A Cura Através dos Cogumelos

A seguir, o capítulo VI do livro “A vida de Maria Sabina, a sábia dos cogumelos” escrito por Álvaro Estrada. Neste capítulo Maria Sabina relata a experiência onde curou sua irmã ingerindo cogumelos que contém psilocibina e invocando sua força, como os antigos mazatecas faziam.


– Capítulo VI –

Vários anos, não sei quantos, depois de eu ter ficado viúva pela primeira vez, minha irmã María Ana adoeceu. Sentia dores no ventre: eram pontadas agudas que a faziam dobrar-se e gemer de dor. Eu via que ia ficando cada vez mais grave. Quando ela se sentia mais ou menos aliviada, voltava aos afazeres domésticos. Mas, sem que ela pudesse se controlar, uma vez desmaiou na estrada.

Seus desmaios ocorreriam freqüentemente mais tarde.

Temendo por sua saúde, contratei curandeiros para tratá-la, mas pude ver, com angústia, que seu mal aumentava. Certa manhã, não se levantou da cama; tremia e gemia. Fiquei preocupada como nunca. Chamei vários curandeiros, mas foi inútil. Eles não puderam curar a minha irmã.

Naquela tarde, vendo minha irmã estirada, pensei que estivesse morta. Minha única irmã. Não, isso não podia acontecer. Ela não podia morrer. Eu sabia que os meninos santos tinham o poder. Eu os tinha comido quando criança, e me lembrava que não faziam mal. Eu sabia que nossa gente os comia para curar doenças. Então, tomei uma decisão; naquela mesma noite, eu comeria os cogumelos santos. Fiz isso. Dei a ela três pares. Eu comi muitos, para que me dessem poder imenso. Não poso mentir, devo ter comido trinta pares de “derrumbe” ¹. (¹ Variedade de cogumelo. Psilocybe Caerulescen)

Quando os meninos estavam trabalhando dentro de meu corpo, rezei e pedi a Deus que me ajudasse a curar María Ana. Pouco a pouco, senti que podia falar cada vez com mais facilidade. Aproximei-me da enferma. Os meninos santos guiaram minhas mãos para apertar seus quadris.Suavemente, fui fazendo massagem onde ela dizia que doía. Eu falava e cantava. Sentia que cantava bonito. Dizia o que osmeninos me obrigavam a dizer.

Continuei apertando minha irmã, no ventre e nos quadris; finalmente, veio muito sangue. Água e sangue, como se estivesse parindo. Nunca me assustei, porque sabia que o pequeno que brota a estava curando através de mim. Os meninos santos aconselhavam, e eu executava. Fiquei com minha irmã até que o sangue parou de sair. Logo ela parou de gemer e dormiu. Minha mãe sentou-se junto dela para socorrê-la.

Eu não pude dormir. Os santinhos continuavam trabalhando em meu corpo. Lembro que tive uma visão: apareceram uns personagens que me inspiraram a respeito. Eu sabia que eram os Seres Principais de que falavam meus ascendentes. Eles estavam sentados atrás de uma mesa sobre a qual havia muitos papéis escritos. Eu sabia que eram papéis importantes. Os Seres Principais eram vários, uns seis ou oito. Alguns me olhavam, outros liam os papéis da mesa. Outros pareciam procurar logo entre os mesmos papéis. Eu sabia que não eram de carne e osso. Sabia que não eram seres de água ou de tortilla. Sabia que era uma revelação que os meninos santos me entregavam. Logo escutei uma voz. Uma voz doce mas autoritária ao mesmo tempo. Como a voz de um pai que gosta dos filhos mas cria-os com firmeza. Uma voz sábia que disse: “Esses são os Seres Principais…”. Compreendi que os cofumelos falavam comigo. Senti uma felicidade infinita. Na mesa dos Seres Principais apareceu um livro, um livro aberto que foi crescendo, até ficar do tamanho de uma pessoa. Em suas páginas havia letras. Era um livro branco, tão branco que resplandecia.

Um dos Seres Principais falou comigo, e disse: “María Sabina, este é o Livro da Sabedoria. É o Livro da Linguagem. Tudo o que nele está escrito é para você. O Livro é seu, pegue-o para trabalhar…” . Eu exclamei, emocionada: “Isso é para mim! Recebo-o…”

Os Seres Principais desapareceram e me deixaram só diante do imenso Livro. Eu sabia que era o Livro da Sabedoria.

