A Sandoz é uma das maiores empresas farmacêuticas do mundo. Como que lidou com a produção e distribuição de uma substância tão controversa quanto o LSD?
Hofmann:
Desde o início, era claro que o LSD (apesar de suas extraordinárias qualidades) não tornaria-se uma preparação farmacêutica de valor comercial. Não obstante, a Sandoz colocou um enorme esforço em investigações científicas da substância, mostrando o papel eminente que o LSD poderia ter como uma excelente ferramenta na pesquisa do cérebro e na psiquiatria.
Portanto, a Sandoz tornou o LSD disponível no mundo todo, para investigadores clínicos e experimentais qualificados, a fim de promover tais pesquisas com ajuda técnica e, em muitas casos, auxílio financeiro. A Sandoz teve um papel nobre no desenvolvimento científico do LSD.
Horowitz:
A Sandoz interrompeu a produção de LSD porque ele estava entrando no mercado negro?
Hofmann:
Em 1965, no começo da histeria do LSD, a Sandoz interrompeu completamente a distribuição de LSD para propósitos de pesquisa, no intuito de evitar toda possibilidade (e para contrariar falsos rumores) de que o seu LSD estaria entrando no mercado negro. Outra razão, era forçar autoridades de saúde de diferentes países, a fornecer regras e regulações adequadas sobre a distribuição de LSD. Depois que isso foi realizado, novamente eles forneceram LSD para distribuição na América pela FDA [Food and Drug Administration], porém apenas aos investigadores licenciados.
“Aos 19 anos, eu tomei a decisão de tornar-me químico, por razões ambas místicas-filosóficas e curiosidade.”
Horowitz:
Nos Estados Unidos, tem havido uma recente grande investigação sobre experimentos indequados com LSD, conduzidos pela CIA, Exército, Marinha e outras agências governamentais. Eles obtiveram LSD da Sandoz, assim como Timothy Leary obteve o dele em seu projeto psicodélico de Harvard?
Hofmann:
A Sandoz fornecia a Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (a FDA), que então distribuía na América. Provavelmente, foi assim que a CIA e outros obtiveram.
Horowitz:
Você alguma vez foi abordado por agentes soviéticos, à procura de LSD da Sandoz ou de suas especialidades?
Hofmann:
Isso não aconteceu. Eu fiquei sabendo, de cientistas suecos em Estocolmo, que os russos estudaram os usos do LSD em investigações militares e parapsicológicas; e que eles estavam à procura de um antídoto. Mas a empresa farmacêutica de Spofa, em Praga, é que provavelmente forneceu o LSD.
Horowitz:
Você está familiarizado com o químico underground, Stanley Owsley, que nos anos 60 produziu a mais ampla distribuição de LSD clandestino?
Hofmann:
Eu escutei o seu nome mencionado nesse contexto, porém, não sei mais nada sobre ele.
Horowitz:
Quanto tem sido a pureza do LSD clandestino que você testou?
Hofmann:
Alguns continham a quantidade “rotulada”, alguns menos. É difícil de fazer uma preparação estável em condições laboratoriais menos que perfeitas. Você deve eliminar todo traço de oxigênio. Oxidação destrói o LSD, assim como a luz.
Horowitz:
Vocês está familiarizado com a substância parecida com o LSD, chamada ALD-52, que teve destaque num julgamento sobre ácido há dois anos?
Hofmann:
Sim. ALD-52 é acetil-LSD, uma modificação do LSD que se mostrou ser tão ativa quanto o original, pois, o acetil é removido dentro do corpo e então você tem os efeitos do LSD. Tem sido utilizado apenas experimentalmente. Alguns anos atrás, nós o enviamos ao Centro de Reabilitação de Drogas em Lexington (Kentucky) para testagem.
Horowitz:
O que você sabe sobre ketamina?
Hofmann:
Ketamina é um psicodélico totalmente sintético, diferentemente do LSD, que é um produto semissintético.
Horowitz:
Para muitas pessoas, o LSD proporciona algo que elas chamam de experiências religiosas. Quais são seus sentimentos sobre isso?
Hofmann:
Pessoas a quem o LSD proporciona experiências religiosas, esperam ter tais experiências quando elas tomam LSD. Expectativa—que é idêntica à auto sugestão—determina, num alto grau, o que irá acontecer na sessão, pois, sua extrema sugestibilidade é uma das características mais importantes do estado mental do LSD.
Outra razão para a incidência de experiências religiosas, é o fato de que o próprio núcleo da mente humana é conectado a Deus. Esta mais profunda raiz de nossa consciência, que no estado normal é encoberta por superficiais atividades racionais da mente, pode revelar-se através da ação de uma droga psicodélica.
