Autonomia e Alienação (Atualizado, 06/04)

Autonomia e Alienação, por Cornelius Castoriadis, ” A Instituição Imaginária da Sociedade”, p.122-124.

Sentido da Autonomia.  – O Indivíduo

Se a autonomia está no âmago dos objetivos e dos caminhos do projeto revolucionário, é necessário precisar e elucidar esse termo. Tentaremos essa elucidação primeiro onde ela aparece mais fácil: a propósito do indivíduo, passando em seguida ao plano que mais interessa aqui, o plano coletivo. Tentaremos compreender o que é o indivíduo autônomo – e o que é uma sociedade autônoma ou não alienada.

Freud propunha como máxima da psicanálise “Onde era o Id, será o Ego” – “Seu objeto (dos esforços terapeuticos da psicanálise) é de reforçar o Ego (o eu consciente), de torná-lo mais independente do Superego, de ampliar seu campo de visão estendendo sua organização de tal maneira que ele possa apoderar-se de novas regiões do Id. Onde era Id será o Ego.” – Ego é aqui, numa primeira aproximação, o consciente em geral. O Id, propriamente falando, origem e lugar das pulsões (“instintos”), deve ser tomado nesse contexto como representando o inconsciente num sentido mais amplo. Ego, consciência e vontade, deve tomar o lugar da forças obscuras, que, “em mim”, dominam, agem por mim – “atuam-me” como dizia G. Groddeck. Essas forças não são simplesmente – não são tanto, voltaremos a isto mais adiante – as puras pulsões, libido ou pulsão de morte; são sua interminável, fantasiosa e fantastica alquimia, são também, e sobretudo, as forças de formação e de repressão inconscientes, o Superego e o Eu inconsciente. Uma interpretação da frase torna-se de imediato necessária. O Ego deve tomar o lugar do Id – isso não pode significar nem a supressão das pulsões, nem a eliminação ou a reabsorção do inconsciente. Trata-se de tomar de seu lugar na qualidade de instância de decisão. A autonomia seria o domínio do consciente sobre o inconsciente. Sem prejuízo da nova dimensão em profundidade revelada por Freud, este é o programa de reflexão filosófica sobre o indivíduo há vinte e cinco séculos, o pressuposto e ao mesmo tempo o resultado da ética tal como a viram Platão ou os estóicos, Spinoza ou Kant. (É em si uma imensa importância, porém não para esta discussão, que Freud proponha uma via eficaz para atingir o que permaneceu para os filósofos um “ideal” acessível em função de um saber abstrato). Se à autonomia, a legislação ou a regulação por si mesmo, opomos a heteronomia, legislação e regulação pelo outro, a autonomia é minha lei, oposta à regulação pelo inconsciente que é uma lei outra, a lei de outro que não eu.

Em que sentido podemos dizer que a regulação pelo inconsciente é a lei de um outro? De qual outro? De um outro literal, não de um “outro Eu” desconhecido, mas de um outro em mim. Como diz Jacques Lacan, “O inconsciente é o discurso do Outro”; é em grande parte, o depósito dos desígnos, dos desejos, dos investimentos, das exigências, das expectativas – significações de que o indivíduo foi o objeto, desde sua concepção, e mesmo antes, por parte dos que o engendraram e criaram. A autonomia torna-se então: meu discurso deve tomar o lugar do discurso do Outro, de um discurso estranho que está em mim e me domina: fala por mim. Esta elucidação indica de imediato a dimensão social do problema (pouco importa que o Outro de que se trata no início seja o outro “estreito”, parental; por uma série de articulações evidentes, o par parental remete, finalmente, à sociedade inteira e à sua história).

Mas qual é esse discurso do Outro não mais quanto a sua origem, mas quanto a sua qualidade? E até que ponto pode ser eliminado?

A característica essencial do discurso do Outro, do ponto de vista que aqui interessa, é sua relação com o imaginário. É que, dominado por esse discurso, o sujeito se toma por algo que não é  ( que, de qualquer maneira não é necessariamente para si próprio) e para ele os outros e o mundo inteiro sofrem uma deformação correspondente. O sujeiro não se diz, mas é dito por alguém, existe pois como parte do mundo de um outro (certamente, por sua vez, travestido). O sujeito é dominado por um imaginário vivido como mais real que o real, ainda que não sabido como tal, precisamente porque não sabido como tal. O essencial da heteronomia ou da alienação, no sentido mais amplo do termo – no nível individual, é o domínio por um imaginário autonomizado que se arrojou a função de definir para o sujeito tanto a realidade como o seu desejo. O Jogo Do Bicho é um jogo de loteria com uma história rica e um dos passatempos preferidos do Brasil. Neste jogo, os utilizadores têm a oportunidade de apostar numa variedade de animais, sendo cada animal associado a um grupo único de números. Review do caça-níquel Jogo Do Bicho https://jogodobichooficial.com .A jogabilidade foi pensada para os usuários poderem escolher até cinco animais diferentes em uma única aposta. Veja como o jogo se desenrola:

——–

Se quiserem depois eu posto a continuação do texto, que é bem grande.