O Livro estava diante de mim, eu podia vê-lo, mas não tocá-lo. Tentei acariciá-lo, mas minhas mãos não tocaram nada. Limitei-me a contemplá-lo e, então, comecei a falar. Então me dei conta que estava lendo o Livro Sagrado da Linguagem. Meu Livro. O Livro dos Seres Principais.

Eu tinha atingido a perfeição. Já não era mais uma simples aprendiz. Por isso, como um prêmio, como uma nomeação, o Livro me tinha sido outorgado. Quando se tomam os meninos santos se pode ver os Seres Principais, de outro modo não² . É que os cogumelos são santos; dão Sabedoria. A Sabedoria é a Linguagem. A Linguagem está no Livro. O Livro é outorgado pelos Principais. Os principais aparecem com o grande poder dos meninos.
Aprendi a sabedoria do Livro. Depois, em minhas visões posteriores, o Livro já não aparecia, porque eu já guardava seu conteúdo na memória.

Fiz a velada em que curei minha irmã María Ana como os antigos Mazatecos. Usei velas de cera pura; flores, açucenas e gladíolos (pode-se usar qualquer tipo de flor desde que tenha cheiro e cor). Também se usa copal (Resina de árvores usada como incenso) e São Pedro.

Queimei o copal em um braseiro e com a fumaça defumei os meninos santos que tinha nas mãos. Antes de comê-los falei com eles, pedi-lhes favor. Que nos abençoasse, que nos indicasse o caminho, a verdade, a cura. Que nos desse o poder de rastrear as pegadas do mal, para acabar com ele. Eu disse aos cogumelos: “Tomarei seu sangue. Tomarei seu coração. Porque minha consciência é pura, é limpa como a sua. Dêem-me a verdade. Que me acompanhe São Pedro e São Paulo…”. Ao sentir-me enjoada, apaguei as velas. A Escuridão serve de fundo para o que se vê ali.

Nesta mesma velada, logo que o Livro desapareceu, tive outra visão: vi o Supremo Senhor dos Montes, o Chicón Nindó. Vi que era um homem a cavalo que vinha até minha choça. Eu sabia, a voz me dizia, que aquele ser era um personagem. Sua cavalgadura era bela: um cavalo branco, tão branco quanto à espuma. Um belo cavalo.

O personagem parou sua cavalgadura diante da porta de minha choça. Eu podia vê-lo através das paredes. Eu estava dentro da casa, mas meus olhos tinham o poder de ver além de qualquer obstáculo. O personagem esperava que eu saísse.

Com decisão, saí ao seu encontro. Parei junto dele. Sim, era o Chicón Nindó, o que mora no Nindó Tocoxho, o que é dono das montanhas. O que tem poder para encantar os espíritos. E que , assim mesmo, cura os doentes. Para o qual sacrificam perus e ao qual os curandeiros entregam moedas (cacau), para que cure.

Parei junto dele e me aproximei mais. Vi que não tinha rosto, embora usasse um chapéu branco. Seu rosto, sim, era como uma sombra. A noite era negra, as nuvens cobriam o céu, mas o Chicón Nindó era como um ser coberto com um halo. Emudeci.

O Chicón Nindó não disse nem uma palavra. Logo fez sua cavalgadura andar para seguir seu caminho. Desapareceu pela estrada, rumo a sua morada: o enorme Monte da Adoração. O Nindó Tocoxho. Ele vive lá, eu no Monte do Fortim, o mais próximo do Nindó Tocoxho. Quer dizer que somos vizinhos. O Chicón Nindó tinha vindo porque, em minha sábia linguagem, eu o tinha chamado.

Entrei em casa e tive outra visão: vi que algo caía do céu com um grande estrondo, como um raio. Era um objeto luminoso que cegava. Vi que caía por um buraco que havia na parede. O objeto caído foi se transformando em uma espécie de ser vegetal, também coberto por um halo, como o Chicón Nindó. Era como uma planta, com flores de muitas cores, na cabeça tinha um grande resplendor. Seu corpo estava coberto de folhas e talos. Ficou ali parado, no centro da choça, olhei-o de frente. Seus braços e pernas eram como ramos, e estava empapado de frescor, e por trás dele apareceu um fundo avermelhado. O ser vegetal foi se perdendo nesse fundo avermelhado até se perder completamente. Ao esfumar-se a visão eu suava, suava. Meu suor não era morno, mas fresco. Dei-me conta de que eu chorava e minhas lágrimas era de cristal, e quando caíam no chão, tilintavam. Continuei chorando, mas assobiei e aplaudi, toquei e dancei. Dancei porque sabia que era a Polichinela grandiosa e a Polichinela Suprema… De madrugada, dormi placidamente. Dormi, mas não um sono profundo, eu sentia que me movia num sonho… Como se meu corpo se movesse uma rede gigante, pendurada no céu, qu oscilava de uma montanha a outra.

Despertei quando o mundo já estava ensolarado. Era de manhã. Lancei meu corpo no chão para ter certeza que já tinha voltado ao mundo dos humanos. Já não estava perto dos Seres Principais… ao ver o que me cercava, procurei minha irmã María Ana. Estava dormindo, não quis acordá-la. Também vi que uma parte das paredes da chocinha estava derrubada, outra estava para cair. Agora acho que enquanto osmeninos santos estavam trabalhando em meu corpo, eu mesma derrubei as paredes com o peso de meu corpo. Suponho que enquanto eu dançava choquei-me contra a parede e derrubei-a. Nos dias seguintes, as pessoas que passavam perguntavam o que tinha acontecido na casa. Limitava-me a dizer-lhes que as chuvas e vendavais dos últimos dias tinham conseguido afrouxar as paredes de barro e canabrava, acabando por destruí-las.

E María Ana sarou. Sarou para sempre. Atualmente vive bem, com seu marido e seus filhos, perto de Santa Cruz de Juárez.

A partir daquela cura, tive fé nos meninos santos. As pessoas se deram conta do quanto era difícil curar minha irmã. Muita gente ficou sabendo e dentro de poucos dias vieram procurar-me. Traziam seus doentes. Vinham de lugares muito afastados. Eu os curava com a Linguagem dos meninos. As pessoas vinham de Tenango, Río Santiago ou San Juan Coatzospan³. (³ povoado de raça mísxteca incrustado em plena região mazateca). Os doentes chegavam pálidos. Mas os cogumelos diziam-me qual era o remédio. Diziam-me o que fazer para curar. As pessoas continuaram a me procurar. E desde que recebi o Livro, passei a fazer parte dos Seres Principais. Se eles aparecem, sento-me com eles e tomamos cerveja ou aguardente. Estou entre eles desde a vez em que, agrupados atrás de uma mesa com papéis importantes, entregaram-me a sabedoria, a palavra perfeita: A Linguagem de Deus.

A Linguagem faz com que os moribundos voltem à vida. Os doentes recuperam a saúde quando escutam as palavras ensinadas pelos meninos santos. Não há mortal que possa ensinar essa Linguagem.
Depois que curei minha irmã María Ana, compreendi que tinha encontrado meu caminho. As pessoas sabiam disso, e vinham a mim para que eu curasse seus doentes. Vinham em busca de cura aqueles que tinham sido encantados por duendes, os que tinham perdido o espírito por um susto no monte, no rio ou na estrada. Alguns não tinham remédio e morriam. Eu curo com a Linguagem, a Linguagem dos meninos santos. Quando eles aconselham sacrificar franguinhos, estes são colocados em cima das partes onde dói. O resto é da Linguagem. Mas meu caminho em direção a sabedoria em breve será interrompido.

(…)

 

² De acordo com explicações que nos deram os anciãos de Huautla, os Seres Principais são personagens que encabeçam um cargo municipal, ou é o título que se dá a pessoas que têm cargos importantes. Em mazateco se diz ”Chotáa-tjí-tjón“ . No que diz respeito às visões de María Sabina, os Seres Principais são a personificação dos cogumelos que ela comeu.Os cogumelos se transformam em “personagens que manuseiam papéis importantes”. Outra pessoa em Huautla, disse-nos que os Seres Principais são como “sombras” ou pessoas que se “vêem” vestidas como camponeses, mas com roupas brilhantes e coloridas quando vistas durante o transe.

 


 

 

 

 

Texto Retirado de “A vida de Maria Sabina, a sábia dos cogumelos” de Álvaro Estrada

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