Horowitz:
O LSD é um agente evolutivo?
Hofmann:
Possivelmente. No estado mental do LSD, podemos nos tornar conscientes, nas palavras de Teilhard de Chardin, do “todo complexo das relações inter humanas e intercósmicas com um imediatismo, uma intimidade e um realismo” que, de outra forma, aconteceria apenas em estados extáticos espontâneos, e para poucos abençoados.
Entre líderes espirituais, existe consenso de que, a continuação do presente desenvolvimento, caracterizado pelo crescimento da industrialização e superpopulação, irá resultar na exaustão dos recursos naturais e destruir as bases ecológicas da existência humana neste planeta. Esta tendência de auto aniquilação, é re forçada por políticas internacionais baseadas em “viagens de poder” e na preparação de armas de potencialmente apocalípticas.
Esse desenvolvimento pode ser impedido apenas através de uma mudança na atitude materialista que causou o próprio desenvolvimento. Esta mudança pode resultar apenas da percepção das raízes espirituais mais profundas da vida e da existência; do uso compreensivo de todas as forças de nossa inteligência e de todos os recursos de nosso conhecimento.
Esta abordagem intelectual, complementada pela experiência visionária, poderia produzir uma alteração de consciência sobre a verdade e realidade, que então poderia ter uma significância evolutiva. O LSD, seletiva e sabiamente usado, poderia ser o meio de alguém complementar a percepção intelectual e visionária, e ajudar a mente preparada a tornar-se consciente de uma realidade mais profunda.
Horowitz:
Suas experiências com LSD mudaram sua vida pessoal e gostos?
Hofmann:
Aumentou minha sensividade para música clássica—especialmente Mozart. Meus hábitos de vida não mudaram.
Horowitz:
Sua mulher também experimentou com psicodélicos?
Hofmann:
Sim. Uma vez no México, na sessão com “Salvia Divinorum”, quando eu tive um problema gástrico e não poderia ingerir o suco, ela tomou meu lugar. Ela também ingeriu algumas das pílulas de psilocibina durante a sessão histórica em que Maria Sabina confirmou sua potência.
Horowitz:
Para quais usos médicos gerais o LSD poderia ser comercializado no futuro?
Hofmann:
Doses muito pequenas, talvez 25 microgramas, poderiam ser úteis como um euforizante ou antidepressivo.
Horowitz:
Quais de seus trabalhos estão disponíveis em inglês?
Hofmann:
Há vários anos atrás, eu e o Dr. Richard Evans Schultes de Harvard, fomos coautores de um livro chamado “The Botany and Chemistry of Hallucinogens“. Destina-se, primariamente, em fornecer conhecimento básico de botânica e química das plantas alucinógenas a estudantes especializados. Atualmente, estou escrevendo minhas memórias; mas estas serão publicadas primeiro em alemão.
Horowitz:
O que você tem feito desde sua aposentadoria da Sandoz?
Hofmann:
Eu me aposentei em 1971, após 42 anos com a Sandoz. Desde então, eu tenho escrito e dado aulas sobre drogas psicoativas. Aqui em casa, eu trabalho no pomar e corro nas florestas para me exercitar. É maravilhoso poder passar um monte de tempo na natureza intocada, após décadas de trabalho em laboratórios.
Horowitz:
Em seu livro “Gravity’s Rainbow”, o autor americano Thomas Pynchon descreveu um vitral em seu escritório, nos enfadonhos laboratórios da Sandoz. Isso é verdade?
Hofmann:
Isso é verdade. Agora está aqui em minha casa. Na realidade, é um moderno vidro em estilo antigo, retratando Esculápio e seu mentor, o centauro Quíron.
Horowitz:
Os suíços estão orgulhosos de sua descoberta do LSD e das sínteses da psilocibina e “ololiuqui”, ou a controvérsia em torno destas drogas dissiparam isso?
Hofmann:
Minhas descobertas se mostraram bastante controversas. Alguns consideram estas drogas como sendo “diabolique”, e uns clérigos pediram-me para confessar minha culpa em público; mas em círculos profissionais, meu trabalho tem sido apreciado. Eu fui honrado pelo Instituo Nacional Politécnico aqui na Suíça; por graus honorários em ciência natural e em farmacologia no Swedish Royal Pharmaceutical Institute; e nos Estados Unidos, por uma adesão honorária na Sociedade Americana de Farmacognosia.
Horowitz:
O que o fez decidir tornar-se um químico?
Hofmann:
Eu estava interessado em saber do que nosso mundo era feito. A química é a ciência dos constituintes do mundo, então aos 19 anos, eu tomei a decisão de tornar-me químico, ambos por razões ambas místicas-filosóficas e curiosidade.
Horowitz:
O LSD afetou sua perspectiva filosófica?
Hofmann:
Das minhas experiências com LSD, incluindo a terrível primeira vez, eu recebi o conhecimento de não apenas uma, mas de um número infinito de realidades. Experienciamos uma realidade diferente, dependendo da condição de nossos sentidos e receptores psíquicos. Eu percebi que a profundeza e riqueza dos universos interior e exterior são imensuráveis e inesgotáveis; mas que devemos retornar destes mundos estranhos para nossas casas e viver aqui, na realidade que é fornecida pelos nossos sentidos normais e saudáveis. É como astronautas retornando de voos espaciais: eles devem reajustar-se a este planeta.
Em algumas de minhas experiências psicodélicas, eu tive um sentimento de amor extático e unidade com todas as criaturas do universo. Ter tido tal experiência de absoluta beatitude significa um enriquecimento de nossa vida.
Horowitz:
Como você gostaria que gerações futuras lembrassem de você e sua descoberta?
Hofmann:
Talvez a imagem de um químico andando de bicicleta, em sua primeiríssima viagem de LSD, irá mudar para o Velho da Montanha.
Eu sou parte do comitê científico da Segunda Conferência Mundial sobre Ayahuasca, a qual acontecerá em Rio Branco, na Amazônia Brasileira, em Outubro de 2016. Eu gostaria de compartilhar algumas incríveis informações científicas envolvendo a ayahuasca.
A conferência combina um palco principal, e um palco paralelo composto por pesquisadores que responderam ao “chamado para artigos”, um festival de cinema e uma série de eventos culturais. O palco principal terá representantes das religiões brasileiras que consagram ayahuasca, cerca de 100 indígenas e 11 mesas redondas. Estes incluem: xamanismo amazônico, cultura e patrimônio cultural, pesquisa científica, usos contemporâneos, intervenções clínicas, desafios da globalização, política e leis, meio ambiente e sustentabilidade, plantas da Amazônia, questões de gênero e riscos.
Na primeira edição da conferência em Ibiza, em 2014, foram enviadas cem propostas de apresentação. Agora, dois anos depois, esse número dobrou. A ciência da Ayahuasca parece espalhar-se pelo mundo vigorosa e dinamicamente assim como a própria ayahuasca. O número de profissionais está crescendo, estão cada vez mais inspirados para estudar esta substância intrigante através das lentes de diferentes disciplinas.
Das 200 apresentações recebidas, 120 foram para a área acadêmica, e 80 para o palco comunitário, que consiste de praticantes com conhecimento empírico. Os artigos vêm de um total incrível de 28 países! Metade das propostas são da área de ciências sociais, e a outra metade dos campos de biomedicina, psicologia e saúde pública combinados. Embora ainda haja uma predominância de pesquisadores e profissionais do sexo masculino, um número crescente de mulheres estão participando sobre estas questões.
Os tópicos são variados como: ayahuasca para moradores de rua, tratamento para usuários problemáticos de drogas ou álcool, uso por veteranos de guerra e prisioneiros, terapias para lidar com a morte e no parto, e o papel da ayahuasca nos distúrbios de saúde mental e no bem-estar psicológico . Eles também abordam a prática ritual, o conhecimento xamânico, as relações inter-étnicas, o hibridismo cultural, a transnacionalização religiosa, a política de cura e a mercantilização. Além disso, a relação com terapias alternativas e espiritualidade da Nova Era será contemplada. Algumas apresentações também se concentram nos tópicos de legalidade, riscos à saúde e abuso sexual. Finalmente, artes e música, ao lado de ecologia e conservação, estão no menu da conferência.
Quase metade das propostas enviadas vieram do Brasil. Embora isso seja compreensível, a conferência revelou, para nossa surpresa, a notável emergência de novos grupos de pesquisa em todo o país. Esses incluem:
Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes(PROAD)
São Paulo
Dr. Dartiu Xavier da Silveira
Um grupo de 21 anos de pesquisa sobre ayahuasca que se materializou fora da organização PROAD, que vem conduzindo pesquisas com drogas desde 1991. Atualmente, cerca de 20 professores, pós-doutores e estudantes de graduação e pós-graduação pesquisam os potenciais terapêuticos e Uso ritualístico da ayahuasca, incluindo estudos epidemiológicos, ensaios clínicos, estudos de comorbidade, neurociências e redução de danos.
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP)
São Paulo e outras cidades
Dra. Bia Labate
Uma rede de ciências sociais de 15 anos com 70 professores e pesquisadores de nível pós-graduado. Os membros do grupo organizaram várias conferências, publicaram dois livros e um grande número de dissertações de mestrado e doutorado, predominantemente em antropologia, sobre as religiões ayahuasca brasileiras (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal), novos usos urbanos de ayahuasca e indígenas.
Universidade de São Paulo (USP)
Ribeirão Preto
Dr. Jaime Hallak, Dr. José Alexandre Crippa, Dra. Flávia Osório e Dr. Antônio Zuardi
Um grupo de pesquisa com mais de 20 professores, pós-doutores e estudantes de pós-graduação, envolvido há mais de uma década na investigação de novos medicamentos para o tratamento de transtornos neuropsiquiátricos como depressão, ansiedade, esquizofrenia e doença de Parkinson. O grupo é uma das equipes científicas brasileiras mais produtivas no campo biomédico. Eles realizam ensaios clínicos com voluntários saudáveis e pacientes, investigando o potencial do uso terapêutico de vários fármacos, incluindo ayahuasca, canabidiol, nitroprussiato de sódio e ocitocina, entre outros.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Natal
Dr. Draulio de Araujo
Este é um grupo interdisciplinar de sete anos de idade de 30 pesquisadores, incluindo professores, pós-doutores e estudantes de graduação. Seus interesses de pesquisa incluem os efeitos antidepressivos agudos e duradouros da ayahuasca. Diferentes marcadores biológicos e comportamentais são investigados nos campos da bioquímica, neuropsicologia e neuropsiquiatria, usando métodos como MRIs e EEGs.
Universidade de Brasília (UNB)
Brasília
Dra. Regina Célia de Oliveira
Este trabalho é de um grupo de dois anos de idade, composto por seis pesquisadores botânicos e um toxicologista, incluindo professores e estudantes de graduação. O foco da pesquisa é descobrir quais espécies do cipó Banisteriopsis spp são usadas pelas religiões brasileiras da ayahuasca e entender seu conhecimento etnobotânico dessas espécies. O foco inclui morfologia externa, análise citogenética, seqüenciamento de DNA, caracterização química, fitoquímica, anatomia, diversidade genética, conservação, análise filogenética, composição química e componentes bioativos da ayahuasca.
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Campinas
Dr. Luis Fernando Tófoli
Trata-se de um grupo interdisciplinar de um ano de idade, composto por 20 professores, pesquisadores e alunos. Seus interesses de pesquisa incluem o manejo agrícola de Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, análises químicas das próprias espécies de ayahuasca, fisiologia da ayahuasca, estabilidade de amostras de ayahuasca, liofilização, metabolômica, potenciais terapêuticos e estudos neurocientíficos.
Segundo os pesquisadores, os principais desafios são:
– encontrar financiamento;
– obter acesso ao DMT;
– a ortodoxia de alguns grupos de ayahuasca e o acesso a eles;
– encontrar voluntários para as experiências (devido a critérios de recrutamento);
– prejuízo dos profissionais de saúde;
– acesso à videira e à folha, ambos crescendo na natureza e cultivados;
– os desafios analíticos da caracterização da química das plantas coletadas.
Por outro lado, como potenciais benefícios, essas pesquisas podem:
– reconhecer e registrar uma grande variedade de práticas culturais ricas;
– ampliar a compreensão dos diversos contextos de uso e seus significados;
– dissipar o estigma e a criminalização;
– dar mais legitimidade aos grupos da ayahuasca;
– propor alternativas aos desafios da expansão;
– informar sobre os riscos e benefícios;
– aprender sobre os processos de saúde mental em indivíduos saudáveis;
– encontrar tratamento alternativo para doenças mentais ou perturbações, incluindo novas formas de tratamento para depressão e ansiedade;
– desenvolver terapias psicodélicas;
– compreender a origem e a idade das espécies;
– compreender a diversidade cultural e genética das plantas.
Apesar dos enormes desafios no atual cenário político e científico brasileiro, a ciência psicodélica parece estar crescendo naturalmente. Se você está interessado nesses tópicos, esta conferência é “como mel para abelhas”, como dizemos no Brasil. Venha participar neste diálogo único entre o conhecimento tradicional e a ciência!
Bia Labate é uma antropóloga brasileira que vive no México. Pesquisa substâncias psicoativas, politica de drogas, xamanismo, rituais e religião. Tem 17 livros publicados.
Texto colhido do site Reality Sandwich, em que Ralph Metzner, uma das figuras mais importantes e ainda vivas da cultura psicodélica moderna em seu primórdio, parceiro de Timothy Leary e Richard Alpert, disserta sobre os estados de consciência durante o estado psicodélico. O texto tinha o intuito de convidar os psiconautas para um curso que ele estaria ministrando neste mês de fevereiro, de 2017, via internet. Boa leitura!
Android Jones — DREAMCATCHER
O conceito de estados alterados de consciência (ASCs) entrou em destaque na psicologia ocidental nos anos 1950 e 1960, principalmente devido a três avanços paradigmáticos. Um deles foi a descoberta de movimentos oculares rápidos (REM) durante o sonho, foi a primeira vez que as variações fisiológicas registráveis poderiam ser correlacionadas de forma confiável com um estado subjetivo específico de consciência. A segunda descoberta foi de que as gravações de atividade elétrica no cérebro (EEG), na faixa de frequência de 8 a 12 ciclos por segundo (chamadas ondas alfa) foram correlacionadas de forma confiável com estados calmos e introspectivos de relaxamento e meditação. A terceira descoberta foi a descoberta do LSD e de outras substâncias psicodélicas de “expansão da consciência”, o que significava que estados de consciência profundamente transformados e transformadores, até agora acessíveis apenas a alguns indivíduos envolvidos em práticas meditativas ou iogues, poderiam ser induzidos com confiabilidade em pessoas comuns, dada a preparação certa, salvaguardas e ‘set / setting’.
Essas descobertas de correlações entre variações nas funções neurais e variações na consciência subjetiva estimularam um enorme aumento da pesquisa, que continua até hoje, usando tecnologias como EEG, MRI, PET e outros. Essa abordagem – o estudo das associações entre medidas da atividade cerebral e estados mentais – tornou-se o paradigma dominante no estudo científico da consciência. Baseia-se na suposição filosófica subjacente da cosmovisão ocidental e materialista de que a consciência deve, de alguma forma, estar localizada no cérebro. Esta é uma visão que remonta ao trabalho do matemático francês do século XVIII, René Descartes, que especulou que a alma poderia ser encontrada na glândula pineal. As filosofias orientais do Yoga e do Budismo vêm de uma abordagem completamente diferente, baseando suas concepções da mente em observações sistemáticas de estados internos durante a meditação.
O insight chave que saiu dos estudos de Harvard com moléculas psicodélicas nos anos 60, era o significado do ajuste (intenção) e do ajuste (contexto) na compreensão de estados psicodélicos da consciência. Ao contrário das drogas que afetam o funcionamento de um ou outro órgão corporal, como o coração ou os rins, os psicodélicos expandem o alcance, o foco e a clareza da própria percepção – a maneira como vemos a realidade e a nós mesmos. Seu efeito vai muito além mesmo do humor-elevação, ou ansiedade-calmante, efeitos de drogas estimulantes ou sedativas.
Timothy Leary costumava dizer que as drogas psicodélicas eram potencialmente para a psicologia o que o microscópio era para a biologia – proporcionando a percepção consciente de faixas e níveis de realidade que anteriormente eram inacessíveis. Mas assim como o que percebemos através de um microscópio é uma função do que colocamos no slide (como a folha de uma planta, ou uma gota de sangue), então o conteúdo de uma experiência psicodélica (os pensamentos, imagens, sentimentos, sensações) é uma função do conjunto pré-existente ou intenção, do contexto escolhido ou configuração. A droga funciona meramente como uma espécie de catalisador ou gatilho que desloca o funcionamento mental para um modo novo até então.
Nos cursos de pós-graduação sobre estados alterados de consciência que eu ensinei por muitos anos, achei útil expandir esse paradigma básico de conjunto, configuração e catalisador para qualquer e todos os estados de consciência, do mais comum ao mais exótico. Os catalisadores ou desencadeadores bem conhecidos dos estados alterados de consciência (além de moléculas psicoativas) são induções hipnóticas, práticas meditativas, ritmos xamânicos, música, natureza, sexo e outros, bem como as variações cíclicas normais da química do cérebro que nos catalisam nos estados de sono ou vigília. Também é útil aplicar o paradigma ASC para entender estados psicopatológicos que são contrativos, fixos ou dissociativos e têm consequências negativas e tóxicas para os indivíduos, as famílias e as comunidades – incluindo vícios em drogas ou comportamentais, medo (ataques de pânico), raiva (ataques de temperamento), crises psicóticas ou episódios de depressão, mania e outros. Discutiremos tais estados em um capítulo posterior.
Uma questão que causa inquietação na maioria das pessoas ao considerar ou discutir o conceito de “estado alterado”, é a aparente implicação de que “alterado” é em si anormal. Como então poderíamos falar sobre ASCs sendo terapêutico, criativo, ou com desenvolvimento espiritual aumentado? Em meus cursos, eu tentei superar esse preconceito cognitivo, apontando para o fato de que todos os seres humanos estão muito familiarizados com as variações normais, profundamente alteradas no estado que chamamos de dormir, acordar e sonhar. Sigmund Freud disse que os sonhos são o “caminho real para o inconsciente”, o que significa que eles fornecem o acesso mais amplo. Mas pode-se dizer igualmente que os sonhos são o caminho dos plebeus, pois todos podem e viajam naquela passagem noturna para os reinos além. Na Índia, o “caminho real da yoga” (raja yoga) se referia ao uso intencional de práticas psicológicas para liberar a consciência de seu condicionamento comum – e esse caminho requer um certo estudo disciplinado e aplicação.
Alguns autores tentaram superar as pressuposições negativas associadas ao conceito de “estados alterados”, propondo termos como “estado alternativo” ou “estado não-ordinário”, ou (como em um manual da Associação Psicológica Americana) “Experiências anômalas”. Mas esta estratégia linguística disfarça o ponto em que algumas alterações de estado são extremamente comuns, usuais e familiares. O “sonhar” deveria ser considerado um “estado não-ordinário”? Que tal estar “bêbado” ou “deprimido” – não são aqueles estados bastante comuns, todos muito familiares? Além disso, alguns povos indígenas e praticantes xamânicos objetam que o que os ocidentais chamam de estados “não-ordinários”, lhes são muito familiares e comuns. Existe todo um espectro de estados de consciência, do familiar e comum ao anômalo e exótico extremo. Se o estado é normal ou anormal é, de qualquer modo, um juízo cultural e historicamente relativo imposto à experiência e, portanto, uma questão acadêmica de nenhum significado particular.
Cheguei finalmente a compreender meu próprio desconforto persistente com o conceito de “estado alterado”, além de confundir a distinção entre estados ordinários e não ordinários: tem haver com a construção passiva “alterada”, o que sugere que algo foi feito a você por uma agência externa. Um estado induzido por drogas parece apoiar essa visão. Mas temos que lembrar que normalmente o indivíduo escolhe ingerir a droga, seja álcool, LSD, ou maconha, com um determinado propósito e com a intenção de alterar sua própria consciência. Da mesma forma, uma pessoa pode optar por submeter-se a um procedimento de indução hipnótica para entrar em um estado de transe no contexto da psicoterapia. Alterar deliberadamente a consciência de outra pessoa sem seu conhecimento ou consentimento, por exemplo, por uso sub-reptício de uma droga ou álcool, é universalmente considerado moralmente repreensível e ilegal.
As transições de estado da vida cotidiana também podem ser concebidas e experimentadas, em termos ativos ou passivos. Podemos “ir dormir” com a intenção consciente para o repouso e restauração das energias; podemos “adormecer” involuntariamente devido à fadiga; ou podemos ser “adormecidos”, metaforicamente e literalmente, por um falante chato em uma sala de aula. Da mesma forma para a transição oposta: podemos ser “despertados” pelo despertador; apenas “acordar” espontaneamente; ou lutar, literal e metaforicamente, contra a atração descendente da sonolência, para se tornar mais plenamente consciente e alerta.
No budismo e outros ensinamentos espirituais, como os de G. I. Gurdjieff, o que consideramos nosso estado de vigília normal é visto como uma espécie de estado de sono, no qual estamos inconscientes de nossa natureza essencial. De acordo com esses ensinamentos, o propósito das práticas yogue e meditativas é nos ajudar a despertar das condições sombrias e sonhadoras da existência ordinária e não-consciente – e despertar para os nossos mais elevados potenciais espirituais e criativos.
A fim de usar expansiva e positiva os estados de consciência de forma construtiva para aumentar a saúde, criatividade e crescimento, precisamos ser capazes de reconhecer o estado que estamos em qualquer momento, e como navegar através dele. Nas práticas de adivinhação xamânica e alquímica, métodos de “condução sonora”, tais como bater ou chocalhar, são usados para facilitar o acesso ao conhecimento para a cura, resolução de problemas e orientação. Yogis e meditadores praticam atenção plena e métodos de concentração, a fim de experimentar as dimensões mais sutis da consciência.
Com estados contracionais e insalubres, como medo e raiva, precisamos identificar o estado em que estamos e reconhecer como isso está nos afetando (nosso pensamento, nossa percepção, nosso comportamento), bem como outros com quem podemos estar relacionados. Precisamos aprender como navegar nosso caminho através dos estados negativos para estados mais saudáveis, que afirmam a vida. Ao tornarmo-nos mais conscientes do estado em que nos encontramos num determinado momento, podemos mobilizar a atenção de diferentes maneiras, aumentar a gama de escolhas que podemos fazer e assumir mais plenamente a responsabilidade pelo impacto dessas escolhas nos outros e no nosso mundo.