——–

CONTINUAÇÃO

A “repressão das pulsões” como tal, o conflito entre o “princípio do prazer” e o “princípio da realidade”, não constituem a alienação individual que é, no fundo, o império quase ilimitado de um princípio de des – realidade. A esse respeito o conflito importante não é o que ocorre entre pulsões e realidade (se esse conflito bastasse como causa patogênica, jamais teria havido uma só resoluçõ mesmo aproximativamente normal do complexo de Édipo desde a origem dos tempos e jamais um homem e uma mulher teria andado sobre a terra). É o conflito entre pulsões e realidade, de um lado, e a elaboração imaginária no interior do sujeito, de outro lado.

O Id, nesta máxima de Freud, deve pois ser compreendido como significando essencialmente esta função do insconsciente que investe de realidade o imaginário, autonomiza-o conferindo-lhe poder de decisão – estando o conteúdo deste imaginário em relação com o discurso do Outro (“repetição”, mas também transformação amplificada desse discurso).

É pois lá onde estava essa função do inconsciente, e o discurso do Outro que fornece seu alimento, que o Ego deve advir. Isso significa que meu discurso deve tomar o lugar do discurso do Outro. Mas o que é o meu discurso? O que é um discurso que é meu?

Um discurso que é meu é um discurso que negou o discurso do outro; que o negou, não necessariamente em seu conteúdo, mas enquanto discurso do Outro; em outras palavras que, explicitando ao mesmo tempo a origem e o sentido desse discurso, negou-o ou afirmou-o com conhecimento de causa, relacionando seu sentido com o que se constitui como a verdade própria do sujeito – como minha própria verdade.

Se a máxima de Freud, nesta interpretação, fosse tomada em termos absolutos, ela proporia um objetivo inacessível. Nunca meu discurso será integralmente meu no sentido definido acima. É que evidentemente, eu não poderei jamais retomar tudo, ainda que simplesmente para ratificá-lo. É também  – e voltaremos a isto mais adiante – porque a noção de verdade prórpia do sujeito é em si mesma muito amis um problema do que uma solução.

Isso é também verdade no que se refere à relação com a função imaginária do inconsciente. Como pensar num sujeito que teria totalmente “reabsorvido” sua função imaginária, como poderíamos esgostar essa fonte no mais profundo de nós mesmos, de onde brotam ao mesmo tempo fantasias alienantes e criações livres, mas mais verdadeiras que a verdade, delírios irreais e poemas surreais, esse duplo fundo eternamente recomeçado de toda coisa, sem o qual nada teria fundo, como eliminar o que está na base de, ou pelo menos inextricavelmente ligado a, o que faz de nós homens – nossa função simbólica, que pressupõe nossa capacidade de ver e pensar em uma coisa algo que ela não é?

——–

Portanto, na medida em que não queremos fazer da máxima de Freud uma simples idéia reguladora definida em referência a um estado impossível – portanto uma nova mistificação – existe um outro sentido a dar-lhe. Ela deve ser compreendida como remetendo não a um estado concluído, mas a uma situação ativa; não a uma pessoa ideal que se tornaria Ego definitivamente, realizaria um discurso exclusivamente seu, jamais produziria fantasmas – mas a uma pessoa real, que não para seu movimento de retomada do que havia sido adquirido, do discurso do Outro, que é capaz de revelar seus fantasmas como fantasmas e não se deixe finalmente ser dominada por eles – a menos que assim o deseje. Não se trata aí de um simples “tender para”, é uma situação, ela é definível por características que traçam uma separação radical entre ela e o estado de heteronomia (ordem de fora, do outro, opressão). Essas características não consistem em uma “tomada de consciência” efetuada para sempre, mas sim uma outra relação entre consciente e inconsciente, entre lucidez e função imaginária, em uma outra atitude do sujeito relativamente a si mesmo, em uma modificação profunda da mistura atividade-passividade, do signo sob o qual esta se efetua, do respectivo lugar dos dois elementos que a compõem. O fato de que poderíamos completar a proposição de Freud pelo seu inverso: onde é o Ego o Id deverá surgir, mostra quão pouco se trata, em tudo isso, de uma tomada de poder pela consciência no sentido estrito. O desejo, as pulsões – quer se trate de Eros ou de Thanatos – sou eu também, e trata-se de levá-los não somente à consciência, mas à expressão e à existência. Um sujeito autônomo é aquele que sabe ter boas razões para concluir: isso é bem verdadeiro, e: isso é bem meu desejo.