O MODELO DE ‘SET e SETTING’
Um estado de consciência pode ser definido como o espaço ou campo subjetivo no qual os diferentes conteúdos da consciência, tais como pensamentos, sentimentos, imagens, percepções, sensações, intuições, memórias e assim por diante, funcionam em inter-relações padronizadas. Além disso, um estado de consciência sempre implica uma divisão definida do fluxo de tempo, entre dois pontos de transição. Por exemplo, estamos no estado de sono entre o momento de adormecer e o momento de acordar. Estamos no estado de vigília funcional, também chamado de “estado ordinário”, entre os momentos de acordar e de adormecer. Os estados de intoxicação por drogas ou álcool se estendem desde o momento da ingestão até o momento de “baixar”. Um estado meditativo ou um estado de transe hipnótico começa e termina com transições que nos referimos como “entrar” ou “voltar”, como se cruzássemos algum tipo de limite.
Embora possamos (às vezes) ancorar as transições de estados subjetivos para o tempo objetivo externo (relógio), é importante reconhecer que cada estado tem sua própria linha de tempo subjetiva ou fluxo de tempo. Por exemplo, nos sonhos o tempo e o espaço são bem diferentes do que no estado de vigília. Em um sonho podemos nos encontrar com uma pessoa amada que vive a milhares de quilômetros de distância – e não leva “tempo real” para viajar para esta reunião. Distância no estado de sonho não é geográfica, mas emocional, uma função de afinidade e interesse. De fato, nos sonhos e outros estados profundos, podemos nos encontrar conversando com alguém que está morto – tendo transcendido completamente os limites espaço-temporais da realidade comum. Nas transições entre estados, há uma descontinuidade e mudamos para um fluxo de tempo diferente e um espaço da mente diferente.
A noção de estado alterado adquiriu uma certa conotação de anormalidade, talvez devido à sua associação com o uso de drogas, embora todos estejamos familiarizados com os estados profundamente diferentes de sonhar e dormir. Por esta razão, cheguei a pensar que é importante para nós aprendermos a reconhecer e identificar os tempos e situações em que estamos funcionando de forma marcadamente diferente da usual, isto é, em um estado diferente.
Se pudermos identificar os pontos de transição ou gatilho quando o modo de consciência mudar, podemos aprender a utilizar os estados positivos de acordo com nossa intenção consciente. Por exemplo, um músico ou outro artista pode achar que um período de meditação facilita o acesso ao estado de fluxo que aumenta a expressão criativa. Talvez ainda mais importante para o nosso bem-estar, temos de aprender a navegar fora dos estados negativos, destrutivos. Por exemplo, aprender a reconhecer os gatilhos verbais para um estado alterado de raiva é um aspecto importante da gestão da raiva nas relações interpessoais. As transições entre diferentes estados são pontos de interseção de diferentes linhas de tempo, onde podemos conscientemente optar por mover-nos ao longo de outra linha do tempo para um espaço mais expansivo, cheio de novas possibilidades. Se não escolhermos conscientemente, então seremos desviados para outro estado de acordo com os ventos predominantes do karma, ou reações habituais.
Alguns estados alterados são geralmente considerados positivos, saudáveis e expansivos, associados a uma compreensão mais profunda de valor espiritual: podemos pensar em unicidade mística, êxtase, transcendência, visão, transe hipnoterapêutico, inspiração criativa, união erótica, viagem xamânica, consciência cósmica, Nirvana, Satori. Outros estados alterados são considerados negativos, insalubres, contrários, associados à ilusão, psicopatologia, destruição e conflito: podemos reconhecer os estados alterados de depressão, ansiedade, trauma, psicose, loucura, histeria, raiva, mania, estimulantes e compulsões comportamentais/obsessões associadas à sexualidade, violência, jogo e gasto de dinheiro.
Em medicina de emergência, as perguntas sobre a nossa orientação no tempo e lugar (que dia é hoje? que lugar é este?) São usados para diagnosticar o estado de consciência de alguém, possivelmente em choque ou trauma. Os estados mais profundamente alterados são aqueles em que o sentido de identidade ou auto-imagem é abolido ou transcendido: estes incluem os estados de ego-morte ou despersonalização que podem ocorrer na psicose, bem como estados de nirvana ou unicidade que podem ocorrer no misticismo.
A chave para a compreensão do conteúdo de uma experiência psicodélica, tal como formulada por Timothy Leary, Frank Barron e colegas (incluindo eu) nos primeiros dias da ‘Harvard Psilocybin Research Project‘, foi a hipótese de “set and setting”. Esta hipótese, que tem sido amplamente aceita dentro do campo, afirma que o conteúdo de uma experiência psicodélica não é tanto uma função da farmacologia, isto é, um “efeito das drogas”, mas sim uma função do conjunto, que é todos os fatores internos de expectativa, intenção, humor, temperamento, atitude; e ambiente, que é o ambiente externo, tanto físico e social, e incluindo as atitudes e intenções de quem fornece, inicia ou acompanha a experiência. A droga é considerada como um gatilho, ou catalisador, impulsionando o indivíduo em um estado diferente de consciência ou espaço da mente, em que a vivacidade e as qualidades contextuais das percepções dos sentidos são muito ampliadas.
Esta hipótese ajudou os pesquisadores de Harvard a entenderem como os mesmos medicamentos podiam ser vistos e usados como indutores de uma psicose modelo (psicotomimética), como um complemento à psicanálise (psicolítica), um tratamento para a dependência ou estímulo à criatividade (psicodélico), um facilitador de viagens de cura xamânica (enteogênica); ou mesmo, como usado pelo Exército dos EUA e CIA, como um tipo de soro da verdade e ferramenta para a obtenção de segredos de espiões inimigos. Dos dois fatores de conjunto e configuração, conjunto ou intenção são claramente primários, uma vez que o conjunto normalmente determina que tipo de configuração se vai escolher para a experiência.
De acordo com o modelo heurístico que proponho, podemos estender a hipótese do conjunto e da configuração a todas as alterações da consciência, independentemente do gatilho que elas sejam induzidas e mesmo dos estados que se repetem cíclica e regularmente, como dormir e acordar. Nessas alterações cíclicas da consciência, reconhecemos que eventos bioquímicos internos normalmente desencadeiam a transição para a consciência de dormir ou acordar, mas fatores externos também podem fornecer um catalisador. Por exemplo, deitado na cama, na escuridão, desencadeia alterações nos níveis de melatonina na glândula pineal, que por sua vez promover a transição para o sono. Outras alterações bioquímicas no cérebro, luz mais brilhante e os sons de um alarme, pode ser o gatilho para o despertar, novamente observado por mudanças bioquímicas cíclicas. Além disso, fatores externos, como drogas sedativas ou estimulantes, ruídos altos ou estresse, também podem desencadear essas variações no ciclo sono-vigília.
Claramente, o conteúdo dos nossos sonhos pode ser analisado como uma função do conjunto, as nossas preocupações internas durante o dia, bem como o ambiente em que nos encontramos. Os praticantes da “incubação dos sonhos” fazem uso deliberado desse princípio, formulando conscientemente certas questões relacionadas ao seu processo ou problemas internos, à medida que entram no mundo do sonho noturno. Nos templos de Asclépio na Grécia antiga, aqueles que sofreram doenças físicas ou psíquicas foram guiados para incubar sonhos de diagnóstico e cura.
No quadro deste modelo de ajuste e configuração, depois que nosso modo de funcionamento consciente regressa ao estado de linha de base (o que alguns também chamam de estado de realidade consensual), vem o momento da avaliação e interpretação. Tendo em mente os dois pontos de transição, dentro e fora do estado alterado, torna mais fácil separar a própria experiência de nossos pensamentos e julgamentos sobre ele. É o núcleo da prática de meditação de atenção plena (vipassana), onde você apenas observa seus pensamentos, sentimentos e sensações, mas não analisa, acompanha ou avalia.
Os julgamentos avaliativos são geralmente a primeira reação imediata após qualquer estado alterado. Podemos dizer, por exemplo, que foi uma ‘bad trip’ ou pesadelo, ou que esta foi uma experiência maravilhosa ou inspiradora. Os pesquisadores em neurociência descobriram que os juízos avaliativos de sentimento sobre nossa experiência se originam no sistema límbico dos mamíferos (especialmente a amígdala) e podem ser um resíduo evolutivo de uma reação de sobrevivência instintiva à ameaça percebida. Julgamentos avaliativos não transmitem muita informação sobre uma experiência no entanto. Quanto você realmente aprende sobre um filme, por exemplo, quando seu amigo simplesmente lhe diz que ele gostou ou que foi terrível?
Para trabalhar com sonhos ou outras experiências internas em psicoterapia ou crescimento pessoal, precisamos ir além dos primeiros julgamentos e interpretações associativas e perguntar-nos o que significa essa experiência para mim ou o que eu aprendi com ela? Um aspecto crucial do que se segue a uma experiência de estado alterada é a aplicação e integração, ou falta dela, na vida em curso. Será que uma visão mística da unicidade com o divino leva a um estilo de vida moralmente melhor, mais feliz e mais santo? Os insights de uma visão ou sonho de cura levam a uma resolução de problemas? O estado depressivo que estou experimentando significa que eu tenho um traço de personalidade depressiva, ou é uma reação temporária a uma situação estressante? Este é o tipo de exame reflexivo de nossas experiências pode, então, tornar-se uma prática psicoespiritual contínua.