A autonomia não é pois elucidação sem resíduo e eliminação total de discurso do Outro não reconhecido como tal. Ela é instauração de uma outra relação entre o discurso do Outro e o discurso do sujeito. A total eliminação do discurso do Outro não reconhecido como tal é um estado não-histórico. O peso do discurso de Outro, não reconhecido como tal, pode ser visto mesmo nos que tentaram mais radicalmente atingir o fundo da interrogação e da crítica dos pressupostos tácitos – quer seja Platão, Descartes, Kant, Marx ou o próprio Freud. Mas existem precisamente o que – como Platão ou Freud – jamais pararam nesse movimento; e existem os que pararam, e que às vezes, por isso, se alienaram em seu próprio discurso tornado outro. Existe a possibilidade permanente e permanentemente atualizável de olhar, objetivar, colocar a distância e finalmente transformar o discurso de Outro em discurso do sujeito.

Mas o que é esse sujeito? Este terceiro termo da frase de Freud que deve advir de lá onde estava o Id, certamente não é o Eu do “eu penso”. Não é o sujeito-atividade pura, sem entrave nem inércia, êste fogo-fátuo dos filósofos subjetivistas, esta flama independente de qualquer suporte, liame e alimento.

3 comentários em “Autonomia e Alienação (Atualizado, 06/04)”

  1. Olá!

    Esse texto é muito bom. Aprecio muito as obras do Castoriadis, tanto quando mexe e remexe com a psicanalise, tanto quando supera definitivamente o autoritarismo do socialismo “de seu tempo”.

    Esse texto, no entanto, me gera perguntas quanto a sua eficacia intelectual para abordarmos a questão dos enteogenos, pois parece levar em conta a concepção psicanalista do inconsciente que é, segundo Jung, considerar o inconsciente como um apendice da consciência. Se o inconsciente, além de um Outro, no sentido do imaginário depositado sobre, é também um “Outro” como alteridade criativa e transformadora, então é preciso não só que o Eu possa exercer sua vontade sobre este Outro, superando aquele discurso “sou assim porque… minha família era assim… ou sei lá o que) e assumindo a responsabilidade sobre a existência, mas também que esta alteridade criativa possa assumir o lugar do Eu, já que o Eu dificilmente foge a determinadas lógicas que nos aprisionam numa limitação existencial..

    Então, quando o sujeito se permite ser tomado, até certo ponto, por esta alteridade, ele pode também ampliar sua consciência e seu campo de visão… e ai entram, é claro, a necessidade de um postura ética e a necessidade de uma capacidade de elaboração dos conteúdos vivenciados…

    A discussão é boa. Belo texto e parabens pelo blog.

    Um abraço,
    Fernando Beserra

    1. Olá Fernando,

      Agradeço muito o seu comentário, pois você desperta uma questão bastante relevante, e que merece uma investigação cuidadosa que eu não tenho base para desenvolver, mas de todo modo, pelo que eu já li do Jung, ele não compreende o inconsciente como apenas um apêndice, mas muito mais do que isso. Até dentro da psicologia, não há consenso sobre a idéia de autonomia do inconsciente, se ele é uma estrutura que possui uma coerência de organização por sí, contudo, como você falou, a superposição do incosciente sobre o Eu é uma forma válida, na minha e acho que sua visão, que pode enriquecer o próprio entendimento do Eu. Como você falou, cabe à capacidade do indivíduo de elaborar essas experiências de expansão da consciência numa interface com o seu mundo vivido, pois essas jamais terão significados se não forem significadas pelos elementos representacionais que dispomos e podem que ser compartilhados…

      Abraço,

      João.

  2. Fala Fernando…

    Também não acho que Jung tenha considerado o inconsciente apenas como um apêndice da consciência. Essa noção provavelmente se aproxima mais da abordagem do Freud, mas pelo pouco que conheço sobre Jung, seu diferencial foi justamente o reconhecimento do dinamismo organizador que revela o inconsciente como muito além de um depósito de aspectos reprimidos pela consciência, mas como um “Outro” que continuamente agrega, organiza e produz conteúdo especificamente elaborado para suprir as demandas do que ainda não está ao alcance da consciência. Dessa forma, o diálogo do Eu com o inconsciente é extremamente valorizado, e no meu entendimento essa é uma das funções fundamentais da psicologia analítica de Jung.

    De qualquer forma acho que o teu questionamento é válido. O texto do Castoriadis a princípio pode parecer um discurso a favor do “calar a voz do Outro”, mas na verdade ele fala sobre obter autonomia sobre si-mesmo, para que ao invés de sermos vítimas passivas do discurso desse “Outro”, possamos analisar seus significados à luz da consciência.

    Acho que essa noção fica bem clara nesse trecho:

    “Um discurso que é meu é um discurso que negou o discurso do outro; que o negou, não necessariamente em seu conteúdo, mas enquanto discurso do Outro; em outras palavras que, explicitando ao mesmo tempo a origem e o sentido desse discurso, negou-o ou afirmou-o com conhecimento de causa, relacionando seu sentido com o que se constitui como a verdade própria do sujeito – como minha própria verdade.”

    Abraços

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *